"Com armas sonolentas" TAG Curadoria Agosto/2022

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COM ARMAS SONOLENTAS

AGO 2022



Olá, tagger

OLÁ, TAGGER C

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hega às suas mãos este mês aquela que é considerada a obra mais madura de uma das principais vozes da literatura brasileira contemporânea, Carola Saavedra. Nascida no Chile, radicada no Brasil e vivendo atualmente na Alemanha, a autora é conhecida por sua escrita inventiva, tocante e original. Com uma atmosfera onírica que se revela desde o seu título, Com armas sonolentas: um romance de formação mostra a trajetória de três mulheres que buscam o seu lugar no mundo unidas pela ancestralidade. Uma série de referências e elementos simbólicos compõe a trama, que desafia classificações. Esta edição da revista busca decifrar, assim, a riqueza de elementos do livro. Além de um texto introdutório à obra, o jornalista Mateus Baldi assina uma entrevista com a autora. Paula Sperb aborda as particularidades do romance de formação criado por Saavedra, e André Cáceres propõe um guia com as principais referências presentes na obra. Publicamos também uma entrevista com o curador do mês, o escritor Carlos Eduardo Pereira, uma matéria de Guilherme Almeida sobre trabalho escravo doméstico — tema que permeia a trajetória de uma das personagens — e uma análise crítica do romance pelo olhar de Tatiana Cruz. Boa leitura!


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QUEM FAZ

RAFAELA PECHANSKY

JÚLIA CORRÊA

Publisher

Editora

GABRIEL RENNER

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LIZIANE KUGLAND

ANTÔNIO AUGUSTO

Revisora

Revisor

Impressão Gráfica Ipsis Capa Alles Blau Página da loja Lais Holanda

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prefácio

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Experiência do mês

O livro indicado Entrevista Carlos Eduardo Pereira

Saiba mais

posfácio

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guia de conteúdos

Por que ler o livro

Reflexão

Entrevista

Carola Saavedra

Para ir além

Crítica

Próximo mês


Marque a cada parte concluída

JORNADA DE LEITURA

4 EXPERIÊNCIA DO MÊS

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riamos esta experiência para expandir sua leitura. Entre no clima de Com armas sonolentas colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares! Leia até a página 26 A vida de Anna, atriz de 21 anos que deseja uma carreira de prestígio, passará por uma grande mudança. Cheia de coragem, ela mergulha no desconhecido. O que será que vem pela frente? Leia até a página 52 Anna enfrenta inúmeros desafios na sua nova rotina. Ela tenta se adaptar, mas surge um novo revés que a obrigará a rever seus planos. Compartilhe no app as suas impressões sobre a trajetória dessa personagem! Leia até a página 63 A partir de agora, a narradora passa a ser Maike, uma universitária que convive com dúvidas não apenas sobre qual carreira seguir, mas sobre a sua identidade. Vamos acompanhar essa nova jornada? Leia até a página 199 Maike decide seguir o conselho de Max, um amigo do passado. Em um novo território, ela intuitivamente vai ao encontro de suas raízes. Leia até a página 227 As forças invisíveis que conectam as personagens agem para conduzi-las ao desfecho de suas buscas. Leia até a página 260 Chegamos ao final do livro! Que tal ler agora o posfácio da revista para se aprofundar ainda mais na obra de Saavedra?

Com armas sonolentas pode ter terminado, mas a experiência não! Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos.


mimo

EXPERIÊNCIA DO MÊS

Pensando na organização de seus livros, enviamos este mês um aparador em MDF, item perfeito para você deixar a sua estante ainda mais bonita! Depois de colocá-lo em seu cantinho, compartilhe uma foto no app para os outros taggers verem como ficou!

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projeto gráfico

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O projeto deste mês foi desenvolvido pelo estúdio de design Alles Blau. A capa traz uma ilustração da artista Eva Uviedo, que sintetiza importantes referências do livro: durante a leitura, ficamos sabendo de um misterioso casebre no meio do mato, em frente a um riacho, em que “o lado de dentro é também o lado de fora”. Esses elementos aparecem integrados e, ao mesmo tempo, diluídos na imagem. O peixe fora d'água, a figura feminina submersa pela metade e a casa acima de sua cabeça, com os seus cabelos confundindo-se com um morro, embaralham as noções do que deve estar dentro e do que deve estar fora, tal como sugerido na história.

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POR QUE LER O LIVRO com armas sonolentas Com armas sonolentas é o quinto romance da escritora Carola Saavedra, um dos nomes mais prestigiados da literatura brasileira contemporânea. No centro da trama, três mulheres buscam o seu lugar no mundo, vivenciando o abandono e o exílio. Com uma escrita marcada pela intertextualidade, com referências que vão de Sor Juana Inés de la Cruz a Goethe, a autora entrega aos leitores uma obra surpreendente, considerada a mais madura de sua carreira.


“Um dos melhores romances publicados no Brasil recentemente.“ Sérgio Sant'Anna, escritor (1941-2020)

“Faz tempo que não me ocorria uma 'transcendência' como o seu romance me proporcionou. Fui transportada para esse mundo onírico, fantasioso e cheio de mistérios destas três mulheres extraordinárias.“ Patrícia Melo, escritora


8 O LIVRO INDICADO

Abrir mundos dentro do mundo MATEUS BALDI*

Em Com armas sonolentas, livro mais maduro de Carola Saavedra, a história de três mulheres serve de mote para uma investigação de certo tempo feminino

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É escritor e jornalista. Mestrando em Letras (PUC-Rio), criou a Resenha de Bolso, voltada para a crítica de literatura contemporânea. É autor de Formigas no paraíso (Faria e Silva, 2022).

