Abr2020 "Ponto cardeal" - Curadoria | Prefácio

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Ao Leitor Você está feliz com quem é hoje? Pois o protagonista em transição de Ponto cardeal não está. Entender o processo da transexualidade é algo que exige conhecimento, mas, mais do que tudo, empatia. Antes de você começar a sua leitura, portanto, você conhecerá a história da autora, a francesa Léonor de Récondo. Nascida em 1976, a multiartista – que transita entre a música e a literatura com a mesma graça com que toca seu violino – contou, em entrevista à TAG, sobre suas motivações para escrever a história de Laurent/Lauren. Você também vai conhecer um pouco do contexto do lançamento desse romance na França. A obra, cuja tradução para o português chega em primeira mão para os assinantes da TAG, foi premiada pelo júri estudantil do prêmio France Culture-Télérama, uma honra que sua autora achou muito apropriada. Disse ela que, em época de manifestações contra o direito de casamento para todos, os jovens têm a consciência de que podem ser privados do direito de ser quem são. Seguindo nessa linha, também apresentamos nesta revista um panorama da literatura francesa contemporânea e de suas temáticas. E se você está curioso por mais obras que lancem luz sobre a questão da transexualidade, selecionamos seriados, filmes e outros livros que possam lhe interessar para complementar esta leitura. Vamos lá?


abril/2020

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Edição

Impressão

Fernanda Grabauska Rafaela Pechansky

Impressos Portão

Redação

Bruno Miguell M. Mesquita Gabriela Heberle Kalany Ballardin Paula Hentges

Projeto Gráfico

Daniel Silveira Fernanda Grabauska Laura Viola Hübner Maurício Lobo Nicolle Ortiz

design@taglivros.com.br Capa

produto@taglivros.com.br

Luísa Zardo design@dublinense.com.br

Revisão Antônio Augusto da Cunha Gustavo Lembert da Cunha Liziane Kugland

Como manusear a nova revista

Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.

Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se!


Sumário

Ilustração: Luísa Zardo

prefácio

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Entrevista com Léonor de Récondo

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Unboxing

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O livro indicado: Ponto Cardeal

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A literatura francesa contemporânea

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Transexualidade na cultura pop

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Entrevista: Léonor de Récondo

“A literatura pode e deve tratar de todos os assuntos” Uma romancista-violinista. Quem acompanha a trajetória da francesa Léonor de Récondo provavelmente pensaria nela como o contrário, dada a sua proeminência no instrumento desde a juventude. Nesta entrevista à TAG, a autora de Ponto cardeal fala da transição da música para a escrita e conta sobre o processo de pesquisa para compor sua protagonista. Aclamada pela originalidade de sua obra no meio literário francês, a autora também destaca o ponto de contato que o livro que você recebe proporcionou não só com a comunidade trans como com a geração mais jovem de leitores.

TAG — Queria que você começasse falando um pouco de como passou a dividir seu tempo entre a literatura e a música.

Entrevista: Fernanda Grabauska Tradução: Nicolle Ortiz Fotografias: Divulgação

Léonor de Récondo — O tempo entre essas duas atividades é variável, nunca é fixo. Quando comecei a ser publicada, eu era violinista o tempo inteiro. Com a chegada dos livros, as viagens e a divulgação que eles implicaram mudaram o equilíbrio das coisas. Hoje, diria que me tornei uma romancista-violinista e não mais o contrário. Mas, apesar de fazer menos concertos, toco violino todos os dias. Preciso dele para meu equilíbrio interior.

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A música tem papel na criação das suas histórias? Não sei. Não tem um papel no enredo, mesmo que às vezes os personagens toquem um instrumento ou sejam apaixonados pela música. Diria que busco mais que a música encontre seu lugar na linguagem. Procuro que as minhas frases sejam harmoniosas e fluidas, que o ritmo do livro seja predominante do início ao fim. Noções comuns à música e à literatura. É um trabalho árduo.

Ponto cardeal teve grande repercussão entre os jovens na França, vencendo o prêmio France Culture-Télérama (premiação concedida por um júri de estudantes secundaristas). Como foi para você ver a recepção do romance?

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Foi ótimo conhecer essa nova geração de leitores, estudantes na casa dos 20 anos. Em geral, os leitores que encontro nas livrarias são 40 anos mais velhos! E essa geração é muito engajada pelas questões de gênero, reivindicando o direito fundamental de se afirmar em um ou outro gênero, ou em nenhum dos dois. Fiquei muito interessada por isso ao falar com eles. Nasci em 1976. A minha geração estava bastante envolvida com o direito de viver e escolher sua orientação sexual, ainda no contexto do medo da AIDS nos anos 1980 e 1990.

Como lhe surgiu a personagem de Laurent/ Lauren? Como você pesquisou para compô-la? A personagem da Lauren veio até mim quando vi a capa da revista americana Vanity Fair. Havia uma foto de página inteira da Caitlyn Jenner (atleta transgênero norte-americana, conhecida do público pelo reality show Keeping up with the Kardashians). Eu não a conhecia, e foi descobrindo sua história, sua transição de homem para mulher, que quis escrever sobre o que poderia representar, para uma pessoa, estar no corpo errado, no sexo errado, na pele errada. Li livros, depoimentos e vi documentários. Não contei a história de ninguém em particular, convidei os personagens.


Depois da publicação do livro, no entanto, conheci mulheres trans que me disseram que essa história era a delas. E isso me comoveu muito.

