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Júlia Espada

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A ilustradora

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“A esperança é o pilar do mundo.” Provérbio africano

Apesar do sobrenome italiano, Júlia era francesa de nascimento. Seu pai era médico e a mãe enfermeira, profissão abraçada pela filha. A família chegou ao Brasil em 1810, Júlia estava com 36 anos. Era viúva e sem filhos, professava o protestantismo. Durante cinco anos moraram na corte, em seguida, o pai resolver montar uma clínica médica em São Paulo para atender a elite local. Júlia Espada era dotada de um espírito idealista e humanitário, sensibilizava-se com a situação dos pobres e dos escravos. Tinha asco ao tratamento rude, violento e desprezível dados aos negros. Nunca assistiu a uma sessão de tortura num pelourinho, mas escutou diversas narrativas de terror sobre o tema. Havia quem comentasse que os escravizados não sentiam dor ao serem açoitados, pois não tinham alma e não eram gente. Júlia ficava revoltada, sabia que todos eram seres humanos. Os ricos ficavam chocados com as convicções de Júlia, ela foi apontada como uma abolicionista (e era!). Um dia, seus pais receberam uma carta de Paris, precisavam voltar urgentemente à França para resolver um assunto relacionado a uma herança. Júlia não quis viajar, estava

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convicta que sua missão de vida estava no Brasil e ficaria para ajudar os desvalidos. O pai conseguiu uma indicação, Júlia foi admitida para trabalhar no Hospital de Caridade da Santa Casa. Sua religião não foi um empecilho, pois ela não se negava a cuidar dos doentes e tinha longa experiência profissional. Entretanto, ela iria perceber em situações futuras que a fé que seguia a impediria de realizar alguns procedimentos ou trabalhos filantrópicos. O capelão da Santa Casa convenceu-a mudar de crença. Converteu-se ao catolicismo. João Coveiro era seu colega no nosocômio, em diversas situações contou com os préstimos da enfermeira francesa desde os tempos quando o hospital ficava no Largo da Misericórdia. Ela sempre comentava com o médico-diretor, dr. Simão, sobre o problema da superlotação, falta de leitos, carência de remédios e outros instrumentos para o cuidado com os pacientes. Investimentos eram urgentes e necessários (parece que nada mudou, não é mesmo?). — Dona Júlia, a senhora tens toda razão! Tudo faz-se necessário. Esse hospital é uma vergonha! Até para realizar as intervenções cirúrgicas tenho eu que trazer os meus próprios instrumentos e outros materiais. Nunca há verba. Aqui é assim: fazemos a nossa obrigação e depois esperamos que Deus faça a dele para salvar essa pobre gente! – falou o dr. Simão. Teria Júlia feito uma boa escolha ao permanecer em São Paulo? Seu salário não era dos melhores e acabava o gastando na botica para conseguir remédios para tratar “os seus adoentados”. Escrevia às senhoras ricas a pedir auxílio, nem

sempre era atendida. Conheceu os curandeiros africanos e seus métodos de trabalho curativos. Embora fosse uma mulher dada à ciência, diante da precariedade do sistema de saúde na cidade de São Paulo, acabava por aceitar as sugestões e a contribuição dos africanos em vários casos. Eles conheciam o poder de muitas ervas medicinais. O conhecimento ali era compartilhado. Quem passasse pelo Hospital de Caridade recebia os seus cuidados e carinho, aquela gente infeliz a chamava de “mãezinha”. A casa em que morava, herdada do pai, virou um recolhimento, dava abrigo a quem precisasse. As mulheres abastadas tinham horror ao seu trabalho filantrópico e engajamento, outras a admiravam pela coragem, força e modéstia. Quando questionada pelo motivo do seu idealismo, respondia que era uma cristã e seguia os ensinamentos de Jesus Cristo: oração, fé, humildade, perdão, amor, generosidade, caridade e amor ao próximo. Foi a enfermeira Júlia quem ensinou várias práticas a d. Lina no cuidado com diversas doenças. Ela foi sua ajudante durante muitos anos. Em 1825 o Hospital de Caridade mudou-se para a antiga sede da chácara dos Ingleses 1 , um sobrado colonial;

1 O sobrado serviu de sede ao Hospital de Caridade localizava-se na atual Praça Almeida Júnior, na Liberdade, de acordo com a lei decreto nº. 139 de 1º/04/1931, o logradouro começa na Rua da Glória e termina na Rua Conselheiro Furtado. Antes o espaço era denominado com Largo São Paulo, lá funcionou um Tendal de Carnes e depois o Teatro São Paulo. Tudo foi demolido para a construção da Ligação Leste-Oeste.

