TREMA! Revista - Edição da Política [14]

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TREMA! revista de teatro

EDIÇÃO DA política

ANO 4

#14

ABRIL 2019


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cartaz, feito por tereza bettinardi

ED ITO RI AL

nados através de uma convocatória aberta, o que trouxe riqueza e pluralidade de vozes às três edições e desafiou a equipe a costurar as ideias e propostas nas publicações. O resultado está nas páginas a seguir e nas duas últimas edições, que saem concomitantemente. A trilogia fala muito do nosso cenário político-cultural neste início de 2019. Abrimos esta edição com um artigo de Thiago Torres, que trabalha a ideia de coreografia a partir de um pensamento político em dança. O objeto de análise do autor é a Dancinha do impeachment surgida em Fortaleza, ainda em 2016, no processo contra a presidenta Dilma, e que, em 2018, durante as eleições presidenciais, ganhou uma nova proposta. O mesmo grupo que coreografou a Dancinha do impeachment passou a executar a Dancinha Pró-Bolsonaro. O espaço físico, o figurino, a maquiagem, a música, a coreografia, o público, esse conjunto de elementos é chamado por Thiago, em seu artigo, de Dramaturgia do fascismo. Na sequência, acompanhamos o processo de concepção e execução da performance Massa ré, idealizada pelo artista, professor e performer Elilson. Em sua proposta, um grupo de brasileiros, trajando camisas com as inscrições 2016 (frente) e 1964 (costas), caminha, pacificamente e de costas, pelas ruas da cidade com as mãos espalmadas para baixo. Inevitável não se perguntar: para onde estamos caminhando desde 2016? Ainda trazendo modos e formas de agir dentro da cidade, o artigo Insurgências Urbanas, de Pedro Caetano Eboli, traça um interessante paralelo entre o urbanismo tático, através da análise das ações do Batata Precisa de Você, e as intervenções urbanas implementadas nos trabalhos do coletivo de arte carioca Opavivará!. A boa e velha cruzadinha, passatempo de muita gente, e ainda com espaço garantido nos jornais impressos e em pequenas brochuras, ganha uma versão instigante e provocadora nesta

A escolha pela arte é — muitos já disseram — um ato político. O

edição. Cassiana dos Reis Lopes nos convida a jogar sua Cruzada-

artista visual Paulo Bruscky, que iniciou sua carreira na década de

-Terrorista, provocando uma reflexão sobre terrorismo de Estado.

1970, em plena ditadura militar, não cansa de reafirmar isso e, qua-

Fechando a edição, duas contribuições vindas a convite.

se sempre, complementa seu discurso alertando: “A arte é a última

Numa delas, Alexandre Vargas apresenta o Sistema de Indicado-

esperança”. Estamos em 2019. No texto curatorial da exposição

res de Festivais de Teatro do Brasil (SIFTB), em desenvolvimento

Arte democracia utopia — Quem não luta tá morto, que esteve em

desde 2015. Seu objetivo é coletar, analisar e disseminar informa-

cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR) até o final de março, o cura-

ções sobre os festivais de teatro no país, integrando e expondo

dor Moacir dos Anjos escreveu: “São muitas as maneiras de fabular

o papel crucial desses eventos, a partir de dados que poderão

outro lugar que possa existir no futuro, embora fazer política e fa-

contribuir para a elaboração de políticas públicas mais efetivas e

zer arte sejam duas das mais antigas e constantes”.

completas ao teatro brasileiro.

É acreditando nesta relação tão intrínseca e necessária que

É Wagner Schwartz quem fecha a edição da Política, com

a TREMA! Revista alicerça sua edição de número 15, que abre a Tri-

uma fala sua na mesa Reflexões estético-políticas, realizada no Itaú

logia da Extinção. Sim, a publicação inicia sua despedida depois de

Cultural, dentro a MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São

três anos sendo publicada com o apoio do Funcultura, em perio-

Paulo, em 2018. Em dado momento, diz Schwartz: “Para ter a ex-

dicidade variada.

periência de uma obra de arte, é preciso se deslocar”. E é no sen-

Esta edição da Política, assim como as próximas (dos Dissidentes e do Fim), teve boa parte dos textos acolhidos e selecio-

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tido de incitar nossxs leitorxs a se deslocarem, refletirem e pensarem o fazer artístico e político que concebemos esta edição.

