K.
JUN 2022
OLÁ, TAGGER Olá, tagger A
o longo desta revista, você verá diversas menções a uma mesma palavra: memória. Não poderia ser diferente — no livro que enviamos este mês, o escritor Bernardo Kucinski põe no centro o próprio pai, um judeu polonês que buscou refúgio no Brasil para escapar do horror nazista e que empreende uma busca dramática pela filha desaparecida durante a ditadura militar. Lembranças e culpas pessoais unem-se, assim, ao tema da memória coletiva, aos traumas que rondam a nossa história ainda hoje. Ao apresentar K. nas páginas a seguir, a ensaísta Isadora Sinay bem salienta que “somos um país cindido por anos de sumiços, desaparecimentos e amnésia. Um país aberto pela incapacidade (ou pela falta de vontade) de lembrar”. Esse seu texto introdutório é seguido por uma entrevista com Natalia Timerman, nossa curadora do mês, que aborda, entre outros assuntos, o elemento da autoficção na obra de Kucinski. Assinada por Paula Sperb, uma reportagem ajuda a contextualizar eventos, lugares e figuras históricas que se fazem presentes na trama. Ainda nesta edição, você encontrará uma série de conteúdos preparados para depois da leitura do romance. O posfácio da revista inclui uma entrevista concedida por Kucinski ao jornalista Guilherme Sobota, além de artigos que refletem sobre os laços do protagonista com a cultura judaica e sobre a memória política nacional. Boa leitura!
JUNHO 2022 TAG Comércio de Livros S.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200
taglivros contato@taglivros.com.br www.taglivros.com
QUEM FAZ
RAFAELA PECHANSKY
JÚLIA CORRÊA
Publisher
Editora
PAULA HENTGES
Designer
LIZIANE KUGLAND
ANTÔNIO AUGUSTO
Revisora
Revisor
Impressão Gráfica Ipsis Capa Luciana Facchini e Carlos Issa Página da loja Gabriela Carneiro
Preciso de ajuda, TAG! Olá, eu sou a Sofia, assistente virtual da TAG. Converse comigo pelo WhatsApp para rastrear a sua caixinha, confirmar pagamentos e muito mais! +55 (51) 99196-8623
prefácio
15 11 8 6 4
Experiência do mês
O livro indicado Entrevista Natalia Timerman
Contextualização
posfácio
32 29 25 22
guia de conteúdos
Por que ler o livro
Para ir além
Entrevista
Bernardo Kucinski
Reflexão
Próximo mês
Marque a cada parte concluída
JORNADA DE LEITURA
4 EXPERIÊNCIA DO MÊS
C
riamos esta experiência para expandir sua leitura. Entre no clima de K. colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!
Inicie o livro e leia até a página 43 O desaparecimento da filha e o início da busca de K. por seu paradeiro trazem para o centro da trama clandestinidade, perseguições e falsos informantes. Até aqui, já notamos também indícios de um sentimento de culpa que acompanha o personagem. Compartilhe no app as suas impressões sobre esses primeiros capítulos! Leia até a página 75 Aos poucos, K. vai descobrindo um lado até então oculto da vida da filha. Enquanto mostra-se disposto a ultrapassar fronteiras atrás dela, o personagem também percebe a tortura psicológica a que estão submetidos os familiares dos desaparecidos. Leia até a página 142 Podemos ver que uma série de personagens paralelos ganham voz na trama, incluindo pessoas cúmplices e outras envolvidas indiretamente com os desaparecimentos relatados. Pela perspectiva deles, descobrimos mecanismos cruéis da época da ditadura militar brasileira. Leia até a página 171 As últimas páginas nos mostram um exemplo de como certas instituições foram coniventes com o regime militar. Difícil não se indignar com o que acabamos de ler, não é mesmo? Leia até a página 194 O epílogo do livro mostra cenas comoventes, com elementos bastante simbólicos das vivências passadas do protagonista. Uma troca de correspondência também nos instiga a refletir sobre a atuação de certos movimentos políticos. O que você achou do final da história? Não deixe de comentar lá no app! K. pode ter terminado, mas a experiência não! Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.
projeto gráfico
mimo
EXPERIÊNCIA DO MÊS
Em K., as lembranças que o pai tem da filha são parte fundamental da história. Pensando nisso, o mimo deste mês é uma caixinha de memórias em MDF para você guardar itens que remetam às suas recordações pessoais. Que tal armazenar anotações sobre os livros que você leu ao longo dos meses? No final do ano, abra a caixinha e relembre as suas leituras! Vale também registrar momentos especiais de sua vida!
O projeto gráfico deste mês foi desenvolvido em uma parceria entre a designer Luciana Facchini e o artista Carlos Issa. Com base na ideia dela de adotar um caminho “tipográfico” para o material, foram incorporadas técnicas adotadas por Issa em suas experimentações gráficas, como letraset, nanquim, fita adesiva e tinta spray, todas elas usuais nos anos 1970, época em que se passa o livro de Kucinski. A partir dessas definições, a letra presente na capa, dotada apenas de contorno, busca remeter à ideia de ausência passada pela narrativa. A marca da gestualidade, os ruídos das ilustrações e as camadas com aspecto apagado — que caracterizam ainda os outros materiais do kit — buscam também traduzir o espírito do livro. Carlos Issa vive e trabalha em São Paulo. Sua pesquisa envolve desenho abstrato, arte sonora, design experimental e fotografia. Luciana Facchini é designer gráfica formada pela FAUUSP. Trabalhou na editora Cosac Naify entre 2005 e 2009. Dirige desde 2010 seu próprio estúdio, com trabalhos focados na área de cultura, especialmente na área editorial e de exposições.
jan
jul
fev
ago
mar set abr
out
mai
nov
jun
dez
2022
5
K.
POR QUE LER O LIVRO
Considerada uma das obras mais emblemáticas da autoficção produzida hoje no Brasil, K., de Bernardo Kucinski, romance publicado pela primeira vez em 2011, apresenta a história do desaparecimento da irmã do autor a partir da perspectiva do pai. O luto paterno é costurado com dois eventos atrozes do século XX: a ditadura militar brasileira e o Holocausto, que matou milhões de judeus na Europa. O livro, que traz à tona importantes reflexões sobre a memória política, marca a estreia tardia de Kucinski na literatura, aos 74 anos, depois de uma longa trajetória no jornalismo e na docência universitária. Em 2018, o autor recebeu o Prêmio Vladimir Herzog, dedicado a personalidades com relevantes serviços prestados à democracia. K. foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e do então Portugal Telecom (atual Oceanos).
