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Introdução
Introdução
Agênese para a publicação deste livro é antiga. Em 1999 quando iniciei meus trabalhos envolvendo investigações históricas acerca da história do rádio e seus artistas no Brasil, conheci na Biblioteca Mário de Andrade o jornalista e escritor Adauri Alves. Ele puxou conversa e observando o meu empenho em fazer um trabalho sério, então, passou a me dar várias dicas de pesquisas e locais (bibliotecas públicas e particulares, arquivos, cemitérios etc.) aonde eu poderia conseguir materiais primários para a realização do meu objeto de pesquisa. Nas nossas andanças pelo centro da Pauliceia, ele ia me mostrando os endereços ligados à história dos negros desde o período colonial até à atualidade, contava muitas curiosidades que eu desconhecia. Foi então que voltei à minha atenção para o tema. Lembro-me que uma vez ele me levou para conhecer a biblioteca do antigo Banespa, sediada no edífício Altino Arantes à Rua João Brícola. A hemeroteca possuía uma coleção de revistas variadas do período de 1920 a 1960. Eu fiquei encantada! A bibliotecária que trabalhava lá na época (não me recordo do nome, infelizmente) era muito hábil. Havia uma publicação intitulada Memória do Departamento de Patrimônio Histórico da Eletropaulo, acredito que foi editada nos anos 1980 e 90. As revistas possuíam fotos antigas e ótimas matérias. Durante a nossa pesquisa naquela tarde, vários
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exemplares ficaram espalhados pela mesa e o sr. Adauri passou a comentar sobre os endereço da cidade em que os negros se socializavam no período da escravidão. Um deles era no antigo Largo do Rosário, a atual Praça Antônio Prado, perto do “Altino Arantes”. Lá existiu o primeiro templo dedicado à N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos (hoje sediada no Largo do Paissandu). Ali foram sepultados muitos africanos e seus descendentes, escravizados ou libertos. — Thais, aqui no centro muitas igrejas foram demolidas e as pessoas eram sepultadas no interior e na frente das paróquias, elas pertenciam à diversas irmandades católicas. A Praça Antônio Prado está cheia de ossadas de negros. Quando pisar ali, pise devagar em respeito àqueles que construíram essa terra através do trabalho escravo, da exploração dos brancos. E não é só: muitos negros e outras pessoas excluídas socialmente foram sepultadas no “Cemitério dos Aflitos”, na Rua dos Estudantes. Você nunca foi à capela de N. Sra. dos Aflitos? – o sr. Adauri me questionou. Eu respondi que não. Não sabia da existência desse cemitério, a única referência que eu tinha era da lenda do Chaguinhas e da Igreja das Almas na Praça da Liberdade. Naquela tarde, saímos da biblioteca, passamos pela Praça Antônio Prado e ele explanou que houve o alargamentos das ruas do centro com o tempo e que a antiga Igreja do Rosário ocupava o terreno aonde está hoje o prédio da Bovespa. Na verdade, a igreja tinha frente para a Rua XV de Novembro e a lateral dava para o Largo do Rosário. Dali seguimos para a Liberdade. Conheci a capela dos Aflitos e fiquei impressionada,
era uma construção de taipa de pilão de 1779! Fiquei apaixonada e também triste por ver a decadência e a falta de manutenção daquela singela joia arquitetônica da nossa história. No lugar do cemitério o sr. Adauri explicou que haviam construído aqueles prédios todos. — É a memória dos desfavorecidos sepultada! Isso não é bonito de ser contato, por isso, as autoridades responsáveis preferiram enterrar a história e as suas materialidades. – contou o sr. Adauri. Na semana seguinte fomos até o bairro do Ipiranga visitar o Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, instalado na Av. Nazaré, 993. Ao adentrar o prédio temos a sensação de entrarmos no “túnel do tempo”, na sala de atendimento à pesquisa conhecemos o historiador e arquivista Jair Mongelli Jr., mais conhecido como “Jair do Arquivo”. O sr. Adauri Alves pediu para consultar um livro de registro de óbitos da Catedral da Sé de 1850, e assim me mostrou os registros de pessoas escravizadas e livres que foram sepultadas no cemitério dos Aflitos, que na época não tinha essa denominação, era conhecido como “cemitério da Sé”, “cemitério da Santa Casa” ou “cemitério da Glória”. Ali pude visualizar melhor um documento que comprovava o funeral daqueles indivíduos no século XIX. — Quem sabe um dia você não escreva um livro sobre esse cemitério? – sugeriu o sr. Adauri. O assunto encerrou-se ali (mas a semente foi fincada) porque o meu objeto de pesquisa era a história do rádio e seus artistas. Os anos passaram, eu realizei muitas pesquisas,
