prefácio Moisés negro
Olá, tagger! O último mês deste 2020 (que passou voando!) nos conduz até Pointe-Noire, Congo. É no submundo da cidade portuária que um garoto de nome ridiculamente longo, mais conhecido como Moisés, precisa aprender a resistir para existir. Neste prefácio, você vai conhecer mais as belas letras de nosso curador, o moçambicano Mia Couto – nome que dispensa apresentações e um evangelista da literatura africana. Couto defende, e nós concordamos, que o Moisés negro de Alain Mabanckou é um livro que não fala apenas da África. Ele fala sobre cada um de nós. Mas é óbvio que, para entender as aflições políticas e as ações higienistas da alta cúpula congolesa, apresentamos também um panorama do socialismo científico, que se apoderou do país por meio de uma revolução, ainda na infância órfã de Moisés. A história do garoto franzino que conhece o mundo um roubo por vez faz rir, faz chorar, aterroriza e confunde. Tudo ao mesmo tempo, como a própria vida. Tagger, terminamos o ano mais uma vez nos colocando no lugar de alguém que, longe das páginas de um livro, dificilmente conheceríamos. Quantas histórias você conheceu este ano? Quantas opiniões você reviu, o quanto sentiu com o coração dos personagens? Por aqui, a gente não para de aprender. Neste final de ano, desejamos o mesmo para você – rumando para tempos melhores, página após página. Boa leitura!
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dezembro/2020
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Como manusear a nova revista
Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.
Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se!
Sumário prefácio
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O livro indicado: Moisés negro
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Unboxing
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Entrevista com Mia Couto
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Os sobressaltos de um país
O livro indicado
Moisés negro de Alain Mabanckou
Texto: Rafael Balsemão Imagem: Recorte da capa de Moisés negro
“Um Oliver Twist do Congo, com uma amarga reviravolta do destino". Foi dessa forma que o jornal norte-americano The New York Times definiu Moisés negro, que chega neste mês às suas mãos. A obra de Alain Mabanckou também foi relacionada ao filme Scarface (1983). O drama policial dirigido pelo cineasta Brian De Palma conta a história de um refugiado cubano que chega em 1980 a Miami e se torna um poderoso traficante de drogas. São comparações que atestam que estamos falando de um livro potente. Assim como no romance de Charles Dickens, a obra do escritor franco-congolês – recebida com resenhas extremamente entusiasmadas quando lançada, em 2015 – relata as aventuras e desventuras de um rapaz órfão. Abandonado quando bebê em um orfanato congolês, Moisés é educado por um padre católico, papai Moupelo, cujas aparições semanais animam a vida do garoto e de seus colegas. O padre tem a missão de instruir os meninos no catecismo e ensinar-lhes canções e danças. Sentindo algo especial no protagonista da obra, papai Moupelo o nomeia Tokumisa Nzambe po Mose yamoyindo abotami namboka ya Bakoko, que significa, em lingala, “Demos graças a Deus, o Moisés negro nasceu na terra dos ancestrais”. Trata-se do “sobrenome mais quilométrico do orfanato de Loango, e certamente da cidade, talvez do país”. No caminho de Moisés e dos outros meninos, encontra-se o diretor do orfanato, Dieudonné Ngoulmoumako,
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um autoritário e oportunista político que impõe disciplina por meio de três sobrinhos. Em oposição a ele, está Moupelo, “nossa autoridade moral, o pai espiritual desses meninos que, assim como eu, não conheceram seus pais biológicos e tinham como única imagem de autoridade paterna, no melhor dos casos, esse padre”, nas palavras de Moisés, o narrador protagonista. Já Ngoulmoumako, para o garoto, “encarnava a hipocrisia e o desprezo”. Quando um regime marxista-leninista se instala no país, o diretor abraça a causa do PCT (Partido Congolês do Trabalho), dispensa papai Moupelo, para a tristeza das crianças, e transforma o local onde o padre trabalhava na sala de reuniões do Movimento Nacional dos Pioneiros da Revolução Socialista do Congo. Os garotos são forçados a vestir lenços de pescoço vermelhos e a ouvir clichês comunistas sobre a queda do imperialismo e as glórias do desenvolvimento econômico. Sem papai Moupelo entre eles, os meninos se tornam órfãos pela segunda vez em suas vidas. A política aqui, mais uma vez, é elemento central na obra de Mabanckou. “Ouço as vozes dos jovens africanos que me leem, me escrevem e pensam que é necessário que um irmão mais velho lhes dê elementos para que se lembrem de sua história”, afirmou o escritor em entrevista ao site do Fronteiras do Pensamento publicada em julho deste ano. O bullying e as intrigas entre os colegas de orfanato também são explorados pelo autor. Além da pressão que sofre por parte da autoridade do diretor, Moisés também é aterrorizado pelos gêmeos Songi-Songi e Tala-Tala. Entretanto, após vingar-se da dupla colocando pimenta em suas comidas, os irmãos passam a enxergá-lo como um potencial aliado. (Daí vem o nome original da obra, em francês, Petit Piment, “Pimentinha".) Em companhia dos gêmeos, Moisés foge para Pointe-Noire, cidade portuária do Congo e cenário também de outros romances do autor, que não pode retornar ao seu país desde 2015. Em recente entrevista, Mabanckou declarou que um boato chegou aos ouvidos do ministro da Justiça congolês sobre um mandado de captura internacional que teria sido emitido contra ele.