O que você acha que a trajetória de Lauren tem a ensinar ao leitor? Tolerância, eu espero. A liberdade de ser você mesmo, ainda que o percurso possa ser muito difícil. Nós temos apenas uma vida, apenas um corpo. É preciso encontrar equilíbrio para alcançar a harmonia interior.

Como você vê a questão da transexualidade na literatura? Algum outro livro de ficção que você possa nos indicar a esse respeito? A literatura pode e deve tratar de todos os assuntos! Pessoas trans me disseram, depois de lerem Ponto cardeal, que há muito poucos personagens trans de ficção. Não tinha imaginado isso. Quando eu entro numa livraria, há muitas personagens que se parecem comigo, tenho uma escolha. Pessoas trans ainda não podem escolher. A construção de uma identidade também passa pela leitura e pela representação de si nos personagens. Recomendo Orlando, de Virginia Woolf e o magnífico filme Laurence anyways, de Xavier Dolan.

Qual seu recado aos mais de 20 mil brasileiros que vão receber Ponto Cardeal? Que espero que eles gostem de ler o livro, que acompanhem de perto cada um dos personagens, e que se deixem levar. Esse é o meu desejo!

“A construção de uma identidade também passa pela leitura e pela representação de si nos personagens.”

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Unboxing

Projeto gráfico

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O projeto gráfico do mês foi baseado na ideia de esconde-esconde. A ideia é retratar onde se esconde quem não sabe mais para onde ir – a pessoa atrás da cortina é uma metáfora para a trajetória de Laurent.

Mimo

Você recebeu uma caneca exclusiva que homenageia os leitores mais ousados. Ela faz parte de um conjunto de quatro canecas estampadas com diferentes frases para combinar com a hora do descanso e da concentração. Afinal, poucas companhias são melhores para o momento da leitura do que uma boa xícara de café.

Reading is sexy é uma campanha internacional de cultivo ao hábito da leitura. Ler desenvolve o senso crítico, fomenta a curiosidade, ajuda na confiança e na autoestima: ler é sexy.


O slogan é uma homenagem da TAG aos leitores que, seja durante uma palestra mais longa, seja durante uma discussão familiar sobre política, são invadidos pelo desejo do repouso ao lado de um livro.

Não nos entenda mal, nós também adoramos assistir a um cineminha. Mas todo leitor já proferiu e ouviu esta frase algumas vezes: “Não é que o filme seja ruim, mas o livro é tão melhor…”

Se você está lendo isto, certamente já viveu a experiência de terminar um livro e entrar em uma profunda crise literária: e agora, o que será feito dos meus novos personagens favoritos? Pois então: só café cura.

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O livro indicado

Ponto cardeal de Léonor de Récondo

Texto: Maurício Lobo

Uma rápida pesquisa pelo nome de Léonor de Récondo na internet revelará que a autora do livro deste mês é fenômeno recente na literatura – mas nem tão recente assim no mundo da arte. Se hoje é celebrada pelos romances que publicou nos últimos dez anos, Léonor já tem um extenso caminho percorrido na companhia de seu violino há pelo menos vinte. O principal empecilho para apreciar a parcela literária de sua obra, por enquanto, é sua publicação fora de território francês. Ponto cardeal, quinto romance da romancista-violinista, é o primeiro dos esforços em trazer o universo de Récondo ao conhecimento do público-leitor brasileiro, a quem restará, para além desta publicação inédita, desfrutar de suas interpretações clássicas e barrocas na mais universal das linguagens. Filha de uma poeta francesa e de um escultor espanhol, a autora, nascida em Paris em 1976, fez da onipresença da arte em sua casa o principal combustível de aprendizado. Em suas lembranças mais remotas, acessa facilmente os momentos de brincadeiras ao redor dos corpos retorcidos cuidadosamente lapidados pelo pai, Félix. No lar dos Récondo havia muita música, embora faltassem músicos. A menina quis preencher essa vaga tão logo aprendeu a se comunicar. De acordo com a lenda familiar, Léonor pediu o primeiro violino aos três anos. Tendo seu insistente pedido atendido aos cinco, nunca mais abandonou a prática do instrumento. A verdade é que Léonor dedicou sua vida à música de forma quase integral por três décadas: prodigiosa desde o princípio, chegou a virar matéria na televisão francesa durante a adolescência e recebeu uma bolsa de estudos no Conservatório de Música de Boston ao completar dezoito anos. Tão logo dominou a obra de Mozart e Bach, dois gigantes da música clássica,

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mudou-se para a Bélgica, onde, no Conservatório Real de Bruxelas, cruzou uma nova fronteira musical ao descobrir no barroco a liberdade que o gênero proporcionava – comparável à do jazz. Bases sólidas, portanto, para dar início a uma carreira de feitos expressivos e que renderam uma sucessão de prêmios, destaques nos programas de orquestras e quartetos de cordas, direção de óperas e gravações de álbuns. É comum, no universo musical, dar-se grande importância aos momentos de silêncio em uma composição – afinal, são os contrastes que nos convidam às mais diferentes emoções. De maneira análoga, é natural que musicistas necessitem de grandes intervalos entre sessões musicais, poupando seus ouvidos apenas para que o desejo pelo impacto físico do som volte com toda a intensidade. Coincidentemente ou não, a literatura começou a surgir nessas pausas que acompanhavam a carreira de Léonor. De manhã cedo ou tarde da noite, entre voos e apresentações mundo afora, a escrita se tornou um hábito. Inicialmente, diários com anotações simples, que gradualmente se tornaram ideias sólidas, e, logo, projetos de romances.