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colaboradores desta edição

WAGNER SCHWARTZ É coreógrafo, artista, escritor

CASSIANA DOS REIS LOPES

GILVAN BARRETO

ALEXANDRE VARGAS

É doutoranda em Teatro na

Gilvan Barreto é pernambucano

É artista de teatro, empreendedor

Universidade do Estado de Santa

e reside no Rio de Janeiro há dez

cultural, pesquisador e curador de

Catarina. Mestre em Teatro pela mesma

anos. Seu trabalho foca em questões

artes cênicas. Por mais de 27 anos,

universidade. Bacharel em Teatro na

políticas, sociais e na relação do

desenvolve uma intensa atividade

Faculdade de Artes do Paraná. Bacharel

homem com a natureza. Sua fotografia

relacionada às artes cênicas,

e Licenciada em Ciências Sociais na

é fortemente influenciada pelo

especialmente no teatro, como

Universidade Federal do Paraná. Atriz e

cinema e literatura.

criador, intérprete, diretor e gestor

diretora de teatro.

cultural. Criador e diretor artístico do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre, colaborador em comissões de seleção e curadorias independentes para outros festivais

ELILSON

no Brasil. Idealizador e coordenador

é artista e professor, graduado

da 1a. Bienal de Dramaturgia Qorpo

em Letras pela UFPE e mestre em

Santo e é diretor do Centro de

performance pelo PPGAC-UFRJ, onde

Pesquisa Teatral do Ator (CPTA).

investigou inter-relações entre arte da

É representante da La Red de

performance e mobilidade urbana. Em

THIAGO TORRES

Promotores Culturais da América

PEDRO CAETANO EBOLI

2018, foi contemplado com o Rumos

É bacharel em dança e atualmente

Latina e Caribe no Rio Grande do Sul

É formado em Desenho Industrial

Itaú Cultural e com o Prêmio EDP nas

mestrando em Artes pela

e integrante da Rede Brasileira de

- Projeto de Produto pela

Artes do Instituto Tomie Ohtake. Massa

Universidade Federal do Ceará. É

Festivais de Teatro, na qual é um dos

UFRJ, com mestrado em Design

Ré foi primeiramente publicado em seu

dramaturgista de processos de

articuladores do SIFTB – Sistema de

e Sociedade pela PUC-Rio, onde

livro Por uma mobilidade performativa

criação e co-proponente do grupo

Indicadores dos Festivais de Teatro

atualmente cursa o doutorado. Suas

(Rio de Janeiro: Editora Temporária,

de estudos Dramaturgia: o que quer

do Brasil. É diretor do INTERCENA –

pesquisas examinam as relações

2017), que pode ser lido e baixado

e o que pode o corpo?, ao lado de

Programa de Internacionalização das

entre arte, cidade, estética e política.

em:www.elilson.com

Thereza Rocha e Andrei Bessa (CE).

Artes Cênicas do Estado do RS.

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wagner schwartz em transobjeto – foto: gil grossi


WAGNER SCHWARTZ contato@wagnerschwartz.com

PERGUNTA Com base nos acontecimentos de 2017, especialmente, quando o desconhecimento sobre arte contemporânea por parte do grande público foi manipulado de modo moralista em prol de uma agenda reacionária, propomos refletir sobre o lugar da mediação nas artes e, especificamente, no teatro; sobre o prejuízo da invisibilidade ou do mau uso das mediações; sobre a má compreensão das suas funções e dos seus poderes; e sobre suas possibilidades. Parece que existe uma aceleração cada vez mais intensa da emissão da opinião imediata e uma crença na legitimidade dessa não mediação. A rejeição da reflexão, da crítica e da intelectualidade, muitas vezes defendida pelos próprios artistas, que manifestam verdadeiro mal-estar para com as mediações, não seria parte decisiva do processo de isolamento da arte?

