Set2020 "Tudo de bom vai acontecer" - Curadoria

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prefรกcio

Tudo de bom vai acontecer



Olá, tagger Você está prestes a embarcar na jornada da amizade entre duas mulheres. Antes que você pense em Elena Ferrante e sua tetralogia napolitana, nós já avisamos que o livro do mês é precursor: Tudo de bom vai acontecer, de Sefi Atta, foi lançado anos antes, em 2005. E, embora trate de crescer sendo mulher em uma época e uma cultura notadamente machistas, trata-se de uma obra que lança um olhar empoderador à questão. Enitan e Sheri crescem em meio a constantes conflitos na Nigéria, e este prefácio fornece o lastro para que você entenda melhor essa história. Além de conhecer um pouco mais sobre o livro, você vai entender a Guerra de Biafra, que completa 50 anos em 2020 e que ainda tem impacto na política nigeriana. A TAG também conversou com a curadora do mês, a nigeriana Ayòbámi Adébáyò. . . A escritora, que teve seu romance de estreia lançado no Brasil pela TAG Inéditos, conta um pouco sobre a escolha de Tudo de bom vai acontecer para a TAG, sobre seu processo criativo e sobre os livros em sua estante. Boa leitura! Você viu? Para afirmar nosso compromisso com a igualdade, passamos a adotar um gentílico gender neutral para você que lê nossa revista: trocamos o tradicional "leitor" por algo com a nossa cara – afinal, a TAG é feita de taggers!


setembro/2020

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Como manusear a nova revista

Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.

Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se!


Sumário prefácio

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O livro indicado: Tudo de bom vai acontecer

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Unboxing

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Sensibilidade e elegância

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Os fantasmas de Biafra, 50 anos depois

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A trilha sonora de Enitan


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O livro indicado

Tudo de bom vai acontecer de Sefi Atta

Texto: Rafael Balsemão Fotografia: Recorte da capa de Tudo de bom vai acontecer

Sefi Atta estabeleceu-se nos últimos anos como uma das escritoras mais interessantes da última onda de autores nigerianos, e dá continuidade ao legado de nomes como Flora Nwapa, Ifeoma Okoye e Buchi Emecheta, que a precederam. Natural de Lagos, Atta nasceu em 1964 e hoje desponta como uma artista que se propõe a modificar o olhar redutor, que ainda prevalece no Ocidente, de uma África marcada sobretudo por ideias de pobreza, subdesenvolvimento, violência e barbárie. Essa perspectiva que busca privilegiar inúmeras Áfricas num continente com 54 países já está presente em seu romance de estreia, Tudo de bom vai acontecer (2005), título que chega para os associados neste mês. Na obra, a autora narra, ao longo de 25 anos, a história de Enitan, menina de 11 anos que não vê a hora de começar a escola. Enquanto aguarda o início das atividades, a garota começa uma amizade proibida com a vizinha Sheri, que mais à frente sofre traumas por conta de sua conduta, considerada mais liberal pela sociedade. O livro tem como pano de fundo a autoridade militar da Nigéria nas décadas de 1970 e 1980 e é, ao mesmo tempo, uma campanha silenciosa de amadurecimento contra a corrupção política no país e a repressão às mulheres. Enitan é testemunha da deterioração lenta do casamento dos pais, marcado pela morte prematura do filho caçula. Após o episódio, sua mãe se tornará uma

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religiosa inflamada; o pai, apesar de ser um advogado progressista, entrará em conflito com a esposa e se mostrará tão machista quanto os outros homens da sociedade de Lagos. É na cidade mais populosa do país que Enitan viverá – entre o peso da tradição e o desejo de mudança – seus amores, frustrações e o trabalho como advogada, após estudar Direito na Inglaterra. Em paralelo às histórias individuais, a autora apresenta ao leitor aspectos políticos, históricos e comportamentais da Nigéria entre 1971, um ano após a trágica Guerra de Biafra, e 1995. Elogiado pela crítica especializada, com boa repercussão em publicações como os britânicos Times Literary Supplement e Observer Magazine e o sul-africano Sunday Independent, Tudo de bom vai acontecer

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‘‘É na cidade mais populosa do país que Enitan viverá – entre o peso da tradição e o desejo de mudança – seus amores, frustrações e o trabalho como advogada’’ também foi enaltecido por importantes escritoras nigerianas. Para Buchi Emecheta, autora de As alegrias da maternidade (livro publicado pela TAG em outubro de 2017), ler a obra “é como ouvir um velho amigo narrando e atualizando os acontecimentos da vida em nossa amada cidade de Lagos." A escritora ainda diz ter lamentado quando o livro chegou ao fim. Já Chimamanda Ngozi Adichie destaca “a sagacidade, a inteligência e uma deliciosa irreverência” no livro. “Mas foi a coragem de Sefi Atta, ao optar por olhar para seu mundo ficcional através de lentes feministas ferozes, o que eu mais admirei”, complementa a autora de Hibisco roxo.


(E-D) As escritoras Sefi Atta, Chika Unigwe e Molara Wood em evento sobre a obra da romancista Buchi Emecheta em Lagos, em 2017

Fotografia: theguardian.ng

O sucesso de Tudo de bom vai acontecer rendeu a Sefi Atta, entre outras distinções, o Wole Soyinka Prize, um dos principais prêmios da literatura africana. A escritora conta ainda com outros três romances, sem edições no Brasil, além de uma coletânea de contos e um livro infantil. A artista também teve suas peças de rádio transmitidas pela BBC e as de teatro apresentadas e publicadas internacionalmente. A importância do trabalho de Sefi Atta foi ainda mais destacada em 2015, quando um estudo crítico de seus romances e contos foi publicado pela editora Cambria Press. Writing contemporary Nigeria: how Sefi Atta illuminates African culture and tradition (Escrita nigeriana contemporânea: como Sefi Atta ilumina a cultura e a tradição africanas, em tradução livre) faz parte de uma série da editora norte-americana de Estudos Africanos. O livro que agora chega às suas mãos é a porta de entrada para conhecer essa autora nigeriana que, ao narrar a história de Enitan, apresenta novas perspectivas sobre como encarar a vida, principalmente para as mulheres que lutam por seus direitos.