A necessidade de escrever era grande demais para voltar atrás: a identidade artística de Léonor havia sido duplicada. Sem saber se daria conta de equilibrar duas paixões que demandam enorme disciplina, ela (com a irresponsabilidade artística que só um grande criador se permite) se lançou em direção ao desconhecido. Sua estreia no romance aconteceu em 2010, com La Grâce du cyprès blanc (A graça do cipreste branco, em tradução livre), no qual revisita o mito de Orfeu ao narrar a beleza e o drama das experiências vividas por um músico poeta. Dois anos depois, sem perder o fôlego literário, publicou Rêves oubliés (Sonhos esquecidos, em tradução livre), tributo à família de seu pai, que, durante a década de 1930, precisou fugir do País Basco, região


espanhola tomada pelo Franquismo, e encontrou novo lar na França. Embora a recepção crítica desses romances já tenha sido positiva, foi com a terceira e quarta publicações que Léonor conquistou atenção nacional. Pietra viva (2015) conduz uma versão ficcional do renascentista Michelangelo, no auge da carreira, em uma jornada que lhe despertará emoções reprimidas e transformará seu trabalho para sempre. Já Amours (2015) relata a libertação homossexual de uma empregada nos anos 1900. Tais publicações e a consequente exaltação pública foram suficientes para convencer Léonor a dedicar-se tanto ao violino quanto à escrita. A escritora decidiu resgatar a noite em que seu pai morreu. “O que me interessava, precisamente porque meu pai era um criador, era infundir literatura a esse episódio. Como soprar literatura nesta história, nesta expectativa?” Ela decidiu, assim, contar a história do pai por meio de uma conversa imaginada com Ernest Hemingway – ela viria a descobrir, durante a pesquisa, que o escritor americano havia conhecido a família do pai dela, na Espanha, quando ele era uma criança.

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Foi precisamente nesse contexto de consolidação enquanto romancista que Récondo pôs em prática uma de suas obras tematicamente mais complexas. Reflexões acerca do corpo, da sexualidade, da identidade e seus limites (ou a falta deles), elementos que a própria escritora reconhece como obsessões em sua obra, culminam e reverberam com maior intensidade no seu quinto romance, que chega ao leitor da TAG no kit deste mês. Ponto cardeal é um título que insinua uma série de sentidos. De todos esses, o leitor encontrará a procura de um sujeito por seu lugar no mundo. É a história da busca por uma localização ideal. Já nas primeiras linhas, um narrador em terceira pessoa nos apresenta duas personagens: Laurent e Mathilda. Duas faces de uma mesma pessoa em plena tensão com sua identidade de gênero. Laurent, que depois passa a atender pelo feminino Lauren, é funcionário de uma empresa de energia eólica e marido da professora primária Solange, com quem tem dois filhos, Thomas e Claire. Já Mathilda é a mulher que aflorou, ainda na infância, de maneira decisiva na mente de Laurent. A convivência entre ambas as identidades foi sendo agenciada às escondidas pelo, até então, protagonista. E sua mente sofreu em silêncio enquanto o corpo fez o que podia para suportar as imposições culturais. Com o passar do tempo, a rotina de escapar dos olhos da família e do resto da sociedade – o ritual de entrar no carro, ouvir sempre a mesma canção enquanto aplica maquiagem; vestir o salto e o vestido, perfumar-se, colocar a peruca e entrar no bar Zanzibar com as amigas – deixa de ser uma opção permanente. Laurent quer parar de se esconder e transitar de vez. Para isso, tem o apoio de Cynthia, sua amiga transgênero, há mais tempo no processo de transição. A família, o trabalho, o mundo como um todo são obstáculos para a transformação. Seus encontros com um renomado analista são simbólicos ao demonstrarem os atrasos da terapia em relação aos problemas enfrentados por pessoas que não se identificam com o gênero imposto no nascimento. Assim, em Ponto Cardeal, Récondo expõe um coletivo intolerante que, de maneira assustada e violenta, tenta manter intactos os tabus morais de uma sociedade conservadora.


O narrador em terceira pessoa se desdobra em múltiplos processos narrativos, desde a tradicional descrição expositiva dos eventos, passando pela simbiose com a subjetividade dos personagens ao transcrever seus pensamentos, chegando, por fim, à manifestação bruta dos processos psíquicos dos personagens, que se expõem de maneira direta, apoderando-se do discurso do narrador. Solange, a esposa de Laurent – que representará o principal ponto de conflito emocional na trama –, também é tratada com profundidade pela autora, moldando-se diante das situações. Sua complexidade psicológica é de tamanha expressividade que, pode-se dizer, sua personalidade acompanha as transformações de Laurent, ainda que com resistência e sofrimento. Em algumas ocasiões, devido às mudanças de focos narrativos entre os personagens, Solange torna-se protagonista da história e, nesse momento, fica difícil para o leitor não se afeiçoar a suas angústias e desejos. Contudo, logo somos colocados novamente diante dos dramas enfrentados por Laurent.

Como a própria esposa reflete, “há na sinceridade de Laurent alguma coisa que comove profundamente”. Após sua publicação, Ponto cardeal conquistou o prêmio de romance dos estudantes France CultureTélérama, o que ajudou Léonor a descobrir uma geração preocupada com questões de gênero. Aos 43 anos, ela não se lembra de ter essas inquietações durante a juventude. Percebe, no entanto, as graduais mudanças de paradigmas; sabe que a abordagem apresentada em seu livro é mais um dos importantes passos sociais na direção de uma realidade um pouco mais lúcida e igualitária: "Eu cresci na sombra da AIDS. Sou da geração de retraimento para o eu em relação à sexualidade. Uma retirada ligada ao medo, em direção a algo mais convencional, com forte retorno à maternidade. Tenho a impressão de que os jovens estão reabrindo o que havia sido fechado.”