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ENTREVISTA

Instituto Itaú Cultural, 8 de março de 2018

MESA O MAL-ESTAR DAS MEDIAÇÕES E O ISOLAMENTO DA ARTE,

PERGUNTA O mal-estar das mediações e o isolamento da arte

PARTE DO PROGRAMA REFLEXÕES ESTÉTICO-POLÍTICAS DA MITSP (MOSTRA INTERNACIONAL DE TEATRO DE SÃO PAULO)

Com base nos acontecimentos de 2017, especialmente, quando o desconhecimento sobre arte contemporânea por parte do grande público foi manipulado de modo moralista em prol de uma agenda reacionária, propomos refletir sobre o lugar da mediação nas artes e, especificamente, no teatro; sobre o prejuízo da invisibilidade ou do mau uso das mediações; sobre a má compreensão das suas funções e dos seus poderes; e sobre suas possibilidades. Parece que existe uma aceleração cada vez mais intensa da emissão da opinião imediata e uma crença na legitimidade dessa não mediação. A rejeição da reflexão, da crítica e da intelectualidade, muitas vezes defendida pelos próprios artistas, que manifestam verdadeiro mal-estar para com as mediações, não seria parte decisiva do processo de isolamento da arte?

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RESPOSTA Para ouvir o novo disco do Tom Zé,

um público interessado ou curioso por suas atividades.

era preciso fugir para a casa do vizinho. Para experimentar Gal Costa,

Para ter a experiência de uma obra de arte é preciso se deslocar. E,

deixar de escutar a própria voz.

quanto mais deslocamento, mais a sensação de isolamento das

Para conhecer o universo de Daniel Johnston,

demandas que autorizam a circulação sem risco nos espaços pú-

era preciso desenhar um novo País.

blicos — é como se o movimento nas ruas expulsasse as ações,

Para se aproximar de Laurie Anderson,

os valores que definitivamente não acompanham a sua pressa. A

aprender um outro idioma.

pressa sempre foi mais importante que a arte. E, nem por isso, a

Para dançar New Age,

arte deixou de ser objeto na História.

estar longe da família. Para assistir David Lynch,

Nos últimos vinte anos, o mundo passou por diversas mudanças.

inventar uma nova idade.

Passamos do VHS ao CD e, em seguida, aos Links. A cultura analó-

Para chegar à literatura,

gica, nos dias de hoje, vive ao lado da cultura digital. As formas de

sair da igreja.

se contar uma experiência artística continuam se modificando.

Para ler Emily Dickinson,

Além da voz, dos encontros presenciais, agora existem também

relativizar o céu poluído.

os posts, as imagens feitas por smartphones.

Para saber de Pagu, sair da frente da TV.

Em nossos dias, ainda é preciso se mover para ter uma experiên-

Foi Maria Gabriela Llansol quem disse:

cia artística, mas muitas de suas imagens, ações podem nos che-

"viver quase à sós atrai, pouco a pouco,

gar, também, através da linha do tempo. O contar pode viralizar. A

os absolutamente sós".

conexão de pessoa para pessoa se expande de pessoa para pessoas (amigos e desconhecidos).

O artista sempre foi um bicho solitário. Sempre se deslocou para conhecer alguma coisa. Sempre precisou pesquisar para encontrar

Os posts são espaços de compartilhamento. Uma voz singular

sentido nos objetos, nas ações do dia a dia. Aqueles que se inte-

com consistência pública. Os posts se tornaram importantes

ressam por arte sempre foram bichos solitários, sempre se deslo-

mediadores em nossos dias. Contar o que achou, o que encon-

caram para conhecer alguma coisa. Sempre precisaram pesquisar

trou em uma peça pode não ter apenas um caráter singular, mas

para encontrar sentido nos objetos, nas ações do dia a dia.

um caráter singular em massa. É importante lembrar que o que está sendo compartilhado no lugar do objeto de arte é o que você

Concertos de música em auditórios e em garagens, leitura de poe-

está pensando.

mas em bibliotecas e em saraus, projeções de filmes em cinemas e em espaços alternativos, peças apresentadas em teatros, na rua,

As redes sociais propõem uma visibilidade d'o que você está pen-

na casa do vizinho. Todos esses ambientes foram idealizados pelos

sando. Será que a sensação de isolamento também foi atualizada

próprios artistas para performarem um certo jogo de liberdade a

com a sua chegada?

