APRESENTAÇÃO Este não é um fanzine sobre o amor, mas sim sobre todos os sentimentos possíveis. Escolhi o coração como imagem por ser este elemento simbólico das angústias, mas bem que poderia ser o estômago ou o intestino – o pulmão também, elemento sôfrego para os ansiosos. Todos os sentimentos que aqui se manifestam em contos breves e poemas foram compostos a partir de leituras pessoais do mundo humano. Não falhei na minha missão, caso os textos se demonstrem insuficientes, pois nunca tive a pretensão de trazer o tema ao esgotamento – tarefa um tanto impossível. Enfim, os textos aqui são para se sentir, assim como senti quando escrevi cada palavra sua em cada linha. O autor Thiago Okan é um potiguar que nasceu no ano de 1994 e que, além de ler, resolveu escrever sobre as coisas da vida que o afetam e que afetam o mundo a seu redor. É natural da cidade onde se sonha muito e pouco se dorme. Okan é seu nome – que em Yorubá quer dizer “Coração”.
FIEL Havia acabado de acordar, às cinco horas da manhã. Foi o refluxo que veio de repente, já não era a primeira vez. Tombou para frente com muito esforço. Gostaria de estar deitado até bem mais tarde, mas não poderia. Chamado todos os dias era ao mesmo ritual da religião qual fora iniciado ainda adolescente. A religião que abraça a todos nós à força. Seu corpo era fraco. Era de uma magreza comum, mas fraco. Caminhava lento, pensava lento, talvez por causa da pressão sempre baixa. Naquele dia os sintomas de sua agonia pareciam cessar um pouco, mas isso não fazia com que notasse alguma diferença, nem que se sentisse um pouco melhor. Não sabia o que era se sentir melhor desde que fora iniciado. Os sintomas só tendiam a piorar. Partiu só de cueca para a cozinha, pegou a chaleira com o velho café da noite anterior e pôs no fogo para aquecer. Não sentia frio, por mais que sua pressão fosse baixa. Talvez fosse o costume, ou simplesmente o abafado de sua pequena casa que, aos poucos, começava a ruir. Tomou seu café sem nenhum lamento. Comeu alguns biscoitos cream cracker sem adição de nada. Levantou-se em direção ao banheiro. A água do chuveiro gelada, dessa vez sentiu frio. Saiu batendo seu queixo como se se encontrasse no ártico, mesmo que vestido com seu roupão velho e desbotado. Na sala, sua roupa já estava previamente preparada. Havia de ter feito isso na noite anterior. Vestiu-se lentamente. Calça jeans azul fabril, camisa de botão azul anil ressecado, botas pretas, surradas, muito engraxadas para disfarçar. Do seu lado já estava predisposta sua pasta de couro com alça. Antes de sair de casa, cumpriu um velho ritual: abriu uma janela que dava para rua e a contemplou. Agora poderia seguir a diante com o resto do processo. Em sua rua, subiu a ladeira do seu martírio matinal. Subiu a ladeira como um andarilho pagador de promessas. Tinha muito o que pagar, era fiel confesso de peito aberto de sua fé. Caminhou seguindo
ad infinitum o seu trajeto. No horizonte se perdeu, não poderia mais ser visto. Talvez tenha sido trasladado. Fora ao encontro de seu deus. 14 de abril de 2017 **
Estômago Mesmo de longe Parece tão perto Sinto sua agonia a mim chegar fria Dou gotos secos de melancolia Os espasmos de loucura vêm ao estômago Que dói Sinto a ardência Que também lateja Mesmo de longe Parece tão perto E o sofrimento Parece sem fim Penso sempre no pior Pois o sempre é eterno às coisas ruins A dor é fiel companheira do medo E a alma à beira da morte É sempre infeliz