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A literatura francesa contemporânea Michel Houellebecq

Leïla Slimani 16

Nascida no Marrocos em 1981, Slimani é um expoente da nova literatura em francês. Crítica do fundamentalismo islâmico, atuou como jornalista e foi presa ao cobrir a Primavera Árabe, dando início, em seguida, ao projeto de seu primeiro romance, No jardim do ogro. Sua obra explora as áreas mais sombrias da alma humana: é o caso de Sexe et Mensonges, livro de não ficção que aborda a exploração sexual no Marrocos, e Canção de ninar (2016), suspense inspirado no caso de uma babá que assassinou duas crianças.

es e Despent Virginie imani Leïla Sl

Romancista, poeta e ensaísta, Houellebecq é um dos autores franceses mais lidos da atualidade, e também um dos mais controversos. Para os mais críticos, é racista, misógino e islamofóbico. Outros, entretanto, acreditam que ele canaliza para a literatura os sentimentos de ódio que enxerga na sociedade francesa. A distopia Submissão imagina uma França governada por um muçulmano, e Serotonina, sua última obra, volta-se para as angústias da região rural do país.


Édouard Louis Nascido em 1992 (é o autor mais jovem desta lista), Louis se tornou um fenômeno literário na França com apenas 22 anos, após a publicação de O fim de Eddy. Este romance autobiográfico revela as humilhações e frustrações que um menino enfrenta crescendo em uma cidade operária extremamente homofóbica.

Annie Ernaux Premiada em seu país e ainda pouco conhecida por aqui, a autora francesa, de 79 anos, fez do livro Os anos o esforço mais ambicioso de sua bibliografia, composta de quase 30 livros. O título deve ser compreendido de forma literal, e abrange quase uma vida inteira: da infância, nos anos 1940, até a maturidade, em 2007, que tem como ponto culminante a eleição do ex-presidente Nicolas Sarkozy.

Anna Gavalda Nascida em Paris em 1970, a tradutora e escritora best-seller Anna Gavalda ainda era professora de Ensino Médio quando publicou seu primeiro livro. Entre seus romances, destacam-se o aclamado Enfim, juntos (2004), adaptado para o cinema por Claude Berri, e Uma bela escapada (2009), que narra algumas divertidas horas na vida de quatro irmãos.

Virginie Despentes Escritora e cineasta, Despentes é uma das escritoras mais cultuadas na França, e relativamente pouco conhecida no Brasil. Baise-moi, seu livro de estreia, conta de forma gráfica a vingança de uma mulher vítima de estupro. Escrita enquanto Despentes trabalhava como prostituta, teve a adaptação para o cinema dirigida por ela. Apelidada de a “voz dos marginalizados”, Despentes oxigenou o feminismo francês com sua biografia A teoria King Kong, lançada em 2006. 17

David Foenkinos Músico, roteirista e romancista, Foenkinos recebeu atenção de público e crítica franceses com a publicação de A delicadeza (2009). O romance narra o luto de uma mulher que, separada do amor de sua vida, precisa reaprender a estar no mundo. A obra foi parar nas telas do cinema com o título A delicadeza do amor, longa estrelado por Audrey Tautou e roteirizado por Foenkinos.


Transexualidade na cultura pop

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Tangerine (2015) Filme de ficção de Sean Baker

Duas mulheres trans (interpretadas por Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor), prostitutas e marginalizadas, são as protagonistas deste aclamado e inovador longa-metragem. Sin-Dee Rella (Rodriguez), após passar 28 dias na prisão, reencontra a amiga Alexandra e descobre que seu namorado a está traindo com uma mulher cisgênero. Uma curiosidade sobre este filme é que ele foi filmado inteiramente com três iPhones diferentes. Um desses celulares, inclusive, foi imortalizado no museu da Academia do Oscar em Los Angeles.

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Pose (2018) Seriado de Ryan Murphy, Brad Falchuk e Steven Canals

Disponível na Netflix, Pose é a série de maior representatividade da história da televisão. São mais de cinquenta pessoas trans trabalhando na série (e não apenas no elenco, mas também por trás das câmeras). A narrativa, que aborda os bailes LGBTQ nos anos 1980 e 1990 nos Estados Unidos, acompanha a vida de Blanca (Mj Rodriguez), mulher transgênero que descobre ser portadora do vírus HIV. Sabendo que seus dias estão contados numa sociedade que não se importa com a epidemia de AIDS, ela decide sair da sombra de sua mentora Elektra (Dominique Jackson) para construir sua própria casa.


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Apenas uma garota (2016) Romance da escritora trans norte-americana Meredith Russo

Apenas uma garota é o romance de estreia de Meredith Russo. E, assim como a autora, a protagonista Amanda Hardy é uma mulher trans. Russo retrata, na obra, o processo de transição de uma adolescente transexual, parcialmente inspirada em suas próprias experiências. Enquanto traz à tona questões difíceis, como dilemas existenciais, preconceito e bullying, o livro também fala de forma esperançosa e leve sobre amizade, descobertas e autoaceitação.