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MASSA RÉ

ELILSON elilson_@hotmail.com

A

morte do ex-presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, é anunciada por alto-falantes ruidosos pelas ruas da cidade. Estou sentado no chão de uma praça, em silêncio, com amigos e muitos desconhe-

cidos. Um agrupamento de brasileiros, vestindo roupas nas cores verde e amarela, vem correndo de costas comemorando a notícia. Não temos tempo para levantar. Somos pisoteados pela massa. No chão, sobram nossos corpos desconjuntados, além de fragmentos em pano e papel com as cores da bandeira nacional. Acordei com a quentura de uma bota pressionando meu rosto. Mês de março, apenas o início de 2016. Naquela altura, várias brasileiras e brasileiros — incluindo um bebê em São Paulo e uma vira-lata na cidade do Rio de Janeiro — haviam sido agredidos, em diversas partes do país, por simplesmente trajarem a cor vermelha e caminharem pelas ruas. O ex-presidente foi conduzido coercitivamente para depor: prisão televisionada com ares de final de campeonato futebolístico, no país do futebol em ano olímpico. O Congresso Nacional encaminhou os protocolos para a abertura do processo de impeachment contra a presidenta da República, Dilma Rousseff, democraticamente reeleita por mais de 54 milhões de brasileiros. Após o sonho, meu corpo entrou em abstinência de sono: era impossível ignorar a imagem da massa de brasileiros correndo fervo-

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massa ré – foto: ique gazzola

rosa de costas. Impossível, pois, além de estar, naquela época, estu-

Toda essa profusão de atuais e virtuais entre onirismo e reali-

dando sobre o caminhar como prática estética , minha sensação era

dade, entre imagem e palavra, estética e caminhar, entre a história

de que o sonho traduzia em imagens a história em marcha no país,

contada e o agora vivido, impulsionou no pensamento a formula-

com toda a onda fascista ganhando força e número nas ruas; sem

ção do seguinte programa performativo 2 : Um grupo de brasileiros,

mencionar todos os desmontes orquestrados contra a democracia:

trajando camisas com as inscrições 2016 (frente) e 1964 (costas),

aspectos que, resguardadas as especificidades históricas de cada épo-

caminha lentamente, silenciosamente e de costas pelas ruas da

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ca, traziam ao debate público as reciprocidades entre 2016 e 1964.

1 A título de referência, pode-se consultar a obra Walkscapes, do arquiteto e ensaísta italiano Francesco Careri.

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2 Trata-se de um conceito elaborado pela performer e teórica da performance Eleonora Fabião. Conferir: https://www.cocen.unicamp.br/revistadigital/index. php/lume/article/view/276


cidade com as mãos espalmadas para baixo. Os pontos de início

de Estado? A dubiedade não me parecia necessariamente negati-

e término da caminhada são preestabelecidos em consonância a

va, mas havia a necessidade de incorporar outros elementos para

fatos históricos.

fomentar os posicionamentos da experiência estética. Além de

Ao formulá-lo, dei ênfase primeiramente à imagem da ca-

conscientemente evitar as cores vermelho, verde e amarelo, esco-

minhada coletiva de costas e à inscrição dos dois momentos his-

lhi o gesto das mãos espalmadas para baixo como o detalhe capi-

tóricos nas camisas, mas o gesto coligado ao traje logo insurgiu

tal de dissonância na ação.

uma questão de ordem semântica: um grupo caminhar de costas

O gesto saltou ao pensamento a partir do modo como coti-

no contexto Brasil/2016, com inúmeras pessoas e organizações

dianamente viramos as mãos para frente, abrindo palmas e dedos,

pedindo, por exemplo, o retorno de uma ditadura militar, pode,

para demonstrar dúvida ou estupefação. Geralmente, esse gesto é

predominantemente, suscitar apoio ou concordância a um golpe

acompanhado por expressões faciais e/ou atos de fala como “não

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NOTA DE PROCEDIMENTO

massa ré – foto: ique gazzola

sei o que está acontecendo” e “o que está acontecendo?!”. Percebi

realizações de Massa Ré para que a ação propusesse primordial-

uma recorrência do gesto no meu corpo e nos corpos de pessoas

mente diálogos em vez de embates; para que fosse propositiva

próximas a cada vez em que se lia ou se ouvia a respeito dos pro-

e não reativa, parafrásica mais que parodística. A primeira 4 delas

testos pela volta de uma ditadura militar, de violações cometidas

ocorreu no dia 1º de abril de 2016, como ação do grupo de estu-

nas ruas contra pessoas trajando roupas vermelhas, enfim, de um

dos PTI 5 da Companhia Teatro Inominável. A escolha da data se deu

sem fim de acontecimentos que acometiam nos corpos um gesto

pela incidência histórica: dia em que o golpe militar de 1964 com-

responsivo de estranhamento.