"Conhecemos o desfecho e, mesmo assim, prosseguimos com a respiração presa até as derradeiras palavras [...]. Ninguém escapa ileso deste registro despojado, comedido, por isso arrasador." Alberto Dines (1932–2018), Estadão
"Com um domínio técnico admirável, Kucinski constrói um elo com o leitor logo nas primeiras linhas, fazendo com que este, desconcertado, (re) viva o período de opressão e de torturas precisamente remontado por conta de uma narrativa pungente e avassaladora. Uma obra-prima." Sérgio Tavares, Revista Bula
8 O LIVRO INDICADO
Tudo é invenção, mas quase tudo aconteceu ISADORA SINAY*
K. é um romance profundamente brasileiro e profundamente judaico, a história de dois traumas específicos e universais e do fluxo das tragédias humanas do século 20
K.
Crítica literária e ensaísta. Formada em cinema, é doutora em literatura judaica pela USP. Atua também como tradutora e professora.
é, em sua temática e forma, um romance de memória. Primeiro, porque o fio da sua narrativa se organiza em torno das lembranças do protagonista — lembranças da filha, da Polônia e daqueles que lá ficaram. K. é a história desse pai, mas também da filha que não está mais lá, e tudo o que resta é memória. Mas o livro é também um romance de memória porque suas partes são reconstruídas por uma memória, a do escritor e irmão que também não estava lá. Durante a maior parte dos eventos, Bernardo se encontra na Inglaterra, distante do pai e sua busca determinada. Tudo o que ele sabe é o que lhe foi contado, ou o que imaginou, ou as lembranças que, como faz todo escritor, importou dos outros. Nessa história, tudo é inventado, mas quase tudo aconteceu, ele nos conta. Assim também funciona a memória — dos filmes que passamos na nossa cabeça, quase tudo é inventado, mas, de alguma maneira, quase tudo aconteceu. O que aconteceu, mais do que todas as outras coisas, foi o desaparecimento de Ana Rosa Kucinski em abril de 1974. O que aconteceu é que somos um país cindido por anos de sumiços, desaparecimentos e amnésia. Um país aberto pela incapacidade (ou pela falta de vontade) de lembrar. Surpreende pessoas de outros países quando conto que a memória da ditadura no Brasil não é de forma alguma um consenso. Que sua barbárie e tragédia não foram institucionalizadas simbolicamente, como aconteceu com o nazismo, por exemplo. Enquanto país, não nos sentamos em uma mesa metafórica e concordamos todos que aquilo foi um absurdo. Talvez seja por isso que Ana Rosa
O LIVRO INDICADO
e outros como ela sejam um símbolo tão palpável desse passado: no fundo, nós (e K. e Bernardo) não sabemos o que aconteceu. Ana Rosa desapareceu como que no ar, em uma perversão cruel de uma imagem poética. Resta encerrar, nomear uma rua, erguer uma lápide. Resta enfrentar o vazio do não saber o que aconteceu. É possível abordar a ditadura por muitos lados, mas falar de memória é a forma mais frágil, espinhosa e desconfortável de se fazer isso. Falar da memória desses anos é confrontar de forma implacável o que não lembramos. Mas K. se lembra de tudo. O fio da memória organiza esse romance também porque sobrepõe, de forma elegante e iluminadora, a ditadura civil-militar brasileira e a ocupação nazista da Polônia. O desaparecimento de Ana Rosa e o desaparecimento dos milhões de judeus que viraram fumaça no Leste Europeu. Esse é um romance profundamente brasileiro e profundamente judaico, a história de dois traumas específicos e universais e do fluxo das tragédias humanas do século 20. Abençoada a mãe de Ana Rosa, que, consumida pelo luto de um genocídio, não precisou confrontar o outro. Os fios da memória dão também ao livro sua estrutura, não exatamente episódica mas documental, arquivista. Kucinski parece em certos momentos um bibliotecário, ou um detetive, que monta um dossiê sobre a irmã. Ele se retira (enganosamente, como todos os escritores) e apresenta ao leitor os frutos de sua investigação, os documentos que contam a história do desaparecimento de Ana Rosa. Talvez seus anos de jornalista o ajudem a construir essa voz pretensamente objetiva, que recorta tudo que aconteceu, mas obscurece a voz — e a dor — do escritor em si. De tudo, a única coisa que ele deixa transparecer é a referência a Kafka, padroeiro e assombração de quase todo escritor judeu. A primeira referência está clara no nome de seu personagem e no eco entre a trama de K. e a de O processo. Em ambas, o protagonista navega por uma burocracia torturante na tentativa de esclarecer um processo judiciário opaco. Mas há algo que escapa em muitas das leituras do romance de Kafka: embora Joseph K. queira saber
Ana Rosa, desaparecida em 1974.
9
"Kucinski parece em certos momentos um bibliotecário, ou um detetive, que monta um dossiê sobre a irmã."
