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Letras mortas

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A ilustradora

A ilustradora

Letr mort

“Já estava cansada de viver às margens da vida.” Carolina Maria de Jesus

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Francisco Bernardo era um português pobre que vivia em São Paulo com mais alguns familiares. Trabalhava como funcionário da Santa Casa de Misericórdia, uma espécie de “faz tudo”. Morador da freguesia do Brás, conheceu no caminho “de casa para o trabalho, do trabalho para casa”, Anna Irinha, filha de crioulos alforriados. Era uma moça faceira. Começaram a namorar e se casaram depois de dois anos. Tiveram apenas uma filha, nascida e batizada em 1797, chamava-se Maria da Luz, nome escolhido porque herdou os olhos azuis do pai. A menina cresceu, tinha estatura média, cabelos cacheados (cachos graúdos) e castanhos. Sua mãe os arranjava em penteados, como os da sua patroa. No alto do coque colocava uma flor para embelezar ainda mais a filhota amada. Maria da Luz foi alfabetizada por uma vizinha, foi uma alegria para os pais. A primeira “letrada” da família. Depressa aprendeu a juntar as sílabas e lia tudo o que caísse nas suas mãos. Embora ficasse um pouco distante, Anna Irinha gostava de assistir semanalmente às missas na igreja do Rosário. Também apreciava as festas e procissões realizadas pela Irmandade dos Homens Pretos. Quase sempre havia batuques,

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ao ouvir o ritmo bem marcado por atabaques, tambores e outros instrumentos, Anna sentia toda sua ancestralidade vir à flor da pele. Punha-se a bailar alegremente e requebrava a valer. Já o fazia desde solteira, depois de casada só tinha “liberdade” quando o marido não estava presente. Maria da Luz aprendeu a dançar com a mãe. Quando a garota estava para completar 18 anos, seu pai lhe arranjou um casamento. O candidato era português, primo em segundo grau de Maria da Luz. Acontece que ela estava enrabichada por Felipe Congo, um africano liberto. Ele trabalhava em uma chácara no Brás. Homem habilidoso para a agricultura. Seus pais ao saberem, repreenderam-na severamente. Divergências aconteceram à beça, Maria da Luz ficou tão sensível que acabou se entregando a Felipe. O resultado foi uma gravidez-surpresa. Ao descobrir a “desonra” da filha, Francisco Bernardo quis matar o africano. Os vizinhos o impediram de cometer uma barbárie. Foram procurar o pároco do Rosário. Este aconselhou o casamento. Ter uma filha mãe solteira seria pior perante à sociedade. Francisco consentiu. O casal passou a morar em um quartinho na chácara aonde Felipe trabalhava. Ao apresentar a esposa, ele disse a proprietária, d. Sinharinha, que Maria da Luz sabia ler e escrever. — Não preciso de uma letrada. Preciso é de uma rapariga para trabalhar na terra, nos afazeres da casa. Empregado bom é aquele de “letras mortas”. Ouvistes, Felipe? – falou a senhora a olhar altiva para Maria da Luz, de pele parda, para ela uma negra, que logo remetia, na sua mentalidade, à exploração do trabalho.

— Oh, d. Sinharinha, eu sou livre. Aprendi a ler e a escrever com d. Joana Ribeiro, a senhora a conhece. É nossa vizinha. Posso ter melhores préstimos do que labutar no roçado. — Chega! Como ousas me desdizer? Já disse a vosmecê que é isso ou rua! — A sinhá queira perdoá a Maria, ela tá amalucada. Ela aceita sim, dô minha palavra di honra. – disse Felipe e encerrou a conversa. Felipe apertou forte o braço da esposa e a levou para um canto. Pediu que ela nunca mais afrontasse a senhora. Ela ficou revoltada, não era escrava de ninguém. Precisou engolir o orgulho, necessitava trabalhar para sua subsistência e do bebê que viria por aí. O consorte sugeriu que quando a criança nascesse, deveria ser batizada por d. Sinharinha, uma madrinha que poderia oferecer proteção à criancinha. A esposa protestou de maneira negativa. — Nunca! – exclamou. — Mi diz uma cousa: quem manda aqui é o galo ou a galinha? – provocou Felipe. Maria da Luz queria avançar no seu pescoço. Contou até dez, respirou fundo e saiu para espairecer. Sua vontade era regressar à casa paterna, mas ela não seria aceita. Que fado! Finalmente ela deu à luz a uma menina, bonita como a mãe e de olhos azuis. Com oito dias de nascida, o bebê foi batizado por d. Sinharinha e o seu esposo, o capitão João Fragoso de Mello. Ganhou o nome da madrinha, Sebastiana.