pletou 52 anos. O percurso que sugeri, respondendo à consonância

Esse caráter responsivo do gesto foi acentuado pela ideia de

histórica orientada pelo programa, teve: como ponto de partida a

formar uma angulação entre os dedos que apontam para o chão

Praça da Cinelândia, local onde ocorrem, de modo geral, diversos

onde se pisa e o pulso inarredável ao corpo que caminha: como se

protestos na cidade e onde ocorreram, de modo particular, mani-

o gesto, constituinte do e no corpo que anda para trás, pronunciasse: estou sendo empurrado para trás, mas estou resistindo. Massa Ré surge, assim, como um programa elaborado para ser agido em coro e nas ruas com o intuito de, a partir de uma postura aparentemente uníssona, tentar agregar a voz pluralmente dissonante nas ruas e das ruas, vibrando possíveis manifestações dos passantes, num momento histórico de profusa e aguda divisão no país. Foi preciso muito fôlego, isto é, resistência a toda sorte de confrontos, como também aderência radical ao programa nas quatro 3

3 Além das três realizações de Massa Ré no Rio de Janeiro, ela também aconteceu no Recife no fim do primeiro semestre de 2016. As atrizes Analice Croccia e Hermínia Mendes, tendo acesso às imagens da primeira realização da ação no Rio, contataram-me com o intuito de produzir e realizar a performance no centro do Recife. A performance durou cerca de 3 h e teve como ponto de início e término da caminhada, respectivamente, o Monumento Tortura Nunca Mais e

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a Praça do Derby. Além de Analice e Hermínia, peformaram: Adilson Di Carvalho, Edcarlos Rodrigues, Evandro de Mesquita Diles, Gustavo Soares, Hilda Torres, Márcia Cruz, Nataly Oliveira, Paula Caal e Pollyana Cabral. A produção também teve apoio de Ana Paula Sá, Débora Campos e João Gusmão, além dos fotógrafos Rogério Alves e Gustavo Arruda. Neste relato, descrevo as realizações no Rio de Janeiro, uma vez que atuei como propositor e performer. 4 Performaram: Ana Paula Penna, André Rodrigues, Andrêas Gatto, Carla Souza, Chris Ayumi, Diogo Liberano, Flávia Naves, Francisco Costa, Gleisse Paixão, Hugo Gravitol, Joana Poppe, Lúx Négre, Márcio Machado, Maria Baderna, Mayara Yamada, Regina Medeiros, Thaís Barros e Virgínia Maria.

5 PTI é sigla para Performance e Teatro (Inominável), programa de estudos do Teatro Inominável a partir de articulações entre performance, teatro e cidade. O programa foi aberto para um grupo de estudos com 20 artistas-pesquisadores durante a Inominável Ocupação, projeto realizado nos meses de março e abril de 2016, no Rio de Janeiro, em ocasião dos sete anos da companhia. O título Massa Ré foi sugerido por Diogo Liberano, diretor artístico da companhia, quando apresentei o programa ao grupo de estudos.


festações contra o golpe jurídico-midiático de 2016. Como ponto

em atos de fala que, por seu turno, revelavam traços de formação

de chegada, a Central do Brasil, local onde o ex-presidente João

cultural, posicionamentos ideológicos sobre a história de nosso

Goulart professou, no dia 13 de março de 1964, para 200 mil pes-

país ou mesmo aspectos do imaginário coletivo que foram vibra-

soas, um discurso que, dias depois, foi deturpado pelos militares

dos pelos gestos:

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e veiculado pela mídia como “comunista”, gerando reações como

Eles estão representando o próprio Brasil, não percebe? Es-

a Marcha da Família com Deus pela Liberdade e ocasionando, por

tamos em 2016, é o ano de andar pra trás, por isso o 1964. Mas,

fim, a ditadura civil-militar em 1º de Abril daquele ano.

o que houve mesmo em 1964? 1964 foi o ano do golpe militar.

