TREMA! Revista - Edição da Evangelização [12]

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EDIÇÃO DA evangelização

ANO 3

#12

ABRIL 2018


pergunta

TREMA! 1/4

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“TODA ARTE É POLÍTICA.” @Fred Nascimento — Via Facebook

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EDITORIAL RECIFE, ABRIL DE 2018

“No Templo de Salomão, em São Paulo, muitos se ajoelham diante

to, esse grupo divide-se entre “aqueles que podem ser classificados

das cadeiras antes de sentar e rezam em silêncio de cabeça baixa.

como evangélicos pentecostais (22%), em maior número e frequen-

Outros leem a Bíblia. Uma senhora tira da bolsa os retratos de três

tadores de igrejas como Assembleia de Deus, Universal do Reino de

filhos que carrega num saquinho plástico e leva as mãos ao alto,

Deus, Congregação Cristã e Quadrangular do Reino de Deus, e 7%,

para que as fotos também sejam abençoadas. A música de fundo

como evangélicos não pentecostais, pertencentes a igrejas como Ba-

tem o volume aumentado. Um jogo de luzes roxas, vermelhas e

tista, Presbiteriana e Metodista, entre outras”.

azuis prenuncia a entrada, às 9h30 em ponto, do pastor Renato Cardoso, genro do bispo Edir Macedo. (…)”

Como lidar com essa “revolução silenciosa”, para recorrer a uma expressão já utilizada sobre essa mudança social? No Recife, a Tre-

O trecho que acabamos de ler foi publicado em fevereiro des-

ma! Plataforma reagiu ao cenário com a peça Altíssimo, monólogo

te ano, numa reportagem do jornal Valor Econômico sobre o

de Pedro Vilela, escrito em parceria com Alexandre Dal Farra. Sobre

que o censo do IBGE, em 2010, já havia apontado: o crescimen-

ele falamos nesta edição, a partir das seções Nota de Procedimento

to da população evangélica no Brasil e o decrescimento dos

e Crítica, cujo assunto tem o caldo “engrossado” pelos textos do

fiéis católicos em nossa sociedade. Poderíamos dizer, não fos-

pastor anglicano Maurício Amazonas e da estudante de jornalis-

se uma reportagem, que o trecho acima fora extraído de uma

mo Erika Muniz, além das imagens da artista Bárbara Wagner, em

peça de teatro, não fosse esse um ato, em poucas e certeiras

sua contribuição visual a partir da série Crentes e pregadores. E há

palavras, do nosso theatrum mundi, que ganha contornos de

mais ao longo das próximas 40 e poucas páginas.

espetáculo facilmente. A religião é um tema caro à arte. Seja no passado do apogeu catóEstamos diante de um país catequizado em sua fundação, mas evan-

lico, ou no presente que inquieta com suas pregações. Precisamos

gelizado ao longo das últimas décadas, ao ponto de “três em cada dez

encarar. Da plateia, ou do púlpito.

(29%) brasileiros com 16 anos ou mais” serem evangélicos, segundo dados da Datafolha em 2016. De acordo com a pesquisa do institu-

TREMA!_evangelização

TREMA! Boa leitura!

p­ — 5


colaboradores desta edição

BÁRBARA WAGNER Nasceu em Brasília, em 1980. Sua prática em fotografia está centrada na

CLEODON COELHO

representação do ‘corpo popular’, suas estratégias de visibilidade entre cânones

Pernambucano radicado no Rio de Janeiro, é autor de biografias da novelista

da tradição e do progresso e nas relações estéticas e econômicas entre ritual

mineira Janete Clair, da atriz gaúcha Lílian Lemmertz e de seu conterrâneo José

e espetáculo. Publicadas em livros editados pela artista desde 2007, suas

Pimentel. Como jornalista, passou pelas redações do Jornal do Commercio, Folha

obras têm sido exibidas em exposições individuais e coletivas nacional e

de Pernambuco e editora Abril. Também atuou como roteirista de programas de

internacionalmente. É mestra em Artes visuais pelo Dutch Art Institute. Vive e

entretenimento da TV Globo.

trabalha no Recife.

MAURÍCIO AMAZONAS WELLINGTON JÚNIOR

É pastor Anglicano. Bacharel em

ERIKA MUNIZ

Professor de teatro, encenador

Teologia (STCR) e Ciências Sociais

Minha religião é o sincretismo: cristã por família, espírita por afinidade

e pesquisador. Graduando no

(UFRPE). Mestre em Ciências da

e devota dos orixás. Formada em Letras pela UFPE, estagiária da revista

bacharelado em Estética e Teoria do

Religião (Unicap). Professor de Teologia

Continente e amo teatro! Merda!

Teatro pela Unirio.

e Filosofia em seminários do Recife.

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NOTA DE PROCEDIMENTO

PEDRO VILELA tremaplataforma@gmail.com

foto de divulgação do espetáculo altíssimo — foto: flora negri

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“Nesse tempo muitos serão escandalizados, e trair-se-ão uns aos outros, e uns aos outros se odiarão. E surgirão muitos falsos profetas, e enganarão a muitos. E, por se multiplicar a iniqüidade, o amor de muitos esfriará.”

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Mt 24. 10-12


NOTA DE PROCEDIMENTO

A

venida Dantas Barreto, 1.227, apartamento 202. Ao seu lado, a igreja da Santíssima Trindade. Foram nestes dois locais que uma tímida criança cresceu. Neste bairro, antes moradia de inúmeras pessoas, construiu-se um grande camelódromo e, pouco a pouco, os que ali viviam, passaram a dedicar seus imóveis a pontos comerciais. Quem conhece minimamente a cidade do Recife sabe muito bem que a Dantas Barreto não é nada atrativa para

pedro vilela na eucaristia — foto: acervo pessoal/pedro vilela

uma criança. Jogar bola na rua era impossível, tamanha a quantidade de ônibus na larga avenida. Andar de bicicleta, apenas aos domingos e sobre a calçada. A ida cotidiana à escola, então, era um rompimento de territórios para esta criança que, aos domingos, frequentemente ia a espetáculos teatrais com sua madrasta que sonhava ser atriz. Domingo, por sinal, era o dia da poesia, do sonhar, do viver outros mundos. Quando mais crescido, um universo maravilhoso se apresentava, próximo, ao lado do apartamento. Uma igreja moribunda, de poucos fiéis, que trazia consigo todo o misticismo que só um templo pode carregar. Altar, hóstias, sinos, música. Rapidamente, as horas livres desta criança passaram a ser dedicadas a “viver” neste lugar: a casa de Deus. E até que outra realidade pudesse ser apresentada, nutriu-se nela uma vocação. “Esperar. Esperar muito. Esperar tardes inteiras. Esperar com calma e tranquilidade. Isso era uma vocação. Um prazer imenso em esperar. Esperar por Deus como se ele não fosse vir nunca.” Sim. Eu esperei. Esperei tardes, dias, anos. Por um momento, quis ser padre. Perto de mim, vivia Maria de Lourdes Silva, mais conhecida como Badia, símbolo da identidade e cultura negra do Recife, considerada por muitos como uma das principais mães de santo de Pernambuco. Semanalmente, visitava sua casa para receber um “passe” que tirasse os maus olhados que pudessem estar sobre mim. p­ — 10


Como a maioria dos brasileiros, minha infância foi muito bem-articulada pelo sincretismo religioso. Se meus domingos eram dedicados ao serviço de “coroinha”, ajudando no que podia para a realização das missas (tocando sino, organizando o altar), nas minhas segundas, eu estaria sendo benzido por uma mãe de santo. O importante era sempre estar sob a proteção do divino. Foi ainda na infância que deixei de morar no centro do Recife. Acho que em 1994. Revisitando a memória, percebo que sofri com a morte de Ayrton Senna e comemorei a Copa do Mundo do mesmo ano já em uma nova casa. Eu tinha nove anos nessa época. Revisitando o material de pesquisa do espetáculo Altíssimo, percebo que apenas três anos depois, em 1997, um certo bispo lançou um livro que viria para

pedro vilela na escola — foto: acervo pessoal/pedro vilela

sempre atritar esse universo sincrético meu e da maioria dos brasileiros. Orixás, caboclos e guias, deuses ou demônios? logo se tornaria um fenômeno em nosso país, mesmo tendo sua venda interrompida por um ano, quando a Justiça Brasileira determinou a retirada de circulação de todos os exemplares do livro por conta do teor preconceituoso contra as religiões afro-brasileiras. Naquele período, a sentença da juíza Nair Cristina de Castro apontou que a obra "extrapola os limites da liberdade religiosa (...), na medida em que não se restringe à explanação e divulgação das ideias próprias à religião que é adotada por quem o escreveu, mas sim se predispõe a tratar pejorativamente outra religião e seus adeptos, incitando à discriminação". A dedicação do “bispo” Edir Macedo, fundador da Igreja Universal, em qualificar a Umbanda, a Quimbanda e o Candomblé como “seitas demoníacas”, responsáveis pelo subdesenvolvimento do país, apresentava-se, então, apenas como ferramenta de uma engrenagem muito maior. Um pequeno passo de um projeto político amplo que objetivava ocupar lugares de poder do país para o benefício próprio. De lá para cá, uma rede de televisão foi comprada, diversas igrejas/filiais foram espalhadas por todo o país e diferentes “missionários” passaram a ocupar cargos públicos. TREMA!_evangelização