nna Marianni está em seu dia de sorte. Ou melhor, noite. É novembro, o Rio de Janeiro fervilha com um festival de cinema, e ela desce do táxi em frente ao Copacabana Palace usando um vestido vermelho-sangue. Anna é uma aspirante a atriz e quer, precisa, entrar na festa — o convite está com Adriana —, mas enquanto não consegue, fica parada observando as atrizes, “algumas se vestiam com estudada displicência [...] outras, a maioria, pareciam com suas próprias fotos nas revistas de celebridades, lindas, deslumbrantes, inatingíveis”. É quando Heiner Neumann, estrela do festival, cruza seu caminho. No futuro, a única versão possível dirá que se apaixonaram naquele primeiro olhar. Maike, por sua vez, não sabe como tudo começou. Pode ser que tenha sido no dia em que decidiu estudar português. Ou então, vá lá, quando Max enfiou a faca em suas costas. O fato é que está metida no passado tanto quanto no presente. Sua vida parece girar ao redor de escolhas, alternativas, restos que se acumulam e revolvem seu corpo — como o oceano que, é inevitável, ela precisa atravessar. Um oceano metafísico. A (avó), enfim, cujo nome não sabemos, não está tranquila. Ser mandada para o Rio de Janeiro, trabalhar para dona Clotilde, receber a visita que cala e a visita que liberta: tudo em sua vida, ainda que não perceba, reflete a realidade em seu estado de paradoxo. A vida está na morte que está na vida e assim por diante. Como uma fita de Möbius. Publicado em 2018, Com armas sonolentas é o livro mais maduro de Carola Saavedra. A história dessas três mulheres, suas agonias e suas aflições, serve de


O LIVRO INDICADO

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mote para uma investigação de certo analisado, meio onirismo basta. Na tempo feminino; algo que encolhe e entrevista da página 20, Carola explica rejuvenesce tanto quanto expande e que essa manifestação do sonho não segue rumo à inexorabilidade dos dias. importa tanto na leitura do romance, Os temas de trabalhos anteriores já que “para a psique, tudo é verdade, reaparecem. Anna, Maike e a (avó) tudo tem a mesma potência de vida”. É trazem o amor como filtro para suas interessante pensarmos a partir dessa existências. É o desejo de pertenci- lógica, uma tríade feminina que não se mento sentimental o que as impele inibe diante da destruição rondando rumo ao desconhecido. E a escrita é seus corpos. hábil o bastante para descartar a ideia Uma faca nas costas, um abuso de que os homens possam ter algo a sexual, um casamento frustrado — e ver com isso. Tempo e afetos fluem ainda existe espaço para o sublime. de modo diferente do que estamos Talvez resida aí a nervura do que se acostumados a ver, a ler; se existe um espalha ao redor do leitor, envolvenfio condutor, é a maternidade que sai do-o como uma jiboia. E essa é uma das mulheres, passa pelas mulheres e operação que diz muito da linguagem chega às mulheres. das quase 300 páginas: parte significaQuando estreou no romance, com tiva da experiência reside em aproveitar Toda terça, de 2007, Carola Saavedra as elipses, as voltas que Carola dá no já buscava decifrar a lógica do desejo. tempo, no sonho, contando com o auxíSeus livros seguintes emendariam esse lio de nomes como Sor Juana Inés de la processo, sempre adicionando novas Cruz e Goethe. Voltas essas que, por camadas ao que parecia ser um projeto sua vez, parecem indissociáveis do fato literário filiado a um meio do caminho de ser uma autora brasileira nascida no entre Clarice Lispector e Elvira Vigna, Chile e morando na Alemanha. Essa duas hábeis exploradoras da miséria matrioshka de tríades se adequa ao que só os sentimentos mais honestos que ela nos conta na mesma entrevista: são capazes de criar. Então veio este “Sinto que esses constantes deslocaArmas e a elucubração do interior deu mentos me tiraram ainda muito cedo espaço a uma extrapolação — porque a ilusão de um mundo hegemônico, e é isso o que Carola reproduz. Estão também de conceitos como pátria ou ali as frases longas, os diálogos sem país. Estar em trânsito nos arranca o marcação condescendente, a voz com chão primordial, o que é terrível, mas, textura de líquido em brasa, mas tam- por outro lado, nos obriga a construir bém o salto do real — a capivara que outra terra por onde caminhar”. implode o lastro, os vivos e os mortos Combater a hegemonia, refundar a conversando na cama, a festa da carne. terra, abrir mundos dentro do mundo. Houve quem tentasse enquadrar Eis um livro que não tem medo de esse livro num realismo mágico. Puro causar rupturas, mostrar do que é feito equívoco. Como bem explica a autora, tudo aquilo que ainda brilha por dentro. trata-se de um realismo onírico, o que Ainda que. faz toda a diferença se pensarmos que Toda terça já lidava com a psicanáBoa leitura. lise de modo explícito; e, para bom


10 ENTREVISTA

tem muita coisa boa sendo produzida no brasil de hoje” JÚLIA CORRÊA*

Curador do mês, Carlos Eduardo Pereira conversa com a TAG sobre a obra de Carola Saavedra, fala de seu processo criativo e destaca outros nomes da literatura brasileira contemporânea

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É editora na TAG. Jornalista formada pela UFRGS, é mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Antes, foi repórter cultural do Estadão e colaboradora do portal Fronteiras do Pensamento.

ascido no Rio de Janeiro em 1973, Carlos Eduardo Pereira atuou, durante boa parte de sua carreira, como professor de História. Estudou Letras na PUC–Rio, na habilitação Formação do Escritor, e publicou contos em algumas coletâneas. Foi em 2017 que veio a lume, pela editora Todavia, Enquanto os dentes, seu primeiro romance. O livro mostra o percurso de um homem cadeirante pelo Rio de Janeiro — percurso esse que envolve uma rememoração de seu passado — e, com boa recepção crítica, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Convidado para ser curador da TAG, Pereira indicou a obra de uma autora que tem muita importância em sua trajetória. “A Carola é uma grande escritora, e eu tive a sorte de ser seu aluno em mais de uma oportunidade”, conta ele na entrevista a seguir, em que dá mais detalhes das oficinas de escrita nas quais teve aulas com Saavedra e do impacto delas na produção de seu romance. Na conversa com a TAG, nosso curador também explica por que decidiu indicar Com armas sonolentas ao clube e revela com qual das personagens mais se identificou. Leia a íntegra a seguir.