O Porsche alienígena A questão da indiferença nesta cidade é como um ritual tradicional. Os corpos que dormem nas ruas parecem não sentir saudade, fome e frio. Ali existem como ornamentos das calçadas feias, sujas e frias, quando noite, e quentes infernais, quando dia. Todos sem nome, coisa que ninguém faz questão de saber. Não cabe a eles o questionamento filosófico “de onde viemos e para onde iremos?”, já que o próprio amanhã é uma incerteza mais precisa que qualquer um dos que sobrevivem as custas de seu trabalho diário em redes de supermercado ou como cobradores de kombis de lotação. Quando sangram, ninguém se importa. Doença? Todos as temos, não é mesmo? O que tenho a ver com isso? Moeda? Só sabe pedir? Por que não faz como eu e trabalha? Certeza que quer dinheiro pra se drogar, esse corpo magro e essa cara feia não nega: é um nóia desgraçado. Desgraçados mesmo, todos eles. Viver uma vida desgraçada é tarefa para poucos e ninguém pede para vivê-la. Afinal, você e eu pedimos para ser alguma coisa? Pedimos sequer para nascer? Como alguém pediria para estar na sarjeta? Mas a cidade não os absorve assim. Na real, a cidade é cruel e hostil, ela sequer os absorve, por isso eles são os marginais. Por isso são os que agonizam. Às vezes eu consigo reparar em alguns deles, mas a tarefa não é tão fácil. A impotência de não poder fazer nada me faz mais um dos tantos que fingem não ver o que acontece debaixo do meu nariz. Mesmo pobre, me sinto uma entidade superior privilegiada transitando entre as valas, quase que como um deus, só porque tenho uma mixaria no bolso que me permite escolher entre uma garrafinha de água e um salgado na beira de uma esquina que fede a urina. “Você pode me ajudar com qualquer valor pois tenho uma filha pequena pra criar” diz o bilhete xerocado sem nenhuma pontuação que aquele homem me entregou pela janela do ônibus com aquela criança no colo. A pobre estava tão suja quanto o pai, que tinha uns fiapos de barba mal tirada e os lábios ressecados e feridos.
O par de sandálias de borracha estava por um fio, o calcanhar já tocava o chão pela abertura no solado provocado pelo uso contínuo e o tempo. Fuço minha mochila e consigo tirar uns vinte e cinco centavos. Ele recolhe, agradece com um olhar triste e vai embora. Quando o sinal abre, um Porsche passa ao lado do meu ônibus com os vidros escuros fechados. Um alienígena era o piloto. Certeza que não era deste mundo, não haveria de ser. 15 de novembro de 2018 **
O que és És sentimento bom Que também é triste És eterno Como passageiro És mais que o medo Que subsiste És mais que tudo Que me assemelho
Esta história de amor confuso começa ao som de Crowded House – “Don't Dream It's Over”. Estou sentado no banco do meu carro, em frente à casa dela. Ainda não tive coragem de ir embora desde o momento em que ela saiu daqui de dentro... dizendo aquelas poucas palavras... acabando com tudo. É janeiro de 1990, ligo o rádio e começo a ouvir o sucesso de 86 “Don’t Dream It’s Over” e por mais que a canção não fale de coisas tão tristes, a melodia agora me faz chorar e eu nunca mais irei ouvi-la sem lembrar da tristeza que estou sentindo agora. A luz que sai da janela do quarto dela acaba de se apagar e, enquanto a música rola, eu sequer sei ao certo em que pensar. Sinto meu corpo anestesiado por uma sensação ruim, uma sensação de falta. É isso que a gente sente quando se entrega e é deixado. A pessoa vai embora e leva uma parte sua junto e não tem como pegar de volta. O jeito é se contentar com esse frio enquanto a música passa ao fundo. É uma versão ao vivo, ouço as pessoas cantarem em coro. Não sei, mas isso faz eu me sentir mais sozinho ainda, as pessoas tão distantes e eu aqui com frio. Choro ainda mais. Descontroladamente, sem consolo. O choro me faz soluçar. A vontade que tenho é de berrar, mas não quero passar pelo vexame de chamar atenção da rua toda às 23 horas. A música acaba. Ligo o carro e vou embora pra casa, tentando estar mais sóbrio o possível, mesmo que embriagado com esse sentimento ruim. 27 de novembro de 2016 ….. PS: Este conto seria um romance, mas como sou preguiçoso, ficou assim mesmo. Não é sobre amor, nem sobre término, apesar da introdução. É uma história breve sobre a falta.