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espetáculo altíssimo — foto: danilo galvão

Quando adulto, levado por minha companheira que, na época,

que virá, foi corrompido, sujo, escarnecido. A percepção ainda maior

tinha forte ligação com o Protestantismo, esta minha “vocação”

de que todas essas questões não se reduziriam a instituições não

foi realinhada dentro da Igreja Anglicana sob o prisma do qual

me largou. Não é a fé que se deteriora. É nossa sociedade. Leio em

o conhecimento bíblico seria o agente de desenvolvimento de

algum livro de Augustus Nicodemus que o “neopentecostalismo é

qualquer indivíduo.

a retomada do catolicismo medieval”. Trevas. Fogo e sal.

Ser brasileiro é ser espiritualmente receptivo. O país possui a

O período de retrocesso civilizacional que constituiu o

maior população católica da terra, o maior número de grupos pente-

tempo de domínio do Cristianismo sobre a Europa manifesta-se

costais do mundo, mais simpatizantes das religiões mediúnicas do que

de igual modo em nosso tempo. Mas como angariar parceiros para

qualquer outra nação, a maior representação protestante da América

discutir isso? Como convencer artistas, esta raça tão “descrente”

Latina e a Umbanda, uma religião unicamente brasileira. Nesse terreno

a lidar com esse tema? Como perceber que o simples fato de ter

fértil, nascem braços do pentecostalismo norte-americano, marcado

sido abalado em determinadas convenções de fé é algo suficiente

pelo batismo do espírito santo, pelo falar em línguas e pela teoria da

para gerar uma obra?

prosperidade. Junto a tudo isso, diferentes acusações de charlatanismo, formação de quadrilha, extorsão e lavagem de dinheiro.

O primeiro passo foi compreender que o desejo por uma obra deste tipo nada tinha a ver com uma necessidade de defender Deus,

Com enorme descrença em relação as instituições de fé em

Cristo, Cristianismo ou qualquer coisa do tipo; mas, sim, com a busca

nosso país, todas as doutrinas acabam sendo jogadas no mesmo

pela compreensão de como os discursos sobre todos esses apon-

pacote: o evangelismo neopentecostal. Com a propagação das redes

tamentos são moldados em nossa formação e o quanto a presença

sociais, os brasileiros são apresentados a diferentes aberrações dou-

do divino é mensurada em nosso dia a dia, seja qual for o seu divino.

trinárias, onde cultos se tornam verdadeiros espetáculos, pautado

O segundo foi entender também como a presença de um

por diferentes estratégias: ora para fortalecer seus discursos, como

“mal comum” tem sido construída em nossa sociedade para que

quando da distribuição de rosas ungidas e águas bentas, ora para

assim possamos ter um inimigo a quem recorrer dentro de nossas

continuar a perseguição às religiões de matrizes africanas, em cultos

derrocadas individuais. Nesse sentido, este mal comum assume o

de exorcismos. O sincretismo religioso brasileiro assume, então, seu

lugar de justificativa para todas as nossas desgraças pessoais, para

maior nível, pautado por distorções e manipulações.

a própria ausência da figura do Estado como confortador de nos-

†††

sas necessidades mais básicas. Esse mundo de “injustiça absoluta e absolutamente vazio de sentido”. Miguel Real, em seu livro Nova teoria do mal (2012), foi um im-

Aquele lugar onde a criança se escondeu por anos, o da fé em algo p­ — 12

portante parceiro nesse estágio inicial:


espetáculo altíssimo — foto: danilo galvão

Se libertarmos o homem de deus, não somos por isso obrigados a

igrejas, lemos, discutimos. Blocos de dramaturgia foram escritos por

negar a existência de deus. Muito pelo contrário. Seremos apenas

Dal Farra, proposições estas com uma total disponibilidade para o

obrigados a postular que, como ideia, ou mesmo como existência,

descarte, se assim achássemos necessário.

a essência de Deus é tão estranha ao mundo e à mente humana

Um cuidado apontava aos olhos. Não nos interessava escarnecer

que dela não podemos dar conhecimento nem com ela estabelecer

a fé de ninguém. Não nos interessava dar chute num cachorro que

nenhuma relação, nem mesmo imaginar as modalidades da sua

já se encontrava morto para boa parte da nossa sociedade. Propor

existência. A única possível relação com deus é individual, isto é, da

um olhar, um ponto de vista. Mergulhar em diferentes inquietações,

ordem da mística, isto é, da ordem do inefável, expressão do senti-

conscientes de que, para muitas delas, não teríamos respostas. Demo-

mento sagrado, isto é, do mistério de deus. (2012, p. 96)

ramos quase dois anos para acharmos algo que julgávamos adequado. Vasculhamos até o último minuto o melhor gesto, a melhor palavra.

Uma primeira tentativa foi realizada. Ainda no Magiluth, grupo de tea-

Não temos a pretensão de nada. O resultado pode ser visto em cena.

tro que integrei até 2015, resolvi escrever um projeto de investigação.

Miguel Real (2012, p. 87) nos comunica:

Mesmo aprovada por um edital de cultura, a pesquisa não foi colocada em curso devido à minha saída do coletivo. Voltemos então a Miguel Real: “A única possível relação com

A história da relação entre o homem e o ser tem sido, assim, a história da criação de um labirinto espiritual, sem retorno nem fuga. A função

deus é individual”. Parto, então, para a criação de um solo sobre o

ética do homem do século XXI, superando a fase infantil da humani-

tema. Leio, leio, leio. Dietrich Bonhoeffer, Augustus Nicodemus, Kevin

dade, será a de pôr fim a este labirinto, reintegrando e harmonizando

DeYoung e Ted Kluck, David Allen Bledsoe, Chesterton, Robison Caval-

o homem e o ser.

canti, Carson, Hermisten Maia, C.S.Lewis e o próprio Edir Macedo. Reúno muita coisa. Muitos anseios. Como dar forma? Lembro

Não sei ainda se consegui superar essa fase infantil do meu próprio

de Alexandre Dal Farra, dramaturgo brasileiro que, em 2012,

estar no mundo. O menino da Dantas Barreto cresceu, a igreja con-

escreveu Matheus 10, obra ganhadora do Prêmio Shell. Será que

tinua lá. A urgência sobre o tema é o que move a não parar, mesmo

ele ainda teria interesse de abordar questões religiosas em um

dentro de uma conjuntura onde, mais do que nunca, o ato artístico

novo espetáculo? Como convidar/convencer esse cara a trabalhar

torna-se um posicionamento político. A solidão do homem, a nossa

com um desconhecido?

tentativa de entender alguma coisa, está em Altíssimo. Afinal, como

Enviei todo material reunido e convidei. Mais fácil do que eu

diria Real (2012, p. 82): “Deus é isso, o vazio, o nada, que está fora

esperava, ele aceitou. Como trabalhar de agora em diante com a dis-

da ordem e de ordem. Deus, se existe, é Isso que com o mundo e o

tância geográfica? Nos encontros entre São Paulo e Recife, visitamos

homem nada tem a ver”.