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Morte e vida de Marsha P. Johnson Documentário de David France

Ativista trans negra, Marsha P. Johnson foi uma das líderes da revolta de Stonewall – série de manifestações ocorridas em Nova York e conhecida como propulsora do movimento LGBTQ contemporâneo. Sua morte trágica e cercada por mistérios é o ponto de partida deste documentário, que traça a luta por justiça ao apresentar diferentes versões sobre o caso. O resultado é um resgate fundamental da vida de um dos nomes mais importantes da luta histórica pelos direitos LGBTQ.

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Oração Canção e clipe de Linn da Quebrada

Em novembro de 2019, Linn da Quebrada, mulher trans, negra, periférica e um dos nomes mais proeminentes da música brasileira atual, lançou o clipe da música Oração, celebrando a vida e a dignidade da comunidade LGBTQ. O clipe conta com a participação de diferentes artistas LGBTQ, como a cantora Liniker.

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Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.


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Ao Leitor Kurt Vonnegut dizia que "somos o que fingimos ser, logo devemos ter cuidado com o que fingimos ser". Eis a questão que colocamos a você, leitor: qual é o limite do fingimento? No livro que você recebeu, o protagonista decide parar de se esconder para buscar a própria verdade. Não é que Laurent não fosse feliz com a vida que tinha – é que a vida doméstica perfeita não era o suficiente se ele não fosse quem realmente é: a corajosa Lauren. Este posfácio traz a história de duas mulheres em transição que também ousaram ser quem são. Elas comentam as semelhanças e diferenças que encontraram ao comparar a história da protagonista às próprias trajetórias. E por falar em luta, traçamos um retrato da transexualidade na literatura brasileira e mundial. Você vai ver como o tratamento desses personagens mudou com o passar dos tempos até chegar a histórias como a de Ponto cardeal. Em entrevista, nosso curador, Contardo Calligaris, também colabora na missão tão necessária de entender a pulsão por mudança de Lauren – e nos ajuda a compreender, de uma vez por todas, por que o diferente incomoda tanto a alguns. Desejamos que você termine essa leitura com a certeza de que deixar de fingir exige coragem – mas que, sim, é possível. Boa leitura!


“Ao que ela teria contestado, não, desconversado, na beira do andaime ainda a descoberto: –Eu também, preciso de alguém que só me ame.” (CÉSAR, Ana Cristina, in: "A teus pés")

Ilustração do mês Bruna Barros nasceu no interior de Minas Gerais, onde passou a infância desenhando nos espaços vazios da vida. Em Belo Horizonte, estudou moda e design de ambientes, tendo completado sua formação na Academia de Belas Artes de Veneza. Tapetes, ilustrações medievais, esculturas de povos antigos, viagens e a constante observação do mundo ajudam-na a criar com materiais diversos e sobre os suportes mais distintos. Hoje, ela desenvolve histórias para livros infantis, ilustra jornais de São Paulo e possui um estúdio de tatuagem, onde cria e tatua desenhos exclusivos. A cena em que Laurent por fim se assume Lauren em frente à família foi representada por Bruna na ilustração. O choque que se abate sobre os presentes naquela mesa de jantar ganhou ares de graphic novel sob o olhar da artista.


Sumário

Ilustração: Luísa Zardo

posfácio

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Entrevista com Contardo Calligaris

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A estante do autor

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A presença trans na literatura de ficção

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A questão familiar na transição

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Entrevista com mulheres em transição

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Jarid Arraes: A curadora de maio

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Entrevista: Contardo Calligaris

“A ficção é a via régia de acesso à diversidade dos outros” Um dos cronistas mais sensíveis do Brasil atual, o psiquiatra e psicanalista Contardo Calligaris fala, nesta entrevista, sobre como a leitura é o maior dos exercícios de alteridade. Ele, que diz não confiar em quem não lê e nem assiste a ficção, conta à TAG sobre sua relação com a leitura e a escrita e fala daquilo que o associado pode aprender com a história de Ponto cardeal.

TAG — Queria que você começasse nos contando um pouco da sua relação com a escrita – desde aquela relativa à sua área de atuação profissional até suas incursões na literatura. Como foi sua caminhada de pesquisador a cronista e romancista?

Texto: Fernanda Grabauska Fotografia: Max Calligaris

Contardo Calligaris — Na verdade, a escrita de ficção foi a primeira. E tendo a pensar que minha formação acadêmica e psicanalítica foi, por assim dizer, uma espécie de “desvio”. A partir dos 10 anos ou por aí, só queria ser escritor (de ficção e de aventura – embora imaginasse que as aventuras seriam, de alguma forma, as que eu mesmo viveria). Minto, queria ser escritor e fotógrafo. O primeiro texto que escrevi foi um conto de ficção, uma história que se passava na Segunda Guerra Mundial, no front do Pacífico (bem longe de casa, né?). Depois disso, aos poucos, a universidade e a psicanálise transformaram a minha escrita. A volta à ficção

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começou pelas crônicas semanais na Folha: com elas, reaprendi a escrever e redescobri o prazer de contar. O que me levou, enfim, aos romances. Teria continuado escrevendo romances se não tivesse encontrado a HBO no caminho e passado seis anos escrevendo e dirigindo um seriado autobiográfico-ficcional, Psi. Enfim, a ficção para mim não é apenas o prazer de ler e de escrever. É também uma espécie de parâmetro moral: não confio em quem não lê ficção ou não assiste a ficções no cinema. A ficção é a via régia de acesso à diversidade dos outros e à nossa própria complexidade.