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Felipe desejava ter outros filhos, a esposa não engravidava mais de jeito nenhum. Ter um varão tornou-se uma obsessão. Os anos passaram e angustiado, culpava a mulher pela falta de sorte de não ter um “filho macho”. Ele também trabalhava como carapina, uma tarde após cortar algumas madeiras para a feitura de cadeiras, ele pegou um pote de pregos e espetou o dedo em um que estava enferrujado. Aquele homem alto, robusto e cheio de saúde acabou morrendo de tétano. Foi enterrado no cemitério da Glória. Maria da Luz ficou desenganada, o que faria da vida sem Felipe? Para onde iria? Sua patroa a detestava. Ficou acertado que ela e sua filha poderiam servir como criadas da casa. Sem outra solução momentânea, para não ir para a rua, Maria aceitou. Era difícil a convivência naquela residência. A arrogância daquela mulher era de causar embrulhos no estômago. Ela falava: “— Pardinha faz isso. Negrinha faça aquilo...”, em geral eram os serviços mais sórdidos a serem realizados. A revolta crescia no coração de Maria da Luz. A situação só melhorou quando ela aceitou ser amásia do patrão. O velho metia-lhe nojo, mas ele prometeu algumas regalias para Maria e sua filha. Ele as retirou da chácara e as instalou num quartinho no Beco do Sapo perto do Hospital Militar, no Acu. Ela descobriria uma nova gravidez, ficou surpresa. “Um filho do velho?”. Sim, ela deu à luz a um menino. O rebento que tanto Felipe ambicionava... Mesma aspiração do capitão que só teve filhas com a cônjuge. Ele não teve dúvidas, tirou o filho dos braços da amante e o levou para à sua casa. D. Sinharinha precisou aceitar na marra a imposição do marido.

Diante de tantas infelicidades, ela escreveu para o pai um bilhete. Pedia de joelhos perdão por todos os desgostos que lhe dera. Queria voltar à sua casa por misericórdia. Ele não mandou resposta. Continuou a viver às custas do capitão. Sempre que possível ia até o cemitério da Glória chorar na cova do finado. Acendia velas e dirigia-se à capela para pedir a São Francisco das Chagas para a salvar daquele martírio. Sebastiana falou à mãe que estava de namoricos com um português sapateiro. Ele não se importava com a situação em que a futura sogra vivia. O casamento aconteceu, o mancebo recebeu uma carta dos pais, pedindo para ele regressar à “santa terrinha”. E lá foi o casal para a cidade de Braga. Foi então que Maria da Luz resolveu por um fim ao seu relacionamento com Mello. Como era alfabetizada, resolveu pedir emprego como auxiliar na sacristia da igreja do Rosário. Contou ao vigário toda a sua desdita. Revelou que frequentava aquela paróquia com sua mãe desde que era pequenina. O sacerdote era mestiço como Maria da Luz, foi sensível à sua narrativa. Sabia o quanto doía sofrer preconceito. Ele propôs que além de trabalhar para a paróquia, Maria poderia lecionar para os meninos pobres da redondeza que frequentavam as aulas de catequese. Ela amou a ideia! Ficava muito feliz quando as crianças aprendiam a ler e a escrever. Durante décadas, Maria da Luz foi a mestra, mesmo que informal, daquelas crianças desprovidas. Trocou muitas cartas com a filha, ela tentou convencer a mãe a ir para Portugal, porém, ela preferiu continuar em São Paulo e seguir

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sua missão de ser multiplicadora do conhecimento. Ao completar 60 anos, sentiu a saúde minar. As pernas começaram a inchar demais. Maria precisou ser internada no Hospital de Caridade. Recebeu a visita de vários dos seus alunos. Conversou longamente com d. Lina, contou toda a sua história. Ao final, concluiu que a instrução recebida na infância e depois repassada para as crianças não foram “letras mortas”, e sim “letras vivas”! — A palavra têm poder, d. Lina! D. Sinharinha julgou que meu conhecimento de nada valeria nesta vida. Por ser pobre e mestiça, tive minha pessoa inferiorizada. Mas provei o contrário! — A senhora tem razão. O mundo é tão injustu... — Sabe de uma coisa: quero ser enterrada junto ao meu Felipe. Lá no cemitério dos aflitos. Na manhã chuvosa de 17 de maio de 1853, Maria da Luz veio a óbito. Foi encomendada pelo capelão e inumada no cemitério. Sua filha nunca soube da sua morte, ponderou que algo grave tivesse acontecido quando a troca de correspondências cessou. Quanto ao filho, que herdou os olhos azuis da mãe, cresceu sem saber da sua origem. Só mais tarde, quando era adulto, ouviu de uma das suas irmãs que ele era “filho de uma rameira, amante do pai”. Demorou para ele descobrir quem era a sua mãe biológica, foi juntando as peças do quebra-cabeça até chegar ao Hospital de Caridade. Foi d. Lina que contou o que sabia, narrada da conversa derradeira por Maria da Luz.

O cemitério já estava com ares de abandono. João Coveiro ajudou a localizar a cova da mãe. O rapaz chorou muito, nada mais podia ser feito.

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