10 O LIVRO INDICADO
por que está sendo processado, ele em hora nenhuma duvida de sua culpa, ou protesta que é inocente. De maneira similar, K. busca saber do paradeiro da filha e das acusações que foram feitas contra ela, mas ele aceita sua punição sem questionar. Ele, K., merece ser punido por sua devoção ao iídiche. Essa acusação, que o escritor — filho — coloca na boca do protagonista — seu pai —, pode ser interpretada de mil formas, inclusive extrapolando-a para a relação pessoal entre essas duas figuras, se alguém assim quiser. Mas a força simbólica do iídiche impõe a centralidade da memória nesse livro e expõe o trauma do presente como uma continuidade, histórica e pessoal, dos traumas do passado. De tudo que se perdeu no Holocausto, nada é mais representativo do que o iídiche, a língua que desapareceu com os judeus da Europa. De língua materna de milhões de pessoas, o iídiche é hoje uma língua de avós, de palavras pronunciadas com carinho ou uma maldade íntima. Uma língua que, em seu desaparecimento, foi deixando sem lar aqueles como K., exilados de uma Europa impossível e que haviam encontrado na literatura da língua uma extensão da comunidade judaica que tinham sido forçados a abandonar. Mas o iídiche não desapareceu sem deixar traços. Como um membro fantasma, ele tingiu o inglês, o português e o espanhol, todas as línguas dos lugares para onde os judeus foram, onde viveram e escreveram. Os judeus carregam por aí expressões e palavras que são quase como pequenas lápides, memoriais portáteis, como as pedras que deixam nos túmulos, um lembrete eterno e vivo de um mundo que se foi. Muito se fala sobre comparações entre o Holocausto e outras tragédias; no romance, o próprio K. é admoestado por um rabino que o censura por mencionar ritos do Holocausto para a filha. “Nada se compara ao Holocausto”, diz o rabino. É mentira. Embora existam as comparações feitas para obscurecer ou diminuir um ou outro lado, aqui a aproximação esclarece, joga luz, dá o peso devido a uma tragédia sussurrada demais. Com Ana Rosa e todos os outros desaparecidos, há um mundo inteiro que se vai, uma língua, um universo. Por conta de um estado autoritário, burocrático e violento, vidas e memórias desaparecem pelo ar. E nós todos carregamos os vestígios conosco. As palavras em iídiche, ou esse pequeno livro.
ENTREVISTA
11
JÚLIA CORRÊA*
Curadora do mês, Natalia Timerman conversa com a TAG sobre K., de Bernardo Kucinski, revela a produção de um novo livro e destaca algumas de suas referências na literatura brasileira atual
D
É editora na TAG. Jornalista formada pela UFRGS, é mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Antes, foi repórter cultural do Estadão e colaboradora do portal Fronteiras do Pensamento.
o último ano para cá, a escritora e psiquiatra Natalia Timerman viu seu primeiro romance, Copo vazio, lançado pela editora Todavia, conquistar um público cativo de leitores. “Nem nos meus melhores devaneios eu poderia imaginar que ele seria lido da forma como tem sido”, diz ela em entrevista à TAG. Antes de lançar esse livro, que gira em torno de uma mulher independente e bem-sucedida que se vê vulnerável diante de um abandono amoroso, Natalia já havia publicado outras duas obras: Desterros: história de um hospital-prisão, de 2017, e Rachaduras, de 2020. Atualmente, a escritora faz doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, com uma pesquisa sobre autoria e escritas de si em Elena Ferrante e Karl Ove Knausgård. Não é por acaso que, como curadora da TAG, ela decidiu indicar um livro marcado pela autoficção. Há, no entanto, um motivo mais pessoal que pauta essa escolha: a identificação, durante a sua leitura de K., de experiências vivenciadas por ela ao perder o pai. É a figura paterna, aliás, que inspira a escrita de seu novo livro, conforme revela a seguir. Na conversa, ela também avalia o atual momento da literatura brasileira. Confira a entrevista completa.
12 ENTREVISTA
Por que você decidiu indicar K. ao nosso clube? Pode nos contar como foi o seu primeiro contato com o livro? Sempre anoto na folha de rosto de um livro meu nome e o ano desse primeiro encontro. Em K., anotei também o mês, algo inusitado, mas que considero um recado para mim mesma, da leitora inicial às futuras: março de 2019, não só o ano, mas o mês da morte do meu pai. Já nas primeiras páginas, nas "Cartas à destinatária inexistente", reconheci algo que estava experienciando dolorosamente naquele momento: a correspondência que continua a chegar depois que alguém morre — cartas, e-mails, contas, ofertas —, como se o mundo não estivesse preparado para aquela desaparição, e em muitos aspectos, não está. Mas ao luto de uma morte "comum", se é que isso existe, K. sobrepõe um outro, ainda mais terrível: o luto que carrega uma incompletude, uma impossibilidade, um rancor individual adicional diante do absurdo coletivo dos desaparecidos políticos da ditadura militar brasileira, pessoas violentamente assassinadas cuja morte jamais foi completamente esclarecida e suficientemente elaborada, um silêncio que assombra o Brasil e cuja putrefação tem consequências bastante práticas até hoje. No início do livro, lemos que "tudo é invenção, mas quase tudo aconteceu". Em seu doutorado, você estuda o tema da autoficção, que é justamente um elemento importante em K., definindo a própria estrutura fragmentária da narrativa. Como você avalia essa construção literária (e seus efeitos) na obra de Kucinski? Essa frase concilia tão bem os aspectos ambivalentes das chamadas escritas de si que ela abre o projeto de pesquisa com que ingressei no doutorado. Os limites entre ficção e realidade são de cara nuançados, imbricados, postos como indecidíveis, e isso vai além de um estratagema formal, já que o tema
A curadora do mês, Natalia Timerman. Renato Parada
ENTREVISTA
13
"Ao luto de uma morte 'comum', se é que isso existe, K. sobrepõe um outro, ainda mais terrível: o luto que carrega uma incompletude [...]"
