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Primeiro amor

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A ilustradora

A ilustradora

Primeiro mor

Meus amores são lindos, cor da noite Recamada de estrelas rutilantes; Tão formosa crioula, ou Tétis negra Tem por olhos dois astros cintilantes. Meus amores, Luiz Gama

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José Ricardo da Cunha foi um filho muito desejado por seus pais. Sua chegada trouxe alegria ao lar. Sua mãe, d. Januária

Maria, tinha dois filhos mais velhos, foram criados longe de si. Sua mãe, d. Feliciana de Barros acreditava que a filha por ser jovem demais não “daria conta do recado” de cuidar dos bebês, e os levou para o seu lar. Januária queria muito ter uma menina, para ser sua companheira e ensiná-la a fazer penteados, contar histórias, ser vaidosa escolher bons perfumes e aprender a fazer belos bordados... Seu marido, o advogado Miguel da Cunha, preferia outro varão. Dr. Miguel era um profissional de proa na província de São Paulo. Atuou como lente na Academia de Direito. Os rebentos mais velhos, João Carlos e Pedro Augusto, já tinham 13 e 12 anos. Visitavam os pais apenas uma vez por semana. O vínculo afetivo era distante. Com o novo bebê seria diferente. Após o nascimento de José Ricardo, Miguel presenteou a esposa com a escravizada Irene. Ela tinha uma filha recém-

nascida, chamava-se Lourença. Januária Maria e Irene se entenderam muito bem, e os senhores foram padrinhos de batismo de Lourença. As duas crianças cresceram juntas e eram parceiras nas brincadeiras. Frequentavam à missa dominical. Irene era uma mulher submissa aos donos. Achava que sua situação de escravizada era mais “leve” que de outros negros que conhecia. Seu maior medo era ser enviada para trabalhar em alguma fazenda. Sua figura calada quase passava desapercebida no sobrado dos Cunha, na Rua do Rosário. Uma manhã, ao acordar, Irene sentiu uma forte dor de cabeça, o peito parecia que ia estourar. Lourença despertou e começou a gritar por socorro. D. Januária correu para acudir, no entanto, Irene estava morta. Foi o coração. O pequeno José Ricardo sentiu a morte da ama, só não mais do que Lourença que estava órfã. A abraçou ternamente e desejou as condolências. Januária também lastimou aquela perda, pois Irene era o seu apoio, aquela que sempre trazia-lhe uma boa palavra ou conselho. Elevava a autoestima da patroa. A senhora sentia-se preterida pela mãe desde pequena. O seu casamento foi arranjado, no princípio não gostava do marido, em seguida, acostumou-se à sua presença. Por deferência aos serviços prestados à família, Irene recebeu um sepultamento digno no túmulo do clã na Matriz da Sé. Lourença tão perdida ficou, só chorava, tinha somente sete anos de idade. A madrinha mandou fazer um vestido preto para a menina. Ela passou a ser uma mucama, como a mãe. Apesar das diferenças sociais, a garotinha continuou

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amiga de José Ricardo, que passaria pela mesma dor da orfandade três anos mais tarde. D. Januária Maria foi acometida pela tuberculose. O dr. Miguel da Cunha viajava bastante, resolveu então enviar José Ricardo para ser criado pela avó d. Feliciana. Lourença o acompanhou. No testamento de Januária, ela foi deixada ao filho caçula. A anciã não era nada simpática. Vivia a fazer elogios superlativos aos netos mais velhos e menosprezava José Ricardo, o achava mimado e preguiçoso. José Carlos e Pedro Augusto afirmavam que o mano era sentimental demais, um maricas... Precisava aprender “certas lições de homem”. — Parece que o José só sabe viver debaixo das saias das criadas e da vovó. Se pudesse grudaria em Lourença! – zombou João. — Cala-te! – gritou José Ricardo. — João, vamos mostrar a esse fedelho que ele não precisa grudar nas saias femininas e sim levantá-las! – disse Pedro e soltou uma forte gargalhada. – Já tem 12 anos e precisa “praticar”... — Praticar o quê? – perguntou José Ricardo já curioso. Os irmãos disseram que naquela noite ele iria descobrir. Eles saíram, após a ceia, e rumaram para a Rua das Flores. Em uma casinha, que pertencia à avó, eles costumavam levar as escravizadas da casa para a divertida e sempre desejada cópula carnal. Eles gostavam de “praticar”! Combinaram com a negra Quintiliana que José Ricardo estaria presente ao encontro. Ele ficaria sentado numa cadeira,

quietinho, para assistir a “aula”. “Já estava na hora de aprender algo de bom na vida”, diziam os irmãos. O “professor” seria João, Pedro ficaria em casa para distrair d. Feliciana. Naquela noite, José Ricardo assistiu o irmão arrancar o cabeção e a saia de Quintiliana, a jogar na capa e a ter volúpia total. De olhos arregalados, José sentiu-se ouriçado. Teve sua primeira ereção. Queria fazer “aquilo” com Quintiliana também. — Nada disso. Vosmecê aprendeu como se faz? Agora vá procurar uma mulher. Procure por Lourença, ela é de sua propriedade e obrigada a fazer o que desejares, meu irmão! José Ricardo correu afoito para casa. Foi direto ao quartinho de Lourença. Bateu na porta e se identificou. Ela estava recolhida com uma camisola branca. José a acariciou de uma maneira diferente. Suspendeu a vestimenta e a deixou-a nua. Ela ficou assustada com aquela ousadia. Ele a beijou. Forçou a relação. — Vosmecê é minha, Lourença. Deves fazer o que eu pedir! Ela consentiu calada. Prazer não houve, somente dor para a menina. José sentiu um grande orgulho! Agora era homem de verdade! Ordenou que ela não poderia nada dizer à d. Feliciana. Era um segredo, caso contrário, ele mandaria cortar a sua língua. Terminada a cópula carnal, ele correu para contar aos irmãos. Lourença ficou sentada em sua cama, apalpando o seu corpo e sem saber direito o que tinha acontecido, era apenas uma criança!

