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Meu neto soldado
Meu neto old do
Livre! Ser livre da matéria escrava, arrancar os grilhões que nos flagelam e livre penetrar nos Dons que selam a alma e lhe emprestam toda a etérea lava. Livre, Cruz e Souza
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Década de 1850. Catharina era uma preta liberta, africana de coragem, mãe de grande prole. Ana Vicência e Maria do Espírito Santo foram as únicas filhas que permaneceram em sua companhia. O trio trabalhava como agregado na casa do major Nuno Luiz Bellegaro. Umbelina era filha de Ana Vicência. Tinha 13 anos e trabalhava como aguadeira, comercializava o precioso líquido de porta em porta. Sua prima, Gabriela, de 17 anos, a acompanhava no trabalho. Trajavam turbantes, blusas brancas e saias vermelhas. As meninas eram vaidosas, usavam pulseiras, colares e brincos de miçangas que elas mesma confeccionavam. Ana Vicência era mestiça. Vivia com Evaristo, negro forro. Umbelina tinha a pele mais escura do que a mãe, por isso, era considerada uma “cabra”. Odiava quando a chamavam de “Umbelina cabra”. Na freguesia de Santa Ifigênia as meninas eram muito conhecidas, costumavam cantar um pregão brejeiro:
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Olha a água, A água, freguesa, Água fresquinha da bica, Água boa, com certeza.
Olha a água, Água boa, freguesa, Água do chafariz dos padres Água cheia de pureza.
Olha a água, Água boa, freguesa, Venha a janela para ver As aguadeiras da beleza.
Herdando uma tradição antiga da vestimenta paulista feminina, as mulheres brancas e ricas quase não saiam às ruas, a não ser para irem à igreja ou às festividades religiosas, nessas ocasiões, além de usar seus melhores trajes, as casadas usavam mantilhas pretas e as solteiras, na cor branca. Cobriam quase todo o corpo. As paulistas não acompanhavam as modas europeias. As mulheres pobres também usavam esse acessório em tecidos mais grosseiros, como a baeta. Tia Catharina, como era chamada pelas pessoas, gostava das suas netas, mas o seu maior orgulho era o neto Manoel, filho de Maria do Espírito Santo e irmão de Gabriela. Tinha 30 anos e era soldado do 5º Batalhão de Infantaria. Vez ou outra visitava sua família na casa do major Bellegaro.
A avó o exibia para o resto da criadagem enquanto segurava o seu cachimbo de cabeça de saci. Ali ninguém tinha um parente soldado. Genoveva até virava a cara quando o rapaz chegava. Não aguentava a língua e a soberba de Catharina. Na sua mente soava a desconfiança que Manoel era filho do major, mas nunca ninguém soube. Em 1858 um surto de varíola assolou a cidade e morreram milhares de vítimas. O Hospital de Caridade ficou abarrotado e os doentes ficaram espalhados pela calçada. Dentre os pacientes estava o soldado Manoel. Antes de morrer, se confessou, recebeu todos os sacramentos, em seguida, foi encomendado e sepultado no cemitério. Seus parentes não se conformaram. Agora só era saudade... Catharina caminhava todas às segundas-feiras até à capela dos Aflitos para rezar pela alma do seu neto querido. Um dia ela encontrou com d. Lina e contou a sua história. Ela foi alforriada, assim como as filhas. Todos trabalhavam em serviços domésticos e agora que um neto havia alcançado um “posto de branco”, morreu da maldita “bexiga”. Três meses depois, Catharina teve uma forte diarreia e faleceu. E parece os ventos funestos não pararam de soprar para aquela modesta família: Umbelina e Gabriela também feneceram vitimadas pela varíola; o coração de Maria do Espírito Santo não aguentou. Sobrou apenas Ana Vicência. Passados uns tempos ela começou a demonstrar um comportamento estranho e apático. O major a enviou à Casa de Correção. Ana acabou colocada na rua e passou a vagar pela cidade. Gostava de ficar
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com as lavadeiras no Largo do Tanque do Zuniga (atual Largo do Paissandu). Uma tarde, Ana ouviu uma voz a chamar. Um vulto que andava sobre as águas do Zuniga a convidava para ela ir até lá. Ela começou a andar para alcançar a mão do vulto. Entrou no tanque, ajoelhou e inclinou-se para frente. Dormiu em um sonho. Seu cadáver foi encontrado boiando no dia seguinte e levado para o cemitério, onde repousavam todos os seus parentes.