central, o desaparecimento de uma mulher, a irmã daquele que se coloca no livro como autor e que passa a palavra a um narrador-pai, é da ordem do indizível. É indizível porque levanta a questão ética de se fazer arte com uma dor real; é indizível porque é inalcançável com as palavras; é indizível por ser, no mundo real, um quebra-cabeças em que seguem faltando peças demais. Por isso a estrutura fragmentária, os diversos narradores que só podem oferecer suas parcas versões de um real abismal cuja verdade escapa. A opção por um narrador outro, por assumir a voz do pai, retira o romance do âmbito estrito da autoficção, em que o autor se identificaria nominalmente com o narrador. Mas a opção por chamar de K. esse narrador, remetendo ao sobrenome do autor e também a Kafka, o escritor do abismo, complexifica a questão, faz encontrarem-se tema e forma: pois um assunto abismal só pode ser tratado por um narrador de mesma ordem, com uma forma lacunar, incompleta, tão suficiente em sua insuficiência para alcançar o inominável. Podemos dizer que K. nos instiga a pensar no tema da memória coletiva, política, e nas feridas ainda abertas da história brasileira. Na sua visão, qual a importância da literatura nesses processos de elaboração e reflexão históricas? Sua pergunta me remete imediatamente a "Babi Yar", poema de Yevgeny Yevtushenko publicado em um periódico russo em 1961 sobre o tenebroso acontecimento na ravina de mesmo nome na qual, duas décadas antes, 35 mil judeus haviam sido mortos em três dias. Até então, o governo russo não havia reconhecido o massacre. O poema não fez com que os mortos revivessem, é claro. Mas apontou para o silêncio em seu entorno, para a indolência do governo em assumir e, na medida do possível, reparar aquele tenebroso ocorrido em território russo durante a Segunda Guerra Mundial. A literatura não repara situação alguma, mas aponta para esses buracos históricos, para essas lacunas que, se não forem ditas, colocam-se à nossa frente com mais facilidade para que caiamos nelas de novo. Em K., a falta de reparação é apontada explicitamente no capítulo sobre a reunião do Departamento de
14 ENTREVISTA
Química da USP em que foi decidida a demissão de Ana Rosa Kucinski, um ano após seu desaparecimento. A alternância entre transcrição literal da ata e trechos ficcionais em que se imagina o pensamento dos presentes na reunião ilustra bem o papel da ficção e da literatura quando a história oferece tantas lacunas. Você publicou Copo vazio no início do ano passado, romance que tem tido uma boa repercussão desde o seu lançamento. Como você tem se sentido com essa recepção tão positiva? Tem planos de lançar um novo livro em breve? É surpreendente a recepção de Copo vazio. Nem nos meus melhores devaneios eu poderia imaginar que ele seria lido da forma como tem sido, o que me deixa muito feliz mas com uma pontinha de preocupação, pois meu próximo livro é bastante diferente, o que talvez desaponte leitores que tenham por acaso me cristalizado no lugar de uma escritora que trata de relacionamentos amorosos. Ainda que o livro seja também sobre luto, mas de um outro tipo: é um livro sobre a morte e a vida do meu pai. Além de Bernardo Kucinski, quais são as suas principais referências entre autores contemporâneos brasileiros? A literatura contemporânea brasileira vive um momento riquíssimo, principalmente entre as mulheres. É uma alegria escrever no mesmo momento em que Paulliny Tort, Giovana Madalosso, Conceição Evaristo, Tatiana Salem Levy, Nara Vidal, Andréa del Fuego, Lubi Prates, Julia Bac, Gabriela Aguerre, Micheliny Verunschk, Marcela Dantés, Socorro Acioli, Jarid Arraes.
MINHA ESTANTE O primeiro livro que eu li: aprendi a ler juntando as letras dos gibis da turma da Mônica O livro que estou lendo: Arquivo das crianças perdidas, de Valeria Luiselli O livro que mudou a minha vida: A condição humana, de Hannah Arendt O livro que eu gostaria de ter escrito: A amiga genial, de Elena Ferrante O último livro que me fez rir: Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk O último livro que me fez chorar: O corpo interminável, de Claudia Lage O livro que eu dou de presente: Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso O livro que eu não consegui terminar: (ainda) O segundo sexo, de Simone de Beauvoir
CONTEXTUALIZAÇÃO
15
Anos de chumbo PAULA SPERB*
Narrativa de Bernardo Kucinski evidencia a violência institucional da ditadura militar brasileira, incluindo eventos, lugares e figuras históricas que marcaram o período
P
or 21 anos, os brasileiros não puderam eleger seu presidente. Entre 1964 e 1985, o país foi vítima de uma ditadura militar. O regime começou com um golpe, que afastou o presidente João Goulart, e terminou sem que a população pudesse votar: à revelia das ruas cheias que clamavam por “Diretas Já”, um colégio eleitoral escolheu o novo mandatário. O fim do direito ao voto foi apenas uma das violações sofridas pelos brasileiros. O período foi marcado por censura e uma sangrenta perseguição aos opositores da ditadura, que, não raro, acabava em torturas, mortes e o desaparecimento do corpo das vítimas. É nesse contexto histórico que a trama de K., obra de Bernardo Kucinski, se desenrola. Uma vez que é fundamental que a história seja lembrada para que não se repita, a revista da TAG ajuda a recordar acontecimentos cruciais que antecederam e marcaram os anos de chumbo.
Crítica literária e jornalista. Fez pósdoutorado em Letras na UFRGS e é doutora em Letras pela UCS. Foi repórter da Folha de S. Paulo e Veja.
CAMPANHA DA LEGALIDADE Embora o golpe que deu início à ditadura tenha se concretizado em 1964, anos antes os militares brasileiros já haviam tentado destituir o presidente eleito. Em 1961, o presidente Jânio Quadros renunciou. Naquele período, os brasileiros votavam separadamente para presidente e vice. Na eleição de 1960, a última antes do golpe, Jânio e João Goulart, o Jango, foram eleitos para os respectivos cargos. Com a renúncia de Jânio, Jango deveria assumir,
16 CONTEXTUALIZAÇÃO
conforme determinava a Constituição. As Forças Armadas, porém, tentaram impedir a posse. Em 1961, o golpe foi evitado graças à Campanha da Legalidade, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. A resistência organizada por Brizola, cunhado de Jango, envolveu a comunicação em massa usando uma rede de rádios. Para poder assumir, Jango precisou concordar com a implantação do regime parlamentarista no país. “Propuseram que Jango podia assumir, mas não podia governar. Mudaram o regime de presidencialista para parlamentarista. O primeiro-ministro foi Tancredo Neves, nome aceito pelos militares”, explica Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), entidade criada durante a ditadura para denunciar violações cometidas pelo Estado. Em 1963, em um plebiscito, os brasileiros escolheram a volta do presidencialismo, e Jango voltou a governar efetivamente. Porém ele foi impedido de continuar o mandato. GOLPE MILITAR Em 1º de abril de 1964, as Forças Armadas concretizaram o golpe. Os militares só deixaram o poder em 1985, impunes até hoje pelas torturas e assassinatos. A principal justificativa dos militares para o golpe é que havia o risco de o país se tornar comunista sob o comando de Jango. João Goulart, porém, não era comunista. Ele era fazendeiro e católico, mas entendia que o Brasil precisava de desenvolvimento. No cenário mundial, a Guerra Fria colocava em oposição Estados Unidos e Rússia. Os estadunidenses temiam um crescimento dos blocos de esquerda pelo mundo. Os Estados Unidos chegaram a criar um índice ideológico dos governadores brasileiros para influenciar a política interna e desestabilizar Jango, segundo documentos descobertos pelo professor Felipe Pereira Loureiro, da Universidade de São Paulo (USP). Com o golpe, Jango se exila no Uruguai. O acervo do MJDH, em Porto Alegre, conserva um bilhete de Jango escrito na ocasião. No bilhete, o presidente deposto escreve a um amigo uruguaio para que ele “providencie abrigo”.