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unboxing No kit deste mês, as ilustrações da capa do livro e do quebra-cabeças enviado como mimo são assinadas por Synthia SAINT JAMES, premiada artista visual e escritora, responsável pelas ilustrações de mais de 75 livros. Entre as personalidades que colecionam suas obras, podemos citar Alice Walker, autora dos títulos A cor púrpura e A terceira vida de Grange Copeland – enviado pelo clube em maio deste ano. Entre seus trabalhos mais célebres está a elaboração do selo em homenagem aos 50 anos do Kwanzaa, data de comemoração da cultura afro-americana equivalente ao dia da consciência negra no Brasil. Mais de 318 milhões de cópias do selo foram produzidas pelo serviço postal dos Estados Unidos. Daughters (1991), obra que estampa a capa do livro, foi escolhida como uma forma de representar a união entre as mais diferentes mulheres – na ilustração, elas são ligadas por um só corpo.

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Synthia SAINT JAMES (foto)

Fotografia: Leroy Hamilton


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Mimo Freedom school (2009) foi a pintura escolhida para colorir as 280 peças do quebra-cabeças enviado como mimo deste mês, companhia perfeita para a leitura e para os dias mais solitários que enfrentamos atualmente. Além de remeter ao universo dos livros, a arte simboliza, assim como em Tudo de bom vai acontecer, a diversidade e a multiplicidade da existência. Que tal finalizar o quebra-cabeças, emoldurá-lo e ter uma obra da artista em sua casa - assim como a premiada Alice Walker? Boa sorte no desafio!


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A curadora do mês

Sensibilidade e elegância

Texto: Rafael Balsemão Fotografia: Eniola Alakija

Na última década, a literatura contemporânea produzida no continente africano chegou com mais força às livrarias brasileiras, conquistando o coração do público. A partir de obras de autoria feminina, com destaque para o fenômeno Chimamanda Ngozi Adichie, um novo painel literário, que recusa o clichê de uma África mitificada, está sendo construído. “É preciso privilegiar um olhar sobre obras que destaquem a força e a valentia das mulheres africanas e que não reforcem um olhar voyeurístico sobre um exótico de sofrimento e martírio, que, muitas vezes, é aquele que prevalece no mercado literário ocidental”, defende Catarina Martins, professora do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Nesse contexto encontram-se o livro que chega às suas mãos, Tudo de bom vai acontecer, de Sefi Atta, e Fique comigo, romance de estreia da escritora nigeriana e curadora deste mês, Ayòbámi Adébáyò. (best-seller . entregue aos associados da TAG Inéditos em julho de 2018). São duas obras complementares, cujas narrativas se desenvolvem nas décadas de 1980 e 1990, período turbulento de golpes militares na Nigéria. Assim como Atta, Adébáyò. nasceu em Lagos, em 1988. Formou-se em literatura anglófona na Universidade Obafemi Awolowo, em Ifé, onde cresceu. No último ano do curso, participou de um workshop com Adichie, sua conterrânea. Na Universidade de East Anglia, no Reino Unido, Adébáyò. fez mestrado em Escrita Criativa, ocasião em que teve aulas com Margaret Atwood, autora do badalado O conto da aia, que deu origem ao seriado

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Ayòbámi Adébáyò. . em mesa de discussão na Flip de 2019 Fotografia: Bruno Leão

The handmaid's tale. A nigeriana acumula ainda colaborações para veículos internacionais, como The New York Times, BBC e The Guardian. Fique comigo consolidou a escritora como uma importante voz na narrativa feminista nigeriana. "A escrita de Ayòbámi Adébáyò. é viva e cativante, o . livro é desses que você não consegue largar. É uma história muito comovente e emocionalmente forte sobre relações familiares", comentou a curadora da Flip, Fernanda Diamant. A obra recebeu indicações ao Baileys Women’s Prize for Fiction, do qual foi finalista, e ao prêmio Dylan Thomas. No Wellcome Book Prize, cujo objetivo é celebrar “as muitas maneiras pelas quais a literatura pode iluminar a amplitude e profundidade de nosso relacionamento com saúde, medicina e doença”, Fique comigo foi o único romance da lista final. O escritor Edmund de Waal, presidente do painel de jurados da premiação, declarou que a obra é um livro “notável e turbulento, que leva o leitor ao desgosto da infertilidade e das expectativas da sociedade". Na passagem pela Flip em 2019, Adébáyò. participou de um encontro que gerou reflexões sobre o que maternidade, amor, consentimento e corpo feminino