ENTREVISTA

Por que você indicou Com armas sonolentas ao nosso clube? Pode nos contar como entrou em contato com o livro e quais considera as suas principais qualidades? O Armas é um excelente exemplo de como a literatura de ficção consegue abordar temas caros à contemporaneidade, mas à sua maneira, usando suas próprias ferramentas. Penso que ela acessa uma porta de entrada específica, à parte do discurso da imprensa, do da universidade, do das redes sociais, contribui para provocar reflexão sobre este nosso tempo. Leio os trabalhos da Carola desde Toda terça, acho, e sou fã muito pela sua competência no manejo da linguagem, pelas escolhas que faz, pelos elementos que utiliza de forma às vezes mais direta e às vezes sugerida em seus textos, confiando sempre na inteligência do leitor. Neste romance, discutimos a maternidade, o machismo, a luta de classes, e o sobrenatural ainda surge talvez como única possibilidade de dar conta do real dos nossos dias. Com armas sonolentas mostra o entrecruzamento das trajetórias de três mulheres de diferentes gerações. Durante a leitura, você se envolveu mais com a história de alguma personagem em especial? São três personagens muito bem construídas (e não apenas elas, há outras mulheres bem interessantes aí nessas histórias), cada uma desenvolve seu caminho na trama de forma marcante e independente, e eu tenho afinidades com elas todas, sigo junto em cada passo que elas dão, mas, pensando agora, se a ideia é indicar aquela com quem mais posso ter me envolvido, fico com a Maike. Eu tenho interesse por assuntos ligados às questões da ancestralidade e gosto de pensar que, de muitas maneiras, somos resultado

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das experiências vividas por aqueles que vieram primeiro. A Maike acaba sendo a ponta de um fio que começa muito antes. Você teve aulas de escrita criativa com a Carola Saavedra. Como foi a experiência? Qual é a importância dessas oficinas na sua trajetória como escritor? A Carola é uma grande escritora, e eu tive a sorte de ser seu aluno em mais de uma oportunidade. A proposta é que produzamos certa quantidade de laudas por semana e ela nos devolva esse material com os seus comentários. É um processo muito rico porque as trocas são feitas de forma coletiva, todos acompanham (e contribuem para) os projetos de todos. Acredito que o grande ganho numa aula de escrita criativa esteja menos na assimilação das técnicas de produção de texto e mais nessas interações, nas impressões de todos, nas indicações de leitura. Enquanto os dentes, lançado em 2017, marca a sua estreia no romance. Pode falar um pouco de seu processo criativo de um modo geral e contar qual foi o maior desafio durante a escrita desse livro em específico? O livro foi escrito justamente enquanto frequentava uma oficina da Carola, um grupo de estudos com alguns ex-alunos que ela coordenou por um tempo. Eu dou muita importância para o ritmo na construção de uma narrativa. Algo que eu queria fazer, mas não estava seguro de que poderia funcionar, era montar a estrutura do romance num texto contínuo, sem quebras em capítulos (achava razoável, já que sempre imaginei o personagem principal numa tentativa de manter-se o tempo todo em movimento). A leitura da Carola e dos colegas de curso foi fundamental para eu perceber se a trama avançava com a fluidez adequada, por exemplo.


12 ENTREVISTA

Você tem planos de lançar um novo livro em breve? Sim, está previsto para o segundo semestre deste ano o lançamento de meu novo romance, o agora agora, pela editora Todavia. Além de Carola Saavedra, quais são as suas principais referências na literatura brasileira atual? A Adriana Lisboa, a Adriana Lunardi, o Carlito Azevedo, a Noemi Jaffe, o Ondjaki, o Paulo Britto, o Paulo Scott, o Rubens Figueiredo, fui aluno deles todos e acompanho seus trabalhos de perto, aliás, cabe destacar que tem muita, muita coisa boa sendo produzida no Brasil de hoje, a literatura brasileira vive grande momento.

O curador do mês, Carlos Eduardo Pereira Crédito: Todavia/divulgação

MINHA ESTANTE

O primeiro livro que eu li: Talvez O caso da borboleta Atíria, ou O escaravelho do diabo, certamente algum da Coleção Vaga-Lume, leitura proposta e mediada pela escola, para minha sorte. O livro que estou lendo: Malone morre, do Beckett. O livro que mudou a minha vida: Pode ser o Eles eram muitos cavalos, do Ruffato; eu estava chegando no curso de Letras e andei com esse livro debaixo do braço por um bom tempo. O livro que eu gostaria de ter escrito: Um montão deles; hoje vou ficar com A hora da estrela, da Clarice. O último livro que me fez rir: Acabei de ler Kentukis, da Samanta Schweblin, um livro divertido (e original, e um bocado assustador). O último livro que me fez chorar: Talvez o Quarto de despejo, da Carolina Maria de Jesus, mas o que vem me fazendo chorar é o noticiário, repleto de chacinas e balas perdidas, e de desrespeitos, e de intransigência, enquanto uma parcela da sociedade segue dando vivas pelas redes sociais. O livro que eu dou de presente: A literatura tem que circular, por isso vivo dando livro de presente. O último foi o ótimo Gótico nordestino, do Cristhiano Aguiar, para um amigo interessado em narrativas de horror.