CONTEXTUALIZAÇÃO
17
"[...] políticos de oposição perderam seus mandatos, músicas, teatros e imprensa passavam por censura prévia e o habeas corpus foi suspenso para prisões políticas." ATO INSTITUCIONAL Nº 5 (AI-5) O regime militar foi marcado pela violência e violação de direitos fundamentais. “Derrubar um governo legitimamente eleito já é uma grande violência. Mas a maior violência foi o AI-5, violência escrita e assinada, de dezembro de 1968”, analisa Krischke. Sob decreto do general Costa e Silva, a tortura foi institucionalizada, políticos de oposição perderam seus mandatos, músicas, teatros e imprensa passavam por censura prévia e o habeas corpus foi suspenso para prisões políticas. O AI-5 só foi revogado efetivamente a partir de 1979. A história narrada em K. é desencadeada em 1974, enquanto o AI-5 está em vigor. “Tinha essa garagem virada para os fundos, parecendo um depósito de ferramentas; levavam os presos para lá e umas horas depois saíam com uns sacos de lona bem amarrados”, relata a personagem Jesuína, que testemunha as torturas comandadas por Sérgio Fleury, delegado do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo. Fleury é um dos personagens históricos nomeados no livro. No capítulo “A abertura”, o próprio Fleury é transformado em narrador. “Me deram carta branca, que era para acabar com os comunistas, não deram? Acabei com eles, não acabei? Então que não encham o saco”, diz o Fleury personagem na obra.
Crédito: Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
18 CONTEXTUALIZAÇÃO
Saiba mais sobre instituições e outros personagens mencionados em K.: Ação Libertadora Nacional: Dissidência do Partido Comunista Brasileiro formada em 1967, foi a principal organização de luta armada de esquerda no país. Era nesse grupo que Ana Rosa, filha de K., atuava. “Partidão”: Nome popular do Partido Comunista — Seção Brasileira da Internacional Comunista. Fundado em 1922, foi o primeiro partido assumidamente de esquerda no país.
guerrilha foi derrotada pelos militares em 1972 com a execução de cerca de 60 guerrilheiros, enterrados na mata. Hospital Psiquiátrico do Juqueri: Relatos indicam que o hospital que deveria tratar pacientes psiquiátricos serviu como espaço de tortura de presos políticos e como cemitério clandestino.
Marighella: Carlos Marighella (1911–1969) foi um militante da ALN assassinado pelos militares em uma USP: Universidade de São Paulo, na emboscada. Ele era considerado o qual Ana Rosa, filha de K., lecionava. “inimigo número um” da ditadura. Em 2018, foi publicado o relatório final da Comissão da Verdade Zuzu Angel: Zuleika de Souza Netto da instituição, que mencionava a foi uma importante estilista que criação, entre os anos de 1969 e militou contra a ditadura após a 1976, de uma “assessoria” que deu tortura e morte do seu filho, Stuart respaldo à fiscalização de profesEdgar Angel Jones, em 1971. Em 1976, sores, funcionários e acadêmicos, ela morreu em um acidente de carro mantendo vínculos com o Serviço causado por agentes da ditadura. Nacional de Informação (SNI) e com o Departamento Estadual de Carlos Eugênio Paz, o Clemente Ordem Política e Social (Deops). (no livro, Klemente): Militante da ALN, foi perseguido pela ditadura, Cúria Metropolitana: Órgão e sua mãe, também militante, foi administrativo da Igreja Católica, torturada. Executou Márcio Leite colaborou por meio do arcebispo de Toledo por suposta traição Dom Paulo Evaristo Arns na defesa ao movimento. das vítimas da ditadura e contra o regime militar. Márcio Leite de Toledo: Foi militante da ALN, treinado em Araguaia: A Guerrilha do Araguaia Cuba. Após a morte de Marighella, iniciou em 1967, com cerca de 80 passou a defender o recuo da luta guerrilheiros, na região Amazônica, armada. Foi executado em 1971 por como resistência à ditadura e com Clemente, em uma ação conjunta o objetivo de fazer uma revolução com outros integrantes da ALN, por socialista a partir do campo. A suposta traição.
Ilustração do mês Rodrigo Visca é ilustrador e artista visual. Estudou design gráfico na Faculdade Senac de Comunicação e Artes, em São Paulo. Colabora com a Folha de S. Paulo desde 2005. Tem ilustrações publicadas nas principais revistas nacionais e colaborações em projetos e livros de grandes editoras do país, como Companhia das Letras, Editora Globo e Todavia. Foi finalista da Bologna Children's Book Fair 2022 e vencedor do prêmio Image of the Book, em 2021, na categoria de ilustrações de livros infanto-juvenis. Confira o seu trabalho em www.rodrigovisca.com.br. A convite da TAG, Visca ilustrou a seguinte passagem do livro do mês: “K. agarra com força a sacola com as caixas de cigarros e as barras de chocolate. Estão se aproximando da ala semi-isolada dos presos políticos. O sol o incomoda. Transpira profusamente pela testa, pelo rosto todo. Tira do bolso um lenço com a mão esquerda e enxuga-se. Então se lembra da primavera quente polonesa em que a mãe lhe foi levar na prisão as comidas do Pessach. Eram dez irmãos, vivendo no limite da miséria, mas a mãe, infatigável, nunca deixou de lhe levar nos dias de visita um pão ou um ovo cozido e nos dias de festa uma comida especial. Naquela prisão polonesa ele descobriu a importância dos cigarros e barras de chocolate. Era o que ele trazia agora, aos presos do Barro Branco.”
!
POSFÁCIO Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página. A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.
