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Modesto Antônio dos Santos

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Que é feito de meu sonho, um sonho puro Feito de rosa e feito de alabastro, Quimera que brilhava, como um astro, Pela noite sem fim do meu futuro? Nunca mais, Auta de Souza

“C aboclo e caipira” eram como definiam Modesto. Nascido no seio de uma família simples, seu nome de batismo combinava com a situação dos seus pais. Chegou ao mundo em 1804, na Vila de Porto Feliz, às margens do rio Tietê, no interior da Capitania de São Paulo. Seus progenitores, Lino e Isabel tinham mais quatro filhos, “três machos e uma fêmea”, conforme falava-se na época. Modesto era um sujeito introspectivo, baixo, de olhos grandes e atarracado. Quando adolescente trabalhava no roçado da família. Vez ou outra quando havia excedente das hortas, Modesto e Isabel seguiam para a praça matriz de Nossa Senhora Mãe de Deus a fim de vender os produtos e conseguir algumas moedas. Aquela vida miserável incomodava Modesto. Ele desejava algo maior: ter boas roupas e acessórios como os homens da elite que observava circularem na matriz. Ter uma bengala com inscrição era o seu maior desejo, era um símbolo

de nobreza e poder. Pobre Modesto, só tinha mesmo os poderes da imaginação e da cobiça! Certa feita ele conheceu uma moça formosa, ela usava cabelos penteados, maquiada, uma blusa de babados brancos e bem decotada e saia florida. O capiau ficou deslumbrado com aquela visão. Puxou conversa com a mulher e ofereceu laranjas e goiabas, as que precisava vender. A rapariga achou graça, aceitou o presente e o convidou para ir até a “sua casa”, o prostíbulo da vila. Modesto todo animado pôde “experimentar” os serviços prestados no lugar. Enlouqueceu! Ao final, a jovem perguntou se ele tinha dinheiro para pagar pelo “trabalho”. Inexperiente, balançou a cabeça de forma negativa. Ela deixou passar desta vez, mas na próxima que ele viesse “com algum no bolso” e passou logo o seu preço. Modesto jurou que viria prevenido. Ele foi embora para o sítio, perdido em seus pensamentos e anseios. Já em casa, falou aos pais que fora assaltado no caminho. Isabel percebeu que os braços do filho estavam arranhados e acreditou no ataque. Ele só pensava em como conseguir dinheiro para pagar os préstimos da sua Indaiá, eis o nome da sua paixão! O trabalho na roça não oferecia o necessário para as suas despesas. Modesto aproximou-se dos malandros das cercanias. Passou a roubar e cometer outros delitos. Afastou-se da família. Acreditava que tudo o que praticava valia para poder prover presentes para a sua Indaiá. Fez carreira no mundo do crime e foi ganhando rapidamente experiência, fama e dinheiro. Resolveu tirar Indaiá “da vida”.

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Mudaram-se para Campanha no interior de Minas Gerais. Modesto passou a administrar vários bordéis e constituiu um bom patrimônio. Para manter o bom funcionamento, era seleto na escolha dos seus “empregados”, pagava muitas propinas para as autoridades. Comprou diversas escravas negras para trabalharem nos seus estabelecimentos. Indaiá agora era uma respeitada sinhá, administrava os assuntos do lar e da sua prole. Sabia que o marido gostava de “testar” todas as mulheres que iriam trabalhar nos bordéis. Não sentia ciúmes até... quando Modesto apaixonou-se por Engrácia, africana da Mina. Era uma mulher de beleza exuberante, tinha um porte de nobreza, talvez fosse alguma princesa na sua terra. Percebendo cada vez menos a presença do consorte no lar e a sua falta de interesses íntimos, Indaiá que era mulher vivida, colocou Modesto contra a parede. Ele admitiu o concubinato e decidiu que podia permanecer com as duas, afinal, “não mandava no coração”. A situação do casal flutuou na incerteza durante alguns meses. Modesto decidiu que iria enviar a esposa e os filhos para São Paulo, com o pretexto de “oferecer melhor estudo à prole”. Passou a dar maior atenção à família e a “se comportar” como Indaiá desejava. Na década de 1840 a capital paulista limitava-se ao pequeno núcleo urbano e ao aglomerado de casas feitas de taipa de pilão, restringido à colina que se elevava entre os vales do Tamanduateí e Anhangabaú.