Sem resposta Deitado no quarto, olhando pro teto, mesmo sem enxergar nada, porque as luzes estão apagadas, deixando o tempo passar, quase sem respirar. Tento suportar essa agonia lenta que cai sobre meu peito. No domingo, sozinho, lentamente respiro e penso em todas as minhas tristezas bobas da vida por simplesmente sentir mais do que posso suportar. Sentir demais. Nunca imaginei que isso seria um problema. Como vive alguém que de tão frio não sabe nem o que é o calor das pessoas? Provavelmente é alguém muito feliz, realizado consigo mesmo, não precisa do mundo à sua volta. Ainda deitado no quarto. Sinto a ânsia no lado esquerdo do peito, sinto a agonia e a anestesia do estado. Não sinto que estou aqui, estou suspenso, em transe, um transe provocado pela angústia. Minha mente está perdida num limbo. — Rafael? Ninguém responde. — Rafael? Rafael, você está em casa, eu sei. Está no quarto? Ninguém responde. 31 de agosto de 2017
Aqui vai o roteiro das quatro páginas de um quadrinho intitulado “Dias azuis, verdes e vermelhos” que narraria a história do André – um jovem adulto com seus problemas. Cada episódio teria uma cor – o descrito aqui seria um dia azul – que comporia todas as cenas do quadrinho. Cada cor seria um estado emocional: azul para a melancolia; verde para os dias doentes; e vermelho para os dias de fúria. Infelizmente, como em quase tudo que eu invento de fazer, a ideia não seguiu. Talvez eu a transforme apenas numa série de quadrinhos curtos para publicar na internet. ROTEIRO Dias azuis, verdes e vermelhos – a história do homem que não tinha cor Página 1: apenas um quadro com o título. Descrição da cena 1: André está deitado de lado na cama. A visão do quadro é aérea. A angulação não é na vertical, mas a cabeceira da cama está inclinada para a esquerda. É possível enxergar toda a cama no quadro, do lado da cama uma cômoda pequena com um despertador. Luzes entram pela janela. O quarto está um pouco escuro. Texto: “É certo que hoje não será um dia bom. Estou com frio e um pouco de medo. Aquele medo que sempre vem e que nunca sei o porquê. Não queria ter que sair de casa hoje, mas serei obrigado. Poderia definhar até o fim aqui na minha cama. Não sentiriam minha falta.” PÁGINA 2 5 quadros. Dois pequenos no topo, um retângulo no meio e mais dois no fim.
Quadro 1 Cena: A mão desligando o despertador. Angulação da imagem, na horizontal de frente, vendo a mão de lado. Sem texto escrito. Quadro 2 Cena: Foco no rosto cansado e apático do personagem. Sem texto escrito. Quadro 3 Cena: os dois pés no chão. Visão lateral da cama, foco nós pés. Sem texto escrito. Quadro 4 Cena: André de perfil caminhando para fora do quarto. Foco do ombro para cima. Sem texto escrito. Quadro 5 Cena: a mesma visão do quadro anterior, só que com o personagem ausente. Sem texto escrito. PÁGINA 3 Nesta página as cenas ocorrerão na cozinha. 4 quadros. Um retangular no topo, dois quadrados no meio e mais um retangular no fim.
Quadro 1 Cena: Geladeira aberta. Visão interna da geladeira de frente para os olhos do personagem dentre os produtos. Um pouco da fumaça do gelo seco para o efeito de frio. André com os olhos cansados perdidos. Texto: Não tenho tido fome. Ando perdendo peso progressivamente, eu simplesmente não consigo comer muito. Quadro 2 Cena: Vista sobre o personagem da parte esquerda da cozinha. Angulação levemente inclinada, lado direito para cima, lado esquerdo para baixo. Geladeira ainda aberta, personagem encurvado com seu tronco em parte por trás da porta aberta. Sem texto escrito. Quadro 3 Cena: mesma visão da cena anterior, dessa vez com o personagem em pé com uma caixa de leite na mão. Sem texto escrito. Quadro 4 Cena: Caixa de leite colocada sobre a mesa. Foco na mão do André colocando a caixa. Visão horizontal, com a mão vindo na direção direita do quadro. Texto: Dizem que leite é bom para gastrite. Não sinto nenhuma melhora, mas insisto em acreditar.