TREMA!_evangelização

#E VA NGE L IZAÇÃO L E IT URA V I SUAL Wagner p­ —Bárbara 13


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ARTIGO

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“Não vos conformeis com este mundo”

DA ARTE COMO POSSIBILIDADE DE REINVENTAR O MUNDO A PARTIR DO BELO uma perspectiva bíblico-teológica

MAURÍCIO AMAZONAS mauricioamazonas@yahoo.com.br

CONSIDERAÇÕES INICIAIS A Bíblia diz que, ao findar Sua obra da criação, “viu Deus tudo quanto fizera, e eis que tudo era muito bom” (Gn 1.31). O bom e o belo se formam da mesma essência e raiz. Não é possível ser bom e feio ao mesmo tempo. Deste modo, a criação não continha apenas o bem, mas também o belo, pois era fruto direto do trabalho de Deus, o sumo bem, como diziam os antigos teólogos. Não esquecer que o ser humano foi criado à imagem de Deus (Gn 1.27), trazendo em si tanto o bem quanto o belo. No entanto, conforme a narrativa do Gênesis, a entrada do pecado no mundo criado trouxe inimizade entre os seres humanos (o marido acusou a mulher de lhe induzir a comer do fruto proibido), as dores de parto, para a mulher, e a morte, para ambos (Gn 3). Foi quando se conheceu a feiura e a maldade. A terra se tornou maldita (Gn 3.17-18) e começou a produzir cardos, espinhos e abrolhos, dificultando sobremaneira ao homem ganhar o pão com o suor do próprio rosto. A divisão do trabalho gerou mais problemas, chegando à prática de homicídio entre irmãos. A queda (pecado) tem a ver com os nossos valores éticos e também estéticos. Contudo, a redenção promovida por Jesus Cristo é capaz de restaurar toda beleza e bondade perdidas. Não é à toa que os relatos bíblicos começam com um jardim no Éden (experiência lúdica e telúrica), para, ao final da história da redenção, nos falar de uma cidade santa (expectativa de pureza e beleza). É que Jesus Cristo restaurará todas as coisas e as entregará ao Deus-Pai e criador dos céus e da terra (Gn 2.15; Rm 8.19-22; 1Co 15.24,28; Ap 21.2).

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Rm 12.2


ARTIGO

A ARTE NOS TEXTOS SAGRADOS

A palavra culto já traz, em si, uma

Desse modo, Deus se agrada que o ser humano produza instrumen-

ideia de elaboração. Culto e cultura têm a mesma raiz e esta tem a

tos, músicas, danças, poemas, sinfonias, canções, contos, crônicas,

ver com cultivar. É uma linguagem intimamente ligada à experiência

romances, novelas, filmes, dramas, comédias, pinturas, esculturas,

campesina. A pessoa tanto poderia cultivar uma planta quanto uma

culinárias e todas as artes que embelezam e humanizam o mundo.

relação espiritual com o sagrado.

Fazer arte é uma dádiva de Deus ao ser humano. Para a criatividade é

Mas o que a arte tem a ver com o culto? Segundo a nossa

que fomos criados.

leitura da Bíblia, a arte adentra no sagrado à maneira que vai sur-

Por isso as Sagradas Escrituras contêm não apenas livros sa-

gindo e se aprimorando. Ainda nos dias de Adão, Jubal inventou a

pienciais (Jó, Provérbios e Eclesiastes), mas também livros poéticos

flauta (Gn 4.21). Algum tempo depois, Enos, neto de Adão, começou

(Salmos e Lamentações de Jeremias). Além destes, temos o livro de

“a invocar o nome do Senhor” (Gn 4.26). Podemos imaginar que a

Cantares ou Cânticos de Salomão. Nele, encontramos toda uma poesia

flauta fazia parte da adoração, juntamente com a oferta de víveres,

que desnuda a intimidade do amor entre homem e mulher. Bela

aves e animais.

construção metafórica, rica nos detalhes da vida campal. Se a Bíblia

A arte elaborada de adoração ao sagrado está presente em

contém essa arte poética, só nos resta conhecê-la, admirá-la e imitá-

todos os textos bíblicos, do Gênesis ao Apocalipse. Alguns livros a

-la. Sendo assim, o cristão pode e deve participar de concursos como

têm, por excelência, como Levíticos, Deuteronômio e Salmos. Dentre

os de poesia, dança, música, teatro, matemática, redação e cinema.

os Evangelhos, quem mais traz cânticos e poemas é o de São Lucas, especialmente os dois primeiros capítulos. Mas o Apocalipse não

PODERIA EXISTIR UMA ARTE CRISTÃ?

deixa nada a desejar. Há muitos cânticos: dos animais, dos anciãos, de

qual a pintura e escultura de Michelangelo, a música de Bach, ou a

Moisés, do Cordeiro. Além das figuras metafóricas que formam uma

literatura de Kierkegaard, Tolstói e C. S. Lewis. Mas essa arte seria,

beleza à parte. Apocalipse é liturgia e beleza por excelência.

via de regra, diferente da arte engajada, ou politicamente correta. A

Em certa medida, sim, tal

arte cristã seria aquela que partiria da ideia do Deus

RECOMENDAÇÕES DIVINAS

O Primeiro Testamento contém

criador e Senhor de todas as coisas: do qual tudo

instruções de Deus para confeccionar a Arca da Aliança, o Ta-

procede, para quem tudo converge e para quem

bernáculo, o Templo e as vestes dos sacerdotes. A Arca deveria

tudo retorna. Seria uma arte com pé e

ser ornamentada com querubins; o Templo deveria ter pilastras desenhadas em madeira especial; o sacerdote deveria ter roupas com tecidos específicos, com as cores indicadas previamente, estolas coloridas com desenhos próprios. Deus mandou desenhar uma romã azul na sobrepeliz do sacerdote (Êx 28.33). Acontece que não se conhece uma só romã azul em toda a criação, a não ser na arte da pintura. Deus mandou escolher os melhores artesãos, alfaiates, pintores, escultores, pedreiros, carpinteiros e ourives para trabalhar nas obras do templo e da liturgia. Por que Ele não deixou que o culto acontecesse de qualquer jeito, com qualquer roupa, em qualquer construção e com qualquer tipo de arquitetura? É porque tudo tem uma finalidade. As cores, os lugares e os formatos já dão um indicativo do que se espera dos adoradores de relaxadamente” (Jr 48.10). O Apóstolo Paulo recomenda: “Fazei tudo

com cabeça, conforme o dito popu-

com ordem e decência” (1Co 14.40). Quase que escutamos a sua voz

lar, ou seja, uma arte teleológica, com direção

a nos dizer: “Façam tudo com esmero e beleza”. Você duvida disso?

de começo, meio e fim. Nessa arte, o artista (fator que

Pois veja o que diz o salmista: “Adorai ao Senhor na beleza da Sua

não temos condição de abordar aqui), precisaria ter uma compreen-

santidade” (Sl 29.2; 96.9; 1Cr 16.29). Cultuar com beleza!

são geral da história. Ter uma cosmovisão cristã, com noção da crítica que esta faz e recebe ao mesmo tempo. Ser uma pessoa consciente

QUAIS OS LIMITES DA ARTE? Então quer dizer que Deus admite a

e firme nos conceitos bíblico-teológicos, porém, admitindo, com

beleza somente quando nos prestamos a adorá-lo, em ato de culto?

sinceridade e coerência, as demais cosmovisões. Em outras palavras,

De forma alguma. A beleza deve ser a moldura e a justa medida das

uma pessoa dialogável e sensível para com as dores, dilemas, prazeres

nossas relações pessoais. Ética e Estética deveriam andar de mãos

e angústias do mundo em que vivemos. Um artista de sua geração,

dadas. Há de haver bondade no belo. Há de haver beleza no bem.

falando de modo relevante aos seus contemporâneos.

p­ — 18

a criação de adão, de michelangelo

Deus. O profeta Jeremias diz: “Maldito aquele que faz a obra do Senhor


DA ARTE COMO PRINCÍPIO DE CIVILIDADE Se a arte acredita que

nosso modelo ideal. Nem o proposto pela Arte e muito menos

um novo mundo é possível, muito mais ainda acredita o cris-

o proposto pelo Evangelho. Não nos conformamos. Queremos

tianismo. Cremos que a partir da mensagem do Evangelho de

transformar. Ou seja, transpor este formato e ir além do que

Cristo, seja possível um mundo de beleza e bondade em todos

está formado. Que tal juntar as nossas forças e trabalharmos

os âmbitos. Se a arte procura fazer isso através da Estética, nós

juntos na construção de um mundo de bondade e beleza? Era

pregamos isso exatamente através do Evangelho. Este nos faz

neste sentido que falava o Bispo Anglicano, Dom Robinson Ca-

ver o mundo e a vida por um novo ângulo, uma nova ética, uma

valcanti, na fórmula de co-beligerância que aprendera de Francis

nova estética. Paul Tillich, o teólogo da cultura, via no Evangelho

Schaeffer. Isso quer dizer que podemos ter cosmovisões dife-

uma possibilidade de diálogo entre teologia e cultura, sendo o

rentes, mas lutarmos numa frente unificada quando se trata de

teólogo o mediador desse encontro.

erradicar as causas da fome, da guerra e do desmatamento, que

Assim posto, não entendemos por que teólogos e artistas, gente de apurada sensibilidade, possam se estranhar e se agredir mutuamente. Para quem servirá a proposta de mundo belo que tanto pregamos, se dela nos excluímos

mutuamente?