na ficção podem produzir. Na mesa, intitulada Angico, a romancista contou que precisou apagar a própria voz para que pudessem surgir as dos personagens. “Queria escrever numa linguagem que eles usariam”, afirmou na ocasião. Durante o encontro, a nigeriana disse que, ao escrever seu livro, acabou por inserir muita densidade política, até se dar conta de que seus protagonistas não davam a mínima para aquilo. “Tentei me colocar no lugar dos meus personagens, o que realmente aconteceria em suas vidas. Como a falência do estado impactaria a vida deles”, declarou. No centro da trama de Fique comigo está o casamento dos personagens Yejide e Akin, que sofrem pela imposição da família para que tenham um filho. “Eu queria escrever sobre sistemas de famílias extensas. Você tem pessoas com quem pode contar, e isso é bom. Mas e se você não se encaixar no que é esperado de você? Se você é homem, há apoio. Se você é uma mulher, como Yejide, existe a expectativa de que você entre para uma família e, depois de alguns anos, tenha filhos e tenha uma certa força. Eu queria ver o que aconteceria se você pudesse escolher o que deveria ser e como a comunidade, ao tentar ajudá-lo a se tornar o que pensa que deveria ser, se volta contra você”, declarou Adébáyò. para a The Paris Review. O romance figurou na lista de melhores de 2017 dos jornais The New York Times e The Guardian. “Uma combinação elegante de drama doméstico, da política na Nigéria nos anos 1980, habilmente tratada, e de diálogos vibrantes. Ah, e uma cena em que nossa indomável e cativante heroína Yejide amamenta uma cabra para tentar engravidar. É esse tipo de livro”, publicou o periódico britânico. Em sua última resenha para o The New York Times, após quase quatro décadas escrevendo para o jornal, a crítica literária e vencedora do Prêmio Pulitzer Michiko Kakutani descreveu Fique comigo como “ao mesmo tempo, uma parábola gótica sobre orgulho e traição; um retrato completamente contemporâneo – e comovente – de um casamento”. E acrescentou: é um romance na linhagem de grandes obras de Chinua Achebe e Chimamanda Ngozi Adichie.

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Os fantasmas de Biafra, 50 anos depois

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Texto: Rafael Balsemão

Um episódio em meio à Guerra de Biafra, no sudeste da Nigéria, entrou para a história do futebol brasileiro como um feito que orgulha a torcida do Santos. Conta-se que a presença em campo de Pelé à frente do time santista em um jogo amistoso contra uma equipe local, no dia 4 de fevereiro de 1969, na cidade do Benin, teve o poder de parar por alguns instantes uma das maiores carnificinas da história. O governo teria decretado cessar-fogo para que a delegação santista pudesse se deslocar até o estádio, onde venceu por 2 a 1. Em 2019, quando o fim do confronto completa 50 anos, uma nova versão sobre o episódio derruba a tese de que o Santos teria sido a razão de um cessar-fogo. Para o antropólogo e professor da PUC-SP José Paulo Florenzano, a presença do time paulista não interrompeu o combate; na verdade, foi utilizada como peça de propaganda pelo governo militar da Nigéria contra a república separatista. Com Biafra já cercada e sob seu controle, o governo queria mostrar à população em geral, ao decretar o cessar-fogo, que tinha os rebeldes na mão. O conflito em Biafra deixou entre 500 mil e 3 milhões de pessoas mortas, e até hoje traz consequências para o país africano. Originada pela intenção da região sudeste do país de se tornar independente, a guerra civil iniciada em maio de 1967 durou até janeiro de 1970. Houve comoção global contra a violenta repressão do governo nigeriano sobre os biafrenses. Artistas, autoridades e organismos como a Organização das Nações Unidas tentaram, sem sucesso, conter o conflito. Apesar do amplo apoio internacional aos secessionistas, o governo federal saiu vitorioso. Mas as causas daquela catástrofe permanecem vivas meio século depois do seu fim. É nesse cenário do pós-guerra que


se desenvolve a saga da menina iorubá Enitan, protagonista de Tudo de bom vai acontecer. “O fim de um conflito, ou o que muitas vezes se costuma convencionar como o fim, é, na verdade, o início de um processo muito longo de reconstrução e de reconciliação. As causas que estão na raiz desses acontecimentos não deixam de existir com um acordo de paz ou com uma rendição, como foi no caso de Biafra”, explica Guilherme Miranda Dutra, advogado e consultor em conflito armado e reconstrução pós-conflito, que trabalhou para a missão da ONU na Colômbia atuando na estratégia de gênero do processo de paz. A Nigéria, independente do Reino Unido desde 1960, conta atualmente com mais de 250 grupos étnicos. À época da guerra, havia mais de 45 milhões de habitantes, população composta majoritariamente pelos povos hauçá e fula (em sua maioria muçulmanos) ao norte, iorubá (divididos entre praticantes da religião tradicional iorubá, cristãos e muçulmanos) no sudoeste, e igbo (predominantemente cristãos), provenientes 15


da província de Biafra, a leste do país. Estes últimos formavam, então, a elite da Nigéria. A origem do conflito remete a 1966, ano em que o país viveu dois golpes de estado. Generais leais a Johnson Aguiyi-Ironsi, líder da etnia igbo, destituíram o primeiro-ministro Abubakar Tafawa Balewa, que comandava o norte do país. Seis meses depois, generais responderam às iniciativas de Aguiyi-Ironsi. Após graves motins étnicos, o governador militar da região sudeste na época, Chukwuemeka Odumegwu-Ojukwu, declarou o então Estado de Biafra independente em 30 de maio de 1967.

Odumegwu Ojukwu, líder do movimento pela separação de Biafra, em 1968

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A justificativa para a separação do governo da região leste seriam os repetidos ataques contra populações igbo na região norte e a incapacidade do governo federal de detê-los. A questão mais determinante para a declaração de independência, todavia, era econômica, e estava relacionada ao petróleo. Havia um grande descontentamento com a divisão pelo governo federal dos lucros do combustível - a região leste, que concentrava cerca de 70% das reservas, ficava com apenas um terço dos lucros, e uma eventual independência permitiria à região o controle total das receitas da produção petrolífera.


Imagens de violência, fome e miséria vistas no conflito ganharam os meios de comunicação do mundo à época

De acordo com Guilherme Ziebell de Oliveira, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS, com o fim da guerra, o governo federal garantiu que não haveria retaliações aos igbos e que estes não seriam tratados como inimigos derrotados. “Foram lançados programas federais que visavam à reintegração dos secessionistas ao estado nigeriano. Rapidamente, servidores públicos reassumiram seus postos nos governos regionais e federal, militares foram integrados à estrutura das forças armadas federais e as propriedades de igbos no norte e em outras regiões do país foram devolvidas aos seus proprietários”, escreve Oliveira em artigo sobre o papel da Guerra de Biafra na construção do estado nigeriano. As tensões do confronto ainda persistem na Nigéria. Para Guilherme Dutra, é inegável que muitas das ideias e dos sentimentos comunitários e políticos que circulavam em Biafra ainda reverberam nas dinâmicas da Nigéria de hoje. O desafio agora é compreender como elas foram influenciadas e alteradas pelas novas formas de violência e pelos novos atores, tanto nacionais quanto internacionais, que surgiram ao longo das últimas cinco décadas.