SAIBA MAIS

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Perspectiva feminina PAULA SPERB*

Conceito bastante frequente em análises literárias, o termo “romance de formação” define o livro Com armas sonolentas, de Carola Saavedra

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Crítica literária e jornalista. Fez pós-doutorado em Letras na UFRGS e é doutora em Letras pela UCS. Foi repórter da Folha de S. Paulo e Veja.

m romance de formação trata do amadurecimento da personagem protagonista. Esse processo de crescimento, especialmente psicológico, é exposto ao longo da narrativa. Por isso, os livros costumam retratar personagens desde a infância ou adolescência até a fase adulta. O termo deriva da expressão original em alemão, bildungsroman (bildung significa formação, e roman, romance). A tradição do bildungsroman começa com uma obra de Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, publicado na Alemanha entre 1794 e 1796. Em O bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros (Perspectiva, 1990), a autora Cristina Ferreira Pinto problematiza, porém, a tradição literária que entende os romances de formação como masculinos. “Por que essa quase total ausência da mulher como personagem central?”, questiona a autora. A pesquisadora pontua que os romances de formação com personagens femininas diferem daqueles cujos protagonistas são homens. Ambos, entretanto, dão “ênfase no desenvolvimento interior” das personagens e apresentam as consequências dos eventos externos. Tais eventos externos são distintos para homens e mulheres, pontua Ferreira Pinto. O matrimônio, por exemplo, impacta mulheres de uma forma que não acontece com os homens. Submetidas a uma ordem patriarcal, as personagens mulheres comumente frustram seus sonhos e aspirações com a chegada do


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matrimônio e da maternidade, por exemplo. Segundo a autora, no romance de formação feminino, há alguns temas mais frequentes: o conflito com a mãe, a busca por identidade e viagem. Todos esses temas, aliás, estão presentes em Com armas sonolentas, e perpassam as trajetórias das personagens. Nos romances de formação femininos, ainda pode ocorrer, segundo Ferreira Pinto, a “formação truncada”, quando os eventos externos impedem a mulher de seguir suas aspirações. Na obra de Carola Saavedra, a maternidade aparece como um desses eventos. “A Carola dá uma imensa contribuição à literatura ao narrar o feminino de outro jeito, ao desconstruir a ideia de que a maternidade é instintiva e biológica. Ela é muito transgressora quando narra uma mulher em conflito com a maternidade, que é algo entendido por muitos como aquilo de melhor que a mulher pode alcançar, o filho como realização máxima”, diz a escritora Renata Belmonte, autora de Mundos de uma noite só (Faria e Silva, 2020). O romance de Belmonte também é um romance de formação. “De um modo clássico, sempre se pensa no romance de formação do jovem branco e burguês. Em Mundos de uma noite só, a formação é a partir de outra chave. O livro discute as muitas ideias do que é tornar-se mulher, são personagens femininas diferentes entre si, mas que compartilham uma socialização brutal muito parecida”, explica a escritora. Obras como Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, Ciranda de pedra, de Lygia Fagundes Telles, e As três Marias, de Rachel de Queiroz, são alguns romances de formação femininos brasileiros. A eles, se somaram mais recentemente tanto o romance de Renata Belmonte como o de Carola Saavedra. “A Carola é uma grande escritora. Ela trata de assuntos importantes, mas o que mais importa é como ela trata: com beleza, estética e profundidade. Para cada leitor trazer o melhor de si. A grande coisa que ela faz é nos convocar. A gente fecha o livro e sai transformado ou em via de transformação. Não se sai ileso, é algo muito precioso e raro”, diz Belmonte sobre a obra de Saavedra.



Ilustração do mês Gabriel Renner é ilustrador, infografista e designer. Já trabalhou na editoria de arte da Zero Hora e em revistas como Superinteressante, Mundo Estranho e Revista Sexy. Faz quadrinhos e capas de discos para bandas da cena underground do Brasil e de fora, além de ter desenhado e animado o curta O paradoxo da espera do ônibus. A convite da TAG, buscou transmitir o aspecto onírico da obra, ilustrando a seguinte passagem do livro do mês: “O animal estava ali parado, encarando‑a. Achou estranho uma capivara na Alemanha, não eram bichos dos trópicos?, mas talvez houvesse ali uma família de capivaras como havia de papagaios fugidos do zoológico e que acabaram se adaptando, a capivara se aproximou e olhando, fixo nos seus olhos, disse, veja quanto custa renegar o sítio natal, e balançou o focinho em sinal de desagravo.“


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POSFÁCIO Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página. A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.


18 REFLEXÃO

Além da ficção GUILHERME ALMEIDA*

Invisibilidade, trabalho doméstico e escravidão estão presentes em Com armas sonolentas e no Brasil de 2022

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Jornalista, doutor e mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integra o ARTIS — Grupo de Pesquisa em Estética e Processos Audiovisuais e o Laboratório de Investigação de Comunicação Comunitária e Publicidade Social (LACCOPS).