Qual o modelo de tolerância que cristãos e artistas ensinamos aos nossos filhos e filhas quando amaldiçoamos uns aos outros e nos encastelamos em nossas fortalezas intransponíveis que chamamos de templos

deixam este

ou teatros? Até agora só paramos para ouvir, e ouvir muito mal,

mundo tão feio e tão

as acusações que fazemos uns aos outros. Só estamos dispostos

ruim. Porém devemos juntar nossas

a falar apenas o que queremos ensinar ao outro. Que tal parar e

forças não apenas para combater o mal, mas também para

sentar para ouvir o que o outro tem a dizer, na possibilidade de

promover o bem, com ações propositivas. É aí que o Cristia-

aprender alguma lição com o outro? Podemos?

nismo pode se encontrar e dialogar com as religiões, com a Filosofia e com as artes. Seria possível a construção de um

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS Queremos construir um mundo

mundo bom e bonito? Que tal começar por nós? É possível? Já

bom e bonito, pois o mundo que está posto não corresponde ao

tentamos? Quantas vezes?

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pergunta

TREMA! 3/4

HEYOKAH p­ — 20


“SIM E, MUITAS VEZES, É ALI QUE A RELIGIÃO ACONTECE! AFINAL, HÁ QUEM CONSIDERE E HONRE A SACRALIDADE DO TEATRO. O ATOR, POR VEZES, É O SACERDOTE, É O XAMÃ, O HEYOKAH E O PRÓPRIO MÁRTIR. A PREGAÇÃO NO TEATRO ÀS VEZES SE CONFIGURA DE UMA FORMA OPOSTA ÀS NORMOSES, AO PUDOR E À RELIGIÃO. TALVEZ SEJA UM DOS ÚLTIMOS ESPAÇOS SAGRADOS EXISTENTES NA SOCIEDADE, QUE CRIA RELIGIOSIDADE DESTRUINDO A RELIGIÃO. MAS EU NÃO

KKKK" COMPARO O ATOR AO PASTOR POR RESPEITO AO TEATRO

@Felipe Arche — Via Instagram

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ARTIGO

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“Pois Deus é o rei de toda a terra; cantem louvores com harmonia e arte.”

ERIKA MUNIZ erikamunizcp@gmail.com

M

uitas igrejas e mesmo cristãos vêm utilizando o teatro como forma de evangelização há pelo menos duas décadas no Brasil, com a chegada dos ministérios teatrais, que explicaremos mais à frente. Porém, os diálogos entre as instituições eclesiásticas em ascensão e as diversas linguagens artísticas foram

comuns e irresistíveis às ideologias hegemônicas em diferentes períodos da história. Não só no Ocidente, que para nós, herdeiros de gregos, latinos e do cristianismo em looping, é bastante familiar, mas também em manifestações orientais, a exemplo dos monumentos arquitetônicos oriundos da arte bizantina ou do gigantesco Templo do Céu, monumento taoísta situado em Pequim. As representações artísticas materiais, neste caso, servem para relembrar que arte e religião (e política) interagem, sem ser exclusividade do nosso tempo, tampouco de nossa esfera cultural, geográfica. Como bem explica, no livro Cultura e imperialismo (2005), o autor palestino Edward Said, a batalha no mundo colonial envolve muito mais do que armas e exércitos, mas “ideias, formas, imagens e representações”. A chegada dos colonizadores no território brasileiro, como foi de praxe nos diversos processos de colonização, trouxe suas concepções culturais e seus olhares de estranhamento diante dos que até então eram os únicos habitantes da terra brasilis. Um dos primeiros registros do jesuíta Manoel da Nóbrega ilustra bem isso sobre os povos Tupinambás: “Muito belicosos, muito amigos de novidades, demasiadamente luxuriosos, grandes caçadores e pescadores, e amigos das lavouras”. Era o olhar de exotização, o diferente para com o novo. As diferentes etnias indígenas foram submetidas ao trabalho e convertidas ao cristianismo e aos valores da Colônia pelo labor jesuíta de aculturação. Entre os textos que eram difundidos, além da Bíblia, os dramáticos eram bastante presentes. Uma figura da Companhia de Jesus marcante para quando se retoma e procura entender essa gênese, ou seja, as estruturas dos primeiros séculos no país, é, sem dúvida, José de Anchieta. “Ele era um assessor direto do [Padre Manoel da] Nóbrega. Ele tinha sangue judeu, estudou em Coimbra, apesar de ter nascido em território espanhol. Ficou estudando em Portugal e veio para o Brasil muito jovem com 18 ou 19 anos. No período de início da colonização, século XVI, investiu nos autos de fé, estilo de escrita teatral vindo de uma tradição medieval e apresentados tanto em cerimônias religiosas, quanto em políticas”, afirma o historiador sergipano Robson Luiz Lima Santos, que pesquisa a obra do autor jesuíta. Através de seus textos, muitos com cunho

religioso — e também político, pois os

jesuítas participaram ativamente do

processo de colonização propagando

tanto os valores católicos quanto os

da coroa portuguesa —, que Anchieta

ia envolvendo cada vez mais seus

seguidores. É importante pontuar

que nenhum processo colonizador se

dá de modo pacífico, faz parte dele a

aculturação, em suas várias manifes-

tações de violência.

“Era um teatro didático. Nos aldeões, catequizavam os indígenas, ou seja, doutrinavam ao catolicismo. Negavam tudo o que fazia parte da realidade dos indígenas. Por exemplo, a figura do pajé, que é uma referência religiosa, os jesuítas negavam, diziam que não era autêntico, não era um filho de Deus. Diziam que eles eram diabólicos por causa do contato com o transcendental. As mulheres idosas que são referências culturais e educadoras da tradição oral também acabavam sendo negadas, a figura feminina para os jesuítas deveria ser Maria”, explica Robson. Esse processo de silenciamento — e extermínio — das manifestações dos indígenas e das religiões de matriz africana segue no Brasil até hoje, quase 500 anos depois. Mas em que difere, além dos quase cinco séculos de história, a finalidade — se é que arte tem algum fim — do teatro de José de Anchieta e o do contemporâneo José Celso Martinez Correa, por exemplo? É um hiato que surge quando se percebe a força que as representações artísticas têm. “A finalidade de José de Anchieta era a catequese religiosa. Partindo desse ponto de vista de usar o teatro para levar os outros a entenderem os objetivos do artista é, sim, muito parecida. O José Celso também quer levar o espectador ao ponto de vista dele. Por exemplo, teve uma época em que ele convidava os espectadores a entrarem no palco, naquela passarela, e tirarem as roupas e fazerem o que os atores estavam fazendo. Então, é uma catequese também. Um é uma catequese cristã, o outro é uma catequese do ponto de vista do teatro dele”, afirma Carmelinda Guimarães, jornalista, crítica de teatro e doutora em Teatro pela Universidade de São Paulo (USP). Para trazer para uma perspectiva mais atual e ilustrar como a Igreja Católica percebe essa proximidade entre arte e evangelização, eis um fragmento do capítulo Entre Evangelho e arte, uma aliança profunda, da publicação Carta aos artistas, divulgada pelo Papa João Paulo II, no dia 4 de abril de 1999: “Toda a forma autêntica de arte é, a seu modo, um caminho de acesso à realidade mais profunda do homem e do mundo. E, como tal, TREMA!_evangelização

p­ — 23

Sl 47.7


ARTIGO constitui um meio muito válido de aproximação ao horizonte da

veem o que você faz como se você estivesse querendo co-

fé, onde a existência humana encontra a sua plena interpretação”.

locar aquilo no mundo. Como se aquilo fosse uma coisa que

Por outro lado, em entrevista à revista Continente, em

você defende. Aí, vem um pouco essa sensação de ‘Esse cara

2017, o dramaturgo e pesquisador Alexandre Dal Farra (res-

quer que isso aconteça’ e, na verdade, é o contrário. Isso já

ponsável pela dramaturgia de Altíssimo, uma parceria com

acontece. Quero justamente que isso não aconteça. O palco

Pedro Vilela), chamou atenção para a formação do público

é justamente o lugar onde isso pode acontecer pra que não

brasileiro a partir do caráter didático de textos como os de

aconteça no mundo”, discorre ao longo da entrevista.