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“É necessário entender em que medida os elementos que levaram à Guerra de Biafra ainda influenciam a atuação do grupo terrorista Boko Haram no país, por exemplo. Mas também entender o que tem de fundamentalmente distinto nessas dinâmicas de violência e como a resposta a elas também tem de ser diferente”, destaca o consultor em conflito armado. Assimilar os fatos que marcaram a história recente da Nigéria passa também pela cultura e pela forma como as mulheres se posicionaram no país após o fim da guerra. “É aqui que a literatura parece revestir-se de especial utilidade para tornar visível a complexidade do conflito, incluindo, em particular na literatura de autoria feminina, uma especial atenção à dimensão de gênero e à situação das mulheres, quer através da questão do estupro como arma de guerra, quer da seleção de gênero nos recrutamentos e massacres efetuados, quer na construção de masculinidades militarizadas e violentas”, afirma Catarina Martins, professora associada do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Dutra pontua ser impossível implementar um processo de paz e de reconstrução pós-conflito duradouro que não incorpore as vozes e os pontos de vista das mulheres: “Não apenas pelo ponto de vista delas enquanto vítimas, mas também como indivíduos essenciais de coesão social e como líderes nas suas comunidades, posições pelas quais muitas vezes não são reconhecidas”. Nesse processo, vozes como as das escritoras Sefi Atta e Chimamanda Ngozi Adichie ajudam a esclarecer um processo histórico em que as complexidades da vida diária são ofuscadas pelas imagens de pobreza extrema, bombas e negociações políticas.


cRoNoloGia de eventos históricos do liVRo 1960 – Independência da Nigéria 1966 – Eclosão de dois golpes militares sucessivos 1967 – Começo da guerra civil de Biafra 1970 – Fim do conflito, com a vitória do governo federal, e início do período de reconstrução nacional 1975 – Golpe depõe Yakubu Gowon, e outro militar, general Murtala Mohammed, assume o poder 1976 – Mohammed é morto em uma tentativa de golpe malsucedida, sendo substituído pelo tenente general Olusegun Obasanjo, o segundo homem no comando 1978 – Nova constituição nigeriana é aprovada 1979 – O país passa a ser administrado por um governo civil eleito; Alhaji Shehu Shagari se torna presidente da Nigéria 1983 – Shagari é reeleito; em dezembro do mesmo ano, o presidente é deposto por um golpe. O general Muhammadu Buhari torna-se o chefe de estado 1985 – Buhari é derrubado em um novo golpe; general Ibrahim Babangida torna-se chefe de Estado 1990 – Golpe malsucedido tenta derrubar Babangida 1991 – Conclusão da mudança da capital do país de Lagos para Abuja

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A trilha sonora de Enitan

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Texto: Rafael Balsemão

Acompanhar a vida de Enitan ao longo de 25 anos na leitura de Tudo de bom vai acontecer é também fazer uma viagem pelo som que fazia a cabeça dos nigerianos nas décadas de 1970 e 1980. Nas palavras da protagonista da obra, a sua geração cresceu ouvindo reggae e soul, enquanto seus pais curtiam jazz e a turma subsequente seria a do hip-hop. Entre os estilos que aparecem na narrativa está a música makossa, trilha sonora de um encontro de Enitan com um namorado. O ano é 1985, e os dois observam em um bar os outros pagarem mico na pista. Até que toca Soul makossa, maior sucesso de Manu Dibango, e o casal se rende à dança. Emmanuel N’Djoké Dibango morreu em março de 2020, aos 86 anos, vítima do coronavírus. Expoente do afro-jazz, o camaronês nasceu no ano de 1933 em Douala, em uma família protestante. A consagração como músico veio em 1972, quando foi convidado a compor o hino do Campeonato Africano das Nações de futebol, a ser realizado nos Camarões. A partir daí, foi convidado para tocar no teatro Apollo, templo da música afro-americana no bairro novaiorquino do Harlem, e agregou novas misturas, fazendo turnês internacionais. O canto da música – “mamako, mamasa, mama makossa” – foi depois usado por artistas como Michael Jackson, em Wanna be startin’ somethin’, Eminem, em Doe rae me, e Rihanna, em Don’t stop the music. No Brasil, está presente em Samba makossa, de Chico Science & Nação Zumbi. A Copa do Mundo de 2010 também enalteceu o estilo makossa com a cantora Shakira, sampleando a popular música do Golden Sounds, Zamina mina.


amako, mamasa, mama makossa. mamako, mamasa, mam ama makossa. mamako, mamasa, mama makossa. mamak amako, mamasa, mama makossa. mamako, mamasa, mam