Modesto adquiriu um bom sobrado. A parte de baixo destinava-se à cocheira e à cozinha. Encima estavam as alcovas, as salas de visita e as despensas. As cinco janelas tinham vidraças e balcões. As janelas ainda contavam com travessas de madeira cruzadas obliquamente que se erguiam de baixo para cima, possibilitando certa discrição para se olhar para a rua sem ser notado. As paredes dos cômodos no piso superior contavam com pinturas claras e decorações de arabescos. Indaiá amou a transferência e o novo estilo de vida na capital. Deveria ser mais animado do que “nos cafundós das Gerais”. Umavezinstaladosnacidade,ocasaleosfilhossaíram para conhecer o lugar. O burburinho dava-se pela presença dos negros de ganho a mercarem os seus produtos: guloseimas, animais, vassouras, cestos e outros produtos; outros negros concorriam aos chafarizes e bicas para abastecer as residências dos seus senhores. A população de mais ou menos 10 mil almas (no núcleo urbano) dividia-se entre brancos, índios (menor quantidade), pardos, pretos crioulos e africanos. Os outros 12 mil habitantes estavam espalhados pelas dez freguesias suburbanas. As principais edificações eram o Palácio do Governo e o Senado da Câmara – ocupado no rés do chão pela Cadeia -, das grandes janelas de ferros avistavam-se os presos e dali exalava um fétido odor. Nas saídas do burgo estavam os conventos de São Francisco e do Carmo, o da Luz ficava retirado. As igrejas eram várias: da Sé, do Colégio, da Misericórdia, dos Remédios, de São Gonçalo, do Rosário e de SantaIfigênia, eas capelas eramaindaemnúmeros maiores.

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No domingo foram até o Jardim Botânico (atual Parque da Luz), muito bem cuidado, com esculturas, chafariz e um lindo coreto. Por ali estavam o Lazareto, o Convento da Luz e a Casa de Correção. Haviam diversos profissionais liberais como carpinteiros, sapateiros, barbeiros, pintores, pedreiros, ferreiros, alfaiates, ourives entre outros. Alguns estrangeiros vindos da corte abriam seus comércios em São Paulo, eram alemães, ingleses, franceses e até prussianos. Paulatinamente a cidade vai crescendo, pois era um entreposto comercial entre o litoral e interior. Cosme, o rebento mais velho do casal, morava em São Paulo há tempos, veio fazer o curso preparatório para ingressar na Academia de Direito. Eles queriam um filho doutor. Os negócios e maracutaias do pai e o passado da mãe não eram comentados em casa. Quando os filhos perguntavam pelos parentes, respondiam que todos haviam morrido num desastre. A presença da Academia de Direito trouxe animação a São Paulo em 1827. Recebeu estudantes de diversas partes do império, cerca de 1/3 eram provenientes do Rio de Janeiro. As produções culturais e políticas floresceram. A presença dos acadêmicos provocou mudanças em antigos costumes paulistas, eles trouxeram as novidades da vestimenta europeia, as “estudantadas”, o crescimento das orgias, tabernas, livrarias e divertimentos ao ar livre. Indaiá adaptava-se à nova vida, Modesto permaneceu algum tempo na cidade, mais tarde afirmou que precisava voltar ao interior para cuidar dos seus interesses comerciais.