Anchieta, ainda entranhado na percepção de nossas plateias

Se com relação aos séculos iniciais da formação brasi-

em relação ao teatro. Ele que já foi bastante criticado por

leira fala-se em teatro voltado para a catequese, hoje em dia

levar para a cena não o que “deveria acontecer”, mas o que, a

diversas companhias do país — ou ministérios teatrais, como

seu ver, só deveria existir no palco, mas acontece no mundo

muitos deles se intitulam — falam em teatro como alternativa

real. “Pra mim, o palco é como um lugar que quer expiar. Não

de evangelização e propagação dos valores cristãos.

quer colocar coisas no mundo, quer tirar coisas do mundo. Eu

Entre esses “ministérios”, atualmente em circulação está

sinto que, no Brasil, a gente tem uma tendência histórica de

a Cia. Reconstrução de Teatro Gospel, vinculado à Igreja Pres-

um ‘teatro de pregação’, que vem desde o Anchieta. Um teatro

biteriana de Rio Doce (Olinda, PE), com mais de 30 espetáculos

construtivo, um teatro que quer ensinar. As pessoas sempre

na bagagem. As apresentações já aconteceram para além de

o rei de cegalha, 2017 – 27 anos da cia. reconstrução — foto: divulgação

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igrejas, como também em ruas, presídios, instituições de tra-

interdenomenacional, ou seja, sem vínculo a nenhuma igreja em

tamento, hospitais, entre outros. O diretor e fundador Josué

específico, mas há 10 anos foram abraçados pela Presbiteriana

Meneses conta que o grupo está em circulação há 27 anos e

de Rio Doce, onde ensaiam e montam as atividades. “Muitas

explica como o título de ministério acabou sendo incorpora-

igrejas não aceitavam que houvesse evangelismo a partir do

do por eles e outras grupos de teatro cristão: “Desde o final

teatro, que se fizesse uma peça ou que houvesse exaltação à

da década de 1990, pelo menos para a gente, veio a visão de

igreja a partir de teatro. Muita gente não via com bons olhos.

‘rede ministerial’ das igrejas. Cada ministério tem um trabalho

Mas, hoje, a gente já observa uma mudança, elas já chamam a

voltado para determinada coisa. Tem o ministério de visitação,

gente para apresentar as peças, tanto nas tradicionais, quanto

o ministério de evangelismo nos presídios e o do teatro. A

nas neopentecostais”, explica Josué em entrevista à TREMA!.

gente chama de ministério cada braço de trabalho dentro das

Algumas das últimas apresentações, inclusive, foram na Igreja

igrejas. O que antes se falava em departamento ou sociedade

do Nazareno e na Assembleia de Deus, que são “bem rígidas”.

doméstica passou a se chamar de ministério”.

Segundo o diretor, a intenção das apresentações é evange-

No ano de 1990, quando Josué iniciou as atividades da Cia.

lizar e exaltar a igreja. Por evangelizar, é imprescindível explicar

Reconstrução, ainda havia muita resistência das igrejas e existiam

que o diretor compreende como “mostrar que Cristo é o senhor

pouquíssimos grupos de teatro cristão em Pernambuco. Por

e que ele salva. Essa é a ideia sobre o aspecto espiritual. Mas

conta da forte relutância, eles começaram com uma perspectiva

ele salva também da maneira social, por exemplo, quando uma

TREMA!_evangelização

p­ — 25


ARTIGO

o homem que escuta, em gaibu — foto: divulgação

o rei de cegalha, cia. despertai (sc) — foto: divulgação

pessoa que usa drogas assiste uma peça, ela se toca que precisa mudar, precisa sair daquele ambiente de drogas e, independente se ele foi salvo espiritualmente ou não, se converteu que não cabe a gente julgar, mas houve uma salvação social”. Ou seja, através das encenações, o espectador tomaria a consciência de que precisa se relacionar com Cristo através da Igreja. Uma das características do grupo olindense é fugir da abordagem tradicional das peças apresentadas nas igrejas cristãs, não trazendo encenações de episódios bíblicos em si, mas os adaptando a uma leitura contemporânea. “Tem muitos grupos que, por exemplo, reproduzem histórias de personagens da Bíblia, como Jonas, Davi, Daniel, Nabucodonosor, ou outros. A gente sai disso e trabalha com uma contextualização da vida urbana atual e das coisas do dia a dia, dentro da realidade que você convive, que eu convivo. A gente contextualiza a palavra de Deus dentro da ética, da moral, daquilo que se quer atingir e, claro, colocando, Cristo no centro”, complementa Josué. Um exemplo é quando encenaram a peça Bartimeu (1998), na Bíblia um personagem cego, mas na versão do grupo olindense a cegueira foi apresentada de maneira simbólica, pois Bartimeu não conseguia “ver a atuação de Deus na vida dele. Só via as questões mundanas”. No momento em que ele passa a enxergar Jesus, tudo melhora. Mas por que evangelizar a partir do teatro e não de outros meios? “Acho que a gente fazendo isso faz uma espécie de abertura de falar para 20, 30, 40 pessoas. Se fosse no evangelismo tradicional de porta em porta, teria que ser de um a um. Nada contra, mas não me sinto atraído a fazer. A gente também tem uma versatilidade de diferentes tipos de pessoas que pode alcançar numa única apresentação. Os não cristãos assistem muito teatro, eles se interessam”, explica Josué. Na Cia. Despertai, com sede em Caçador (SC), a perspectiva de evangelizar através do teatro também está posta como objetivo desde o início, em 2013. Ao todo, o grupo coleciona 48 espetáculos diferentes. No começo, com o foco no teatro cristão para o público infantil, os diretores e fundadores Carolayne e Wellighton perceberam a necessidade de fazer apresentações para adultos e evangelização nos semáforos. Atualmente, a companhia conta com 13 integrantes que fazem uso de recursos cênicos como maquiagem facial, máscaras (quando a narrativa demanda) e efeitos sonoros. Por conta da força e carga dramática das apresentações, algumas peças demandam uma faixa etária. “Todos podem, só o que a gente exige que a idade seja acima de 13 anos porque, às vezes, a peça é muito forte e as crianças acabam chorando. Forte, no sentido de representar para igreja os demônios e como que está o mundo hoje. A vida espiritual da gente nem sempre está bem, então pode ser que tenha algo rondando por ali. O demônio não se aquieta”, explica Carolayne. Entre os espetáculos mais marcantes da Cia. Despertai, a autora afirma que foi um sem título apresentado com o intuito de demonstrar que “Jesus ama as pessoas” nos semáforos. Na encenação, o personagem de Jesus carrega a cruz em cima da faixa de pedestre como forma de evangelismo aos passantes. “É O arrebatamento, que é a volta de Jesus. Esse precisou da retirada das crianças porque choravam no começo, por conta dos raios e trovões. Mas, para as crianças, em uma delas a gente pegou um cano de PVC e fez um foguete. Foi uma forma de evangelização para elas entenderem que não é subindo escada nem foguete que a gente vai para o céu”, explica a autora catarinense. Na perspectiva ministerial, assim como a música, o teatro é uma das formas de participação dos cristãos nas atividades da instituição. Para garantir a participação de mais fiéis que não têm corap­ — 26


