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Amargura

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A ilustradora

A ilustradora

Am rgur

Era mui bela e formosa, Era a mais linda pretinha, Da adusta Líbia rainha, E no Brasil pobre escrava! Oh, que saudades que tenho Dos seus mimosos carinhos. Quando c’os tenros filhinhos Ela sorrindo brincava. Minha mãe, Luiz Gama.

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Janeiro de 1821. Mais um negreiro aporta na baía de Guanabara, traz cerca de 180 africanos cativos. São desembarcados em pequenas embarcações no cais do Valongo na “mui leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”. Olhares amedrontados, almas atormentadas. Horror, humilhação e medo povoam as vidas dos “pretos novos”, como eram denominados os africanos recém-chegados ao Brasil. Dentre eles estavam uma mãe e dois filhos: Binda, Shamba e Tumango. As crianças tinham, respectivamente, dez e oito anos. Seguindo às normas, foram inspecionados por funcionários da alfândega e os sanitários. Foram conduzidos para um barracão de madeira, uma “casa de engorda”, como estavam debilitados era preciso que passassem alguns dias se alimentando e descansando para que ficassem “apresentáveis” e com “aspecto

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saudável” para serem vendidos. Em seguida, foram conduzidos para um dos mercados de carne humana do Valongo. O cenário era desolador. Um crioulo 3 falava aos pretos novos, dava orientações e estava sempre armado comum chicote de couro e um revólver. Intimidava as “mercadorias” contra qualquer desobediência. O chão de terra batido era forrado com palhas e com algumas esteiras. O fedor era incrivelmente desagradável: sem poder ter mobilidade e presos aos ferros, os africanos ali mesmo faziam suas necessidades fisiológicas. O calor infernal do verão, a presença de muitos mosquitos e de um entra e sai de homens a molestarem os cativos, era o inferno na terra. De um lado ficavam as mulheres e meninas, de outro os homens e meninos. As mulheres tinham um pano para tampar “as vergonhas”, os homens ficavam nus. Quando um possível comprador se interessava pelo africano, ele subia em uma mesa e era exposto a todos os olhares e toques, os olhos desses seres humanos escravizados expressava o sentimento de degradação. Naquele momento estava na corte um traficante que adquiria pretos novos, boçais e ladinos para revendêlos na cidade de São Paulo. Fidélis Moraes era dono de um depósito de escravizados no Largo do Piques. Preferia adquirir escravizados jovens e mulheres, depois as revendia pelo dobro do preço em São Paulo. Achava que as mulheres sempre valiam mais pela função reprodutiva e sempre frisava aos seus clientes este detalhe. E as crianças eram mais fáceis de serem

3 Negro nascido na América. Escravizado nascido na casa do senhor.

“adestradas” para o trabalho forçado, além de aprenderem o português rapidamente. Fidélis interessou-se por Binda, Shamba e Tumango. Como não eram batizados, ele tratou de chamar um padre para ministrar o sacramento. Ele perguntou ao traficante se gostaria de escolher os nomes cristãos. Deixou que o sacerdote decidisse, não fazia a menor diferença. Binda, Shamba e Tumango passaram a se chamar Rafaela, Frederico e Gabriel. Juntamente com outros africanos, o trio foi juntado e presos a ferros pelos pés. A viagem seria feita de navio até o porto de Santos. De lá subiriam pela Serra do Mar. Estavam todos em frente à Rua do Ouvidor, Fidélis recontava as suas “mercadorias”. Precisou tirar os ferros para reajustar os pares. Frederico e Gabriel foram contemplados com “a chance”: num minuto de distração Frederico escapuliu. Rafaela olhou aquilo e chamou o menino. Alucinada tentou correr para pegá-lo, ela acabou por tropeçar nas correntes e caiu de cara no chão, quebrou um dente. — Shamba! Shamba! Shamba! O garoto correu veloz, foi derrubando o que estava à sua frente e seu corpo franzino e ligeiro passava por qualquer espaço. Leonício, o feitor de Fidélis, correu atrás, entretanto, não alcançou a sua presa. Transtornado, Fidélis começou a jogar pedras nos africanos e pegando um pedaço de pau, começou a bater em quem acertasse. Os chamava de selvagens, sem almas, desgraçados e todos os impropérios que lhe vieram à mente.

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Possuidor de amigos na corte, acabou colocando um anúncio no jornal: “Fugiu ontem da Rua do Ouvidor, um moleque, africano de nação, preto novo, de mais ou menos dez anos, estatura média. Usava uma calça branca de algodão riscado. Tem duas marcas no rosto e os dentes da frente polidos em forma de triângulo. Muito ágil, correu do grupo a que estava integrado. Roga-se a quem o tiver visto ou o pegou, levá-lo à Rua do Cano, nº 70. Será bem recompensado”. Mas que nada! Frederico “evaporou”. Ninguém o encontrou. Rafaela estava tão apavorada pelos últimos acontecimentos em sua vida. Chorava muito, pensou mesmo em tirar a própria vida. Tamanha opressão não podia se aturar. Uma moleca batizada por Laurinda fez amizade com Rafaela. A menina estava assustada e tão frágil fisicamente, estavam na mesma condição. A africana resolveu a proteger na medida do possível. Com os pés machucados, sangue e suor grudados nas peles, e tendo sujo os trapos que trajavam, o grupo de Fidélis chegou a São Paulo. Ele ordenou que os africanos fossem se banhar nas águas do ribeirão Anhangabaú. Era preciso o asseio para serem vendidos. Fidélis resolveu que ficaria com Rafaela, Gabriel e Laurinda. Os daria de presente à sua filha Carolina. Porém, antes os deixou na casa de um conhecido para “amansar” e os “preparar para o trabalho”. Uma vez na mão da sinhazinha Carolina, Gabriel e Laurinda tornaram-se sacos de pancadas. Rafaela, a quem

chamavam pelo apelido de “Binda”, observava tudo e quase nada podia fazer. Temia a violência do senhor para com as crianças escravizadas. A amargura tomou conta do seu coração. Binda não se conformava com a sua condição. A tristeza a consumiu. Não suportando os maus-tratos, acabou por falecer em 30 de julho de 1821, de gastroenterite. Foi enviada ao Hospital de Caridade, instalado num sobrado no Largo da Misericórdia. Sem absorver quase nada da religião católica, recebeu os sacramentos e o seu corpo foi encomendado, teve o sepultamento no cemitério da Santa Casa. Gabriel e Laurinda receberam vestes pretas para colocar em sinal de luto. Acompanharam a rede que conduziu a defunta Binda até a rústica necrópole. As crianças tremiam e choravam tanto que faziam dó as pessoas que tinham sensibilidade pelo tamanho sofrimento e orfandade dos pequenos cativos. — Homessa! Perdi os 40 contos que paguei por essa preta. Não tinha que morrer tão depressa! E ainda por cima o seu pretinho fugiu pelas ruas do Rio de Janeiro. Que baita prejuízo tomei!!! – lastimou Fidélis.

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