22 PARA IR ALÉM
Imigração, cultura e identidade ISADORA SINAY*
Lealdade de K. ao iídiche mostra vínculo com um judaísmo secular, comprometido politicamente, e que vê no espalhamento, e nas conexões propiciadas pelo espalhamento, sua maior força
M
1. Vilarejos encontrados por todo o Leste Europeu e o Império Russo em que a maior parte da população era formada por judeus.
eir Kucinski nasceu em 1904, na Polônia. Na década de 1930, foi obrigado a emigrar logo no início da ocupação nazista, antes mesmo do fortalecimento da perseguição racial, por conta de seu envolvimento com o comunismo. Trouxe consigo escritos em iídiche e um vínculo com movimentos socialistas judaicos e uma certa comunidade internacional de escritores e intelectuais judeus de esquerda. Sua coletânea de contos traduzidos para o português recebeu o nome de Imigrantes, mascates e doutores, um título que captura com exatidão o mundo judaico que eles retratam: vindos de outros lugares, esses judeus nunca deixaram de olhar para trás, para sua Europa de origem, e enquanto se viravam em um novo país, em bicos e pequenos negócios, carregavam consigo os livros e as ambições intelectuais que terminaram por se tornar um estereótipo dos judeus nas Américas. A imigração judaica para o Brasil é quase tão antiga quanto a presença dos europeus aqui, mas se fortalece na década de 1920, após os Estados Unidos e o Canadá passarem a controlar com muito mais dureza a entrada de imigrantes do Leste Europeu. Como em muitos outros destinos do continente, aqui também os judeus se agruparam em um bairro que reproduzia em alguma escala os shtetlech1 de seus passados. Nesses bairros — o Bom Retiro em São Paulo, o Lower East Side em Nova York —, o iídiche era uma língua da rua, a língua em que se faziam negócios e se lia o jornal. Sinagogas, escolas, organizações culturais e
PARA IR ALÉM
"O agrupamento em bairros judaicos tem muitos motivos [...], mas passa também por um alinhamento, para homens como Kucinski, entre judaísmo, política e intelectualidade."
Edição de 1937 da Gazeta Israelita de São Paulo.
23
políticas continuavam aquilo que fora começado na Europa e os partidos, movimentos juvenis e escritores circulavam, física e textualmente, entre Norte e Sul, Europa e América. Quando chega ao Brasil, Meir Kucinski já era um poeta e contista iídiche reconhecido. Aqui, ele se envolve com o círculo literário do Bom Retiro, mas também segue publicando em jornais e revistas de Nova York, Buenos Aires e Tel Aviv. Essa corrente internacional de que participa como escritor é também o que irá movimentar quando começa a buscar a filha desaparecida: as instituições judaicas abertas no início do século 20 para ajudar os judeus a fugirem da perseguição no Império Russo, do nazismo e, por fim, das ditaduras militares na América Latina. O agrupamento em bairros judaicos tem muitos motivos, das correntes familiares que vão puxando as imigrações à necessidade de sinagogas e escolas judaicas próximas, mas passa também por um alinhamento, para homens como Kucinski, entre judaísmo, política e intelectualidade. Os movimentos juvenis que ele menciona e o partido político de que fazia parte na Polônia são, ao mesmo tempo, socialistas e judaicos, em uma visão das coisas inseparável. Isso se mostra nos diversos momentos em que K. menciona que a religião e o heder, escola sinagogal em que as crianças judias aprendem o hebraico e a Torá, ficaram para trás, mas não sua identidade de judeu ou seu envolvimento com o iídiche, uma língua tão judaica quanto o hebraico. O que sua lealdade ao iídiche mostra é um vínculo com um judaísmo secular, comprometido politicamente, e que vê no espalhamento, e nas conexões propiciadas pelo espalhamento, sua maior força. K., o personagem, se martiriza por pensar que seu envolvimento com esse mundo desaparecido o afastou de Ana Rosa, mas, de certa forma, o envolvimento político dela é um legado e uma aproximação desse mundo. O único laço que K. ainda parece desejar com a religião é o dos ritos funerários. Extremamente codificado em regras e tempos, o luto judaico permite um processo de fechamento de que esse pai tanto precisa. No entanto, como o rabino da história nos diz, isso não pode ser feito sem um corpo. No judaísmo, após a morte, o corpo é levado por uma organização
24 PARA IR ALÉM 2. No judaísmo, os suicidas são enterrados em uma seção separada dos cemitérios, mas Herzog foi enterrado no centro do Cemitério Israelita do Butantã, com todos os ritos oficiais.
Meir Kucinski (1904–1976).
Crítica literária e ensaísta. Formada em cinema, é doutora em literatura judaica pela USP. Atua também como tradutora e professora.
comunitária, a Chevra Kadisha, responsável pela limpeza e preparo do corpo. Os caixões são sempre fechados, mas é preciso sempre haver um corpo. O primeiro processo de luto dura uma semana, mas encerra-se apenas um ano depois, quando uma lápide marca a materialidade daquela pessoa que não é mais. Mas Ana Rosa não tem corpo, e assim como a movimentação das instituições judaicas pouco ajuda K., os rabinos com quem fala também não lhe permitem o conforto do encerramento. Como também o narrador nos conta, isso seria diferente em 1975, apenas um ano depois do desaparecimento de Ana Rosa, quando Henry Sobel se recusaria a enterrar Vladimir Herzog como um suicida2. Mais uma vez, judaísmo e política se alinhavam, e o ativismo se faz com toda a especificidade da tradição judaica. Esse é um livro profundamente judaico não porque seus personagens são judeus. Mas porque há um fio que liga judaísmo, política e repressão e atravessa todos eles. O Holocausto e a ditadura sobrepondo-se, uma família para quem as ondas de luto parecem não cessar. O mundo de K. era um mundo desaparecido. Mesmo o microcosmo do Bom Retiro começava a se desintegrar, uma vez que a ascensão econômica começava a levar os judeus (agora já não tão mais imigrantes) para bairros mais desejáveis do que o centro de São Paulo. Mas ele permaneceu. Nesse bairro que era uma pequena aldeia judaica. Na língua assassinada nos campos de concentração. Na busca por sua filha. Diz-se que o judaísmo é uma religião que lembra, que repete, de sofrimentos circulares há milhares de anos. Se é isso, K. não poderia ser um personagem mais judeu.