Outro estilo que aparece em Tudo de bom vai acontecer é o juju. O ritmo nigeriano é derivado da tradicional música iorubá de percussão e surgiu na década de 1920 em clubes de todo o país, com gravações de nomes como Tunde King e Ojoge Daniel. Após a Segunda Guerra Mundial, instrumentos elétricos começaram a ser incluídos, e pioneiros como I. K. Dairo, King Sunny Adé e Ebenezer Obey fizeram do gênero o mais popular na Nigéria, incorporando novas influências como funk, reggae e afrobeat. Miriam Makeba e o grupo Osibisa também são citados. A primeira foi uma cantora sul-africana também conhecida como Mama Africa. Ícone da luta contra o apartheid em seu país, Makeba, marginalizada durante mais de três décadas pelo regime racista sul-africano, sempre esteve comprometida com a luta pelos direitos civis e contra o racismo. Seu maior sucesso foi a canção Pata pata. Já o Osibisa é uma banda de rock afro-ganense fundada em Londres no ano de 1969 por quatro músicos africanos e três caribenhos. A música deles é uma fusão de ritmos africanos, caribenhos, jazz, funk, rock e R&B, entre outros. Não apenas artistas africanos são destacados na obra, contudo. Ao longo da narrativa, nomes importantes da cultura ocidental desfilam pelas páginas do livro. Entre eles estão Stevie Wonder, Bob Marley, Barbra Streisand e Sarah Vaughan. No toca-discos da adolescente Enitan, tocará ainda uma pequena coleção de discos da Motown, icônica gravadora de discos norte-americana fundada em 1959 por Berry Gordy Jr. na cidade de Detroit e famosa por lançar artistas negros desde seu surgimento.

QUeR conHeceR oS sons de ENitan?

Ouça nossa playlist em https://bit.ly/TudodeBomVaiAcontecer

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Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.


posfรกcio

Tudo de bom vai acontecer



Olá, tagger Sefi Atta nos oferece uma visão abrangente do que é crescer mulher na Nigéria. Conforme Enitan amadurece, ela entende seu privilégio em relação a Sheri e às outras personagens de Tudo de bom vai acontecer. Em entrevista à TAG, a autora nos conta um pouco do processo por trás do livro e fala mais sobre escrita, Nigéria e literatura em geral. Nesta parte da revista, falamos também com pesquisadores da área sobre como a situação da mulher na Nigéria mudou desde a infância de Enitan. O repórter Rafael Balsemão entrevistou a pesquisadora Catarina Martins, da Universidade de Coimbra, que nos oferece interessantes visões sobre a cidadania das mulheres em países africanos e sobre as repercussões disso na literatura. Em nossas páginas críticas, oferece seu olhar sobre a obra a professora Fernanda Oliveira, doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coordenadora do grupo Atinuké de estudos sobre o pensamento de mulheres negras. Boa leitura!


“Temos um mundo cheio de mulheres que não conseguem respirar livremente porque estão condicionadas demais a assumir formas que agradem aos outros.” "Para educar crianças feministas: um manifesto", Chimamanda Ngozi Adichie


Sumário posfácio

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Entrevista com Sefi Atta

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A situação da mulher na Nigéria

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A lealdade como fio

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Luisa Geisler: A curadora de outubro


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Entrevista: Sefi Atta

“Explorem a literatura africana para além dos limites impostos.”

Texto: Fernanda Grabauska Fotografia: Mark Whiddon, divulgação

Sefi Atta sempre foi uma contadora de histórias. Quem adentra sua vasta obra – que abrange quase todo tipo de texto que se pode imaginar – surpreende-se, no entanto, ao saber que ela começou a escrever apenas na década de 1990 – Sefi formou-se contadora, mas do tipo que usa terninho e opera a calculadora. Foi a partir do sucesso de Tudo de bom vai acontecer, lançado em 2005, que a nigeriana, 56 anos, passou a se dedicar apenas à escrita e à contação de histórias. Nesta entrevista, concedida via e-mail, a autora conta um pouco sobre seu início na escrita, fala sobre sua história de azar com o lançamento de Tudo de bom vai acontecer (“tudo o que podia dar errado na publicação de um livro deu errado”, conta) e dá algumas diretrizes para quem quer se aprofundar na literatura africana contemporânea. Para a escritora, que atualmente se divide entre a Nigéria, a Inglaterra e os Estados Unidos, onde vive com o marido e a filha, toda história merece ser contada – e a noção do que vende, em termos de histórias africanas, é muito limitada perto daquilo que o continente tem a oferecer.

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TAG — A história de como você começou a escrever é bem curiosa. Quando você era criança, o seu irmão era considerado o escritor da família, enquanto você começou a escrever muito depois, quando já estava vivendo nos Estados Unidos. Como foi o seu início nessa carreira? Sefi Atta — Sim, meu irmão era o escritor na família, mas eu sempre fui uma contadora de histórias. Dirigi peças no secundário quando estava na Nigéria, mas não lembro de escrevê-las. Depois disso, me formei em Administração na Inglaterra e me qualifiquei como contadora. Em 1994, fui viver nos Estados Unidos com meu marido e continuei trabalhando com contabilidade. Depois do nascimento de nossa filha, comecei a participar de um workshop de escrita durante os finais de semana. Comecei a escrever Tudo de bom vai acontecer quando nos mudamos de Nova Jérsei para o Mississippi em 1997.

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Li em uma entrevista que, por algum tempo, Tudo de bom vai acontecer foi seu “livro do azar”. Por quê? Tudo o que podia dar errado na publicação de um livro deu errado. A primeira edição do livro saiu com muitas falhas de revisão. Fiquei mortificada, mas os erros de digitação foram resolvidos na segunda edição.

Você também criou uma certa inimizade com alguns dos personagens. Eu não gostava nem da mãe de Enitan, nem do marido de Enitan, não conseguia me sentir próxima deles. E decidi que, daquele ponto em diante, eu iria gostar de todos os meus personagens, independentemente das falhas. Isso é necessário para que se possa criar um personagem.

Tudo de bom vai acontecer pode ser lido como um romance sobre mulheres, sobre amizade e empatia entre mulheres. Como a situação das mulheres na Nigéria mudou desde a infância de Enitan?


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Não posso falar por todas as mulheres nigerianas. Posso falar apenas por Enitan, e eu diria que, agora, ela tem mais confiança nas opiniões dela. Ela estava certa sobre o patriarcado e sobre o sexismo que observou, mas, apesar de tudo, reconhece que é privilegiada.

