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O QUE É AFROFUTURISMO? + AFROFUTURISMO NO BRASIL
Portrait of Glenn (1985), Jean-Michel Basquiat.
afrofuturismo? O QUE É
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O termo “Afrofuturismo” foi criado pelo crítico cultural americano Mark Dery. No ensaio Black to the Future: Interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose (Duke University Press, 1994), o autor discute por que são raros os escritores negros de ficção científica e as razões da ausência de personagens negros em ficções especulativas escritas por brancos. “A noção de ‘Afrofuturismo’ dá origem a uma contradição perturbadora: uma comunidade cujo passado foi deliberadamente apagado, e cujas energias foram subsequentemente consumidas na busca por traços legíveis de história, consegue imaginar futuros possíveis?”. O texto foi publicado dois anos após a onda de protestos que se espalhou pela Califórnia em consequência da absolvição, por um júri de maioria branca, dos quatro policiais brancos que espancaram violentamente o trabalhador da construção civil negro Rodney King. O espancamento de King, detido por dirigir em alta velocidade em Los Angeles, foi filmado por um cinegrafista amador e as imagens chocaram o mundo. Os conflitos decorrentes do resultado do julgamento, igualmente violentos (causaram 58 mortes), expuseram o nível de tensão racial nos Estados Unidos e o quanto a injustiça contra negros, especialmente num caso com provas tão incontestáveis, não podia mais ser tolerada. Naquele momento, imaginar futuros para a comunidade negra americana significava falar de resistência e sobrevivência, mas também de busca por raiz e identidade. No mesmo ensaio, o escritor Greg Tate afirma em sua entrevista: “Ficção científica (…) vem ainda do desejo humano básico de conhecer o desconhecido, e para muitos escritores negros, esse desejo de conhecer o desconhecido é direcionado para o autoconhecimento. Conhecer a si mesmo como pessoa negra — historicamente, espiritualmente e culturalmente — não é algo que é dado a você, institucionalmente; é uma jornada árdua que precisa ser empreendida pelo indivíduo.” Dery observa que o Afrofuturismo não está restrito ao campo da literatura. Sinais da tendência aparecem em manifestações artísticas tão variadas quanto o hip hop, a arte de Jean-Michel Basquiat, o álbum Future Shock, de Herbie Hancock (1983), e a vida e obra do pianista de jazz Sun Ra — no filme e no álbum Space is the Place (1972), o músico propõe uma utopia segundo a qual o único lugar seguro para a libertação, expansão e transcendência do povo negro seria o espaço sideral.
Note-se que Dery cunhou um nome para algo que já existia, embora não no formato de um movimento organizado. Dali em diante, alguns autores de ficção, como Octavia Butler, passaram a receber, por parte de críticos literários e entusiastas, a denominação de afrofuturistas; outros, como Ytasha Womack, abraçaram abertamente o termo. Ytasha é autora de Afrofuturism: the World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture (Lawrence Hill Books, 2013), em cuja introdução afirma: “Afrofuturismo é uma intersecção de imaginação, tecnologia, futuro e libertação”. Vale ressaltar que o prefixo “afro” em “Afrofuturismo” se refere aos descendentes de escravos da diáspora africana e que o termo permaneceu circunscrito à cultura negra americana por um bom tempo, associado a diversos tipos de expressões criativas, do festival urbano Afropunk (que existe desde 2005) ao álbum Lemonade (2016), de Beyoncé. O ano de 2018 marca o momento em que a estética afrofuturista chega com força total à cultura de massa, com o lançamento do filme Pantera Negra (Marvel Studios), dirigido por Ryan Coogler e baseado nos quadrinhos de Stan Lee e Jack Kirby. Se, por um lado, é impossível negar o efeito empoderador de um herói invencível, soberano de uma terra rica e paradisíaca e que tem à disposição tecnologias capazes de resolver qualquer problema (sem contar o elenco estelar e a equipe de Sun Ra. Capa do álbum de 2016 de Beyoncé.