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velha propriedade de João Rademaker, e lá também residiu a família do militar açoriano João de Castro Canto e Melo, o 1º visconde de Castro, pai da marquesa de Santos. O nosocômio estava localizado em um dos pontos de entrada da cidade em direção ao sul e nas adjacências do Caminho do Mar (atual Rua da Glória). Em uma das janelas do andar térreo do sobrado foi instalada a Roda dos Expostos em 2 de julho de 1825, na administração do provedor Lucas Monteiro de Barros, visconde de Congonhas do Campo. Destinada a receber as crianças enjeitadas, que anteriormente eram abandonadas nas portas das casas de famílias ricas, em lixões, em currais e nas margens dos rios. Existem relatos que apontam que muitos recém-nascidos eram devorados por animais selvagens. Essas crianças eram filhas de prostitutas, escravas, mulheres pobres ou filhos indesejados. Nos primeiros tempos era Júlia e d. Lina que doavam uma centelha de esperança e ternura aos bebês expostos. Eles não permaneciam no Hospital, eram deixados com amas de leite para serem criados até alcançarem a idade de seis ou sete anos, em seguida, eram enviados ao Seminário das Educandas ou dos Educandos, também mantidos pela Irmandade de Misericórdia. Júlia era uma das únicas mulheres brancas que participavam dos cortejos fúnebres dos negros. Entendia que cada um tinha sua maneira de enterrar os seus mortos. Ela interessou-se em aprender não só os idiomas africanos como os indígenas, foi uma estudiosa do tema. De tudo sabia um

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pouco. E eram os indígenas e africanos que lhe explicavam sobre as tradições e costumes das suas tribos e etnias. Antes da entrada do escrivão Jair, em 1840, para o trabalho no Hospital de Caridade, era Júlia quem fazia o registro nos livros dos enfermos, internações, nascimentos e óbitos da instituição. João Coveiro a chamava de “dona santinha”, ela reclamava e não gostava da alcunha carinhosa. Não acreditava em santos, somente na realização do trabalho e no poder da fraternidade. Em sua casa cresceram algumas das crianças expostas na Roda. A bebê Florinda foi uma das meninas, encontrada com o abdômen muito alto, tinha a doença das “lombrigas” 2 . Florinda foi batizada pelo capelão. Apesar de todo tratamento médico e as simpatias da curandeira Otaviana, a garotinha veio a falecer com um aninho em 8 de março de 1835, sendo sepultada no cemitério. Já Amarílis foi a única das garotas que sobreviveram à idade adulta, foi a companheira inseparável de Júlia. Na porta do hospital aglomeravam-se indigentes e doentes, era impossível acolher a todos pela falta de estrutura. Quantas vezes, os moribundos eram atendidos ali mesmo a céu aberto. Alguns só apareciam para receber comida. Era um caos a vitrine miserável da cidade e seus desgraçados personagens. Em 1840 o hospital foi transferido para a parte alta da chácara dos Ingleses, na esquina do Caminho do Mar com a Travessa dos Estudantes (atual Rua dos Estudantes). O prédio foi projetado pelo engenheiro português Marechal Daniel Pedro 2 Ascaridíase.

Müller (1785-1841), contava com duas enfermarias, cada uma com 20 leitos, cozinha, refeitório, dispensa, quintal, recepção e outras dependências. Era térreo para facilitar o deslocamento dos enfermos. Esperanças renovaram os corações daqueles que trabalhavam em prol dos mais carentes, mas a falta de recursos continuou a mesma e o número de combalidos crescia notavelmente todos os anos! A vida de lutas pelas melhorias da saúde pública em São Paulo da enfermeira Júlia Espada teve fim em 23 de maio de 1854, ela contava 80 anos. Estava velhinha e sofria muitas dores provocadas pelo reumatismo. Pressentindo o seu fim, pediu a Amarílis para chamar o cura da Matriz da Sé a fim de ministrar os sacramentos e a extrema-unção, conforme a tradição católica. Júlia expressou vontade de ser enterrada no cemitério. A Santa Casa emprestou o caixão para que seu corpo fosse levado da sua casa na Rua das Flores até à capela dos Aflitos. A comitiva fúnebre e ao velório compareceram centenas de pessoas. Autoridades e políticos ficaram com uma “baita dor de cotovelo” pelo carisma da enfermeira. Foi um dos enterramentos mais emocionantes e marcantes da necrópole. À noite, quando o cemitério teve seu portão fechado, alguns negros escravizados e livres pularam o muro para prestarem às suas homenagens à Júlia Espada. Foi um bonito ritual africano. Depositaram sobre a cova tantas flores que aquele pequeno espaço de terra ficou parecendo um jardim. O povo chorou a sua morte. Passados alguns anos do falecimento da enfermeira, um português transmontano e imigrante chegou a São Paulo, era

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Antônio Gonçalves da Silva, conhecido como Batuíra, ganhou esse apelido quando trabalhou como jornaleiro, era hábil e comunicativo. Batuíra foi um dos precursores do Kardecismo no Brasil. Era proprietário de terras na baixada do Glicério, próximo à Rua Lavapés. Ali construiu o seu lar e casinhas de aluguel. Por volta de 1890 ele criou o “Grupo Espírita Verdade e Luz”, e o logradouro onde morava ficou conhecido como a “Rua do Espírita” (atual Rua Espírita). Ele abraçou o espiritismo depois do falecimento do seu segundo filho. Um dia, ao cair da tarde, Batuíra estava na janela da sua casa a ver o Morro do Piolho, de repente avistou o vulto de uma mulher, ela usava um vestido branco, era velha e tinha um coque no alto da cabeça. Ela pediu a ele que orasse pelos mortos do cemitério dos Aflitos. O espírito se identificou como “Júlia dos Aflitos”. O português chegou a conhecer o cemitério antes dele ser loteado e vendido devido à expansão imobiliária do bairro da Liberdade. O médium comentou o acontecido com um outro seguidor do seu grupo. Este revelou que existiu no Hospital de Caridade uma enfermeira chamada Júlia Espada e que era uma boa alma. Batuíra surpreendeu-se com a história toda e chegou à conclusão que a enfermeira era um ser de luz.

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