ouco depois de seu aniversário de quatorze anos, uma das protagonistas de Com armas sonolentas deixa a casa onde vivia com a mãe, a avó e os quatro irmãos. Ela faz uma longa viagem de ônibus até o Rio de Janeiro, passando a trabalhar como empregada doméstica na casa de um rico advogado, Alfredo, e sua esposa, Clotilde. Além de fazer compras e cuidar da limpeza das roupas e da casa, ela precisa ajudar a cozinheira, Dodô, sua única amiga ali. A nova aparente amizade que surge entre ela e Renan, o filho mais velho dos patrões, que passa a visitá-la no seu pequeno quarto sem janelas, logo termina. A breve relação inclui os estupros que ela não consegue nomear e resultam em uma gravidez. Quando descobrem que ela espera um bebê de Renan, Clotilde e Alfredo permitem que crie a criança no apartamento, desde que o pai não seja revelado. Aos poucos, sua filha, Anna, começa a preferir a companhia dos patrões, que a levam para passeios nos fins de semana. E ela segue na invisibilidade do pequeno quarto sem janela e na rotina de trabalhos pesados. Anos depois, quando Anna é uma atriz de renome, ela passa a morar em uma clínica de repouso para idosos. No novo quarto, tem a companhia de uma enfermeira, Fátima. Às vezes, ela “colocava a mão sobre a mão escura da enfermeira, apenas um pouco mais escura que a dela, mas muito mais escura que a de dona Clotilde, que ela, claro, nunca tocara, imagina, tocar a mão da patroa”. A história da personagem do romance de Carola Saavedra, cuja ausência de nome reforça o destino de invisibilidade e violências às quais foi submetida,


"Uma das modalidades de trabalho forçado mais frequentes é o doméstico, que atinge principalmente mulheres negras."

REFLEXÃO

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é parecida com a de diversas brasileiras reais, como Madalena Santiago da Silva. Resgatada em 2021 após ser submetida por 54 anos a condições de trabalho análogas à escravidão, Madalena afirmou, durante uma entrevista para a TV Bahia, ter medo de pegar na mão de pessoas brancas. Em maio deste ano, no Rio de Janeiro, foi divulgado o caso mais longo de trabalho forçado registrado no Brasil: o de uma mulher de 84 anos que era empregada doméstica havia 72 anos de três gerações da mesma família, sem receber salário. Esses casos fazem parte de um grave quadro nacional: segundo dados obtidos pela OIT Brasil, entre 1995 e 2020, mais de 55 mil pessoas foram libertadas de condições de trabalho análogas à escravidão, principalmente no campo. Mas, desde 2013, pela primeira vez, a maioria dos casos ocorreu nas cidades. Uma das modalidades de trabalho forçado mais frequentes é o doméstico, que atinge principalmente mulheres negras. De acordo com o Dieese, 88,6% das empregadas domésticas brasileiras são negras e sete em cada dez não têm carteira assinada. Advogado especialista em Direito Trabalhista e Previdenciário, Alexandre Cardoso destaca que esse quadro está diretamente relacionado com o cenário atual do mercado de trabalho brasileiro, com aumento de informalidade e desemprego e diminuição dos salários, além da recente regulamentação dos direitos das trabalhadoras domésticas, através de emenda à Constituição sancionada apenas em 2015. “Não existem soluções simplórias. O acesso aos direitos deve ser a pauta principal”, afirma. E, claro, antes de mais nada, tal cenário evidencia a herança escravocrata brasileira, que ainda persiste na nossa sociedade em pleno 2022.


20 ENTREVISTA

MATEUS BALDI*

Em entrevista à TAG, Carola Saavedra fala da concepção de Com armas sonolentas, reflete sobre a construção de suas personagens e explica o “realismo onírico” que buscou imprimir na narrativa

C

Mateus Baldi é escritor e jornalista. Mestrando em Letras (PUC–Rio), criou a Resenha de Bolso, voltada para a crítica de literatura contemporânea. É autor de Formigas no paraíso (Faria e Silva, 2022).

arola Saavedra é brasileira, nasceu no Chile e vive na Alemanha. Essa fragmentação é uma das principais características de Com armas sonolentas, livro em que acompanhamos a trajetória de Anna, Maike e uma mulher sem nome. Romance mais maduro da autora de Toda terça e Flores azuis (vencedor do APCA em 2008), trata-se de uma história surgida de sua experiência com a maternidade. Mas não só. Na entrevista a seguir, Carola explica que seu “realismo onírico” parte de uma ideia básica: “não há uma diferença psíquica entre o que vivenciamos na vigília e aquilo que sonhamos ou alucinamos, ao contrário, é no sonho, no sintoma, que está a ‘verdade’ do sujeito”. Nas páginas a seguir, ela discorre sobre a polifonia presente em seus romances, a cena de carnaval em Com armas sonolentas e muito mais.


A autora do mês, Carola Saavedra Crédito: Andrea Marques

Como surgiu Com armas sonolentas? É seu maior livro e também o mais complexo em termos de personagens e tramas. Difícil dizer como surge um livro; de certa forma, ele começa a surgir quando a gente nasce, porque tudo o que vivemos vai desaguar nessa escrita, inclusive os livros anteriores. Mas, de maneira mais específica, acho que ele começou a ser escrito a partir da minha experiência da maternidade, o nascimento da minha filha e todas as transformações que isso trouxe. Paralelo a isso, eu estava interessada em abordar temas que por muito tempo ficaram em silêncio, temas ligados a experiências femininas, como a solidão que a pobreza e o racismo provocam, o amor entre mulheres, as relações entre mães e filhas etc.


"Estar em trânsito nos arranca o chão primordial, o que é terrível, mas, por outro lado, nos obriga a construir outra terra por onde caminhar."