“É difícil, mesmo que o Congo esteja em mim. Eu nunca o abandonei. Eu o carrego nas costas como uma tartaruga carrega sua carapaça, como uma zebra carrega suas listras. Se os congoleses precisarem me ouvir, poderão abrir meus livros e ler a esperança. Eles sabem que eu sempre estarei lá”, declarou o autor ao site do Fronteiras do Pensamento. “Dito isto, não posso negar o fato de que não poder ir ao meu país amputou-me uma mão e um pé, extirpou-me uma narina, um olho e uma orelha. Portanto, estou obrigado a ter mais cuidado, porque tenho de ver, ouvir e assistir duas vezes para manter a força de escrever sobre o Congo.”
“Moisés negro está repleto de momentos de humor ácido, mas a leviandade é contrabalançada pelo retrato de uma sociedade disfuncional.” Em Pointe-Noire, Moisés formará uma gangue com os gêmeos e outros garotos. Lá, ele vai passar a viver ao estilo Oliver Twist, roubando motos ou pneus de carro, praticando assaltos no centro da cidade e armando emboscadas para amantes perto da Ponte dos Martírios. “Moisés negro está repleto de momentos de humor ácido, mas a leviandade é contrabalançada pelo retrato de Mabanckou de uma sociedade disfuncional dividida por corrupção, pobreza, instabilidade política e rivalidades tribais. Subjacente à narrativa está um amargo senso de ironia: esse Moisés negro não é um agente de libertação; ele é apenas mais uma alma perdida vagando pelas ruas de uma cidade miserável, sem terra prometida à vista”, afirma Joshua Hammer em seu texto de apresentação da obra para o The New York Times. Para a revista Rolling Stone norte-americana, o romance de Alain Mabanckou, publicado em 2017 nos Estados Unidos, “é a história sobre um jovem crescendo em um mundo cruel, sobre as pessoas que o exploram
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e sobre as coisas que as pessoas estão dispostas a fazer para prosperar em um mundo terrivelmente hostil”. “É um dos livros mais interessantes que você lerá em qualquer idioma neste ano”, enalteceu a publicação. O The Economist afirma que “Moisés negro exibe todo o charme, calor e brio verbal que fizeram com que o autor de Copo quebrado e African psycho conquistasse tantos admiradores - e o título informal de Samuel Beckett da África”. “Desde a primeira frase, existe uma tranquilidade e um espírito, e você sabe instantaneamente que essa história é autêntica. Alain Mabanckou tem um dom”, elogiou o Le Figaro Littéraire.
“Sua voz é vividamente coloquial, travessa e frequentemente ultrajante.”
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Finalista de importantes prêmios literários, Moisés negro foi vencedor do Hurston-Wright Legacy Award, que homenageia escritores negros nos Estados Unidos e em todo o mundo por suas realizações literárias. Os jurados do Man Booker International Prize 2015 afirmaram que “Alain Mabanckou se dirige ao leitor com uma inventividade exuberante em romances que são brilhantemente imaginativos em suas formas de contar histórias”. “Sua voz é vividamente coloquial, travessa e frequentemente ultrajante enquanto ele explora, de vários ângulos, o país onde cresceu, valendo-se de seus conflitos políticos e compromissos, decepções e esperanças. Ele age como um bobo da corte, mas com sérias intenções e efeito dilacerador.” É com um humor peculiar, que confere certo alívio a uma história de sofrimento, que Alain Mabanckou narra a jornada de seu Moisés negro, o Oliver Twist africano dos anos 1970. Marcado pelas peculiaridades de um país que ainda se encontra em constantes mudanças, o caminho percorrido pelo seu garoto se assemelha ao de muitos meninos que são abandonados por seus pais após o nascimento. A história de nosso “Pimentinha” não é um caso isolado.
unboxing Projeto gráfico Um ato de rebeldia do protagonista foi a inspiração para o projeto gráfico deste mês. Moisés ganhou o apelido de Pimentinha devido a uma vingança que arquitetou contra os gêmeos que o aterrorizavam no orfanato. Por isso, a capa do livro é ornada com pimentas, que se misturam em tonalidades avermelhadas formando ramos de pimenteira. A serigrafia, técnica de impressão que utiliza telas e tintas especiais, presente na pimenta em destaque e a pintura trilateral vermelha representam intensidade, tanto da ardência da pimenta quanto da narrativa. Todos os materiais foram desenvolvidos pelo time de Design da TAG, que buscou trazer visualmente as mesmas sensações que vocês estão prestes a experienciar enquanto leem o livro! Mimo Em dezembro, celebramos o fechamento de mais um ciclo. Por isso, pensamos no kit deste mês como um presente de fim de ano, do tipo que os leitores mais gostam: com livro em dobro. Eu morreria por ti e outras histórias traz três contos inéditos aos associados da TAG, escritos por F. Scott Fitzgerald. Com sucessos como O grande Gatsby e O curioso caso de Benjamin Button, Fitzgerald é considerado um dos maiores escritores do século XX. A coletânea que enviamos, com os contos A promissória, Fazer o quê e Eu morreria por ti, farão você navegar através das palavras do brilhante romancista, contista, roteirista e poeta norte-americano. A edição exclusiva, em capa dura e com ilustrações de Virgilio Dias, foi produzida em parceria com a editora Antofágica. Boa leitura!
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Entrevista: Mia Couto
“Interessa-me do passado aquilo que se mantém vivo em nós” Em meio ao caos que tomou conta do noticiário mundial, Mia Couto buscou refúgio na literatura. Ao responder às perguntas enviadas pela TAG, acabara de finalizar seu novo romance, uma celebração de sua infância na cidade de Beira, Moçambique. Foi nesse misto de emoções – “uma alegria e um luto, vividos de uma só vez”, como descreveu – que o escritor conversou conosco sobre história, pós-verdade e a necessidade de enfrentar a cultura do medo. Leia a íntegra da entrevista:
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TAG – Queria começar perguntando para você como tem passado este tempo de isolamento. Tem sido possível criar? Ou a leitura tem servido de refúgio?
