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Jair, o escrivão

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A ilustradora

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“O conhecimento é como um jardim: se não for cultivado, não pode ser colhido.” Provérbio africano

Jair Monteiro Sales gostava de pesquisar e saber das histórias de São Paulo de outrora. Passou a colecionar documentos e memórias. Em 1840 foi trabalhar como escrivão no Hospital de Caridade da Santa Casa. Ele já estava instalado no prédio térreo da Rua da Santa Casa (atual Rua da Glória). Conheceu João Coveiro e d. Lina, e deles escutou muitas coisas interessantes, anotava tudo. Como Jair também havia realizado trabalhos como arquivista para o Bispado de São Paulo, reuniu diversos livros e documentos importantes, dentre eles encontrou um ofício de 27 de junho de 1779, aonde constava a sagração da capela dedicada ao culto de N. Sra. dos Aflitos, a capelinha dos fundos do cemitério. A cerimônia ocorreu das 8h às 15h da referida data, foi durante o terceiro bispado de São Paulo, do Frei Manoel da Ressureição, bispo e provedor da Irmandade da Santa Casa de São Paulo. Comparecem diversas personalidades eclesiásticas e o governador da Capitania de São Paulo, Martins Lobo Saldanha. Em seguida houve um lauto jantar na chácara do cônego arcipreste, morador da rua do cemitério. Em 1790 a cidade já registrava 8518 habitantes.

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As pessoas do povo inventavam muitas lendas em torno do cemitério e da capela dos Aflitos. Fantasmas e assombrações povoavam o imaginário popular. Afinal a única necrópole extramuros da cidade era destinada aos defuntos dos marginalizados, ou “aflitos” como eram chamados: pessoas pobres, soldados, escravos, indigentes, suicidas, supliciados, criminosos, não católicos, estrangeiros, prostitutas, doentes, crianças deixadas na Roda dos Expostos, entre outros. E o casal de escravizados conheceu as três sedes do Hospital de Caridade: primeiro funcionou num sobrado no Largo da Misericórdia, ao lado da igreja homônima; depois foi para a sede da chácara dos Ingleses, e por fim estava no novo prédio da Rua da Santa Casa. Assistiram as paulatinas transformações da cidade. João era muito cuidadoso com o cemitério e “os seus mortos”, d. Lina zelava com amor pela capela dos Aflitos. As décadas se passaram, a urbe expandiu, os imigrantes europeus, as fábricas e o progresso foram chegando e dando uma nova paginada em São Paulo. Afinal “o novo sempre vem”. O cemitério foi extinto em 1858, como os largos da Forca e do Pelourinho; o hospital da Santa Casa foi transferido para outro endereço em 1884; veio a Abolição da Escravidão, a República, as casas em estilo colonial foram sendo destruídas para dar ares de melhoria à capital paulista que florescia graças à riqueza do café, o “ouro negro”. João Coveiro morreu. Foi então que Jair decidiu reunir as histórias do cemitério dos Aflitos, dar voz àqueles mortos, mesmo sendo a maior parte das trajetórias de vidas deprimentes e

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doloridas. Ele era sabedor que a realidade cruel sempre choca. Não queria polêmicas, apenas mostrar a verdade dos fatos. Jair tinha anotado tudo o que ouviu de João e o que presenciou nos seus anos de trabalho no Hospital de Caridade. D. Lina ainda vivia no antigo prédio do nosocômio, agora transformado em Asilo de Mendicidade. A capela dos Aflitos continuava firme e ereta, a única lembrança material que foi poupada do antigo cemitério. O terreno foi leiloado pela Mitra Arquidiocesana por um decreto da Câmara em 1885. Retirados os despojos, o terreno foi loteado e vendido. O valor da comercialização foi canalizado para às obras que se realizavam na Sé Catedral. A freguesia da Liberdade passou a contar com deslumbrantes palacetes, as chácaras foram sendo loteadas. As lembranças dos desfavorecidos precisavam ser apagadas. Melhor conservar o que se é belo. Jair sempre acreditou que a capelinha não foi demolida graças à grande procura dos fiéis que nunca abandonaram o templo para rezar e acender velas pelas almas, mesmo após a construção da capela da Irmandade da Santa Cruz dos Enforcados no Largo da Liberdade. — Está decidido, vou fazer o livro! – falou Jair em ritmo de animação.

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