22 ENTREVISTA

É sempre um desafio enorme criar uma escrita polifônica. Como foi elaborar essas três vozes? Você habitava essas mulheres simultaneamente ou cada uma existia em seu tempo e espaço? Eu sempre trabalhei com polifonia em meus livros, é algo que me interessa muito, principalmente porque os vários narradores apontam para a impossibilidade de se acessar uma “verdade” única. No caso do Armas, cada personagem teve um grau de dificuldade diferente. A mais difícil de escrever foi a Anna, demorei muito para encontrar uma voz para ela, para que ela se tornasse uma pessoa e não uma vilã, eu queria que fosse possível acompanhar essa mulher sem julgá-la. A mais fácil de escrever foi a avó, ela veio num fluxo narrativo e eu quase não fiz modificações nesse texto inicial. Talvez isso tenha acontecido porque se trata de uma figura que todos conhecemos bem, a empregada doméstica que é explorada pelos patrões. Esse é o seu livro mais místico, sendo assumidamente um romance em que existe um realismo onírico, em oposição a uma ideia de se tratar de um realismo mágico. Como você chegou a essa estética e o que te interessou na extrapolação da realidade? Eu uso o termo realismo onírico como uma forma de escapar desses rótulos vigentes. A ideia básica é que não há uma diferença psíquica entre o que vivenciamos na vigília e aquilo que sonhamos ou alucinamos, ao contrário, é no sonho, no sintoma, que está a “verdade” do sujeito. Assim, as cenas não realistas do livro nunca são algo deliberadamente fantástico, mas uma possível alucinação, como quando Anna fala com a capivara. Faz sentido que ela, diante de uma angústia extrema, só consiga suportar aquela vivência (abandonar a filha) valendo-se de uma alucinação. Ou toda a cena da Maike no carnaval do Rio de Janeiro pode ter sido um sonho. Mas no fundo não importa, e é isto o que eu quero mostrar no livro: não importa se as coisas aconteceram no inconsciente ou na “vida real”, não importa porque, para a psique, tudo é verdade, tudo tem a mesma potência de vida.


ENTREVISTA

Você nasceu no Chile, é brasileira e mora na Alemanha. Seus livros também seguem esse caminho da fissura: há sempre um duplo, uma sobreposição, um golpe no real. Como esses diversos níveis de existência operam e se transmutam para a escrita? Sinto que esses constantes deslocamentos me tiraram ainda muito cedo a ilusão de um mundo hegemônico e também de conceitos como pátria ou país. Estar em trânsito nos arranca o chão primordial, o que é terrível, mas, por outro lado, nos obriga a construir outra terra por onde caminhar. Um chão de palavras que, bem sabemos, é frágil e efêmero como tudo o que há. Talvez seja essa caminhada (instável, inquieta) o que transborda para a minha escrita. Em Com armas sonolentas, a cena de carnaval é um primor de técnica e de beleza, e talvez seja uma das mais significativas do romance. Como ela surgiu? Você reescreveu muito? Quais foram os desafios? Eu me diverti muito escrevendo essa cena. Eu queria aproveitar essa suspensão da descrença, das regras do dia a dia que o carnaval permite, e assim me mover mais facilmente pela ambiguidade do real. Ela surgiu de forma bem espontânea e escrevi num fluxo, mas com algumas dificuldades que me exigiram bastante trabalho e tempo. É o caso da conversa da Maike com Mefistófeles: a maior parte das falas dele foram retiradas do Fausto, de Goethe. Então eu tive que reler o Fausto e fazer depois um trabalho de colagem. Outro trecho difícil foi o momento em que ela senta num divã e tem uma conversa com um senhor que, eu não digo, mas está fantasiado de Lacan. Então tive que adaptar essa fala também, o que incluiu a conversa sobre charutos.

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A autora do mês, Carola Saavedra Crédito: Carine Wallauer Ferreira


24 ENTREVISTA

MINHA ESTANTE

O primeiro livro que eu li: O primeiro que li, não me lembro, mas o que ficou na minha memória foi A bolsa amarela, da Lygia Bojunga. O livro que estou lendo: Costumo ler vários livros ao mesmo tempo. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela, de Leda Maria Martins. E estou relendo Eisejuaz, de Sara Gallardo. O livro que mudou a minha vida: Tantos livros mudaram a minha vida, cito alguns: A bolsa amarela, de Lygia Bojunga A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector Extração da pedra da loucura, de Alejandra Pizarnik Esferas da insurreição, de Suely Rolnik O livro que eu gostaria de ter escrito: Não sei, acho que para escrever um determinado livro seria necessário ter sido aquele autor ou autora, e a maior parte dxs autorxs que eu mais amo tiveram vidas muito sofridas – Clarice Lispector, Alejandra Pizarnik, Virginia Woolf. Acho que prefiro ser eu mesma.

O último livro que me fez rir: Do último, eu não me lembro (talvez o humor fique menos forte na lembrança do que o drama), mas cito o Dom Quixote como um dos livros mais engraçados que já li. O último livro que me fez chorar: Foi a releitura de A bolsa amarela; percebi, agora adulta, o quanto esse livro me marcou, marcou meu olhar para o mundo. O livro que eu dou de presente: Ultimamente, tenho dado A mulher submersa, de Mar Becker, e Dia do mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen. O livro que eu não consegui terminar: O Finnegans Wake, de James Joyce. A meu favor, está o fato de que não é um livro para ser terminado.


PARA IR ALÉM

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Teia de referências ANDRÉ CÁCERES*

Carola Saavedra estabelece um rico diálogo entre o seu romance e outras obras, que vão da mitologia grega à arte conceitual

A

É editor na Sesi–SP Editora, autor de Nebulosa (Patuá, 2021) e escreve na imprensa sobre literatura.