Texto: Fernanda Grabauska Fotografias: fronteirasweb, CC BY-SA 2.0
Mia Couto – É preciso dizer que em Moçambique as medidas de restrição da mobilidade nunca chegaram a impor um confinamento generalizado. Desde o início da pandemia que tenho escrito e tenho trabalhado como biólogo sem alterar grandemente uma rotina que, mesmo antes da pandemia, já estava centrada no espaço da minha casa. O que mudou foi que deixei de fazer trabalho de campo. E isso não é um detalhe. Durante esse trabalho de campo, eu mantinha contato com gente muito diversa, de territórios muito distintos dentro de Moçambique. Faz-me falta sentir perdido no meio dessas pessoas, faz-me falta alimentar desse
convívio de línguas, culturas e lógicas tão diversas. A literatura continuou, no entanto, a ocupar-me. Durante todos estes meses estive obsessivamente ocupado a terminar um novo romance. Acabei-o ontem. Vou agora entregar esse manuscrito com a estranha sensação de me despedir de parte de mim. É uma alegria e um luto, vividos de uma só vez.
Quem trabalha com jornalismo enxerga o crescente descrédito de governos como os de Donald Trump e de Jair Bolsonaro ao trabalho de investigação da mídia. Você, além de ter atuado como jornalista, também transita por uma área que sofre nos tempos em que vivemos, a da ciência. Como você vê o atual momento sob o prisma dessas áreas? Eu creio que estamos sofrendo um medo particular que resulta do inesperado espetáculo da nossa própria fragilidade. Talvez esse medo seja maior que o receio da própria doença. Vivemos nas últimas décadas amparados por um sentimento de domínio das condições em que vivemos, pela segurança de uma tecnologia
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onipotente que nos garantia o estatuto de administradores de um mundo em que os gestores substituíram o lugar dos sábios. O novo vírus veio colocar em causa essa sensação de segurança. Veio revelar a nossa vulnerabilidade. E isso pode ser bom. Para crescermos como entidade coletiva, precisamos saber lidar com as nossas fragilidades. Precisamos de um novo descentramento para acrescentar ao que houve com Copérnico, Galileu, Darwin e Freud. Precisamos saber que não somos o centro do que vemos como puramente humano. O nosso corpo é constituído por outros, por bactérias e vírus, que formam a maior parte das nossas células. É esse conteúdo não humano que nos torna humanos. Não existe pureza humana da maneira que a pensávamos. Soma-se agora uma razão para deixarmos de acreditar que somos o centro do Universo ou que a nossa espécie recebeu a incumbência divina de ser a dominadora do planeta. O problema é que a aceitação dessa relativa fragilidade coincide com a ascensão de uma cultura fabricadora do medo. O que me espanta não é a existência de populistas messiânicos como Trump e Bolsonaro. O que me espanta é que não existam hoje figuras que façam contraponto a esses bufões. Onde estão os nossos Gandhis, Mandelas, os que nos dirigem por exemplo da sua estatura humana e moral? Uma parte da culpa reside nos debates estéreis que dividem os que deviam estar apostados na construção de um mundo melhor.
Qual é a sua história com Moisés negro? Quando você leu o livro pela primeira vez e o que você pensou ao terminá-lo? Li-o na edição francesa, em fins de fevereiro. Estava em França e Alain era o curador de um festival onde eu participava. Foi curioso falar com ele (já éramos amigos) e não lhe dizer nada sobre o livro. Na verdade, a história de Moisés tomou conta de mim num momento em que não me queria distrair da minha criação narrativa. Mas foi ótimo que isso acontecesse. Somos feitos de influências. Quantas mais e mais caóticas, melhor.
Sabemos que a História inevitavelmente é marcada pelo olhar de quem se propõe a contá-la. Mabanckou nos faz refletir sobre uma história pouco conhecida no Brasil e no mundo. Qual a responsabilidade da narrativa literária diante dos fatos históricos? Eu acho que todos os fatos são históricos, toda a criatura é histórica, estamos todos mergulhados em narrativas históricas, somos resultado de tempos e temporalidades que brigam entre si. O que nos seduz num personagem, seja ele literário ou da vida quotidiana, é a história que ele transporta. Mesmo quando escrevi sobre eventos marcantes do passado, nunca os tratei como se eles me chegassem legitimados por qualquer verdade que nascesse da chancela dos historiadores. Interessa-me do passado aquilo que se mantém vivo em nós. Interessa-me esse passado que não passa e que fabrica no presente a nossa múltipla identidade. O livro de Mabanckou tem esse mérito. Todas aquelas personagens existem na nossa cidade, no nosso bairro. Todas elas somos nós.
É um livro que foge dos padrões que o mundo editorial nos vende a respeito da África. De onde você acha que vem esse interesse do mundo em tipificar a africanidade? Toda a nova geração de escritores africanos está apostada em estilhaçar uma escrita “tipicamente” africana. Não faz isso com uma intenção particular. Faz porque tem que ser. As gerações anteriores tinham o peso de uma urgência política e ética de afirmar a cultura e a história africanas, negadas pela colonização. Esse empenho foi historicamente necessário. Mas, a um dado ponto, essa obrigação de corresponder a um certo tipo de autor e de escrita ameaçava comprometer a qualidade inventiva da literatura produzida em África. Esta nova geração quer fazer literatura. E tem boa literatura para propor. Não precisam provar sua autenticidade africana, seja lá o que for que isso quer dizer.