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O percurso programado para a caminhada de costas sim-

1964 não foi um ano de golpe, esses livros de história foram es-

bolizou, portanto, uma ponte entre as duas épocas históricas.

critos por comunistas. 1964 foi o ano da revolução militar, quan-

Durante as três horas de duração da primeira realização do

do eles tentaram salvar o país das investidas comunistas, mas

programa, as mãos espalmadas para baixo rapidamente vira-

não deu certo, né? O que significa dezesseis meia quatro? O que

ram uma estratégia de cuidado para além do gesto estético: os

aconteceu em 1964? Por que estão fazendo isso hoje? Hoje se

tropeços ocasionados pelos tantos buracos e desníveis das cal-

comemora o quê? Fora Dilma!!! Olha, um tributo a Michael Jack-

çadas não viravam quedas graças às mãos dos performers que,

son! E essas mãos aí para frente, hein? É samba, é? A gente num

em cadeia no sentido contrário, cuidavam de si, apalpando-se.

tá no país do samba? Pois bora sambar! (disse um passante, no

O ritmo da caminhada foi outra questão negociada em ato:

comércio popular do Saara, literalmente sambando ao imitar o

andar de costas significa ver, irremediável e detalhadamente,

gesto de nossas mãos).

tudo que é a cidade que diariamente e apressadamente deixa-

Numa segunda experimentação 8 , no dia 7 de setembro de

mos para trás. Do céu aos inúmeros corpos deitados no chão;

2016, a caminhada de duas horas, da Praça da Cinelândia até o

dos monumentos às fezes de gente; das rachaduras ao con-

Museu do Amanhã, atravessou parte do percurso reservado para

creto armado. Imagens que, por vezes, acometiam aos corpos

o desfile militar. Ocorreu precisamente uma semana após a des-

dos performers uma lentidão ainda maior que a programada,

tituição da Presidenta Dilma e da instituição de Michel Temer no

sendo necessário um entendimento rítmico para que nenhum

cargo executivo. Os meses de intervalo em relação à primeira ex-

componente do coro ficasse para frente. Essas estratégias foram

perimentação trouxeram à tona, por conta da rapidez com que

fundamentais para as demais realizações da ação.

se transformou o quadro político do país, uma participação mais

Muitos transeuntes das ruas do centro carioca esboçaram

ativa dos passantes.

diversas reações à ação, constituindo uma rede dialogicamente

Um ciclista, enrolado com uma bandeira da campanha presi-

dissonante. Ainda na Cinelândia, um morador de rua se ergueu

dencial de Dilma Rousseff, parou seu trajeto para assistir nossa ida

do chão às lágrimas dizendo que “aquilo não iria se perpetuar,

de costas, aproximando-se algumas vezes a cada vez que nos dis-

pois não haveria golpe”, ao passo que outro transeunte, cami-

tanciávamos mais. Até o ponto em que seguiu, fazendo sumir de-

nhando no contrafluxo da performance-contrafluxo, indagou:

moradamente aos nossos olhos seu corpo, sua bicicleta e o nome

“Quantos sanduíches de mortadela o governo está doando

da Presidenta cintilando na bandeira vermelha. Outros ciclistas, es-

para vocês fazerem isso, seus petralhas?!” Vários passantes

tes policiais fardados do “Centro Presente”, com amplo espaço de

perguntavam o significado da ação, alguns querendo entender

passagem na avenida, subiram na calçada onde a Massa Ré cami-

o porquê do andar de costas, outros questionando o motivo

nhava em contrafluxo e calculadamente bateram com os aros de

das datas grafitadas nas camisas; outros se detendo às possí-

suas bicicletas em nossos corpos. Um policial militar nos olhou e

veis razões das mãos espalmadas. Nesse trânsito de perguntas

fez sinal da cruz três vezes dentro de sua viatura. Dois homens, com

sem respostas, uma vez que o programa da ação frisava o si-

os braços cruzados, olharam diretamente para a menina de 4 anos

lêncio dos performers durante a caminhada, uma transeunte foi

de idade que participava da ação nos ombros do seu pai, dizendo:

mais enfática: “por favor, me falem alguma coisa! Digam qual-

“deixa o Bolsonaro vir, que ele vai dá um jeito nesse pessoal.”

quer coisa. Vocês já me fizeram parar, não é justo eu ir embora

Várias pessoas, ao longo do percurso, paravam para assistir

sem entender. Como vou chegar em casa bem desse jeito?!”.