Você já escreveu romances, contos, peças e literatura infantil (esqueci de algo?). Como se adquire esse trânsito entre formas? Eu também escrevo roteiros para TV e cinema! Bem, isso não foi natural. Eu li sobre essas formas, tentei escrever histórias nesses formatos e as revisei por anos. Algumas deram certo, outras não. Trabalhar no meu ofício é algo muito importante para mim, assim como reconhecer aquilo que se espera em cada forma.

Como africana publicada mundialmente, o que significa o movimento Vidas Negras Importam


e as discussões sobre raça vistas pelo mundo? Como isso ecoa na Nigéria, um país onde não há dicotomia clara de racismo branco-negro? Apoio qualquer movimento pelo avanço dos negros no mundo, do jeito que eles preferirem. Apoio os afro-americanos em sua tomada de posição contra a brutalidade e os assassinatos por parte da polícia. Vejo-os como um grupo étnico em seu direito, assim como vejo o povo iorubá. Temos Ijebu, Egba, Ondo e outros iorubás. Temos afro-americanos de Nova York, de Los Angeles e do Mississippi. Os movimentos nos Estados Unidos são separados de nossos movimentos na Nigéria e devemos reconhecê-los desta forma – mesmo que os nossos também sejam movimentos em direção à liberdade, justiça e igualdade.

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Pouco a pouco, o Brasil tem descoberto e discutido a literatura africana. Mas sinto que a literatura que nos chega, salvo algumas exceções, é muito limitada a narrativas sobre pobreza e lutas pós-coloniais - uma narrativa que tem sua verdade, mas não é a única história que a literatura africana tem a contar. O que você me diz sobre isso? E quais títulos você recomendaria ao leitor que quer descobrir mais da literatura do continente? Creio que toda história verdadeira deve ser contada. Não tenho nada contra as histórias sobre pobreza ou sobre conflitos pós-coloniais. O que eu não gosto é quando outras histórias deixam de ser publicadas por não se enquadrarem em certas categorias que editoras criaram para a literatura africana. É opressor para os escritores africanos e faz parecer que nossos leitores não são inteligentes, o que não é verdade. Posso me encrencar se recomendar títulos, então tudo o que eu direi aos leitores é: explorem a literatura africana para além dos limites impostos por quem controla os livros que chegam até você. O negócio deles é tomar decisões por vocês. Decidam vocês sobre aquilo que constitui boa literatura do continente africano e sobre o continente africano.


A estante da autora O primeiro livro que li: eu, honestamente, não lembro, mas O estrangeiro foi o primeiro livro que me fez ter vontade de escrever. O livro que estou lendo: meu próximo romance! Estou terminando de revisá-lo e estou prestes a ler People of the city, de Cyprian Ekwensi. O livro que eu gostaria de ter escrito: nenhum. Aprecio o trabalho de outros escritores sem desejar contar as histórias deles. Mas já li livros e desejei conseguir escrever sobre minha cultura tão bem quanto os autores. Toni Morrison foi assim, Grace Paley também. O último livro que me fez chorar: eu nunca chorei lendo um livro. Músicas e filmes podem me fazer chorar. Livros não. 9

O último livro que me fez rir: então, livros conseguem me fazer gargalhar, mas eu não leio um livro engraçado há tempos. Os livros de Mark Twain sempre me fizeram rir. O livro que eu não consegui terminar: a Bíblia é um deles. Não consegui passar do Gênesis. O livro que eu dou de presente: não dou livros de presente. Tento ter mais imaginação. Uma vez, eu dei Desonra, de Coetzee, a um amigo do meu falecido sogro. O livro que mudou a minha vida: todos os livros que leio mudam minha vida, de certa forma. Se eu fosse nomear três, seriam America, their America de J.P. Clark, Our sister killjoy, de Ama Ata Aidoo, e The man died, de Wole Soyinka. Foram livros provocadores.


A situação da mulher na Nigéria

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Texto: Rafael Balsemão

O sequestro de 276 meninas em uma escola na cidade de Chibok, região nordeste da Nigéria, causou comoção mundial em 2014. À época, aquela situação extrema de violência uniu em protesto figuras públicas de Estados Unidos, França, Coreia do Sul e outros países. No centro do debate estava a complexa situação em que vivem as mulheres nigerianas. Os problemas enfrentados por elas nos últimos 50 anos não são poucos: poligamia, estupros coletivos, ablação do clitóris, guerra civil, tortura, censura, racismo e miséria – tanto econômica quanto ética. Apesar do cenário, há mulheres que, mesmo afetadas pela violência e pelo machismo estrutural da Nigéria, conseguem frequentar a faculdade e tentam realizar sonhos de vida considerados normais na cultura eurocêntrica. São vidas como a de Enitan, protagonista de Tudo de bom vai acontecer, cuja vida é narrada por Sefi Atta ao longo de 25 anos, entre 1971 e 1995. Trata-se de um período de muitas mudanças no país africano, logo após o fim da guerra separatista de Biafra, que teve seu fim em 1970 e até hoje influencia a política local. O conflito, além das mortes e consequências arrasadoras para o país, atingiu particularmente as mulheres. “Elas são desproporcionalmente afetadas e os impactos ocorrem em todos os níveis, com ataques à integridade física e à psicológica. Em momentos de maior vulnerabilidade econômica, mulheres enfrentam mais dificuldades do que homens em acessar oportunidades de emprego que garantam seus meios


de vida e da sua família”, afirma Guilherme Miranda Dutra, advogado e consultor em conflito armado e reconstrução pós-conflito com experiência em projetos de paz e direitos humanos na América Latina, Sudeste Asiático e África Central e Ocidental. Os cenários de uma das maiores tragédias humanitárias do mundo marcam a obra de Sefi Atta e exacerbam aquilo que é a violência de gênero não apenas em casos extremos, como no sequestro das meninas em Chibok, mas também as agressões cotidianas sofridas pelas mulheres no país. Para Tatiana Moura, pesquisadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o desaparecimento de pessoas, como as meninas de Chibok, é uma estratégia de guerra que não é exclusiva ao episódio de 2014. “Isso se passa com o Boko Haram na Nigéria, como se passa em outras situações no mundo. Seja em guerra declarada ou não. Eu acho que hoje em dia vivemos situações em que não sabemos mais como definir o que é uma guerra formal, o que é uma guerra oficial e aquilo que não é. A verdade é que continuamos ainda a ter a