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escrevi vários livros e monografias. Voltei incontáveis vezes ao Arquivo da Cúria para diversas consultas. Sempre gostei muito de conversar com o Jair do Arquivo. Ele está ali há 35 anos e é o grande guardião e conhecedor daquele acervo, na minha opinião (e tenho certeza na de muitos pesquisadores e acadêmicos). Profissional competente, respeitoso e atencioso, o Jair é uma das pessoas mais comprometidas com o seu trabalho que encontrei durante a minha trajetória de investigadora histórica e jornalista. Quem procura o Arquivo da Cúria para pesquisa nunca sai de lá sem encontrar a informação buscada, ou então, com alguma indicação de como proceder para continuidade da pesquisa em outros endereços. Não, o Jair não deixa nenhum consulente “na mão”, como se diz popularmente. E em homenagem ao Jair Mongelli Jr., um dos personagens protagonistas deste livro se chama Jair e é o escrivão do Hospital de Caridade que vai registrar as memórias de vida de diversos personagens que ele conheceu e de outros que ele ouviu através das narrativas de João Coveiro e de d. Lina, o casal de escravizados que trabalharam a vida inteira no referido hospital e também no cemitério. Em 2019 conheci o Renan Wangler, coordenador da Biblioteca Adelpha Figueiredo no bairro do Pari. Ele me foi apresentado pela amiga poetisa e ativista cultural Ana Jalloul (fazemos parte do Coletivo São Paulo de Literatura). O Renan tem um trabalho fantástico na biblioteca, atendendo e acolhendo com toda cortesia e profissionalismo os consulentes e um outro público especial frequentador do espaço: os imigrantes. Lá vão diariamente muitos africanos de diversas
partes do continente. Foi na “Adelpha” durante as edições mensais do Sarau Jardim Poético, idealizado pelo Renan, que pude ter um contato maior com essas pessoas e escutar as suas histórias de vida, superação e de luta pela sobrevivência. Foi uma oportunidade rica e que muito me sensibilizou, me lembrei das conversas e os ensinamentos do sr. Adauri, falecido recentemente; dos africanos que chegaram ao Brasil no século XIX durante o período da escravidão negra e do cemitério e da capela dos Aflitos. Surgiu a possibilidade da criação de um livro! Dar voz aqueles mortos, trazer de volta as suas tristes e duras trajetórias como sinal de resistência e de comprovar as suas contribuições para a construção da história paulista, brasileira. Como investigadora histórica e jornalista, nunca me atrevi a experimentar a ficção. Só produzia textos e livros baseados em rígida pesquisa histórica. Criar histórias, inventar ou fabular não era comigo, apenas registrar as memórias documentadas. Até que fui tocada pelo poder da ficção, deixei de ser somente leitora deste gênero e mergulhei neste outro “braço” da literatura. Isso aconteceu em 2018 depois de realizar uma pesquisa nos Livros de Matrículas dos Expostos - registros das crianças que foram deixadas na Roda dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo de 1825 a 1950. Hoje esses livros estão à disposição dos consulentes no Museu da instituição. Pois bem, após a leitura dos livros fiquei bastante sensibilizada e me veio à mente a ideia de escrever uma obra dedicada à história de algumas crianças a partir de registros reais. Assim nasceram os dois volumes Abandonados na Roda:
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destinos (Editora Matarazzo), uma amálgama de pesquisa histórica e ficção, a literatura nos dá a liberdade para essa construção. E os livros ganharam ilustrações belíssimas da minha querida amiga e artista plástica Camila Giudice. Decidi que faria um livro nos moldes do Abandonados na Roda: destinos com os registros dos mortos do extinto cemitério dos Aflitos. Voltei ao Arquivo da Cúria, conversei com o Jair, e realizei as pesquisas necessárias nos livros de óbitos da Catedral da Sé no período de 1821 a 1858 - data do encerramento das atividades da necrópole devido a abertura do Cemitério Municipal da Consolação. Os nomes e as datas de falecimento dos personagens dos contos deste volume são todas reais, todos foram inumados no extinto cemitério dos Aflitos. Esses apontamentos serviram de urdidura para os enredos criados a partir de pesquisa realizada nos livros de óbitos da Catedral da Sé e também nos Livros de Registro de Enfermos (1876 – 1898) pertencentes ao Museu da Santa Casa de São Paulo. Para me informar mais detalhadamente sobre as histórias do Brasil e da escravidão africana no período colonial e imperial, utilizei trabalhos acadêmicos, mapas, livros e outros materiais descritos na seção de bibliografia ao final desta obra. Tenha a certeza, caros leitores e leitoras, que este livro foi feito com todo respeito e profissionalismo. É uma homenagem à memória de todos aqueles que foram sepultados no cemitério dos Aflitos na cidade de São Paulo. Aproveito para agradecer de coração a todos os amigos, profissionais e instituições que me auxiliaram durante as
pesquisas para este livro: Bruna Dourado, Ingrid Ribeiro de Souza e Maria Flor, do Museu da Santa Casa de São Paulo; ao Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo e ao Jair Mongelli Jr.; Adauri Alves (em memória), Camila Giudice - ilustradora deste livro, Renan Wangler, ao casal Ana Jalloul e Ricardo Cardoso. Gratidão ao meu pai, Gilberto Cantero, o primeiro leitor dos meus contos e meu melhor crítico. Peço desculpas pela longa apresentação, mas ela se faz necessária para mostrar como surgiu a ideia e a concretização de Cemitério dos Aflitos: contos de vidas. Boa leitura!
Thais Matarazzo São Paulo, 2020.
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