e conversavam sobre golpe de estado e ditadura militar. Outras

Enquanto nós, continuando a caminhada, só vimos seu rosto e

questionavam os significados do protesto, chegando uma tran-

suas perguntas sumirem quando desistiu e se uniu aos tantos

seunte a afirmar que para representar bem o Brasil, deveríamos

corpos que, compondo as ruas, eram vistos pelos nossos olhos

todos caminhar de costas até cair num bueiro. Participantes de

em zoom out.

protestos contra o atual governo aplaudiam a ação, gritando Fora

Com nossa ausência de respostas e com nosso bloco de

Temer ou se juntando ao coro em massa ré.

passagem, manchando o urbano em horário de pico, muitos tran-

Militares das forças armadas, armados com fuzis, nos olha-

seuntes tentaram elucidar entre si, traduzindo nosso ato de corpo

ram atentamente. Um deles, que parecia ser o comandante, ordenou que dois soldados nos orientassem a subir na melhor

6 O discurso pode ser lido na íntegra em: http://www.ebc.com.br/cidadania/2014/03/discurso-de-jango-na-central-do-brasil-em-1964 7 Manifestação ocorrida na capital de São Paulo, cinco dias após o discurso de Jango na Central do Brasil. Apoiada pelos militares, teve como pauta a destituição do então Presidente e, por consequência, do regime de governo. Detalhes podem ser conferidos em: http://www.ebc.com.br/cidadania/2014/03/marcha-da-familia-com-deus-pela-liberdade-em-19-de-marco-de-1964-0

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calçada. Certos diálogos se mantiveram semelhantes em relação

8 Performaram: Ana Kemper, Inês Palmeiro, Ique Gazzola, Jan Macedo, Jojo Rodrigues, Maria Alcserad, Maria Baderna, Maria Luisa Mendes, Maria Palmeiro, Nathália Mello, Otávio Leonidio, Patricia Kirilos Naegale, Renata Caldas, Vanessa Matos e Yanna Bello.

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massa ré – foto: francisco costa

à primeira realização: se poucas pessoas ainda perguntavam o

lar determinou pós-conversas entre os participantes da ação: um

sentido de 1964 nas camisas, muitas diziam que éramos deso-

homem, sentado com a família, indagou: “mas, afinal, o que vocês

cupados, como um cobrador de ônibus que, de dentro do seu

apoiam? Eu não consigo entender se são contra ou se querem 1964”.

trabalho, ofereceu os pratos de sua casa para que lavássemos.

O que é para o senhor? Ao seu lado, uma mulher, sem expressão de

No fim do trajeto, nos deparamos com centenas de pessoas

dubiedade, respondeu: “Está claro que eles apoiam o Lula e a Dilma,

ocupando a Praça Mauá, onde fica o Museu do Amanhã. Havia

é só olhar pra eles.”

um palco enorme com uma banda gospel entoando canções e

Essa dubiedade, marca da execução do programa nas ruas,

professando frases sobre a importância da família brasileira. Fi-

tendo em vista os múltiplos e dissonantes verbos expressos pelos

camos ali parados por um tempo, respirando e reacostumando

transeuntes, talvez seja consequência da inversão em zoom out que

o corpo para caminhar de frente. Ao nosso lado, observando

a performance injeta à lógica do “gesto mais quotidiano” 10 que é o

extensivamente cada um dos nossos corpos, um policial militar

caminhar: gesto comum da marca civilizatória nas sociedades, o que

cuja tarjeta anunciava seu nome: Michel.

apreende uma perspectiva historicista engendrada por uma “noção

No dia 19 de novembro de 2016, em terceira experimentação do

topográfica e militar da força que marcha à frente, que detém a inte-

programa, a Massa Ré 9 caminhou durante uma hora e quarenta minu-

ligência do movimento, concentra suas forças, determina o sentido

tos, da Praça da Cinelândia até a Praça da República (Campo de San-

da evolução histórica e escolhe as orientações políticas subjetivas”  1 1 .

tana). A reação de ordenar que procurássemos uma ocupação conti-

Massa Ré performa um desvio, assim, da forma própria da construção

nuou recorrente, sobretudo por parte de trabalhadores ocupados no

subjetiva da circulação urbana, profanando a expressão absoluta e

momento simultâneo à passagem da Massa. Também se mantiveram

primeira da ordem e do progresso: o andar para frente  1 2 .