Fotografia: Portas Abertas

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violência sexual e a ter os corpos das mulheres como um espaço de conquista territorial simbólica”, afirma Tatiana em entrevista a uma publicação da Organização das Nações Unidas. Em mensagem no ano passado por ocasião do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher, celebrado em 25 de novembro, o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que “a violência sexual contra mulheres e meninas está enraizada em séculos de dominação masculina.” Para ele,

as desigualdades de gênero que alimentam a cultura do estupro são essencialmente uma questão de desequilíbrios de poder.

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São situações que Enitan vai enfrentar em Tudo de bom vai acontecer. Apesar de levar uma vida bem próxima à de uma jovem de classe média europeia, ela é confrontada com episódios de machismo que envolvem a figura da melhor amiga, Sheri. Ela, sim, acaba sofrendo as consequências de uma postura liberal. Enitan também aprende sobre machismo ao observar o cotidiano da mãe, que, após a morte do filho, vê-se oprimida pelo marido e recorre à religião. Obras como as de Sefi Atta e de outras escri­toras africanas ou afropolitanas contemporâneas podem convocar o leitor para dois olhares, conforme Catarina Martins, professora associada do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. “Aquele que olha os problemas como uma prisão inexorável de mulheres inevitavelmente condenadas e que conforta o Ocidente na contemplação da sua superioridade civilizacional, a partir de um reforço de uma diferença abissal. Ou aquele que olha as formas como as mulheres constroem caminhos de resistência, ou de existência, no meio de tantos problemas”, analisa Catarina, que é docente em programas de Doutorado em Estudos Feministas, Estudos Pós-Coloniais e Estudos de Literatura e Cultura.


Outro ponto abordado pela autora de Tudo de bom vai acontecer é o embate entre a legislação nativa e o direito civil na Nigéria, com suas consequências na opressão feminina. Mestre pela Universidade de Londres e presente na missão da ONU na Colômbia na estratégia de gênero do processo de paz, Guilherme Dutra defende que, “mais do que atribuir a violência de gênero a uma questão meramente legislativa, temos de refletir sobre a real natureza dessas práticas que consideramos, em uma perspectiva universalista, violações a direitos fundamentais”. “Isso significa entender que não é uma canetada ou uma lei que vão alterar essas práticas. Além de levar em conta o nível institucional, as mudanças pretendidas também devem considerar a mudança de paradigmas comunitários e a incorporação de pontos de vista diversos. Se queremos mudanças efetivas, não funciona só descartar o que não se considera correto”, afirma o advogado e consultor em conflito armado, que cita como avanço na Nigéria a decisão histórica que aprovou em 2018 a lei que proíbe mutilação genital de meninas. Catarina Martins entende que essa dualidade não resolvida entre relações de gênero tradicionais e a lei civil restringe a cidadania efetiva das mulheres, nomeadamente no direito sucessório e de propriedade:

A dependência econômica das mulheres atravessa as classes sociais, com a proliferação da prostituição bem como o consentimento relativo a conjugalidades poligâmicas e instáveis, que provocam extrema desproteção das mulheres e das crianças e tornam a violência de gênero corrente e tolerada. Há muitas outras formas de violência, como o machismo diário no ambiente de trabalho, que são abafadas na Nigéria. E, a partir da história de Enitan, Sefi Atta busca quebrar esse silêncio em Tudo de bom vai acontecer.

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Se você gostou do livro do mês, vai se interessar também por: A amiga genial e demais livros da tetralogia napolitana de Elena Ferrante Assim como em Tudo de bom vai acontecer, a série napolitana, formada por quatro romances, conta a história de duas amigas. Lila e Lenu se conhecem em uma vizinhança pobre de Nápoles, na década de 1950. O primeiro, A amiga genial, é narrado por Lenu e abarca da infância aos 16 anos das garotas. A história dialoga com o drama de Enitan e Sheri ao destacar episódios de machismo da sociedade italiana na segunda metade do século XX. Fique comigo, de Ayòbámi Adébáyò. . 14

O primeiro romance da curadora do mês, Ayòbámi . Adébáyò, . traça um paralelo entre casamento e política na Nigéria dos anos 1980, período que também marca a vida adulta de Enitan em Tudo de bom vai acontecer – época de golpes militares, eleições fraudulentas e disputas sociais. O romance é narrado, na maior parte, por Yejide, que, após seus estudos na universidade, decide abrir um salão de beleza. Meio sol amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie Enquanto a obra de Sefi Atta se passa um ano após o fim da Guerra de Biafra, este romance da premiada escritora Chimamanda Ngozi Adichie é baseado em fatos reais transcorridos na década de 1960, período em que ocorreu o conflito na Nigéria. O livro vai além do mero relato, transformando-se em um painel sobre um grupo de pessoas que, mesmo em tempos de exceção, busca provar que é capaz não só de sobreviver, mas também de resguardar seus sonhos e sua integridade moral.


