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Tava vivo?
T
v vivo?
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Canta, canta Coleirinho, Canta, canta, o mal quebranta; Canta, afoga mágoa tanta Nessa voz de dor partida; Chora, escravo, na gaiola Terna esposa, o teu filhinho, Que, sem pai, no agreste ninho Lá ficou sem ti, sem vida. Coleirinho, Luiz Gama
Em 1850 a Lei Eusébio de Queirós foi promulgada e proibia o tráfico de escravos, a lei foi elaborada no Segundo Reinado pelo político Eusébio de Queirós Coutinho da Câmara (1812 – 1868). A partir desta data a marinha inglesa realizava forte guarda nas faixas costeiras brasileira e africana. A repressão foi pesada. Muitos tumbeiros foram aprendidos e os africanos eram resgatados e levados de volta ao seu continente. Tornou-se cada vez mais difícil conseguir escravos africanos, e o seu valor aumentou consideravelmente. Mesmo assim, traficantes portugueses e brasileiros tentavam driblar a legislação vigente e conseguiam contrabandear africanos e desembarcá-los em pontos isolados de difícil acesso. Infelizmente, em dezembro de 1850, Pedro foi um dos africanos que teve a infelicidade de chegar numa praia
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de Ubatuba, na província de São Paulo, juntamente com mais duzentos negros, provenientes do porto de Benguela, em Angola. O bergantim que o trouxe conseguiu enganar a vigilância britânica nas águas do Atlântico sul. O desembarque ocorreu em barquinhos menores no período noturno. Os cativos foram escondidos em um barracão. A carga já estava toda negociada, arrematados por um cafeicultor de Taubaté. Ele reclamou muito do preço pago por cada “peça”, mas era aquilo ou nada. Durante a viagem, um dos africanos mostrava-se apavorado demais, os feitores pensaram tratar-se de um maluco. Na verdade, ele tinha medo de ser devorado por um branco, como comentavam em sua tribo. Dizia aos colegas de infortúnio que seriam engordados e depois jogados em grandes tachos para serem cozidos e depois servidos aos homens brancos. Para chegarem a Taubaté, subiram a serra pelo antigo braço do Caminho do Ouro da Estrada Real, construído a partir de antigas trilhas indígenas. Necessário seria pousar antes de chegarem ao destino. À noite, os cativos foram acomodados em um barracão ao lado de uma pedreira. O africano tido como “louco”, havia perdido a razão, começou a bater sua cabeça contra a parede de pedra. Uma pancada mais forte fez seu crânio se estraçalhar e seus miolos voaram encima dos outros. Um feitor ao ver a cena de terror que se instalou entre os negros, pegou o revólver e atirou para cima. Todos se calaram. Um mestiço conseguiu se comunicar com os pobres infelizes e os aquietar. Chegados à fazenda, logo começou o penoso trabalho.
O latifundiário precisou ir à capital para acertar umas contas. Levou em sua companhia dez homens jovens com intensão de vendê-los para fazer algum dinheiro. Como eram boçais, tudo era mais exigente. O aprendizado era absorvido por meio da violência. Em São Paulo o fazendeiro encontrou-se com um antigo inimigo. Ao saber que o adversário estava envolvido em negócio ilegal, não titubeou e formulou uma denúncia oficial. A autoridade competente foi até à residência do fazendeiro taubateano à Rua São Bento. Eles conversaram e o caso foi canalizado para as mãos de um juiz. O proprietário rural ficou em maus lençóis e precisou entregar os seus dez bens móveis (os escravos) ao Juíz de Órfãos. Pedro e os outros africanos foram conduzidos à Casa de Correção. Uma espécie de recolhimento de africanos livres. Não era uma cadeia, pois as pessoas ali internadas não eram criminosas, mas o tratamento recebido não era diferente. O provedor da Irmandade da Santa Casa havia solicitado ao presidente da província, Vicente Pires da Mota, o envio de alguns africanos livres para o trabalho de serventia no Hospital de Caridade. Pedro foi um dos escolhidos. A direção da Irmandade o designou para trabalhar com João Coveiro. Ao saber do que se tratava o seu trabalho, Pedro não queria aceitar, tinha pavor de defuntos. Não sabia como encarar a morte. Com linguagem gestual e balbuciando algumas palavras em português, explicou a João que na sua aldeia às exéquias eram feitas com grandes festas e comilança. Era o momento da travessia do defunto para o mundo dos ancestrais, e essa
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ocasião era muito comemorada. Inclusive, costumava-se não enterrar a cabeça do finado, ela ficava para fora da terra e assim ele podia assistir à festa. João ficou um tanto confuso, mas era sabedor que os africanos tinham costumes e tradições diferentes das cristãs. Precisando obedecer às ordens para cumprir os anos de trabalhos necessários para alcançar a sua emancipação junto ao império, Pedro começou a auxiliar João nos sepultamentos. E nas primeiras inumações, deixava a cabeça dos mortos para fora, seguindo os seus conhecimentos. João ficava muito aborrecido, já havia explicado mil vezes que aquilo estava errado: naquele cemitério o procedimento de enterro era outro! Mesmo contrariado, Pedro trabalhou por três meses no cemitério. João é que tomava o cuidado de colocar os corpos de cabeça virada para à capela, deitados de lado e com as mãos em posição de oração. O jovem estava desiludido com o seu destino! Comentou que preferia ter ficado na fazenda e trabalhar com o café. Ele não havia sido batizado, fora sequestrado e contrabandeado em Benguela. Comentou com João. Ele ficou de conversar com um diretor da Irmandade para que o capelão do hospital realizasse o sacramento. Pois só assim, teria sua alma salva caso morresse, de acordo com os mandamentos da igreja católica. Dias depois, Pedro sentiu uma forte dor de cabeça enquanto roçava o mato alto nos fundos do cemitério. Caiu desmaiado. João pediu socorro e o levaram até o hospital. Ainda estava vivo. O médico concluiu que o jovem africano havia sofrido um ataque cerebral. Ninguém quis acreditar! O
capelão ministrou o batismo ao doente em perigo, em seguida, foi a vez da extrema-unção. O corpo de Pedro ficou rígido. Foi declarado o seu óbito. O defunto foi encomendado e enrolado em um lençol branco e conduzido ao cemitério em 12 de março de 1851, tinha o jovem mais ou menos uns 20 anos. Tia Lina disse que havia o visto se mexer. Pedro estava vivo, apenas inconsciente. O médico disse que a mulher estava “a ver coisas demais”. O enterro aconteceu. Naquela noite, Lina não dormiu. Sonhou o tempo todo com Pedro, ele pedia ajuda, sentia-se sufocado. Implorou para que João fosse até o cemitério e desenterrasse o corpo. Não seria possível, ele poderia ser gravemente punido. — Faça à noite, ninguém vai desconfiá, eu levo a tocha para alumiá a cova. — Óia Lina só vô fazê purque ocê tá mi azucrinano dimais das conta. O pressentimento de Lina estava afinado, ao abrir a cova rasa, o corpo de Pedro estava virado de barriga para cima. João caiu sentado. — Intão ele tava vivu quanu foi interrado? — Ocê num tá vendo, tava sim! — Nossa Sinhora dus Aflito, valei-mi. – disse João ao jogar terra de volta à cova. Não se aguentou e foi comentar o caso com o médico. Este explicou que Pedro deve ter tido um “ataque histérico” (ainda não era designado como catalepsia). O doutor disse que nas próximas vezes era preciso ter mais cautela. — Tamém recomendo isso ao sinhô, seu dotô! – respondeu João Coveiro.
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