“
ENTREVISTA
25
Os espectros dos mortos e desaparecidos assombrarão os vivos até o fim dos tempos”
GUILHERME SOBOTA*
Em entrevista à TAG, Bernardo Kucinski contrapõe ficção e historiografia, comenta a estrutura de K. e avalia o tema da memória coletiva no Brasil
P
É jornalista cultural com contribuições para os jornais O Estado de S. Paulo, Suplemento Pernambuco, Cândido, entre outros.
oucos livros da literatura brasileira contemporânea causaram e seguem causando um impacto tão potente no cenário cultural quanto K., de B. Kucinski, a assinatura do jornalista e professor aposentado da USP Bernardo Kucinski (1937). Publicado pela primeira vez em 2011, o livro reúne fragmentos que contam a história de um pai à procura de pistas sobre a filha desaparecida durante a ditadura militar brasileira. Com diferentes formas literárias — “o monólogo, o diálogo, o narrador onisciente, a epístola, o documento, a narrativa descritiva, a oralidade e até a ousadia do modo poético”, como explica o autor em entrevista à Revista da TAG —, o livro vai revelando diversas camadas de uma verdade ainda nebulosa, inspirada na história real da também professora da USP Ana Rosa Kucinski, irmã de Bernardo, sequestrada e assassinada pelo regime. Sobre esses e outros assuntos, Kucinski respondeu às seguintes questões por e-mail.
26 ENTREVISTA
"Virei ficcionista de repente e não me ocorreu pensar ou teorizar sobre a contribuição da minha ficção para a História."
Nos seus dez anos de trajetória como escritor de ficção publicado, houve alguma mudança em como você encara o papel que a literatura tem para preencher as lacunas da História? Virei ficcionista de repente e não me ocorreu pensar ou teorizar sobre a contribuição da minha ficção para a História. Ambas, ficção e História, são narrativas, construções mentais, porém de naturezas distintas. A historiografia tem objeto definido e se propõe científica, objetiva e documentada. É um campo do conhecimento. A ficção não necessita um objeto externo a si mesma e seu ato de criação é essencialmente subjetivo. Seu campo é o da arte. Por tudo isso, penso que a narrativa ficcional dificilmente pode preencher lacunas da narrativa historiográfica, o que pode é sugerir caminhos ou pistas para a própria historiografia, inspirar o historiador. Em K., chama a atenção especialmente a estrutura dos capítulos, que mal seguem uma linha cronológica, mas apresentam personagens e criam situações literárias bastante diversas. Você pode comentar um pouco sobre a construção dessa estrutura? K. nasceu no bojo de uma explosão criativa constituída de contos curtos ou fragmentos, como eu os chamava. Escrevia um ou dois contos por semana. Escrevi cerca de 150 contos em menos de dois anos. Alguns acabariam sendo os capítulos de K., daí a estrutura fragmentada do romance. Outra razão dessa estrutura foi a vontade de experimentar diferentes soluções e modos literários, como que saboreando a criação literária: o monólogo, o diálogo, o narrador onisciente, a epístola, o documento, a narrativa descritiva, a oralidade e até a ousadia do modo poético. Nos últimos anos, vimos os esforços para realizar uma memória crítica coletiva em relação à ditadura civil-militar serem praticamente descartados da narrativa política. Qual sua leitura sobre isso? Penso que o esforço político e social que propiciou a criação da Comissão Nacional da Verdade (2011–2014) teve caráter contra-hegemônico, ou seja, de enfrentamento e até desafio aos estamentos dominantes e momentaneamente dormentes da sociedade brasileira. Assim que se deu uma mudança na correlação das forças políticas, esses estamentos, principalmente o
ENTREVISTA
27
militar, viram a oportunidade de restaurar o processo de desmemória. Mais do que isso, tenho a convicção de que a articulação que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi motivada, entre outros fatores, pela sua decisão de criar a Comissão Nacional da Verdade.
O autor do mês, Bernardo Kucinski. Renato Parada
Em um estudo, um crítico escreve que o romance K. “mostra que o desaparecimento forçado é uma estratégia de aniquilamento expansivo", uma vez que o aniquilamento (portanto a violência) não se encerra com o sequestro e o assassinato em si, mas continua se expandindo para familiares, amigos e também ao longo do tempo. Como é possível combater essa expansão? Não é possível. Não é possível combater hoje, porque antes não se combateu. O terror de Estado tornou-se no Brasil instrumento recorrente de dominação, assegurado por outro instrumento que é a impunidade. Os espectros dos mortos e desaparecidos assombrarão os vivos até o fim dos tempos. Não só familiares e seus descendentes. Também a sociedade traumatizada pela violência institucional. E não só os espectros dos anos de chumbo recentes, também os dos degolados de Canudos, os massacrados de Palmares, os caídos na Guerra do Paraguai, os chacinados no Carandiru e na favela do Jacarezinho. Por isso, esses temas se tornaram permanentes no imaginário social, na criação literária e na produção acadêmica brasileira. No livro, muitos personagens "civis", sem cargos políticos ou de polícia, causam um sofrimento agudo a K.. Como você avalia a "participação" de pessoas como essas no estado geral da sociedade brasileira da época da ditadura? Diferentemente do que aconteceu na Argentina e no Chile, países em que as políticas de extermínio de dissidentes atingiram proporções massivas de quase genocídio e aspectos particularmente escabrosos, como o sequestro de bebês nascidos de prisioneiras políticas em cárcere, no Brasil o terror de Estado foi exercido em grupos minoritários e relativamente isolados do grosso da sociedade. O grosso da população vivia, nos anos de chumbo, o oposto do terror, vivia a euforia do milagre econômico. Isso não explica por si só a indiferença, mas ajuda a entender.