PÁGINA 4 3 quadros, três retângulos sobrepostos Quadro 1 Cena: André sentado, ângulo de perfil, bebendo um copo de leite. Foco no copo e rosto. Cabeça inclinada para trás, dando o goto. Texto: talvez seja a mesma crença que tenho na minha melhora emocional – eu realmente acredito nisso, ou só tenho me enganado todos os dias? Quadro 2 Cena: André continua bebendo o leite. Foco na garganta, cena de perfil, mesmo ângulo da cena anterior, com close na garganta apenas e no queixo e base do copo inclinada. Texto: todos os dias eu tenho tentado acreditar em algo diferente para não perder as esperanças. Em algo, por mais bobo que seja. Me disseram um dia que o importante era acreditar. Quadro 3 Cena: André de perfil, olhando para a pia. Cabeça um pouco virada. Os dois ombros sobre a mesa, mãos no queixo, copo sobre a mesa vazio. Na cozinha é possível ver a mesa redonda e pequena, duas cadeiras além da dele, pia, e armário do lado esquerdo. Texto: O certo é que me perdi nas dores. Já não sei como reagir. 16 de abril de 2017
Sem tato Escrever alivia minha dor. Não lembro quando foi ao certo, mas de tempos em tempos passei a me perder mais dentro da minha mente. O mundo em essência parece-me cada vez mais distante e em certos momentos até mesmo parece não existir – acho que me expressei errado. Não que o mundo pareça deixar de existir, o fato é que, às vezes, parece que eu estou à parte dele. À parte de tudo o que me rodeia: vivências, sensações, tudo parece intangível para mim em alguns momentos, alguns instantes. Beijos, toques, diálogos, abraços... meu corpo não parece tocar o mundo. Uma falta de tato imensa que por vezes me deixa atordoado. Eu queria poder sentir! Eu queria poder sentir com aquela mesma intensidade do meu tempo de menino. Um dia a Ana me veio toda sorridente, e eu, meio sem jeito como sempre, não soube como reagir. Por mais que eu tivesse a sensação de que ela queria estar perto, eu não me sentia bem o suficiente para suprir todas as vontades que partiam dela. Ela tinha um sorriso tão lindo e eu ficava aqui com o meu olhar frio, um idiota e inútil que, não retribuindo o seu sorriso, muitas vezes eu conseguia desmanchá-lo, transformando tudo em frustração. Ela era persistente em mim e eu simplesmente não sabia o que fazer. É revoltante isso. Eu não queria tratá-la assim. Eu gosto dela, mas há algo que me prende e que não permite que eu lhe dê aquilo que ela quer ter. Quando eu a toco, quando eu sinto os seus abraços, eu sinto uma saudade de mim mesmo, porque não me sinto presente. Sou sempre tão ausente em mim mesmo. O que eu sinto é um corpo mórbido e frio, um coração moribundo, adoecido, que não sabe mais o que é ter tato. Agora estou aqui, sentado, pensando em tudo isso, enquanto ela caminha até a cozinha em busca de um copo d’água. Da porta, segurando aquele copo meio vazio ela pergunta:
“Não quer água?” “Não estou com sede... eu acho.” “Você parece nunca ter certeza de nada.” “Verdade... acho que nem certeza de que não tenho eu tenho.” “Você é estranho e engraçado.” – Ela sorri. Mais uma vez aquele sorriso. O mais lindo que eu já pude ver mas que, infelizmente, não tem em troca um meu à altura. Eu não consigo. 21 de Novembro de 2016
Telefonema Desapontado com o tempo e consigo mesmo, fica sentado, inerte, pensando em coisas avulsas que não fazem o menor sentido. Ninguém é obrigado a suportar suas crises, nem a querer saber como ele está. Ele sabe disso, por isso não fala. Tem uma rotina a cumprir como todas as pessoas tidas normais. “Apenas os loucos vivem fora desse contexto”, pensava ele. Era obrigado a continuar, mesmo quando a maior de suas vontades era parar com tudo. Assim mesmo, como se faz com o vídeo na TV ao poder do controle remoto. “Pause”, escrito em inglês e assim assimilado. Um amigo de longa data ligou. Queria vê-lo, por mais que a correria insistisse em não permitir. Dessa vez o esforço seria dobrado, e ele não seria forçado a remarcar mais uma vez. Ele, porém, já estava desacreditado. Queria continuar como estava, e simular que tudo estava pausado. Levantou-se e direcionou-se até a dispensa. Lá haveria de armazenar muita coisa, dentre tudo, jornais velhos. Pegou-os e iniciou o processo que chamou de “disseminação”. Recortou muitas palavras e letras separadamente, como se estivesse preparando um fanzine. Após isso, fitou tudo o que havia cortado no chão, tentando organizar as ideias. O telefone tocou. – Alô? – E então, cara... tudo pronto pra amanhã? – Ah! Acho que sim. – Como assim, “acho que sim”? Cê vai fazer alguma outra coisa? Se sim, a gente pode ver outro dia então. Hesitou alguns segundos. Esses segundos – valiosos segundos –, foram suficientes para uma quebra. Uma quebra total dos planos. Pensar num amanhã ou num depois. Existiria um amanhã? Existiria um depois? Em parte impulsionado pela vontade de parar, cogitou em adiar sobre o pretexto de uma mentira. Ao adiar, saberia, não haveria amanhã, não haveria depois.