travessando três gerações de mulheres cujas vidas são determinadas por questões de gênero, classe e raça, Com armas sonolentas, de Carola Saavedra, compõe uma tapeçaria de referências que vai da mitologia grega à arte conceitual. Como Medeia na peça de Eurípides (mencionada no romance), a atriz Anna deixa seu país por um homem estrangeiro que a deixa. O tropo da mulher abandonada, recorrente na literatura universal desde Penélope, na Odisseia, e Dido, na Eneida, foi abordado por Marguerite Duras, Elena Ferrante e Alice Munro, entre outras escritoras que podem ter inspirado Saavedra. A matriarca indígena — vínculo máximo do romance com a questão da ancestralidade — reitera, porém, que as personagens, ainda que arrancadas de sua terra e submetidas a circunstâncias trágicas e estruturas sociais opressivas, não estão “desarmadas”. As “armas sonolentas” de que o título fala são a intuição e o sonho, com sua função revelatória. Não por acaso, o título é inspirado em um verso de Sor Juana Inés de la Cruz (1648–1695), poeta e freira mexicana que, segundo o Nobel de Literatura Octavio Paz, conciliou como ninguém a dicotomia de seu tempo entre “ciência e poesia, barroco e iluminismo”. Feminista avant la lettre, ela publicou poemas com sugestões homoeróticas dedicados à vice-rainha da Nova Espanha, defendia a educação para mulheres, debateu teologicamente com o padre Antônio Vieira e acreditava que


26 PARA IR ALÉM

Caminhando, 1963 Crédito: Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark

“se Aristóteles tivesse cozinhado, muito mais teria escrito”. Mencionada direta e indiretamente várias vezes, sua sombra permeia todo o livro. Um dos temas mais caros ao romance é a maternidade, especialmente a indesejada: “não conseguia compreender como aquilo havia saído de dentro dela, como era possível um absurdo desses, que um ser humano saísse de dentro de outro ser humano, quem havia inventado algo tão inverossímil assim?”. Nesse aspecto, Saavedra se coloca ao lado de autoras como a chilena Lina Meruane (Contra os filhos), a canadense Sheila Heti (Maternidade) e a franco-marroquina Leïla Slimani (Canção de ninar). Saavedra também se apoia intensamente na ideia da fita de Möbius — uma dobra em formato de meia espiral que cria uma superfície contínua e infinita — e faz referência à obra conceitual Caminhando, de Lygia Clark, em que essa figura é recortada longitudinalmente. Na fita de Möbius, “dentro” e “fora” se misturam, numa alegoria da união do íntimo com o coletivo operada em nível narrativo pelo romance.

O improvável encontro geracional que serve de clímax à obra é orquestrado por personagens aparentemente loucas, atributo que tende a aparecer na ficção como forma de autorrevelação de acordo com a acadêmica norte-americana Lillian Feder. Na obra de Saavedra, a loucura — sempre premonitória — se une aos demais temas para trazer à tona aspectos espirituais da trama. A insanidade se relaciona com o tema da maternidade indesejada por meio da referência ao Fausto, que tem trechos citados por um personagem vestido de Mefistófeles em pleno carnaval. Na obra-mestra de Goethe, Gretchen refaz o percurso de Medeia: leva a família à desgraça ao ser seduzida, é abandonada, sucumbe à loucura e comete infanticídio. A tragédia particular de cada personagem de Saavedra, espelhada em suas influências, é a tragédia coletiva da mulher em um mundo patriarcal. Portanto, em um romance que une sonho, maternidade, resistência e desterro por caminhos inesperados, a teia de referências é um verdadeiro caleidoscópio que convida o leitor a desvendar suas facetas.


CRÍTICA

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O chamado da guerra pelas entranhas TATIANA CRUZ*

Em Com armas sonolentas, a voz narrativa parece fundar um romance que desloca o olhar sobre os homens para focar no que nos interessa enquanto identidade não só feminina mas de todo um país forjado por apagamentos e violações de todos os tipos

C

É jornalista e especialista em Literatura Brasileira pela UFRGS. É poeta, letrista e colagista no @fabulario.collage, autora do livro Na minha casa há um leão (Editora Zouk, 2021). Como pesquisadora, criou o mapa global de abrir voz de mulheres no Instagram @1minuteslam.

om armas sonolentas é um título sugestivo: e não só por evocar logo de cara o poder do inconsciente. Tendo a origem que tem, vindo como vem, é como um chamado de guerra. Ao pinçar esse verso do poema “Primero sueño“, de Sor Juana Inés de la Cruz, poeta mexicana do século 17, e destacá-lo em um romance de formação que subverte a perspectiva etnocêntrica, patriarcal e heteronormativa sobre o conhecimento e sobre a identidade, Carola Saavedra empreende um feito inestimável para a literatura brasileira. Ela não só revisita a ancestralidade do ponto de vista da mulher, como, na urgência dessa batalha a ser travada no contemporâneo das artes, convoca autoras e personagens femininas, ora invisibilizadas, ora tidas como loucas, para assoprar no ouvido de autoras, Maike e da avó os atos de artilharia dessa ocupação de território identitário. Primeiro ato: deixar o processo de escrita transcorrer como um fluxo inconsciente, visceral, intuitivo. Em uma entrevista à época do lançamento do livro, em 2018, Carola, romancista experiente, com quatro obras publicadas até então, diz que paralisou em um momento da narrativa. Ela estava às voltas com a cena em que Anna abandona a bebê em um parque e não conseguia seguir. Existia algo no elemento do abandono que a narrativa na chave realista empreendida até então não conseguia dar conta. Existia um