rute – o ballet, o nome do segundo dvd da cia. rhema (go)— foto: divulgação

gem, Carolayne sugere o uso de máscaras ou pinturas nos rostos: “Tinha uma moça na igreja que não participava de nada porque tinha muita vergonha. Então, eu decidi pintar o rosto dela e pintei bem forte nos primeiros dias, e quando foi ao longo dos espetáculos, foi diminuindo a pintura e ela foi perdendo a vergonha”. Os aplausos e a evangelização são motivos de orgulho e de recompensa de Deus através do teatro da Despertai, segundo a diretora. “É bastante difícil manter porque, às vezes, você fica dia e noite montando peça. Às vezes, Deus dá a peça para a gente e eu acordo aqui e já vou escrevendo. É suado, mas a gente corre atrás. Você chega no final e o teatro salvou cinco almas, salvou duas, as pessoas se entregam para Deus. Todo mundo ora depois de representar. É uma coisa muito bonita porque Deus recompensa. Quando uma pessoa pede para participar da equipe também fico muito feliz”, afirma. A Cia. Rhema (GO), por sua vez, tem uma trajetória de 26 anos e traz além do teatro, a dança para promover a valorização da vida humana. O grupo tem uma página na web bem consistente e diversos vídeos dos espetáculos no Youtube. A Rhema desenvolve ações artísticas em diferentes Igrejas, casas de ressocialização, ONGs entre outros e já viajou todo território nacional, além de nove países com o teatro e a dança. Sua missão é “contribuir para a edificação e expansão do Reino de Deus na Terra através das Artes, comunicando o evangelho a todas as nações, formando e influenciando artistas Cristãos para viverem a mesma missão em seus próprios ministérios”. Para isso, promovem seminários voltados para o cotidiano da Rhema, além de escolas teatrais — mas só para membros vinculados a alguma igreja evangélica. Das mudanças ao longo dos anos de atividade do grupo, a diretora, atriz e professora de Artes Cênicas Débora Aleixo percebe o amadurecimento artístico da equipe e, como também foi atentado por Josué anteriormente, a maior aceitação entre as diversas igrejas. “O que mudou de lá pra cá foi a maturidade dos elencos, no sentido de nos profissionalizarmos, estudarmos e aperfeiçoarmos a nossa técnica para atender a desafios cada vez maiores”, diz. “A visão de ter Cristo no centro não mudou, mas hoje podemos considerar que temos artistas bem mais preparados do que há 26 anos. Outra coisa que mudou foi o crescimento e a aceitação da arte nos púlpitos das igrejas, acreditamos que tivemos uma grande contribuição para isso, hoje existem inúmeros grupos de dança e teatro nas igrejas e que fazem trabalhos de muita qualidade, coisa que a duas, três décadas atrás era impensável.” Para o trabalho mais recente intitulado Nabuco, que estreou em abril, o grupo fez uma pesquisa sobre a cultura interiorana de Goiás e de outros estados do Brasil, além de trazer temas considerados tabus ainda em muitas igrejas. “Nabuco explora, em suas cenas, questões de coronelismo, machismo, racismo, intolerância, ditadura, pobreza e toda dominação que o povoado de Cocorobó, onde se situa o texto, enfrenta com a administração de um novo prefeito que toma o poder a força. Essas questões e realidades representadas pretendem levar o público a refletir sobre suas próprias condições e chamar atenção à necessidade de lucidez e respeito nas relações”, explica Débora. Eis alguns exemplos de ministérios de teatro pelo Brasil e, como podemos ver na atualidade, a relação entre arte e religião não se findou nos primeiros séculos do Brasil, ela permanece e se renova trazendo outras temáticas, outras formas de propagação de discursos e outras maneiras de divulgação com as redes sociais. Para quem tiver, na web é possível encontrar diversos textos teatrais com fins de evangelização. TREMA!_evangelização

p­ — 27


pergunta

TREMA! 2/4

@Mateus Araújo — Via Facebook

“ACHO QUE NÃO, PORQUE PREGAR É FAZER ALGUÉM SENTIR ALGO E ACHO QUE O TEATRO PÓS-DRAMÁTICO NÃO NECESSARIAMENTE QUER QUE SE SINTA ALGO; QUER QUE SE VIVA OU EXPERIMENTE, NAQUELE LUGAR OU MOMENTO, ALGO. O ESTAR ALI, AGORA. NÃO É NARRATIVO, NÃO QUER CONTAR NADA. E EU POSSO PASSAR DESAPERCEBIDO DE QUALQUER SENTIMENTO OU CONTÁGIO DAQUELA ‘MENSAGEM’, O QUE IMPORTA ALI É A RELAÇÃO DO MOMENTO.”


p­ — 29


PERFIL

josé pimentel — foto: bernardo dantas/d.p./ d.a. press

p­ — 30


CLEODON COELHO cleodoncoelho@hotmail.com

N

a noite de lançamento da biografia José Pimentel — Para além das Paixões, à qual me dediquei nos últimos dois anos, duas crianças pararam em

frente ao homenageado e ficaram admiradas, como se estivessem diante do verdadeiro Nazareno. Dois dos meus sobrinhos-netos, Gabriel e Henrique (de sete e cinco anos, respectivamente), misturaram ator e personagem, como tantos já fizeram pelas últimas quatro décadas. De cabelos compridos e barba, aos 83

JOSÉ PIME NTEL

um ateu sempre pronto a ressucitar

anos José Pimentel mantém o visual que se convencionou associar ao Salvador. Ainda que a Bíblia não descreva a aparência de Jesus Cristo, essa representação atravessa os séculos, seja em pinturas, filmes ou encenações. Se seu cabelo era curto ou cacheado, os olhos verdes ou castanhos, se barbudo, bigodudo ou com o rosto liso, negro ou branco, dificilmente saberemos ao certo. Nascido em Garanhuns, interior de Pernambuco, José Pimentel foi criado dentro da religião católica. Mas avisa: nunca foi de frequentar igreja. É, pasme, praticamente um ateu. Só se lembra de rezar quando está dentro de um avião. E, nessas horas, apela para todas as orações, do Pai nosso ao Credo, da Ave Maria ao TREMA!_evangelização

p­ — 31


PERFIL

josé pimentel na época de fisioculturista — foto: acervo cleodon

josé pimentel com aurora duarte em riacho do sangue — foto: acervo cleodon

Santo anjo. Heloísa, uma de suas irmãs, foi uma respeitada Ialorixá

como soldado romano, ele repetiu, no vilarejo, os papéis que já

e manteve, por muitos anos, um terreiro bem ao lado da casa de

havia experimentado nos palcos do Recife: Pilatos e o demônio.

dona Florentina, mãe dos dois, no bairro do Arruda, no Recife. “Ela só

“Passei minha infância pulando de cidade em cidade, pois meu

pedia o bem. Certa vez, uma mulher apareceu por lá pedindo para

pai era muito brigão. Qualquer confusão que ele arrumava, era

desmanchar um casamento e minha irmã a colocou para correr”,

motivo para a família se mudar. Uma de nossas paradas foi em

conta. Apesar da admiração pelos rituais, também não aderiu ao

Fazenda Nova, onde eu vi um eclipse. Foi uma sensação indescri-

espiritismo. “Recebi alguns passes, fui a muitas festas, e só.”

tível, parecia o fim do mundo. Aquele lugar acabou ganhando um

Ao contrário do que muitos acreditam, Pimentel não passou

significado especial para mim”, relembra Pimentel.

a vida interpretando Jesus. Sua experiência nos palcos começou

E assim, da segunda metade dos anos 1950 até meados da

por acaso, nos idos de 1956. Halterofilista, ele foi convidado para

década de 1990, esse percurso se tornou sagrado para o ator. Em

mostrar seus músculos em vestes de soldado romano na encena-

seus primeiros anos, o espetáculo era apresentado ao longo de três

ção de O drama do Calvário, embrião d’A Paixão de Cristo, nas ruas

dias. Em 1961, o ator recebeu uma encomenda de Plínio Pacheco,

do vilarejo de Fazenda Nova (PE). A iniciativa era de um empresário

jornalista gaúcho que, àquela altura, havia se casado com Diva, uma

e político influente da região, seu Epaminondas Mendonça, que

das filhas de seu Epaminondas, e estava à frente do espetáculo. O

criou o espetáculo para movimentar seus negócios.

casal procurava um novo texto, que contasse toda a saga de Cristo

Foi o amigo Octávio Catanho, o Tibi, quem o convocou para a

em um só dia.

missão. “Não gostava de teatro. Tinha feito umas peças no colégio

Aluno de português de Ariano Suassuna em um curso

e fiquei traumatizado. Mas ele sempre teve um poder de conven-

profissionalizante, Pimentel se lembrou de seus ensinamen-

cimento danado. Falou: ‘Vamos lá, a gente se diverte, namora umas

tos e encarou a tarefa. O resultado foi Jesus, mártir do Calvário,

meninas’. E eu acabei indo.”

em três atos. Durante dois anos, os atores defenderam suas

Depois de estrear como figurante, com sainha curta — como fi-

palavras. Ele próprio continuou dando vida a Pilatos. Mas,

siculturista, chegou a ganhar o prêmio de “melhor perna” —, ele logo

após a temporada de 1962, a encenação foi suspensa, para

foi chamado pelo mesmo Tibi para participar de outra montagem

só reaparecer no final daquela década, com texto do próprio

sobre a vida de Jesus, dessa vez com o Grupo Dramático Paroquial

Plínio, idealizador da cidade-teatro erguida sob o nome de

de Água Fria (GDPA). Ganhou o papel de Pôncio Pilatos. Na nova

Nova Jerusalém.

montagem, o governador da Judeia tinha muitas falas. A voz firme de Pimentel chamou atenção. E convenceu. Não parou mais.

Dentro das muralhas, José Pimentel viveu momentos importantes de sua história. Com a ida do diretor Clênio Wanderley para

Entre as glórias de seus primeiros anos de carreira, está a

a Europa, assumiu a função. Ao longo dos anos, implementou a

participação na montagem original de A compadecida, de Ariano

dublagem, pois via seus colegas perderem a voz, encenando quase

Suassuna, que depois virou O auto da compadecida. Um de seus

aos gritos para aquela imensidão. Também agitou a cena do Ba-

papéis era o do Encourado. Ele mesmo, o Diabo. Cristo só apareceria

canal de Herodes com participações de figuras como o polêmico

em sua vida quase 20 anos depois.