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Precisam apenas de escrever histórias, tanto como um escritor brasileiro ou europeu. E, ao fazer isso, naturalmente trazem as diferentes Áfricas para o mundo. 16
Você tem uma relação muito bonita com a escrita de Guimarães Rosa. Que outros brasileiros e brasileiras você lê? A descoberta de Rosa sucedeu por sugestão de um escritor angolano chamado Luandino Vieira. Eu tinha sido muito influenciado pela forma solta e livre com que esse angolano reinventava o português falado em Angola. Foi ele que me disse: queres um professor? Pois vai à fonte. E sugeriu a leitura de Guimarães Rosa. E isso foi vital durante o meu processo de escrita, sobretudo nos meus primeiros livros. Havia uma espécie de luz verde que Luandino e Rosa nos traziam que nos dava licença literária para que a oralidade pudesse invadir a nossa expressão escrita. Sobre outros nomes do Brasil: sou de uma geração que ficou muito amarrada aos autores das décadas de 1950, 1960 e 1970. Foram anos gloriosos, quase inesgotáveis. Graciliano, Clarice, Guimarães, Machado, João Cabral, Bandeira, Drummond, Jorge Amado, Rubem Fonseca. Ando a
aprender a descobrir o que é novo nos nossos dias, mas, para confessar a verdade, os novos autores do Brasil são hoje menos projetados no exterior do que era essa geração anterior. Algo estranho se passou: havia mais contato com o Brasil nos tempos das nossas tristes ditaduras. Conheço e gosto de Hilda Hilst, Milton Hatoum, Chico Buarque, Julián Fuks, Conceição Evaristo, Socorro Acioli, Daniel Galera, Antonio Prata, Ana Paula Maia. Tenho medo de me esquecer de nomes.
E o que mais você pode contar sobre o romance novo? O livro foi terminado ontem. Vou enviá-lo para os editores em Portugal, no Brasil e em Moçambique. É um romance sobre minha infância, de celebração dos meus pais e da minha cidade, que fica no centro de Moçambique. Chama-se O mapeador de ausências.
Deixe uma mensagem para encerrar o ano dos leitores que recebem em casa essa obra que você indicou. Gostaria que lessem essa história e sintam o poder da literatura em recriar, em histórias, o percurso da História. Guimarães Rosa dizia que “a estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História”. O romance Moisés negro ilustra essa relação de integração e conflito, já que não existe uma única versão da História e Mabanckou coloca em diálogo diferentes vozes que habitam uma narrativa não exatamente sobre o seu Congo, mas sobre o que resta de humano na humanidade de hoje.
Quer saber mais? No blog da TAG, preparamos um perfil do escritor para você conhecer mais sobre sua obra. Leia em http://bit.ly/PerfilMiaCouto
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Os sobressaltos de um país
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Texto: Rafael Balsemão
Uma das marcas das obras de Alain Mabanckou é explorar a vida política de seu país natal, o Congo, que obteve sua independência da França em 15 de agosto de 1960. Em seu mais recente romance, Les cigognes sont immortelles (As cegonhas são imortais), publicado na França em 2018, o escritor franco-congolês se debruça sobre os sobressaltos do regime socialista da década de 1970. “Nesse romance, exploro a cultura do assassinato político no continente africano depois das independências. Foi a partir dessas últimas que começou a série de assassinatos de heróis da África que chamo de cegonhas imortais. Quem me lê há muito tempo sabe que não se trata de uma obra oportunista, porque falo de Pointe-Noire em muitos livros”, afirmou o autor em entrevista ao Fronteiras do Pensamento. As mudanças políticas do Congo também estão presentes em Moisés negro. A Revolução socialista científica, com a ascensão do Partido Congolês do Trabalho (PCT), é apresentada a partir da figura do diretor do orfanato, Dieudonné Ngoulmoumako, e acompanhada pela demissão de papai Moupelo, o que gera um trauma para os internos. Afirma Moisés: “No meio de seu discurso, o qual aplaudíamos forçados pelos olhares ameaçadores dos vigias de corredor, o diretor se esforçou para nos revelar, com a mão pousada sobre seu broche do PCT, o que significavam esses emblemas de nossa bandeira replicados sobre nossos lenços. O vermelho simbolizava a luta travada pela independência de nosso país nos anos 1960; o verde, a natureza abundante e exuberante de nossos campos; o amarelo, o conjunto de nossas riquezas naturais que a Europa não havia parado de roubar e saquear até a nossa emancipação”.
O contexto do discurso é o golpe de 1968, liderado pelo major Marien Ngouabi, que assume como chefe de Estado, introduzindo uma série de políticas comunistas, como a nacionalização dos meios de produção. Ele manterá a linha de Alphonse Massamba-Débat, que, em 1964, fundou um partido de índole marxista-leninista, adotando uma economia planificada. Em 1969, a República Popular do Congo, um estado socialista, é criada. “Nesse ano, é adotada uma Constituição no estilo soviético, em que há uma vinculação muito estreita entre o partido e o Estado. A gente vai ver um início de um processo em que, cada vez mais, os protestos que aconteciam vão ser reprimidos com violência”, explica Guilherme Ziebell de Oliveira, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS. “Vamos ver também sucessivos expurgos no partido único. Esse tipo de estrutura é uma característica de regimes autoritários. A liderança está sempre receosa de potenciais conspiradores, de potenciais golpes.” Liderada pelo Partido Congolês do Trabalho, a República Popular do Congo existiu até 1991, quando o país foi renomeado e o governo do PCT, eliminado em meio à onda de reformas multipartidárias que varreu a África no início da década de 1990. Ngouabi, entretanto, foi assassinado em 1977. "Foi uma ação que nunca foi explicada direito, nunca se esclareceu quem foram efetivamente os responsáveis pela morte dele. Muitos acusaram e acusam Denis Sassou Nguesso (atual presidente do Congo) de ser o responsável não só por essa morte, mas também de outros agentes políticos", afirma Ziebell. À época, Alain Mabanckou tinha 11 anos. “Todos nós pensávamos que, a 512 km de Brazzaville, não haveria repercussões. A atmosfera exigia sigilo. A discrição era essencial”, declarou Mabanckou. “Foi um período terrível.” Em meados de 1991, a Conferência Nacional Soberana retirou a palavra "Popular" do nome oficial do país, substituindo a bandeira e o hino que a nação havia adotado durante o governo do PCT.