Ela já era uma mulher experiente e pagou a uma vizinha para ficar“deolho”no marido. O casarão da Vila de Campanha permaneceu fechado, apenas Modesto se hospedava lá quando estava no lugarejo. Sobre Engrácia, ela permanecia no bordel. Os anos passaram. Os filhos cresceram, estudarame os mais velhos se casaram. Cosme resolveu fazer uma visita à sua terra natal e levar a sua esposa para um passeio. Quando chegou a Campanha, dirigiu-se à casa do clã. Encontrou em uma das janelas da frente uma mulher negra, bem vestida, com colares, pulseiras e grandes brincos de pérolas. Seria Engrácia de quem sua mãe tanto falava nos últimos tempos? A africana não conhecia o rapaz. Ele chegou e perguntou pelo sr. Modesto, identificou-se como umsócio de São Paulo. Engrácia o convidou para entrar e aguardar, iria mandar um escravo chamar o patrão. Ele observou a sala de visitas, poucos detalhes haviam mudado. Nervoso, batia com o pé no chão a todo momento. Sua esposa sem entender nada, estava apreensiva para situarse no problema. Engrácia pediu para servir um café e bolo de fubá com goiabada. Fez algumas perguntas sobre os negócios do amásio. Chamou pelos filhos, queria os apresentar, eram quatro. Estupefato, Cosme olhou a escadinha de “mulatinhos” e não queria acreditar! Engrácia fez altos elogios ao companheiro. Falou que ele a tirou do cativeiro e lhe deu uma “vida de rainha”. Embora sofresse muito preconceito na cidade, a posição social e

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financeirado marido faziacomque muitas pessoas “calassem a boca e a engolissem”. — Oh, senhora, o senhor Modesto teve um primeiro casamento, pois não? A mulher o mirou de olhos arregalados. Ela rebateu o questionamento afirmando que o amante era viúvo. Sofreu demais nas mãos da primeira consorte, uma meretriz a quem Modesto deu uma grande chance e a “tal” não soube aproveitar. Naquele momento Cosme se enfezou e ficou com as faces rubras. Ele ia levantar-se para fazer uma retaliação à africana quando seu pai adentrou a sala. — Cosme? Tu por aqui? O que te traz a essas bandas, meufilho? — Vim te fazer uma surpresa, senhor meu pai, e eu é quem tive uma surpresa, não é mesmo? — Cos-me, Cos-me... – gaguejou o velho. – Meu filho, vamos com a devida calma. A Engrácia é minha companheira, sabes como é, o homem não pode viver só... Armou-se um forrobodó danado! Engrácia mandou que Cosme e sua esposa saíssem da sua casa. Modesto procedeu igualmente. Imediatamente, o casal regressou a São Paulo e relatou à Indaiá o acontecimento desastroso. Ela revelou toda a verdade ao filho, sem pudor ou ressentimentos. Decidiram entrar com um processo de divórcio e partilha de bens através do Tribunal Eclesiástico. Indaiá revelou todos os “podres” de Modesto desde os tempos de Porto Feliz. O clima esquentou!

Assim que foi notificado, Modesto foi preso e veio em diligência para São Paulo. Engrácia o acompanhou. Todo o seu dinheiro não foi capaz de comprar a sua soltura. Modesto tinha diversos inimigos, contatados com antecedência pela esposa preterida. Choveram acusações. Modesto foi condenado à prisão perpétua e teria que trabalhar como galé (trabalho forçado de um carcerário). Aesposaeosfilhostransferiram-separaacorte.Engrácia era forra e resolveu partir às escondidas, foi condenada por concubinato. Uma vez liberta das amarras da escravidão não desejava agora viver atrás das grades. Modesto era um canalha e criminoso, que pagasse pelos seus erros sozinho. Completaram-se sete anos que Modesto estava preso. Parecia que tinha envelhecido 30 anos. Sentia-se humilhado, fracassado, injustiçado, irado e cansado do trabalho pesado. — Isto aqui não é uma cadeia e sim uma escola de imoralidade! – falou Modesto. — Óia sô quem diz. O amigo aí é um cínicu. Conheço vassuncê das banda de Minas. — Cala-te, seu preto imundo! Quem pensas que és para dirigir a palavra a minha pessoa? Começaram a brigar. Com uma pedra o outro preso acertou a cabeça de Modesto. Ele caiu desmaiado. Quando o carcereiro correu para apartar a confusão já era tarde. Os guardas colocaram Modesto em uma rede e o levaram até o Hospital de Caridade. Ele morreu poucas horas depois. Modesto Antônio dos Santos, o caipira de Porto Feliz

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que conseguiu fazer fortuna como cafetão em Minas Gerais e “tirar a barriga da miséria”, foi enterrado no cemitério da Sé em 11 de junho de 1854. Ninguém foi chorar na sua cova. Apenas João Coveiro fez uma oração pela alma daquele ser perturbado.

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