Carlos Imperial, o cantor Erasmo Carlos e o costureiro Dener.

O caminho para Fazenda Nova, no entanto, passou a ser

Em 1978, com a saída de Carlos Reis, José Pimentel finalmente

feito religiosamente em toda Semana Santa. Depois da estreia

encontrou Jesus. Estava com 44 anos. A suposta inadequação da

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josé pimentel ressuscitando como jesus na paixão de cristo do recife, 2013 — foto: andréa rêgo barros/pcr

idade, como se pode perceber, já vinha de longe. Cristo, é sabido,

vidas se cruzavam. Para ele, mesmo que inconscientemente,

morreu aos 33. Alheio aos comentários maldosos desde sempre,

aquela era a maneira encontrada para quebrar a imagem sacra.

ele encenou a Via Crúcis em Nova Jerusalém até 1996, quando

Apesar de, nos últimos 40 anos, a vida de Pimentel se

— após a última apresentação da temporada — foi comunicado

confundir com a figura de Jesus Cristo, o ator não gosta de

de que não fazia mais parte do espetáculo. Sem aviso prévio.

personificar a figura do Salvador. Sempre que percebia alguém

O galã Fábio Assunção, então estrela da novela O rei do gado, o

em busca de uma benção ou coisa parecida, deixava logo claro

substituiria, inaugurando a era do Jesus Cristo superstar.

que o personagem não era ele. “Eu poderia ter entrado em

Até hoje, esse é um assunto delicado na vida do ator pernambucano, que nunca digeriu direito o episódio. Parecia

alguma viagem e misturado as coisas. Mas acho que, até por me considerar ateu, sempre consegui separar”, garante.

coisa de Judas. Mas ele não cruzou os braços. No ano seguinte,

Em 2017, depois de enfrentar a Semana Santa sem a mesma

o Estádio do Arruda viu nascer A Paixão de Cristo do Recife. Boa

força e o fôlego das temporadas anteriores, José Pimentel

parte dos atores locais aderiu ao que, a princípio, parecia um

anunciou sua aposentadoria. Mas quem convive com ele de perto,

devaneio. E o público comprou o sonho. Depois de alguns anos,

ainda duvida de que isso irá realmente acontecer. O substituto já

a montagem aportou no Marco Zero, onde permanece até hoje,

foi escolhido: é o potiguar Hemerson Moura. Mas o veterano, que

com exibições gratuitas.

já criou épicos como Batalha dos Guararapes e O Calvário de Frei

Não sei ao certo, mas a primeira vez que vi A Paixão de Cristo em Nova Jerusalém foi entre 1978 e 1979. Ou seja, nos primeiros

Caneca, pode muito bem criar um diálogo entre o seu Cristo e o de Hemerson. Ou mesmo inventar um novo personagem.

anos de Pimentel no papel que marcou sua vida. As lembranças

Talvez pelas palavras sagradas que repetiu ao longo dessas

são confusas: a longa viagem de carro, o susto com toda aquela

décadas, Pimentel acha que se tornou uma pessoa melhor.

dimensão da cidade-teatro, o cansaço da maratona. Mas a visão

“Apesar de não acreditar muito em religião, Jesus dizia coisas

do Cristo ressuscitando é, até hoje, inesquecível.

muito bonitas, que mexem com as pessoas”, argumenta. Assim

Pouco mais de dez anos depois, já como estudante de

como ninguém nunca descobriu qual a verdadeira face do

jornalismo da UFPE, virei aluno do ator. A cadeira: Produção gráfica.

Nazareno, o mistério em torno da obsessão do ator pelo papel

Irreverente, Pimentel passava boa parte de sua aula falando

que marcou sua trajetória permanece. Será que, depois de tantos

sobre as próprias hemorroidas. Só fui entender o motivo para um

e tantos anos, ele vai encontrar o que fazer durante a Semana

assunto tão pessoal ser discutido em público quando comecei a

Santa? Ou é a chance de poder ressuscitar tantas vezes que

entrevistá-lo para o livro, no terceiro momento em que nossas

justifica esse apego?

TREMA!_evangelização

#E VA NGE L IZAÇÃO L E IT URA V I SUAL Wagner p­ —Bárbara 33


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TREMA!_evangelização

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pergunta

TREMA! 4/4

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@Adriano Abreu — Via Facebook

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TREMA!_evangelização

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CRÍTICA

#EVA NG E Lp­I ZAÇÃO — 40 L E I TU R A V I SUAL Bárbara Wagner

espetáculo altíssimo — foto: danilo galvão


“Este simples morar da aparência na ausência de segredo é o seu tremor especial — a nudez, que, como uma voz clara, nada significa e, precisamente por isso, nos trespassa.” Giorgio Agamben

A

ltíssimo é o primeiro espetáculo da Trema! Plataforma de Teatro, núcleo desenvolvedor das artes

cênicas sediado no Recife. Temos, em cena, o resultado de uma parceria investigativa do ator e encenador per-

UM TEATRO DO CRIME, OU UM CRIME DE TEATRO

nambucano Pedro Vilela com o dramaturgo paulista Alexandre Dal Farra. O texto apresenta as tensões performativas no processo de espetacularização nas religiões neopentecostais e seu íntimo diálogo com o comércio sobre a fé em nosso país.

Assistindo ao espetáculo dentro da programação do 19º Festival Recife do Teatro Nacional, em 2017, fiz uma conexão direta com o artigo Ao modo de fábula (Fabel-Haft), de Hans-Thies Lehmann, que se tornou conhecido no Brasil a partir da tradução e divulgação de seu livro O teatro

pós-dramático, escrito em 1999 e lançado no mercado editorial brasileiro em 2007. Partindo da superação histórica da forma do drama, Lehmann discute, na obra, o advento de modalidades contemporâneas de criação teatral baseadas em outros parâmetros que não os do texto e os da ação cênica simbólica e mimética. Escritura política no texto teatral, lançado no Brasil em 2009, é o resultado dessa compilação, tendo sido publicado originalmente em 2002, com o título Das politische Schreiben. Essays zu Theatertexten. Apesar da indicação do título em português, com referência direta ao estudo da escritura, não é apenas de textos dramatúrgicos que tratam os ensaios, mas também de concepções cênicas e de seus desdobramentos.

UMA OUTRA CENA POLÍTICA Lehmann (2009) é bastante claro e assertivo ao declarar, logo no início do livro, sua descrença na possibilidade de o teatro atuar como elemento para a formação política. A afirmação abre caminho para a principal baliza conceitual do livro: para o autor, aquilo que é político só pode aparecer como tal de modo oblíquo, ou seja, interrompen-

WELLINGTON JÚNIOR maschera.w@gmail.com

TREMA!_evangelização

p­ — 41


CRÍTICA do a explicitude do conteúdo extraído da realidade sociopolítica re-

Mateus,10, Conversa com meu pai, Teorema 21, O filho) apresentam

ferenciada. O livro é dividido em cinco grandes partes: Interrupção,

uma escritura teatral que redimensiona a estrutura fabular e sua

Representabilidade, Drama, O outro Brecht, Estudos sobre Heiner Muller.

relação com o gesto. Esses textos realizam desvios fabulares e im-

O artigo Ao modo de fábula (Fabel-Haft) está na parte em que o autor

põem uma cena gestual que fricciona o real.

trata das novas significações da obra de Bertolt Brecht. Esse Outro

Na dramaturgia de Altíssimo, os fragmentos vão resignifi-

Brecht, para Lehmann, tem como motivo central de seu trabalho a

cando o gesto — como na cena abaixo em que o ato de encontro

morte, o frio, o desaparecimento e a solidão. É grande a exaustivi-

ganha novas dimensões:

dade dos expedientes argumentativos empregados e direcionados no sentido de diluir as fronteiras conceituais entre o teatro épico e

Nesse momento, se nós fôssemos capazes disso, se nós não estivés-

o pós-dramático, e de reforçar uma dimensão política latente neste

semos há muito tempo perdidos dentro das nossas autoglorifica-

para descaracterizar a efetividade politizante naquele.