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Moisés negro
prefácio Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.
posfácio Moisés negro
Olá, tagger! A infância é definidora. E a história de Moisés é um documento de como as circunstâncias nos moldam: longe de ser destituído da inocência ao crescer, ele já cresce sem inocência, rodeado pela opressão dos colegas e pelo desamor do orfanato. Ganha e perde benfeitores conforme avança, sobrevivendo à base das migalhas de afeição que lhe atiram, e completamente desamparado por um estado obscurantista e corrupto. Neste posfácio, você vai conhecer o criador de nosso Moisés, o congolês Alain Mabanckou. E conhecerá histórias para ir além: clássicos brasileiros que têm o orfanato como elemento formativo para seus personagens. A infância nos oferece a base para que ganhemos o mundo. E, na resenha do jornalista Carlos André Moreira, você reflete sobre qual tipo de mundo o Moisés de Mabanckou veio a ganhar. Boa leitura!
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“Aqui suspendo a crônica das saudades. Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez, se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o funeral para sempre das horas.” Raul Pompeia, O Ateneu
Ilustração do mês Caroline Bogo é ilustradora e artista visual. Sua arte permeia universos imaginários, moda criativa, cinema, literatura e uma longa lista de possibilidades visuais. Formada em Artes Visuais pela UFPR, Caroline explora diferentes técnicas para produzir seus trabalhos, desde o guache sobre papel até a arte digital, e tem uma curiosa paixão por livros ilustrados de capa dura. A artista representou, a pedido da TAG, o momento em que papai Moupelo ensina canções para as crianças no orfanato em Loango. Adorado pelos pupilos, a figura extravagante do padre seria a memória mais marcante da infância do protagonista.
Sumário posfácio
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Alain Mabanckou e o Congo universal
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Clássicos brasileiros para ir além
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Equilíbrio de contrários
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Próximo mês
O autor do mês
Alain Mabanckou e o Congo universal A identidade multifacetada e a capacidade de condensar uma realidade turbulenta em narrativas bem-humoradas marcam a prosa do romancista, para quem a escrita é tão múltipla quanto inútil
Texto: Débora Sander Fotografia: Harald Krichel CC BY-SA 4.0
Alain Mabanckou é um indivíduo que não cabe em poucas palavras. Apresentá-lo, seja através de uma definição simples, seja em extensa prosa, envolve explorar, assimilar e condensar uma infinidade de influências: nascido no Congo e com raízes fixadas na França e nos Estados Unidos, Mabanckou estudou Literatura, Filosofia e Direito. Trabalhou em grandes multinacionais antes de assumir uma relação exclusiva com a literatura. Hoje, dedica-se a ela como escritor e também como professor acadêmico na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Com 12 obras publicadas, entre romances e poesia, carrega no currículo reconhecimentos como o Grand Prix da Literatura e o Prêmio de Literatura da África Subsaariana. Em 2015, foi finalista do Prêmio Man Booker. Entre suas principais obras estão Copo quebrado (2005), Memórias de porco-espinho (2006) e Les cigognes sont immortelles (2018), ainda não publicada no Brasil.
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A construção de uma identidade espalhada por três continentes – África, Europa e América do Norte – foi um fator que impactou fortemente sua formação cultural, literária, política e social. A origem no Congo abasteceu Mabanckou com uma cultura centrada na alegria da música, na contação de histórias e na linguagem como forma de transmitir memórias ancestrais. Por outro lado, as turbulências políticas que o escritor testemunhou em seu país são uma temática frequente em suas obras. A vivência na Europa como imigrante africano ampliou sua formação crítica para uma compreensão mais global das relações coloniais e das dinâmicas políticas que observou no Congo. O escritor já afirmou em entrevistas que sua mobilidade geográfica deu a ele novas lentes para enxergar sua África. Nos Estados Unidos, a dimensão que se abriu foi a do pensamento e da cultura negra deslocada pelo histórico de escravidão e tráfico internacional. Essa fórmula complexa de ingredientes tão variados resultou num estilo de escrita que faz o leitor flutuar pelas palavras, como quem escuta uma história narrada de forma sonora e musical. O agradável ritmo narrativo nos toca com um conteúdo repleto de material histórico, implicações autobiográficas e potentes críticas político-sociais. Alain Mabanckou certa vez afirmou numa entrevista que “o mundo de amanhã é a soma de diferentes culturas”, e que é esse o mundo que ele tenta explicar em suas obras. Nitidamente, trata-se de um poeta e romancista com a sensibilidade de captar as particularidades dos contextos locais, e com a coragem de abraçar seus paradoxos. É com esse repertório que ele desenvolve o viés mais crítico de sua literatura, que resgata fatos históricos do Congo como pano de fundo para narrar a subjetividade dos jovens congoleses. Assumindo a relação com sua própria experiência na infância e adolescência no país, Mabanckou transforma parentes e amigos em personagens das histórias. Quando perguntado sobre a função da escrita, o escritor franco-congolês costuma defender sua multiplicidade de funções e, ao mesmo tempo, sua total inutilidade. “Num primeiro momento, diríamos que a literatura não serve para nada, pois o que não serve
Fotografia: Philippe Matsas, Leeimage
para nada é sempre útil para a existência”, afirmou em entrevista à Unesco. Mabanckou sustenta a relevância da literatura engajada politicamente, conectada com os desafios de sua época, mas resguarda o valor intrínseco da escrita, simplesmente enquanto expressão do imaginário humano e enquanto maneira de perpetuar nossas experiências e sentires para que as próximas gerações possam conhecê-lo. Usualmente comparado ao escritor irlandês Samuel Beckett (1906-1989) por reunir aspectos filosóficos e um humor com nuances de absurdo, Mabanckou é dono de uma narrativa que carrega semelhanças também com o realismo mágico latino-americano. Marcada pela presença da natureza não só como cenário, mas enquanto elemento dinâmico que interfere nas relações e na cultura da sociedade, a obra do franco-congolês é representativa da subjetividade complexa de quem cresce em continentes com o histórico do colonialismo. Nela, encontramos a força das tradições ancestrais, os laços criados pelas histórias contadas numa comunidade, o peso dos sistemas políticos autoritários e o refúgio na fluidez da música, da natureza e da expressão. Sua escrita sem pontos finais, regada por vírgulas e pela ideia de continuidade, aposta na construção coletiva da grande história que estamos traçando e contando, como humanidade, para as gerações atuais e para as que estão por vir.