– Então, cara... como vai ser? Dá certo mesmo amanhã? Eu chego bem cedo, então é bom já ir se organizando. Mano, faz muito tempo que eu não te vejo. Tô com muita saudade mesmo. Minha mãe perguntou por você esses dias, ela vai adorar te ver. O amigo do outro lado da linha não poderia ver, mas ele chorava. Fazendo todo o esforço para que o outro não percebesse, não teve condições de segurar as lágrimas. Ele era importante. Sentiu-se assim. Para alguém ele era. Para o amigo, para a mãe de seu amigo de infância. Após segurar um pouco, ao ponto que conseguisse disfarçar a voz trêmula, ele prosseguiu. – Sim, cara. Vai dar sim. A gente se vê amanhã então. De que horas mais ou menos você passa por aqui? – Umas oito horas no máximo. – Tudo bem. Já vou organizar tudo a partir de hoje então, pra evitar atrasos. – Falou, então, cara. A gente se vê amanhã. Abraço! – Falou! Desligou. Voltou aos prantos. Eles não teria amanhã. Ele já estava desistindo. Todos os recortes seriam para a sua carta de despedida que ele não tinha sequer coragem de escrever com as próprias mãos. O trabalho o transformara, transfigurara quem era, roubara sua alma. Vendeu sua vida que era tempo em função de algo que o escravizou. Com o tempo o vazio aumentava e ele já não estava mais suportando a rotina de ter que somente sobreviver. Amanhã seria um dia em que de fato ele viveria. Experimentaria o sabor perdido da infância, do tempo em que o que ele mais tinha era tempo. O tempo em que ele era feliz. Uma ligação o salvou. O fez desistir de desistir. 9 de abril de 2017
As plantas que curam Quem eu sou? Um homem comum, com dores comuns e que se alia a estes textos banais para expressar toda a dor que carrega. Ultimamente eu tenho estado bem – pelo menos é o que parece. E ao que parece, também, eu tenho me convencido disto. De todas as coisas que odiei no passado, dentre elas a minha aparência física, já não me são de importância alguma – e não é por desleixo, é que tudo isso deixou de ter significado para mim. Enfim, amadureci. Não me preocupando mais com tais futilidades, tenho agora como objetivo futuro uma simples plantação: hortas, flores, árvores, jardins. Quero abraçar o amor vegetal e ser feliz cuidando daquilo que não correrá de mim, pois não têm pernas para isso. Ah, as plantas, como sempre, tão fiéis! São tempos difíceis para quem ama. E a traição real é a mentira, não o ato que se consuma ao se entregar a um corpo alheio aquele que o ama. Por isso agora prefiro as plantas, elas plantas não mentem, e por acaso disso, agora eu me sinto feliz. Elas não haverão de me enganar, traindo-me a confiança, me fazendo chorar sangue. Elas ficarão comigo, e algumas até me ultrapassarão em vida e ficarão para o mundo, depois de mim, poder contemplá-las ou, infelizmente, derrubá-las. Mas enquanto forem minhas, a mim serão fiéis e eu fiel a elas serei. Assim irei ser feliz. Definitivamente, um homem feliz. 11 de março de 2017
SUSPENSOS Antes olhara o céu sem saudade. Eram só estrelas, dizia. Mas agora não eram mais, e a distância de casa o deixava atordoado. Seus olhos estavam secos, mas ele não conseguia deixar de contemplar o seu planeta do alto daquela nave de carga. Aquele planeta tão perto, azul... tão azul. Não sentia que estava ali, estava absorto no espaço-tempo. Era um ponto insignificante – talvez muito menos que isso – diante da imensidão do universo. Um bipe. Dois bipes. Três bipes. Era o suficiente. Acordara de seu transe, precisava retornar à cabina, a velha nave do ano 2999 estava com problemas e exigia controle manual. Aqueles velhos companheiros de viagem – todos –, precisavam, assim como ele, retornar para casa. Alguns tinham quem o esperassem, ele não tinha ninguém. – Mais uma vez com o olhar perdido no espaço, Otávio? – Mais uma vez... como poderia de ser? – Bom, estamos perto de voltar para casa. Ainda bem que ocorreu tudo bem com a nossa entrega. – Sim, de fato. Era mais um cidadão comum. O homem comum diante das suas obrigações. Precisava comer e para isso caminhava. Caminhava pelo espaço sozinho e solitário, mesmo em presença de cinco companheiros que também sozinhos estavam. 4 de outubro de 2017
“De tudo que passava por lá e vinha pra mim Da cabeça passava pro coração Ia e voltava fundo” – Karina Buhr
UM ZINE DO