Crítica

A lealdade como fio

Texto: Fernanda Oliveira

O romance Tudo de bom vai acontecer, de 2005, é o primeiro romance da renomada escritora nigeriana Sefi Atta, agraciado com o prêmio Wole Soyinka Prize for Literature no ano de 2006. A personagem principal Enitan nos narra a história que se desenvolve em três grandes marcos cronológicos: 1971, 1985 e 1995. A narrativa tem início em Lagos em 1971, ano posterior ao fim da guerra civil que assolou o país e ficou conhecida como Guerra de Biafra. Sheri, a amiga de Enitan, aparece já no início da narrativa e essa dupla é fundamental para o desenvolvimento da história. As personagens vivem os condicionamentos e significados sociais atribuídos pela sociedade nigeriana, ainda que lidem de formas bem diferentes com eles. Enitan, que tem sete anos em 1971, é de uma família de classe média, o pai advogado e a mãe, do lar. Perdeu o irmão quando menor e lida de perto com as dores da mãe e um aparente descaso do pai para com a mãe, mas não perante ela. Sheri, a grande amiga, vem de uma realidade diferente, de uma família extensa e com condições econômicas precárias. Enitan vai estudar em Londres, na Inglaterra, deparando-se com uma diversidade de acessos e possibilidades de simplesmente ser bastante diversas daquela observada no país natal, presentes na parte de 1985. Ao fim dos estudos, retorna, trabalha junto ao governo e, posteriormente, no escritório de advocacia de seu pai. Nas duas primeiras partes, as questões político-institucionais se espraiam e alcançam aos poucos a personagem, para fazerem-se também personagem na parte final, a de 1995, quando Enitan encontra

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com os efeitos de uma ditadura que aprisiona seu pai consecutivamente a questões relativas à vida conjugal. Essas complexidades lhe oferecem outra porta para compreender a experiência de sua mãe e da amiga Sheri, por meio da questão da maternidade, assunto presente desde o início e que passa a ocupar a centralidade em sua vida, demonstrando a complementaridade entre mulheres negras, sintetizada na frase “mulheres nigerianas, mulheres africanas, mulheres negras”. Em todo esse percurso, o pano de fundo nos apresenta os efeitos do boom do petróleo e dos golpes que precederam a guerra de Biafra, tanto militares quanto civis.

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“Essas complexidades lhe oferecem outra porta para compreender a experiência de sua própria mãe e da amiga Sheri, por meio da questão da maternidade.” Trata-se de um romance com assuntos relacionados a gênero, violência, religião, matrizes tradicionais africanas, ditaduras civis e militares, classes sociais. Ainda que o enfoque esteja sobre a mulher, desde os valores aprendidos na infância, passando pela adolescência até chegar na idade adulta, aborda também masculinidades, plurais inclusive quando hegemônicas. Tais assuntos são abordados em um ritmo fluido, em que as dores advindas da violência são mais reportadas e menos descritas, nos permitindo respirar entre um fragmento e outro. O que é facilitado pela forma como vamos aos poucos sendo conduzidos em uma imersão nas culturas, histórias e pensamentos negros presentes nos aspectos abordados. Simultaneamente, o romance abre as portas para a sociedade urbana da Nigéria e amplia nosso olhar para


as possibilidades de existências plurais em diferentes momentos históricos. Estes conformam janelas para transformações importantes daquela sociedade em um contexto africano de luta de libertação nacional e vivência da colonialidade. E não é demasiado lembrar que é escrito por uma mulher negra nigeriana, que traz outro olhar sobre a diáspora africana por meio de sua escrita. Afinal, estamos acostumados a pensar desde a diáspora; no entanto, a narrativa opera uma inversão, e observa a diáspora desde o continente, mais especificamente desde a Nigéria, não sem frequentemente nos transportar para Harlem, Bahia, Pretória, ou Kingston, ao referir os sabores das comidas tradicionais desses lugares, ou ainda no som que embala algumas páginas por meio de James Brown, Stevie Wonder, do samba, de Miriam Makeba, de Bob Marley e outros. As diferentes possibilidades de se construir enquanto alguém que lê o mundo por meio da sociedade nigeriana dão o tom desde o início da narrativa. Contempla significados mais plurais e menos essenciais, como se depreende especialmente das abordagens da maternidade, que evoca em si a força motriz presente no ato de cuidar – o que nos permite adentrar nas lógicas próprias de um contexto social que dialoga com os valores tradicionais sem deixar de lado o movimento que é próprio da história vivida. Sefi Atta nos proporciona acompanhar a lealdade como um fio narrativo que perpassa todos os capítulos, desde a mais tenra idade de Enitan até a idade adulta. A lealdade à mãe, à amiga e, ao fim, a si mesma. Fio esse que se conecta com o tempo-entidade, tempo da história, nunca apenas individual, adquirindo sentidos atribuídos no coletivo. Assim, a narrativa nos apresenta que entender dói, compreender as humanidades possíveis permite fazer as pazes, e é possível afastar-se ou aproximar-se. É um livro que nos convoca a ter responsabilidade, inclusive pelo que não fazemos diretamente, e a ter esperança – afinal, Tudo de bom vai acontecer.

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A curadora de outubro

Luisa Geisler

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Fotografia: Divulgação

Romancista, autora infantojuvenil e tradutora, Luisa Geisler assina a curadoria de outubro da TAG. Duas vezes vencedora do Prêmio Sesc de Literatura, foi a mais jovem escritora selecionada na antologia de melhores jovens autores brasileiros organizada pela revista Granta. Gosta de dizer que tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico). Seu mais recente trabalho é o divertido infantojuvenil Enfim, capivaras. Sua indicação é uma obra que dialoga de forma profunda com o momento presente. Escrita por uma das autoras mais prolíficas dos Estados Unidos, a história se concentra nos efeitos que um crime de ódio pode provocar naqueles que ficam. Criada com pouca atenção no seio de uma família de imigrantes irlandeses, onde os garotos são o foco e as garotas, esquecidas, a protagonista descobre a verdade sobre os criminosos que assassinaram um de seus poucos colegas negros na escola. As consequências, dali em diante, são devastadoras para a jovem, que jamais verá a vida da mesma maneira.


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