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Os romances de Mabanckou 1998 - Bleu Blanc Rouge (Azul, branco, vermelho) 2001 - Et Dieu seul sait comment je dors (E só Deus sabe como durmo) 2002 - Les petits-fils nègres de Vercingétorix (Os netos negros de Vercingetórix) 2003 - African psycho
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2005 - Copo quebrado ("Verre cassé"), Rio de Janeiro: Editora Malê, 2018. Copo Quebrado é o apelido de um ex-professor, amante de vinho tinto e um dos mais assíduos frequentadores do bar O crédito acabou, um bar dos mais atípicos de Brazzaville, no Congo. O dono do bar, conhecido como Escargô Cabeçudo, confia a Copo Quebrado a tarefa de imortalizar em um caderno a vida e as histórias dos frequentadores do bar. Nessa farsa metafísica, onde o sublime se mistura com o grotesco, Alain Mabanckou nos mostra um retrato vivo e saboroso de uma realidade africana, incorporando alusões literárias e humor. 2006 - Memórias de porco-espinho ("Mémoires de porc-épic"), Rio de Janeiro: Editora Malê, 2017. Mabanckou revisita, com amor e ironia, uma série de lugares fundadores da literatura e cultura africanas. Parodia livremente uma lenda popular de que todo ser humano possui seu duplo animal, o qual, nessa narrativa, é um porco-espinho surpreendente. O pequeno animal, filósofo e malicioso, executa os macabros desejos de seu mestre e realiza uma série de assassinatos. Mabanckou revela que, apesar de o romance ter sido escrito em francês, o ritmo da narrativa advém das línguas orais africanas faladas no Congo, o que transparece na construção da história.
2009 - Black bazar, Rio de Janeiro: Editora Malê, 2020. Abandonado pela mulher e pela filha, o protagonista desse romance segue o conselho de um amigo e compra uma máquina de escrever. Ele passa a registrar obsessivamente as experiências e sentimentos desencadeados pela separação. Apelidado pelos amigos do Jip’s bar – reduto afro-cubano em Paris - de Bundólogo, pela paixão que nutre por nádegas femininas, a ponto de inferir a personalidade de cada mulher que observa a partir das características do bumbum, o narrador de Black bazar nutre outra paixão, a moda. Vivendo em um apartamento simples, mas se vestindo com os melhores ternos, como um dândi africano, o narrador de Black bazar segue o padrão estético da SAPE - Sociedade de Ambientadores e de Pessoas Elegantes , fundada na favela de Bacongo, na República Democrática do Congo, nos anos 1960, quando o país estava sob comando do ditador Mobutu Sese Seko e era ainda conhecido como Zaire. Os sapeurs usavam ternos de cores fortes e corte meticuloso, destoando do cenário de pobreza e representando uma ofensa ao governo da época. 2010 - Demain j'aurai vingt ans (Amanhã farei vinte anos) 2012 - Tais-toi et meurs (Cale-se e morra) 2013 - Lumières de Pointe-Noire (Luzes de Point-Noir) 2015 - Black Moses ("Petit Piment") 2018 - Les cigognes sont immortelles (As cegonhas são imortais)
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Clássicos brasileiros para ir além
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Texto: Rafael Balsemão Imagem: Ilustração de Raul Pompaia, reprodução
Moisés negro é dividido em dois grandes momentos. O primeiro é a vida no orfanato, apresentada como se fosse uma espécie de prisão, comparável ao que vivem muitos jovens que estudam em colégios internos. A segunda parte retrata as peripécias dos meninos nas ruas de Pointe-Noire. No Brasil, grandes clássicos de nossa literatura dialogam fortemente com esses dois temas, centrais na obra de Alain Mabanckou. A vida no internato retratada por Raul Pompeia em O Ateneu (1888) pode ser comparada com o que passam os meninos na instituição comandada por Dieudonné Ngoulmoumako. Já Capitães da areia, de Jorge Amado, se relaciona com a vida de Moisés e os outros garotos tentando sobreviver nas ruas como sem-tetos. O texto de Pompeia parte de uma experiência pessoal do autor. Sérgio, o narrador-protagonista, assim como Moisés, evoca, em primeira pessoa, o início de sua adolescência em um internato. Segundo Sergius Gonzaga, em seu Manual de literatura brasileira, “o romance é a memória adulta de uma experiência juvenil”. O primeiro parágrafo do livro é uma passagem icônica de nossa literatura: “‘Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.’ Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão
diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso.” Segundo Carlos Augusto Bonifácio Leite, professor de Literatura Brasileira do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a obra contém uma “questão traumática estetizada”. “Em O Ateneu há um passado que é tão forte que não deixa nada escapar daquele colégio”, afirma Leite. Um dos obstáculos que Sérgio terá de enfrentar será Aristarco, o diretor da instituição de ensino, que tem papel semelhante ao de Ngoulmoumako em Moisés negro. O ódio que o narrador adulto guarda do internato remete à figura de Aristarco, que simboliza a perversidade do sistema. O Ateneu segue sendo estudado até hoje no meio acadêmico e influenciou outras gerações de escritores 12
do país. "É um romance que carrega uma negatividade, por não construir um futuro. Depois dele não há uma linha de continuidade muito clara. Mas os romancistas de 1930 que trabalham nessa chave, entre eles Dyonélio Machado e Graciliano Ramos, provavelmente beberam dessa negatividade. Eles me parecem mais filhos do Raul Pompeia do que do Aluísio de Azevedo”, analisa Leite. Publicado no mesmo período dos principais romances de Machado de Assis, O Ateneu, entretanto, não é listado entre as obras classificadas como da escola realista, ao apresentar um narrador cheio de emotividade. Muitos o classificam como impressionista. "Esse impacto da memória, do trauma e da experiência como foi vivida acaba modulando o real. Uma coisa é o colégio como ele foi; outra coisa é o colégio que o personagem está representando. O real que ele vê não é objetivo. Por isso que a gente fala de traços impressionistas”, explica o professor da UFRGS.
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“Assim como Moisés e os gêmeos Songi-Songi e Tala-Tala, Pedro Bala, Professor, Gato, Sem Pernas e Boa Vida são adolescentes que, abandonados por suas famílias, sobrevivem praticando assaltos.” Já a segunda parte do livro de Alain Mabanckou dialoga fortemente com Capitães da areia, de Jorge Amado, que retrata a vida de um grupo de menores abandonados que crescem nas ruas da cidade de Salvador vivendo em um trapiche. Assim como Moisés e os gêmeos Songi-Songi e Tala-Tala, Pedro Bala, Professor, Gato, Sem Pernas e Boa Vida são adolescentes que, abandonados por suas famílias, sobrevivem praticando assaltos. Para Milton Hatoum, o romance do escritor baiano “antecipou de um modo lúcido e incisivo a vida das crianças que esmolam nas ruas da cidade brasileira”. Diz
Cena do filme Capitães da areia, dirigido por Cecília Amado (2011)
Hatoum em posfácio publicado em edição da Companhia das Letras: “Hoje, a violência urbana tem uma relação estreita com o tráfico de drogas, enquanto os meninos desta obra de ficção furtam para sobreviver. Mas, até certo ponto, as raízes do problema são as mesmas: a ausência da família e da escola, agravada pela vida degradante nas favelas e cortiços de tantas cidades”. Publicada no ano de 1937, a obra, assim como Suor (1934) e O país do carnaval (1931), faz parte da série de romances de Jorge Amado conhecidos como proletários, ao retratar, com forte coloração social, a vida urbana na capital da Bahia. Capitães da areia causou impacto desde o lançamento, quando a polícia do Estado Novo apreendeu e queimou em praça pública inúmeros exemplares do livro. "O Jorge Amado, no quadro do Romance de 30, é muito peculiar. É um romance que está pensando já a ideologia e os quadros teóricos da Revolução Russa de 1917. Por, em certa medida, estar transformando parte 14
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da ideologia comunista em romance, ele vai ser traduzido muito rapidamente”, afirma Carlos Augusto Leite. “A Internacional Comunista enxergava a produção romanesca dele como ideologicamente comprometida e importante para o regime. Ninguém viveu isso no Brasil como Jorge Amado.” De acordo com o professor da UFRGS, "é possível reduzir Jorge Amado a uma leitura esquerdizante e esquemática”, visão da qual ele discorda: “Há um monte de coisas interessantes, sobretudo quando chega a Terras do sem fim, em que a coisa fica um pouco mais equilibrada. Tem essa ideia da literatura no limite da poesia, a literatura no limite do documento, uma ideia muito maluca dele de criar a mulher brasileira por excelência”. Para Leite, a ideia de emancipação está no centro do trabalho do escritor baiano, o que fica evidente em Capitães da areia, com o chefe do bando, Pedro Bala, se transformando em líder revolucionário no final do romance. “Em termos de formação massiva e de literatura popular no Brasil do século 20, não sei se alguém ganha de Jorge Amado. Muito, muito lido e, ao mesmo tempo, veiculando essa ideia de revolução, às vezes até de uma maneira acochambrada. De todo jeito, é uma literatura super empenhada”, analisa Leite. “Ao passo que O Ateneu não tem nada de empenhado. No romance de Raul Pompeia, a coisa é quase pessoal.”
