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JOÃO COVEIRO
João Coveiro
Talvez assim Deus queira o meu viver Tão cheio de amargura. P’ra que não ame a vida, e não me aterre A fria sepultura. Maria Firmina dos Reis
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João Coveiro era paulistano, durante décadas trabalhou no enterramento dos mortos no cemitério dos Aflitos, que no século 19 não tinha esse nome sendo descrito como “cemitério da Glória”, “cemitério da Sé” ou “cemitério da Santa Casa”. Herdou a profissão de sepultureiro do avô e do pai. O avô era africano da Guiné, o pai nasceu na Bahia em um engenho de cana de açúcarda Capitania da Baía de Todos os Santos. Ambos foram vendidos à Irmandade da Santa Casa de Misercórdia de São Paulo por volta de 1790. Trabalhariam como serventes no Hospital de Caridade e na inumação dos cadáveres no “campo santo dos desfavorecidos”, aberto em 1775. Criado para inumar indigentes, pobres, inocentes, escravos, soldados, prostitutas, criminosos e os não-católicos. Antes da criação da necrópole, os defuntos eram enterrados ou abandonados em qualquer lugar, jogados dentro de rios ou deixados insepultos. O cemitério era desprovido de tudo, nem ferramentas para os enterramentos possuía. Era João e um auxiliar, também
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escravizado, os responsáveis por levar da Santa Casa pás e outros utensílios para o serviço fúnebre. Também cuidavam da manutenção do cemitério. Fabricavam cruzes toscas de madeiras ou bambus feitas com materiais que achavam pelas ruas e estradas da cidade. João era bom prosista, era sabedor de muitas trajetórias de vidas dos “seus mortos”. Perdeu as contas dos milhares de enterramentos que realizou. Todos que ali jaziam eram pessoas que, muitas vezes, foram sem dizer adeus a ninguém. Por vezes, era o único a dar uma palavra de conforto àqueles que acompanhavam seus fenecidos à cova. Consideravase o “guardião do cemitério”, Nossa Senhora dos Aflitos e São Pedro foram escolhidos como os seus padrinhos no seu batismo na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, tinha convicção que seus protetores não foram escolhidos à toa. João Coveiro presenciou coisas de arrepiar a alma de qualquer ser humano e ficava incrédulo diante da maldade humana. Os sistemas escravocata e colonial português eram cruéis demais, e herdados pelo futuro império. Quantos negros levaram a culpa de crimes que nunca cometeram? Quantos pagaram com suas vidas por erros cometidos por brancos? João não saberia dizer a quantidade, mas presenciou diversos casos. Foi ele quem fez o enterramento dos soldados Chaguinhas e Contindiba em 20 de setembro de 1821. Ambos foram sentenciados e condenados a receber a pena capital, a forca. Apontados como líderes de um insurgimento da tropa do 1º Batalhão de Caçadores que revindicavam melhor
tratamento aos soldados brasileiros em face aos portugueses, e pelo atraso dos seus soldos, tudo aconteceu no quartel da Vila de Santos. O processo todo correu com enorme velocidade, não foi possível aguardar um apelo feito ao princípe regente, d. Pedro. Os supliciados foram enviados à cidade de São Paulo. O acontecido chocou o povo. O morro da Forca foi tomado pelo público, pobres, ricos e escravos, estavam todos ali. Contindiba foi o primeiro a ser morto. Na vez de Chaguinhas, por duas vezes a corda arrebentou e o povo gritou que ele era inocente. Na terceira tentativa o amarraram com uma corda de couro, também ela falhou. “Liberdade! Liberdade!”, suplicavam as pessoas para as autoridades. Não houve o perdão. Chaguinhas caído no chão, já semi morto, foi assassinado a pauladas. E ainda contavam que seus corpos foram esquartejados. Então, os moradores da cidade começaram a acender velas ao pé do morro da Forca. Levantaram um cruzeiro. Chaguinhas foi elevado a mártir e a santo popular, muitos começaram a pedir milagres à sua alma e foram atendidos. Como foi sepultado no cemitério, a romaria de pessoas simples passou a frequentar à capela de Nossa Senhora dos Aflitos para rezarem em devoção a Chaguinhas e às almas foi crescendo ano a ano. Diante de tantas mortes atrozes e miseráveis, o coveiro sensibilizava-se grandemente, mas tinha que ser corajoso e cumpria com dignidade a sua designação. Para cada enterro, rezava um Pai Nosso e uma Ave Maria. Proferia também, em silêncio, uma oração aprendida com o seu avô, tratava-se de uma prece/saudação para àqueles que iam para a Calunga, o infinito, o mundo dos mortos, dos ancestrais em África.
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Contava que era muito importante dar um sepultamento digno para todas as pessoas, embora nem sempre isso acontecesse, para que os espíritos não vagassem por aí atormentados. Dos mortos não tinha medo, gostava de contar que viu muitas assombrações. Todas lhe tinham respeito. Ele era o coveiro e o guardião do cemitério! Quando os enterros de negros livres ou escravos aconteciam à noite, era muito comum o cortejo fúnebre ser convertido em festa pagã - diante das vistas da igreja católica. Era um momento aonde os cativos podiam dançar e cantar ao som de atabaques e outros instrumentos de percussão. Viverem momentos alegres e “de respiro”. João respeitava todos os rituais. Na maioria das vezes nunca havia um padre ou autoridade eclesiástica para acompanhar o defunto, então, deixava seus irmãos de cor à vontade. Permaneceu executando seu trabalho até o encerramento das atividades da nécropole em agosto de 1858, época em que foi aberto o cemitério público da Consolação. Um decreto da Câmara proibia o enterramento de cadáveres dentro de igrejas, como era costume, e no único campo santo da cidade. Foi uma medida higienista. As terras da Consolação ficavam fora do núcleo urbano. João foi convidado a ser transferido para lá trabalhar. Negou-se. A diretoria da Irmandade também achou que era melhor ele continuar com sua esposa d. Lina na lida do hospital. João Coveiro era analfabeto, mas dotado de grandes saberes aprendidos com seu avô, o pai e na escola da vida. Permaneceu toda sua vida a trabalhar como escravo do
Hospital de Caridade da Santa Casa de São Paulo. Com a promulgação da Lei dos Sexagenários, de 28/9/1885, João foi libertado das correntes da horrenda escravidão negra. O sabor da liberdade veio muito tarde, João já estava envelhecido e sem forças. Naquele mesmo ano foi instalado no antigo prédio do Hospital de Caridade (transferido para a Vila Buarque) o Asilo de Mendicidade, criado em parceria com o governo provincial. João e Lina foram os primeiros utentes, lá permaneceram por não terem para onde ir depois da liberdade. O espaço passou a ser administrado pelas irmãs de São José de Chambéry, tendo à frente na administração do asilo a madre Maria Arsênia Berthet. Ela implantou regras de asseios para melhor atender os abrigados. As religiosas francesas foram convidadas a trabalharem na Santa Casa a pedido do provedor barão de Iguape. Iniciaram as suas atividades como enfermeiras, escriturárias, administradoras e cozinheiras do Hospital de Caridade em 1872. Foi casado com Guilhermina Funileiro, africana. Seu apelido era Lina, conhecida por sua grande figura humana e na realização da manutenção da capela de Nossa Senhora dos Aflitos. Habilidosa bordadeira e rendeira, ela fazia lindas toalhas para os altares da humilde capelinha. Era rezadeira, durante décadas puxou o terço da Senhora dos Aflitos nas tardes de domingo.
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