ções mesquinhas, nós estaríamos terminando algo aqui, um tipo

O artigo Ao modo de fábula (Fabel-Haft), Lehmann inicia fazen-

de experiência comum, algo que teríamos vivido juntos, que envol-

do um mapeamento de criadores contemporâneos que vão ten-

veria, para nós, um tipo de sensação muito importante, talvez cru-

sionando esse lugar de uma narratividade performática (Wooster

cial, de que o nosso mundo é algo para nós, de que esse mundo é,

Groop, Jan Lauwers, Einar Schleff), ao mesmo tempo em que ele

de alguma forma, também nosso. De que a nossa vida em alguma

diferencia o Brecht teórico do Brecht poeta. Na segunda parte, já

medida nos pertence. Nós sairíamos daqui com a sensação de que

se coloca em um processo de desmontagem e montagem deste

a nossa vida não é simplesmente uma sucessão infinita de acasos

autor canônico do teatro político, Bertolt Brecht. Então, coloca a

sem absolutamente nenhum sentido, de que os nossos futuros são,

tensão entre o gesto e a fábula como um lugar de enfrentamento

de alguma forma, parte disso, da nossa existência. (2017, p.14)

no teatro deste importante autor teatral alemão. Lehmann imputa inicialmente a Brecht o desejo de salvar e

O texto (se) olha para os escombros de uma fissura social que ex-

preservar a fábula, e chega a designar o teatro brechtiano como the

trapola a lógica causal do processo fabular — assim os desvios vão

last minute rescue da tradição aristotélica. Para o teórico, a fábula não

se estabelecendo como um ato de olhar que implica o desejo de

apresenta a figura definitiva evidenciada pelo material gestual. Ao

ver. Esse processo dialético estabelece um jogo formal completa-

apontar a relação, não harmônica e assimétrica, de tensão existen-

mente entregue ao desejo de abrir-se ao outro.

te entre fábula e gesto, Lehmann faz a balança pender no sentido da des-epicização do teatro épico brechtiano, associando ao gesto,

POR UM OLHAR INTERMINÁVEL

fragmentação e concretude, e à fábula, abstração e totalidade.

Em Altíssimo, essa relação não harmônica e assimétrica de tensão

É sensível, da parte de Lehmann, o empenho analítico em

existente entre fábula e gesto se amplifica na excelente estrutura

associar o teatro brechtiano a uma racionalidade que, a seu ver, é

da encenação/atuação de Pedro Vilela, que opta por uma espa-

posta em risco pela performance poética e teatral latente nas peças.

cialização a partir de um desenho formal entre linhas e pontos. O

Ao mesmo tempo em que credita a Brecht uma opção fundamen-

artista visual Wassily Kandinsky analisando as conexões entre o

tal pelos princípios racionais da fabulação e da representação,

ponto e linha apresenta as seguintes conclusões:

Lehmann volta a apontar no trabalho do dramaturgo uma tendência contra a fixação, o que lhe permite afirmar que as teorias e textos

O elemento tempo é, em geral, mais perceptível na linha do que

brechtianos são fendas em aberto. E afirma nessa contradição:

no ponto — o comprimento corresponde a uma noção de duração. Ao contrário, seguir uma linha reta ou seguir uma curva

A partir da problemática fábula e gesto fica clara uma nova pers-

exige durações diferentes, mesmo que o comprimento das duas

pectiva, na qual as peças de Brecht podem ser consideradas como

seja idêntico (...) a linha oferece, quanto ao tempo, uma grande

fábulas simuladas. Elas usam a máscara de uma fabula docet,

diversidade de expressão. O conteúdo-tempo confere, também,

mas na verdade realizam um “como se” da doutrina fabulosa

diferentes colorações interiores à linha horizontal e à linha verti-

(e também parabólica) (…) Esta formulação deve ser entendida

cal mesmo o seu comprimento seja idêntico. (1997, p. 97)

em toda a sua força: justamente enquanto Brecht transforma as teses de racionalidade em dramaturgia gestual, a performance

Essa dimensão temporal dentro da espacialidade do espetáculo

poética e teatral, que deveria apoiar e reforçar a racionalidade

possibilita desvios/cisões que nos fazem perceber discursos po-

contribui para a sua queda (…) Os seus textos devem ser lidos,

líticos e estéticos em lugares de riscos — em outros domínios de

as suas partes devem ser desmontadas e juntadas novamente

um teatro político da cena contemporânea. Altíssimo se localiza

em outras posições. Deve ficar claro que até os seus textos tor-

em uma cena do Recife que está buscando friccionar políticas e

nados canônicos em pontos decisivos não tem configuração de

estéticas sem desejar respostas ou impor a forma do diálogo com

positivação, mas que se trata muito mais de figurações textuais.

o espectador. Essa produção da Trema! Plataforma de Teatro é um

(LEHMANN, 2009, p. 249-250)

respiro no excesso de presente, no excesso do real que constituem muitos dos trabalhos da cena contemporânea brasileira.

CENA E TEXTO – O QUE VEMOS O QUE NOS OLHA

O espetáculo de Alexandre Dal Farra/Pedro Vilela nos faz com-

Percebo, na cuidadosa dramaturgia de Alexandre Dal Farra, um an-

preender como a teatralidade é cúmplice do teatro político. Tanto

seio pelo enfrentamento político e estético como uma implosão

como meio e como crítica de si mesma. A encenação coloca um fan-

das fraturas sociais. Outros textos de Dal Farra (Trilogia Abnegação,

tasma teatral sobre as estruturas do real e propõe uma sombra/uma

p­ — 42


espetáculo altíssimo — foto: danilo galvão

névoa que nos obriga a um sempre olhar interminável. O crítico francês Bernard Dort nos revela essa relação entre a teatralidade e a política: É também sobre a experiência de uma distância que se fundamenta

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

o que chamamos de “teatro da teatralidade”. Esta vez a criação teatral não nasce mais dos fragmentos da realidade expostos no palco:

AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Belo Horizonte: Autêntica

ela utiliza, como material, as imagens que fazemos desta realida-

Editora, 2014.

de — literalmente nossas representações da realidade. Ela se apoia mais ainda no teatro. Não para descobrir uma verdade que seria a

DAL FARRA, Alexandre. Altíssimo. Texto cedido pela

da arte, oposta à da vida […], mas para submeter nossas representa-

produção do espetáculo. Recife, 2017.

ções do real à crítica desta mesma realidade (1977, p. 400). DORT, Bernard. O teatro e sua realidade. São Paulo: Nessa íntima tensão entre fábula e gestualidade, Altíssimo se re-

Perspectiva, 1977.

vigora em uma teatralidade que “ainda” pode ser interminável. A cena com sua escuridão, com suas sombras, se impõe sobre as

KANDINSKY, Wassliy. Ponto e linha sobre o plano. Tradução

luzes da vida, de um real que está mais para consolar do que para

de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1997

provocar o diálogo entre os silêncios do mundo. Como no texto do espetáculo, que nos mostra uma cena de queima de um dinhei-

LEHMANN, Hans-Thies. Escritura Política no Texto Teatral.

ro: “Vocês sabiam que queimar dinheiro é crime? Sim. Isso que eu

Ensaios sobre Sófocles, Shakespeare, Kleist, Büchner,

estou fazendo aqui agora é um crime”. (2017, p. 14)

Jahnn, Bataille, Brecht, Benjamin, Müller, Schleef. São

É um teatro do crime. Ou um crime de teatro. Não importa. O

Paulo: Perspectiva, 2009.

que realmente importa é o desvio do gesto fabular. TREMA!_evangelização

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EXPEDIENTE TREMA! revista de teatro EDIÇÃO DA evangelização ANO 3

#12

ABRIL 2018

COORDENAÇÃO TREMA! PLATAFORMA DE TEATRO Mariana Rusu e Pedro Vilela

CONSELHO EDITORIAL Mariana Rusu, Olívia Mindêlo, Pedro Vilela e Thiago Liberdade

EDIÇÃO Olívia Mindêlo

PROJETO GRÁFICO Thiago Liberdade

PROPONENTE DO PROJETO Mariana Rusu

COLABORADORES DA EDIÇÃO* Adriano Abreu, Bárbara Wagner, Cleodon Coelho, Erika Muniz, Felipe Arche, Fred Nascimento, Mateus Araújo, Maurício Amazonas e Wellington Júnior *As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

PLATAFORMA TREMA! tremarevista@gmail.com tremaplataforma@gmail.com facebook.com/tremaplataforma www.tremaplataforma.com.br +55 (81) 9 9203 0369 | (81) 9 9223 5988

Tiragem: 500 exemplares (por edição) Impresso pela Brascolor ISSN: 2446-886X

Edição da CENSURA | Nº #11 | Ano #3 | Recife, Março de 2018

Realização:

Incentivo:

A TREMA! Revista de Teatro de Grupo é uma publicação com incentivo do FUNCULTURA – Fundo de Incentivo a Cultura de Pernambuco.



ISSN: 2446-886X

1 Ato, movimento ou efeito de evangelizar, de pregar a palavra do Evangelho.

2 Ato, movimento ou efeito de divulgar qualquer conjunto de ideias.


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