Crítica
Equilíbrio de contrários
Texto: Carlos André Moreira Jornalista, mestre em literatura portuguesa pela UFRGS. Criador do canal Admirável Mundo Livro
Moisés negro, do congolês Alain Mabanckou, vem sendo comparado com obras de Charles Dickens, como Oliver Twist ou David Copperfield, por exemplo, mas a a semelhança é puramente superficial, por também se tratar do relato de um protagonista que começa sua vida órfão, abandonado e sofrendo as mazelas de uma vida sem posses. O livro de Mabanckou, embora não esteja longe da melancolia, na verdade é uma vigorosa mescla da tradição do romance picaresco com o imaginário social do país africano em que é ambientado. Moisés negro é a história de um jovem criado em um orfanato em Loango, região litorânea da República do Congo. O protagonista foi deixado à frente da instituição ainda com poucos meses, e tudo o que conheceu no início da vida foi o ambiente do orfanato. Seu próprio nome, motivo para ele de inquietação e vergonha, foi dado pelo padre Moupelo, que ministra educação religiosa no lugar e batiza nosso herói pelo longuíssimo nome de Tokumisa Nzambe po Mose yamoyindo abotami namboka ya Bakoko, cujo significado não é menos pomposo que sua extensão: “Demos graças a Deus, o Moisés negro nasceu na terra dos ancestrais”.
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Em uma prosa certeira e aguda, o romance enfileira uma série atordoante de orfandades no caminho de seu herói. Fiel à narrativa picaresca que toma por modelo, e que teve seu ápice nos séculos XVII e XVIII na Europa, Moisés negro conta sua história em primeira pessoa e tem um protagonista que, por não ter família ou uma situação social predeterminada, vai rolando ao sabor das circunstâncias enquanto muda de grupos e de alianças. Mas não é uma mera homenagem, e sim uma subversão do modelo. Ao contrário de um Lazarillo de Tormes, não há no protagonista uma inocência original que se perde com o tempo. Crescido em um ambiente em que a opressão começa nos valentões do dormitório e sobe o organograma até o diretor oportunista Dieudonné Ngoulmoumako, Moisés aprende cedo a não ter uma visão particularmente otimista do mundo. Embora não seja particularmente mau, ele sabe que a violência e a trapaça são recursos a serem dominados – nesse sentido, o verdadeiro “inocente” do orfanato é seu melhor amigo no local, Bonaventure Kokolo. Metade do livro é dedicada à vida de Moisés no orfanato, cenário que permite ao autor estabelecer uma sátira em miniatura às marés políticas de seu país. Originalmente uma instituição religiosa, o orfanato
“Em um país em que o único objetivo do poder é se perpetuar a qualquer custo, mesmo as frestas do sistema não são um lugar seguro.” passa a ser estatal após a independência. Quando Moisés está em sua pré-adolescência, com treze anos, o país adota o socialismo como regime. Nessa transição, uma das poucas figuras que demonstraram carinho pelo órfão, o padre Moupelo, é afastado. Filiado rapidamente ao partido do regime, o liso diretor da casa
consolida seu poder e arranja cobiçados cargos de inspetores partidários para três de seus sobrinhos, que são também eles próprios funcionários do orfanato. A tirania de Dieudonné Ngoulmoumako logo expulsa outra das poucas reservas de carinho para Moisés, a faxineira Sabine Niangui. A chegada ao orfanato dos violentos gêmeos Songi-Songi e Tala-Tala precipita uma mudança vertiginosa na vida de Moisés. Para dar o troco aos espancamentos constantes em seu amigo Kokolo, ele se esgueira no dormitório dos encrenqueiros e envenena sua comida com pimenta, provocando dias de fortes problemas internos. Curiosamente, em vez de ser espancado até a morte, Moisés, por sua malandragem, cai nas graças dos desafetos, que o apelidam de “Pimentinha” (Petit Piment, aliás, é o título do livro em francês) e o tornam parte de seus esquemas. Mais tarde, organizam uma fuga, levando-o para a cidade de Pointe-Noire, onde ele e seus comparsas vivem como assaltantes no mercado e em uma localidade portuária, alvos da perseguição implacável de um prefeito populista, François Makélé. Parte do que constitui o gênero picaresco é a parcial evolução social do personagem, dos estratos mais baixos até os medianos (quase nunca até os aristocráticos). Em seu romance, Mabanckou revira o modelo com a instável realidade política africana: Pimentinha está fadado a fracassar desde o início. Não pela falta de generosidade geral, que é contrabalançada por manifestações pontuais de humanidade, mas porque em um país em que o único objetivo do poder é se perpetuar a qualquer custo, mesmo as frestas do sistema não são um lugar seguro. Mesmo sua última e desesperada reação não consegue mais do que punição, como o leitor verá à medida que avança no romance. Outro elemento original que Mabanckou traz para o gênero, e que sela com maestria o transplante de uma modalidade europeia de narrativa para um cenário colonial, é a aceitação natural do elemento mágico e místico. E, mais do que qualquer romance picaresco, o que Moisés negro consegue é criar um equilíbrio de contrários delicado: é uma comédia satírica ácida e particularmente cruel, embutida em uma das histórias mais tristes desta década.
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Próximo mês
Pais, filhos e aquilo que os separa
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O livro que lhe aguarda no primeiro mês do ano que se avizinha é escrito por um ganhador do prêmio Nobel de Literatura, o único em seu país a ter recebido a honraria. A história nos leva à mente de um perfurador de poços em busca de água em lugares secos e inóspitos. Exausto e debilitado pelo calor constante, seu único conforto é na figura do aprendiz que o acompanha, com quem desenvolve um laço quase filial... até que uma mulher distrai os dois.
Escrito por um dos grandes narradores de nosso tempo, o romance opõe amor e culpa, passado e presente, Oriente e Ocidente em uma história que aprisiona o leitor.
Conan Doyle
Ilustrações de Gabriela Basso
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