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No dia seguinte se levantou, serviu a mesa de café junto com Úrsula. Em seguida, subiu para arrumar o quarto de José Ricardo. Acanhada, ela entrou e ele indagou se ela tinha gostado da “brincadeira”. Ela não respondeu. — Lourença, hoje à noite te procurarei de novo! E assim, os dois jovens foram descobrindo as suas sexualidades juntos. Ele tornou-se carinhoso e os dois se apaixonaram. D. Feliciana de Barros não demorou a perceber a mudança de atitudes do neto. Ele estava muito assanhado e cheio de liberdades com Lourença. Vômitos, náuseas e desmaios a escravizada passou a ter. A velha ficou desconfiada. O crescer dos seios e da barriga denunciavam prenhidão. — Que orgulho, mano. Como és esperto, tu aprendestes rápido a ser um homem! – articulou Pedro. — O que dizes, Pedro? — Ora, ora, vais ser papai! — O quê? O quê? — Vais me dizer que não sabia que as “brincadeiras” fazem bebês? — Não. Não. Não, Pedro. Não pode ser! — Pode sim. Já, já, vosmecê será pai de um “mulatinho”. Atordoado, ouviu dos irmãos que eles eram pais das crianças escravizadas da casa. — Nunca percebestes que os bebês tem a pele mais clara? Os manos lhe explicaram que ele não precisava se

preocupar com a situação. As crianças seriam criadas por suas mães e aos homens não cabia nenhuma responsabilidade. A avó era sabedora daquela conjuntura, mas o assunto não era comentado no ambiente familiar. Ele não se conformou. Era sensível e desejava assumir a sua responsabilidade. Seria pai! Poderia estar em pé de igualdade com o seu progenitor. Já era um homenzinho. Passou a preocupar-se com Lourença e a tratá-la com mimos. Gostava de acariciar a sua barriga e discutiam qual seria o nome do nenê. D. Feliciana mandou chamar o genro. Explicou o que se passava. Decidiram que assim que o bebê nascesse, ele e a mãe seriam vendidos. Fariam tudo escondido para não alarmar José Ricardo. O parto foi prematuro devido a pouco idade de Lourença, 13 anos. Ela sentiu as primeiras dores pela manhã, à tarde começou a se contorcer. A parteira Damiana foi chamada. A criança não nascia. Estava virada, era preciso a ajuda de um médico. D. Feliciana negou-se a chamar. José Ricardo permaneceu ao lado da parturiente, agoniado resolveu tomar uma atitude e saiu em disparada a buscar o dr. Agostinho Américo, seu vizinho. Lourença continuava a se esforçar, o médico conseguiu fazer a criança nascer com o uso de fórceps. Que sofrimento terrível experimentou a jovem mãe. Ela deu à luz a um menino, a criança viveu apenas algumas horas. Um padre foi chamado para realizar o batizado às pressas. Segurando o filho o tempo todo, Lourença não se conformava: após tantos esforços o

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fruto do seu amor haveria de morrer na noite de 21 de junho de 1848. Ao saber do nascimento, o dr. Cunha correu para o sobrado da sogra. Com o falecimento de José, cuidou para que ele fosse enterrado no cemitério. Não admitia que o nenê fosse seu neto, era sim o resultado de um desvario infanto-juvenil do filho caçula e o caso precisava ser abafado. José Ricardo consolava Lourença. Ela teve febre à noite toda. Dormia e acordava em delírios. O dr. Américo revelou que a garota estava com febre puerperal, corria risco de vida. Lourença acompanharia o seu filho à cova no dia seguinte. A família não queria que José Ricardo acompanhasse o enterramento, mas ele bateu o pé e foi. Ainda encomendou uma série de missas pelas almas de seu filho e da sua amada. As pessoas presentes ao sepultamento se emocionaram ao saber da história. José Ricardo foi até a capela de N. Sra. dos Aflitos e ficou bastante tempo ajoelhado a rezar. Preocupados com o estado emocional do garoto, d. Feliciana afirmou que uma outra escrava poderia fazêlo esquecer do ocorrido. O pai achou melhor levá-lo para uma viagem. Respirar novos ares e espairecer seria o melhor remédio. Posto na corte, José passou a morar com o pai. Nunca esqueceu o seu primeiro amor e nem o seu filho. Resolveu que seria médico, para salvar a vida das pessoas e daqueles que mais necessitassem dos seus préstimos. Passados cerca de 20 anos, José Ricardo retornou a São Paulo. A avó já havia morrido e somente o mano Pedro ainda

estava estabelecido na cidade. João morava na Europa. Ele ficou hospedado no seu antigo quarto... Quantas lembranças e dores vieram à mente! Primeiro esteve na Matriz da Sé para rezar por sua mãe. Depois, seguiu a pé pela Rua da Santa Casa até o cemitério. O encontrou desativado e com o ervaçal crescendo no terreno. A capelinha ainda estava ali. Ele foi até lá e fez suas orações à N. Sra. dos Aflitos. João Coveiro ao descer pela Travessa dos Estudantes, notou que um homem branco, loiro e bem vestido estava na capela. Curioso, pois o humilde templo era procurado majoritariamente pelos pobres, escravizados, forros e excluídos sociais, foi até lá. José Ricardo estava emocionado. João lembrou-se do caso e tentou falar palavras de conforto. Então, o médico contou que havia se casado no Rio de Janeiro e tinha uma filha, a quem deu o nome de Lourença, o seu primeiro amor.

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