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produção majoritariamente negra, vencedora dos Oscars de direção de arte, figurino e trilha sonora original), o filme não escapou de críticas entre autores que se identificam com o Afrofuturismo. No artigo Afrofuturism: Decolonizing the Imagination, publicado na plataforma Medium e, anteriormente, na revista Esprit (fevereiro de 2019), o jornalista Nicolas Celnik cita a análise do acadêmico Christopher Lebron segundo a qual Pantera Negra pouco contribui para abalar as estruturas do racismo na medida em que coloca na posição de vilão um negro americano rebelado contra a supremacia branca. Outra ponderação trazida pelo texto está na forma como o Afrofuturismo mainstream reforça um ponto de vista exclusivamente americano. Entrevistado por Celnik, o escritor Reynaldo Anderson, autor de um manifesto para o Afrofuturismo 2.0, propõe a constituição de um movimento dentro de um recorte filosófico. “Movimentos podem definir paradigmas, conceitos”, diz. Depois disso, o passo seguinte na evolução do Afrofuturismo seria, segundo o próprio Anderson, incorporar as tendências emergentes Futurismo Africano e Etno-Futurismo, dominadas por artistas e pensadores da África e muito conectadas a mitos e raízes locais. Para desenhar o futuro, é preciso entender o passado. Livro de 2013 de Womack.
9 AFROFUTURISMO NO BRASIL Em março de 2016, o escritor de ficção Fábio Kabral publica na plataforma Medium o artigo Afrofuturismo, o Futuro é Negro, o Passado e o Presente Também. No texto, fala sobre a “sensação” que o tema estava causando em festivais de literatura, música e arte, mas ressalta que, para ele, Afrofuturismo extrapola o rótulo (criado por um autor branco para denominar histórias que mulheres e homens negros já contavam há muito tempo) e o hype em torno da “estética da moda”. “Nós podemos contar nossas histórias por nós mesmos, não dependemos que ninguém faça isso por nós — nem do lado que nos nega sempre a presença e tampouco do lado que deseja nossa presença como algo
10 espetaculoso e exótico.” Considerado um dos expoentes da literatura afrofuturista no Brasil, autor de O Caçador Cibernético da Rua 13 (Malê, 2017), narrativa que se passa numa cidade com carros voadores e elementos da mitologia iorubá, Kabral enfatiza a necessidade de “compreender de onde você veio” em sua palestra no TEDxMauá 2019. “É fundamental para as pessoas negras entender que nós não descendemos simplesmente de escravos, nós descendemos dos pioneiros da humanidade. (…) Afrofuturismo é o resgate desse passado africano de tecnologia, ciência, filosofia e arte.” De acordo com essa ótica, Afrofuturismo significa conquistar soberania em relação à própria narrativa, por meio da exaltação dos antepassados, do resgate da história, da leitura crítica do presente e da possibilidade de visualizar futuros desejáveis. O Afrofuturismo no Brasil reflete questões próprias da comunidade negra num país de passado escravocrata, onde nunca houve uma tentativa de reparação do genocídio negro ou um projeto de acolhimento dos escravos libertos na sociedade, e as terríveis consequências políticas, econômicas, sociais e culturais disso tudo no presente. Segundo Nátaly Neri, estudante de Capa do livro de 2017 de Fábio Kabral.
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Ciências Sociais e criadora do canal Afros e Afins no YouTube, em sua palestra no TEDxPetrópolis 2018, o Afrofuturismo é revolucionário porque mostra um futuro em que pessoas negras estão vivas. “Pensar em pessoas negras no futuro é pensar que jovens negros conseguiram desviar de 12 balas, ou que essas balas não foram atiradas, já que jovens negros têm 12 vezes mais chances de morrer que jovens brancos. (…) é pensar que a gente superou a desnutrição e a insegurança alimentar e que pessoas negras não são as que mais morrem de diabetes, hipertensão e obesidade no Brasil.” Nátaly abre sua fala com uma constatação triste: “o racismo me roubou a capacidade de sonhar.” No contexto afrofuturista, a literatura, a música, a moda, o design, o cinema, as artes plásticas e outras modalidades de arte se apresentam como possibilidades de resgate da capacidade de sonhar e desenhar perspectivas de futuro. Entre os nomes ligados a esse movimento no Brasil, além de Kabral e Nátaly, estão os escritores Lu Ain-Zalia e Ale Santos, as cantoras Ellen Oléria e Xênia França, o jazzista Jonathan Ferr, o cineasta Rogério de Moura (Bom Dia, Eternidade; 2006) e os artistas plásticos No Martins e Felipe Borges. Na próxima parte deste trabalho, será feita a análise do conto Cangoma, de Ale Santos, uma ficção ambientada num futuro marcado pela hipervigilância e opressão das periferias, no qual o autor escreve: “(…) não existia nada mais revolucionário ou rebelde do que se manter vivo e ter ambições em um mundo que te odeia, que te humilha e quer ver você enterrado na mesma cova da pobreza que seus ancentrais.”
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Cultura do pixo manda seus recados num prédio em São Paulo.