28 REFLEXÃO
Para não esquecer PAULA SPERB*
Obras como K., de Bernardo Kucinski, instigam reflexões sobre o “dever de memória” da ditadura militar
“T
Crítica literária e jornalista. Fez pósdoutorado em Letras na UFRGS e é doutora em Letras pela UCS. Foi repórter da Folha de S. Paulo e Veja.
odo está clavado en la memoria/Espina de la vida y de la historia”, canta o músico argentino León Gieco. A composição tornou-se uma espécie de hino de familiares de desaparecidos nas ditaduras da América do Sul. Diante de tragédias que marcam momentos-chave da história humana, jornalistas e historiadores têm o que o filósofo francês Paul Ricoeur chama de “dever de memória”. Nas palavras do filósofo, “o dever de memória é o dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não o si”. Pode-se ampliar esse “dever de memória” à literatura, principalmente quando esta se propõe a incorporar fatos históricos em suas narrativas. É justamente o que ocorre em K., de Bernardo Kucinski. O próprio autor explica aos leitores que o enredo não segue uma ordem cronológica, mas a ordem “da exumação imprevisível desses despojos de memória”. Por isso, o autor optou por “tratar os fatos como literatura, e não como história”. “O filósofo francês Maurice Halbwachs afirmou que a memória coletiva não é sonho, é trabalho. Ao lembrarmos, não revivemos, mas refazemos, reconstruímos, repensamos com ideias de hoje as experiências do passado. A memória coletiva é a solução do passado no presente”, explica Maria Jandyra Cavalcanti Cunha, doutora em Linguística pela Universidade de Lancaster, no Reino Unido. Ela trabalhou como pesquisadora na Comissão Nacional da Verdade. Para Cunha, a literatura é importante na preservação da memória coletiva. “No domínio da literatura, memórias são o relato que um escritor ou escritora podem fazer, não apenas de acontecimentos fundamentados em sua vida particular, mas também em eventos históricos dos quais participou”, explica.
REFLEXÃO
29
Em 2020, o músico Raul Ellwanger organizou a publicação de uma obra com poemas escritos entre 1964 e 1985 por vinte e duas pessoas que enfrentaram o regime militar. Alguns dos autores foram perseguidos, torturados e mortos pela ditadura. Chamada de Poetas da dura noite, a obra resulta do trabalho voluntário de Ellwanger no Comitê Carlos de Ré da Verdade e da Justiça, com sede em Porto Alegre. “O relato pessoal, cotidiano, humaniza o discurso que fala dos grandes temas, às vezes áridos. Colocar luz sobre aquele pequeno âmbito da ‘poesia dos prisioneiros e clandestinos’ reforça o ânimo democrático e humanitário da sociedade, como demonstram Anne Frank e Primo Levi”, diz Ellwanger sobre o livro. Para o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), Jair Krischke, o desfecho da ditadura militar no Brasil colabora para o apagamento da memória. Mesmo com milhares de pessoas protestando pelo direito de votar, no movimento “Diretas Já”, a ditadura pressionou o Congresso para que não aprovasse a emenda que devolvia o direito ao voto. Quem escolheu o presidente foi um colégio eleitoral, que elegeu Tancredo Neves. “No Brasil, não houve transição da ditadura para a democracia, houve transação. Por que eu digo isso? Porque a ditadura impôs a sua vontade”, diz Krischke. Além disso, com a lei de anistia de 1979, os militares responsáveis pelos crimes de tortura e morte ficaram impunes.
"[...] com a lei de anistia de 1979, os militares responsáveis pelos crimes de tortura e morte ficaram impunes."
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE Os crimes anteriores à lei de anistia, entre 1961 e 1979, porém, foram investigados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). A comissão foi criada em 2011 e representou diversos avanços, apesar dos entraves. Um dos principais problemas foi justamente a data de criação da CNV. “Em 2011, estávamos a 26 anos do final da ditadura militar, uma delonga inexplicável em relação aos países vizinhos, parceiros do Brasil na conexão repressiva do Cone Sul”, explica Maria Jandyra Cavalcanti Cunha, que foi pesquisadora sênior do Grupo de Trabalho sobre a Operação Condor, na CNV. A Operação Condor foi um plano de cooperação de países do Cone Sul, com apoio amplamente documentado dos Estados Unidos, para ações de repressão e perseguição.
30 REFLEXÃO
Memorial na USP homenageia desaparecidos políticos. Mike Peel
Cunha cita como exemplos de agilidade na justiça de transição a Argentina e o Chile. Na Argentina, a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) foi criada em 1983, ano em que a ditadura iniciada em 1976 terminou e uma lei revogou a autoanistia estabelecida pelos militares. No Chile, onde a ditadura de Pinochet durou de 1973 a 1990, a Comissão Nacional pela Verdade e Reconciliação recebeu apoio do novo presidente. A demora de 26 anos no Brasil fez com que as equipes se deparassem com os agentes da repressão em plena velhice e lidando com suas doenças e mortes. “Em seu silêncio forçado, eles saíram impunes. Muitos agentes que não se encontravam doentes nem tinham morrido recusaram-se a prestar seus depoimentos à CNV”, relata Cunha. No seu Grupo de Trabalho, Cunha se deparou com dois casos do tipo. O general Thaumaturgo Sotero Vaz, um dos 377 acusados de agir direta ou indiretamente nos casos de tortura, recusou-se a prestar depoimento. Ele foi um dos militares presentes na reunião que criou a Operação Condor, fato revelado pelo jornalista Luiz Cláudio Cunha no livro Operação Condor: o sequestro dos uruguaios (2008). Por sua vez, o delegado Pedro Seelig, do Dops gaúcho, também recusou-se a prestar depoimento. Ele chefiou o sequestro dos uruguaios Lilián Celiberti e Universindo Rodríguez Díaz em Porto Alegre e comandou a tortura de ambos. Os dois filhos dela foram sequestrados na capital gaúcha e apenas devolvidos aos avós em Montevidéu graças à repercussão do caso na imprensa.
32 PRÓXIMO MÊS
vem aí julho
Tem Nobel na área! No mês de aniversário da TAG, enviamos um livro inédito no Brasil de um grande escritor africano, laureado com o prêmio mais importante da literatura mundial. A história traz o ponto de vista de dois homens sobre conflitos familiares do passado, em uma trama que une habilmente episódios pessoais e eventos históricos. Para quem gosta de: literatura africana, tramas históricas, narrativas surpreendentes
agosto
Mais uma ficção brasileira chega à TAG! O livro do mês, indicado pelo escritor Carlos Eduardo Pereira, tem a ancestralidade como fio condutor de três narrativas protagonizadas por mulheres. Em diferentes tempos, elas buscam o seu lugar no mundo, vivenciando o exílio, o abandono e a solidão. Para quem gosta de: literatura brasileira contemporânea, romances de formação, enredos originais e comoventes
CARTOLA
33
34 CARTOLA
“Devemos aprender com a água, cujo movimento, com o passar do tempo, desgasta a dureza das pedras. Os duros sempre são vencidos pela suave passagem da água da história.” – RESPIRAÇÃO ARTIFICIAL, RICARDO PIGLIA