Por que a indicação de Ponto cardeal para a TAG?

Fotografia: Rodrigo Cancela

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Porque o livro nos aproxima de uma experiência que pode ser muito afastada da nossa, mas, pela escrita de Récondo, se torna possível de entender, em toda sua complexidade, justamente.


Sobre a personagem de Laurent/Lauren, o que você acha que ela tem a nos ensinar? A grande lição é que alguém pode querer ou precisar mudar de gênero sem que essa necessidade interna seja ligada a uma fantasia sexual. Por isso, o tema do livro de Récondo pode ser escabroso, mas o texto é, paradoxalmente, castiço. Interessante notar que o livro ganhou, na França, o prêmio dos estudantes secundaristas, o Prix du roman des Etudiants France Culture - Télérama. Quase sempre leio os romances franceses que ganham esse prêmio: confio nos estudantes franceses do ensino médio. É um livro necessário em uma época em que a maioria das pessoas entende muito pouco do que é o drama de alguém que, ao se ver no espelho, descobre que nasceu, por assim dizer, “no corpo errado”.

Apenas recentemente a transexualidade deixou de ser classificada como doença pela OMS. Como você vê a evolução da relação entre medicina, psicologia e identidade de gênero? A medicina e a psicopatologia apenas voltaram a fazer seu trabalho, ou seja, deixaram de ser milicianas a soldo da boçalidade dos moralistas. Só para explicar: na minha terminologia, os boçais são todos aqueles que mal conseguem controlar dentro de si impulsos, desejos e fantasias que eles “desaprovam”. Não podendo se controlar, eles fazem de tudo para controlar os mesmos impulsos nos outros. E, com isso, ficam ridiculamente satisfeitos.

O que você acha que o leitor pode aprender a respeito de convivência com Ponto cardeal? A cena em que o vizinho assiste a Lauren levando o lixo, já vestida como mulher, é bem emblemática. A reação da colega e melhor amiga dela, também. Sem contar com a reação das “crianças”, que é muito bem elaborada por Récondo. Aliás, é bom começar pela reação do filho

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de Lauren, que todos entendemos facilmente, embora possamos esperar que seja diferente. Ou seja, ele, o rapaz, pode ser nossa porta de entrada para entender as dificuldades de quem desaprova, critica, despreza. Entendê-las não significa desculpá-las. Até porque essas reações são de fato contra os desejos e as fantasias daquele que reage.

Li uma entrevista em que você fala dos nossos problemas com a felicidade – como nosso desejo muda de foco quase imediatamente após atingirmos um objetivo muito esperado. Queria que você falasse um pouco disso e relacionasse à trajetória de Lauren. O contentamento dela após a transição vai acabar?

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É bem essa a questão. Se alguém chegar a mudar de gênero para realizar uma fantasia sexual, é muito provável que, uma vez a mudança feita, ele se deprima profundamente, inclusive com sérios riscos de suicídio. Pois, obviamente, não há reversão de uma mudança de gênero. A transição de Lauren, justamente, não parece obedecer a uma fantasia sexual, nem mesmo a um desejo: ela é uma necessidade básica da identidade dela – uma mudança sem a qual ela sequer conseguiria se reconhecer no espelho.

Por último, uma questão que acho que pode nos auxiliar a ler esse livro com olhos mais empáticos: por que o diferente incomoda tanto? O que disse antes sobre a boçalidade já constitui uma resposta. Odiamos o diferente porque ele nos apresenta algo de nós mesmos que preferimos ignorar, esquecer, reprimir e que, portanto, odiamos nos outros. Considerando o ódio que suscitam os transgêneros hoje, só podemos concluir que, no mínimo, fantasias sexuais de mudança de sexo devem correr cada vez mais soltas. Mais claro: quem despreza, odeia e quer reprimir uma Lauren está de fato incomodado com seus próprios sonhos de mudança de sexo. Mas essa é outra história – não a de Lauren.


A estante do autor O primeiro livro que li: vai saber, mas o primeiro livro grande (em número de páginas) que li por iniciativa só minha foi As far as my feet will carry me, de Josef Martin Bauer (li em italiano: Finché i piedi ci portano). O livro que estou lendo: Monsieur, de Emma Becker e As Coisas, de Tobias Carvalho O livro que eu gostaria de ter escrito: A divina comédia, de Dante Alighieri O último livro que me fez chorar: É isto um homem?, de Primo Levi O último livro que me fez rir: na adolescência, eu ria bastante com os romances de Guareschi, as histórias de Don Camillo e Peppone. Já não sei se hoje eu acharia graça. O livro que eu não consegui terminar: muitos, e não é uma coisa de conseguir ou não conseguir. Já faz uns vinte anos que perdi toda a vergonha e abandono a leitura assim que um livro me entedia, sem complexos. O livro que eu dou de presente: pergunta impossível. É preciso saber para quem... O livro que mudou a minha vida: Teorias de século e cristianismo, do jesuíta Vittorio Marcozzi. Era um livrinho que criticava marxismo, darwinismo e freudismo com uma leviandade extraordinária. Li, e me pareceu tão brega e nulo que me interessei imediata e sucessivamente pelo marxismo, pelo darwinismo e pela psicanálise. Marcozzi foi, em suma, uma influência decisiva na minha vida.