28 CRÍTICA

ponto de corte inédito e muito íntimo que não apenas mudaria o rumo do romance como da própria escrita de Carola: ela precisava se entregar ao desconhecido. Como sabemos, é quando uma capivara conversa com Anna, prometendo que cuidará da bebê, que a história deslancha. Segundo ato: Carola organiza a obra em duas partes, o lado de dentro e o lado de fora, em uma alusão à fita de Möbius, uma superfície não orientável na qual cai a dicotomia do interior e exterior, em uma realidade que seria única. Embarcamos, assim, no campo de batalha, a caminho de uma casa amarela (uma metáfora dessa fita), numa jornada que nos confunde: o que é verdade e o que é imaginação? O que vem de dentro e o que vem de fora? Uma capivara que fala e que tem razão? O que é ter razão? O que nos move é o que se sabe ou o que se intui? “E a avó respondia que não precisava saber com o entendimento, basta saber dentro da garganta, antes mesmo da palavra vir.” Nessa passagem, a alegoria do conhecimento via garganta acaba dialogando com uma declaração de Carola em uma entrevista, quando menciona o impacto que a obra Por um fio (1976), da artista Anna Maria Maiolino, teve nos caminhos do romance. Era uma visita a uma exposição no MASP, quando, diante de filha, mãe e avó, olhando-a, de dentro de uma fotografia, ligadas por um fio de macarrão, teve certeza de que ela desejava falar de três gerações de mulheres e ancestralidade. Terceiro ato: neutralizar os homens, destruir a narrativa. Quem é Max e o que acontece com ele? Como Heiner reage ao desaparecimento da filha? O que passava na cabeça de Renan, em suas incursões pelo quarto da empregada? Não importa. No livro de Carola, os homens são rastros que deixam sequelas de abandono e violência, e a voz narrativa parece fundar um romance que desloca o olhar sobre eles para justamente focar no que é mais urgente, no que nos interessa enquanto identidade não só feminina mas de todo um país forjado por apagamentos, desigualdades e violações de todos os tipos. Temos então o país-exílio atuando nos arquétipos femininos dessas três gerações. O deslocamento social da avó, que vive à margem da sociedade, na condição de criada em uma casa de família, engravidando a partir de


CRÍTICA

um abuso por parte do filho da patroa, gerando uma bebê da qual ela abdica por crer que é muito pouco, assim, sem dinheiro, assim, no quarto sem janelas e sem perspectiva, criar uma menina. O deslocamento linguístico de Anna, exilada em outro país por um ideal romântico que não se concretiza, grávida de uma filha que vem a abandonar. E, finalmente, o deslocamento de gênero de Maike, a filha abandonada de Anna, neta da avó, que se descobre experimentando o amor e o desejo por outras mulheres, quando nem sabia direito o que era desejo, porque nem sabia que Max poderia ser seu duplo, sua sombra, identidade florescendo. Sabemos, assim, no romance de Carola, de três mulheres que não sabem de si.

Por um fio, 1976 Crédito: La Galleria Nazionale

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Quarto ato: redescobrir o corpo, tomar posse da identidade. E o que isso tem a ver com literatura? Tudo. Em um país onde, de cada 10 romances publicados, apenas três são de autoria feminina (os dados são da pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo, 2005-2014“, coordenada pela professora da UNB Regina Dalcastagnè), o fio que liga a garganta de Maike, Anna e da avó, se expandindo até Sor Juana, alarga a dimensão do romance de Carola. A Sor Juana que virou freira para poder estudar e escrever, já que, à época, erudição e conhecimentos eram coisas proibidas para mulheres; a Sor Juana que é lida por Lupe, a Sor Juana que inspira o nome e o figurino de Inés no carnaval do Rio; a Sor Juana que a avó declama em transe; a Sor Juana que escrevia textos pagãos, mesclando cartas de amor a mulheres e críticas aos homens, responsabilizando-os pelo tanto de loucura, enxergando a “insensatez” feminina como um sintoma de machismo. “Homens néscios que acusais / a mulher sem razão, / sem ver que sois a causa / do mesmo que culpais”. Não é à toa que, na genealogia empreendida por Carola no romance, Sor Juana costure os elementos transcendentais da obra como uma guia aos umbrais da inconsciência, acordando nossos olhos por dentro, pedindo a companhia de Medeia e Macabéa, personagens que também estavam deslocadas de seu tempo. Na fita de Möbius de Carola, o laço entre Sor Juana e as três mulheres do romance atua como uma legitimação da identidade feminina que não passa mais pelo olhar do homem. Especialmente em estilo. É como se a própria Carola se despisse da chave realista do romance em que se funda o cânone literário e operasse o chamado da batalha no campo ficcional: nossas vozes, nossas intuições, nosso conhecimento “de garganta”, nossa “insensatez”, nossa casa amarela operando uma ocupação para entregar a literatura brasileira como o mosaico múltiplo de vozes que deveria, de fato, ser.


vem aí encontros TAG: Guia de perguntas sobre Com armas sonolentas

proposto pela autora. Avalie em quais cenas esse elemento se faz mais presente e quais são os seus efeitos no decorrer da narrativa.

2. Que tipos de reflexões o livro

suscita em relação aos temas da maternidade e da ancestralidade?

setembro

1. Discuta o “realismo onírico”

3. O que você achou das referências literárias e artísticas presentes no texto? Em que medida elas enriquecem a construção narrativa de Com armas sonolentas?

4. Qual das personagens foi mais 5. Recapitule a trajetória da

personagem da avó, que não é nomeada, e estabeleça paralelos com a realidade brasileira. Como embasamento para a discussão, recomendamos a leitura da reportagem da página 18.

outubro

marcante para você? Por quê?

Indicado pela jornalista Adriana Ferreira Silva e inédito no Brasil, o livro do mês foi escrito por uma premiada autora turca. A narrativa é ambientada na ilha de Chipre e tem como ponto de partida o relacionamento entre um rapaz grego cristão e uma moça turca muçulmana. Uma figueira é a testemunha dessa história e de seus desdobramentos. Para quem gosta de: histórias de amor, outras culturas, tramas históricas Envolvendo mistério e road trip, o livro de outubro foi escrito por uma romancista e cineasta francesa conhecida por seu “feminismo punk”. A trama gira em torno das buscas por uma jovem pertencente a uma família parisiense abastada e disfuncional, que desaparece no caminho para a escola. Para quem gosta de: literatura francesa, thrillers, tramas LGBTQIA+


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