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A presença trans na literatura de ficção

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Ainda que o debate acerca da transexualidade na literatura ocidental seja relativamente recente, uma série de representações dessa natureza já podem ser vistas de maneira mais evidente a partir do início do século 20. Algumas delas podem ser conceitualmente debatidas, como Orlando (1928), de Virginia Woolf. Numa época em que a existência transgênero não era uma possibilidade socialmente aceita, Woolf escreveu uma sátira na qual Orlando, nobre nascido durante o reinado de Elizabeth I, acorda mulher um dia e vive por mais de 300 anos nessa condição. A obra, que ironiza as limitações impostas aos diferentes gêneros, também evoca outras reflexões que reverberam na contemporaneidade. “A mudança de sexo, embora viesse a alterar o futuro deles, nada fizera para lhes mudar a identidade”, escreve Woolf sobre a (o) protagonista. Outras obras com representações de personagens trans ainda surgiriam ao longo do século 20 – muitos cercados por perspectivas Meredith Russo irônicas e negativas. Em King rat (1962), de James Clavell, um prisioneiro de guerra forçado a performar papéis de mulheres em apresentações teatrais sofre com crises de identidade, até a completa transformação de sua identidade de gênero. Tal situação, no entanto, implicará violências, como tentativas de estupro, e um trágico suicídio. Já o romance Myra Breckinridge (1968), de Gore Vidal, é narrado na perspectiva de Myra, uma


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Jordy Rosenberg

Akwaeke Emezi

mulher trans decidida a pôr fim à masculinidade de seu tempo. Embora a obra tenha sido considerada por alguns críticos como subversiva e questionadora quanto a papéis de gênero e sexualidade na conservadora sociedade ocidental da época, outros entendem a sátira como dotada de elementos reducionistas, transfóbicos e homofóbicos. A partir dos anos 1970, começam a surgir romances com óticas mais complexas. A britânica Angela Carter publicou, em 1977, A paixão da Nova Eva, fábula sombria e violenta com personagens transgênero, cirurgias de transição forçadas e discussões sobre performance de gênero. Já a saga da vida em São Francisco Histórias de uma cidade (1978-2014), obra em seis volumes que se tornou série da Netflix em 2019, apresentou a icônica personagem trans Anna Madrigal, proprietária da pensão onde moram os principais personagens da série. Outros livros que se destacaram ainda no século 20 são Stone Butch Blues (1993), de Leslie Feinberg, Nearly Roadkill (1996), de Caitlin Sullivan e Kate Bornstein e Breakfast on Pluto (1998), de Patrick McCabe. A visibilidade de pessoas trans aumentou a partir do século 21, embora o progresso na direção do desenvolvimento de seus direitos não seja um processo linear. De qualquer forma, é positivo observar um crescimento de publicações literárias com representações diversas. Nesse caso, vale mencionar não apenas obras com personagens trans, mas de autoria trans. Alguns dos nomes mais destacados da língua inglesa atualmente são Meredith Russo (autora de Apenas uma garota, de 2017), Jordy Rosenberg (autor de Confessions of the fox, de 2018) e Akwaeke Emezi, que escreveu Água doce (2018).


A questão familiar na transição

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Em Ponto Cardeal, um dos mais difíceis obstáculos enfrentados por Laurent em sua transição de gênero está na família. Mulher e filhos, a princípio, mostram-se incapazes de compreender o processo. Sendo a família um alicerce biológico e emoticional, o protagonista compreende que a conquista dessa aceitação será um de seus principais sustentáculos nessa transição. Contudo, a resistência do núcleo impõe a Laurent abalos psicológicos, ainda que não suficientes para apagar sua intenção de transição medicamentosa e cirúrgica. A psicóloga Sofia Favero, especialista em assuntos relacionados à identidade de gênero, refere-se à transição sempre como um processo coletivo e nunca individual. Portanto, a relação familiar torna-se fundamental, visto que, como defende a psicóloga Rafaela Vasconcelos, citado por Sofia, a transição modifica as perspectivas identitárias da família. Ou seja, se a identidade de Laurent, como pai, transita para a de mãe, sua filha deixa de ser filha de pai e passa a ser filha de mãe. Essas mudanças no eixo do ponto de vista são fundamentais no processo relacional e não podem nunca ser negligenciadas. É exatamente esse processo de perspectivas que o filho adolescente de Laurent, Thomas, parece não absorver. Quando o pai conta para a família sobre


sentir-se mulher, Thomas tranca-se no quarto com raiva e pensa: “Me dá nojo. Um velho idiota que se acha uma velha”. Os insultos passam a ser constantes, tornando pesado o clima no lar. Interessa apontar que, nesse momento, Laurent é o único a procurar acompanhamento psicológico. Para Favero, um profissional da psicologia poderia auxiliar na resolução do conflito, ainda que a ajuda deva ser procurada conforme a necessidade de cada um, distanciando-se da ideia de coação. Sofia ainda destaca que o papel da psicologia é facilitar a solução do conflito da maneira mais adequada. Ou seja, não há necessidade de focalizar na finalidade da reaproximação familiar, visto que a convivência nem sempre pode ser boa para quem realiza ou realizou a transição. Trata-se de pensar a família como uma esfera não necessariamente de união perene.

Afinal, uma família é composta de seres imperfeitos, que vivem em um processo de aprendizagem diária. Sendo assim, as formas de abordar os conflitos relacionados à transição de gênero dentro do seio familiar podem ser distintos dependendo de cada caso. A representação das experiências de pessoas trans dentro e fora do núcleo familiar na literatura tem uma importância política fundamental nos tempos atuais. Ainda assim, como a psicóloga argumenta, é necessário desatrelar a relação entre sofrimento e transexualidade, visto que discursos cristalizados desse tipo acabam por fomentar processos de psicopatologização. A literatura, por fim, segue sendo benéfica para as sociedades e pode perfeitamente servir à causa trans, sendo uma ferramenta crítica de questionamento e emancipação.

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Mulheres em transição As narrativas da transexualidade são muitas. É um termo guarda-chuva, dizem, para designar uma série de identidades possíveis. Laurent/ Lauren pertence a uma realidade sobre a qual poucas histórias são contadas. Com isso em vista, a TAG ouviu o depoimento de duas mulheres trans sobre suas impressões a respeito de Ponto cardeal.* 15

Joanna de Freitas, estudante de Biblioteconomia

Ilustração: Luísa Zardo

A narrativa é a história clássica de uma pessoa trans. Ela vive se escondendo até que não consegue mais segurar. Também dentro da narrativa, a personagem de Lauren é uma trans feminina padrão. Ela usa salto, vestido, maquiagem... Isso é legal, mas talvez quem leia acabe pensando que é só isso que existe. Nesse sentido, é levemente caricato, porque pode dar essa impressão. Quem transita por ambientes de militância e quem já leu outros livros sobre transexualidade vai notar que a realidade não é essa, mas a escolha de personagem dá ao leitor algo que é padrão. O que dá para entender da família é que a convivência era uma fachada. Quando Lauren bate na mesa e diz que é uma mulher, achei que a relação dele com o filho seria mais bem explorada, mas fica restrita à conversa após o


futebol no carro. A filha foi diferente, era mais sensível e teve uma evolução bacana ao procurar ajuda nos conselhos do programa de rádio. Para quem quer se familiarizar com essa questão da transição, é uma boa leitura introdutória. Mas acho que o universo a ser explorado é muito mais plural e vai muito além de um homem decidir ser uma mulher heterossexual. Achei legal que a personagem não morre no final (risos). Mas com algumas coisas realmente me identifiquei. Quando Laurent se torna Lauren, ele fala que não colocaria próteses nos seios, que queria o corpo que seria formado pelos hormônios. Penso parecido. Há algo que fica no subtexto que é a boate que Lauren frequenta no início do livro. Poucas pessoas vão entender que aquelas mulheres trans com quem ela se comunicava eram pessoas que, ao contrário dela, viviam à margem, fazendo apresentações, talvez se prostituindo. Quando o livro termina e ela vai fazer a cirurgia, fiquei com vontade de saber o que acontecia depois. 16

Para quem não tem uma pessoa trans na vida, esse livro pode ser um pontapé inicial em termos de entendimento.


Ariel Roveda, estudante de Administração Li o livro e me surpreendi bastante porque é um livro que conta uma história um pouco fora dos padrões quando se fala de transexualidade.

Achei interessante abordar a transexualidade num espectro familiar.

*Os depoimentos foram editados e condensados para maior clareza.

Ao mesmo tempo, o livro não me agradou. No início, ele pareceu tratar a transexualidade como uma doença. Lauren vai se construindo ao longo do livro com agressividade, com brutalidade, de forma muito rápida. Parece muito mais um distúrbio do que transexualidade em si. Também há um subtom machista. É Solange que limpa a casa, cuida das crianças, tem responsabilidade sobre o lar. Há um machismo em relação à figura dela. O que mais me chocou no livro é a forma que a autora relacionou o genital ao sexo. O genital não é sexo. O livro poderia fazer isso, desconstruir o que é genital e o que é ser mulher. Há uma série de homens trans que têm vagina e uma série de mulheres trans que têm pênis. Me afligiu o jeito com que ela se referiu ao genital. Não sei como a transexualidade é tratada na França, mas sei que na Europa a cirurgia de vaginoplastia é mais evoluída do que aqui. Talvez seja uma divergência cultural: lá a cirurgia é de mais fácil acesso, é mais evoluída do que aqui. Mas acho que não é justificada essa pressa na transição, o genital não define o sexo de uma pessoa. Lauren, como mulher, é muito pouco solidária a Solange ao longo do livro. Solange estava ali por ela, elas estavam juntas há anos. Solange erra com Lauren? Erra, mas isso é uma opinião minha. Acho que a forma que Lauren a trata muito injusta: há muitos hormônios que ela poderia tomar para evitar a impotência, por exemplo. Se ela tivesse consideração por Solange, se ainda a amasse, ela poderia usá-los. Sobre essa questão do genital, acho que cada um faz o que quiser. Pensei mais que, entre elas duas, era possível fazer o amor funcionar.

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A curadora de maio

Jarid Arraes

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Fotografia: Divulgação

Jarid Arraes é muitas escritoras em uma. A cearense de 29 anos bebe de um manancial de inspirações que vão da literatura regional do nordeste às feministas da atualidade. Autora da premiada coletânea de contos Redemoinho em dia quente, Jarid estreou na literatura com As lendas de Dandara e – desde muito antes – já incursionava pela composição de cordel. Celebrando a literatura negra, Jarid indica à TAG um romance inédito no Brasil que retrata três gerações de uma mesma família. No estado da Geórgia, um fazendeiro negro se força a abandonar sua família e sua terra em busca de um futuro mais promissor. Em direção ao norte dos Estados Unidos, no entanto, ele descobre que o racismo e a pobreza que julgava estar deixando para trás estão em todos os lugares. É o início de uma história de sofrimento e redenção contada por uma das mestras da ficção norte-americana, premiada com o Pulitzer e com o National Book Award.


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