expressões de apoio, com transeuntes conversando sobre os rumos políticos do país ou caminhando um pouco de costas conosco. Um ciclista bateu nas mãos de algumas das performers, como se estivesse cumprimentando. Essas respostas foram mais contidas em relação a gritos de “Desocupados!”, “Que bando de otários!” e dedos girando ao lado das cabeças, acusando, sem palavras, nossa “loucura”. Na Lapa, um homem em situação de rua foi mais enérgico: “isso é macumba! Isso é macumba!”. Gritava e esbravejava o corpo compulsivamente. Em um dos bares, uma pergunta em particu-

9 Performaram: Ana Kemper, Camille Mello, Clarice Rito Plotkowski, Fernanda Canavêz, Flávia Oliveira, Lucas Fontes, Luiza Leite, Maria Baderna, Renata Caldas e Samara Lacerda.

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10 Consideração do filósofo italiano Giorgio Agamben, no texto Notas sobre o gesto. Ensaio publicado no volume 4 da Revista ArteFilosofia, do Programa de Pós-graduação em Estética e Filosofia da Arte. UFOP, 2008. Acessar: http://www. periodicos.ufop.br/pp/index.php/raf/article/view/731 11 Trecho do livro A partilha do sensível: estética e política, do filósofo francês Jacques Rancière. São Paulo: Editora 34, 2009. 12 Massa Ré introduziu uma série de trabalhos em que tenho coligado momentos históricos ao andar de costas: Massa Ré: variação CLT (Rio de Janeiro, 2017 – caminhada coletiva de costas por 2 h com pedras portuguesas e carteiras de trabalho em mãos); Tri(u)nca Histórica (Assunção, 2017 – vestindo camisa com o ano 1864 nas costas e uma bandeira do Paraguai segurada como um corpo, caminhei de costas por 2 h na capital do país no dia da Independência), Ré Pública (Rio de Janeiro, 2017 – caminhada de costas com tecido bordado à mão e duas pás) e Ré Pública: variação oral (Rio de Janeiro, 2018 – caminhada de 2h com leitura ininterrupta do discurso antimilitarista de Márcio Moreira Alves, 1968).


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A moita é um antipalco e um antibunker, se propõe a ser uma outra estrutura, uma alternativa de espaço para socialização e integração coletiva. Contra a idéia de palco e platéia, a moita quebra toda a estrutura segmentaria que distingue autor, artista, ator, espectador. Não há representação, há ação e integração.

INSURGÊNCIA

NAMOITA

namoita – foto: opavivara.com.br

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: URBANAS

DO URBANISMO TÁTICO À POLÍTICO-POÉTICA DO COLETIVO

O

presente ensaio se destina a pensar, comparativamente,

PEDRO CAETANO EBOLI

duas formas distintas de atuação pretensamente política

pceboli@gmail.com

na cidade. De um lado, temos o urbanismo tático, exem-

plificado aqui através do caso do Batata Precisa de Você e ligado diretamente aos modos de solução de problemas oriundos do universo da arquitetura e do design. De outro, temos a intervenção urbana, aqui encarnada nos trabalhos do coletivo de arte carioca Opavivará!. Comecemos pelo urbanismo tático. Tratam-se de solu-

ções urbanas em pequena escala, com natureza efêmera ou permanente, visando a envolver as populações nos processos decisórios relativos aos espaços públicos  1. Elas vêm ocorrendo “espontaneamente”, nas mais diversas localidades. Seus atores, em sua maioria da “classe criativa”, acreditam na requalificação e apropriação dos espaços públicos como atividades colaborativas e políticas. Uma de suas aparições mais proeminentes em terras brasi-

leiras ocorreu no Largo da Batata, em Pinheiros, São Paulo, consistindo do desenvolvimento de diversas atividades e mobiliário urbano para o local. Estas ações surgiram como reação ao pro-

1 LYDON, Mike, & GARCIA, Antony. Tactical Urbanism vol. 1: Short-term Action for Long-term Change. Washington: Island Press, 2011.

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(Mostra URBE - Largo do Batata) Brasa ilha flutuante nômade ambulante de aquecimento social. Ferramenta para desilhar, criando pontes e conexões, trocas de saberes brasa ilha, no largo do batata – foto: opavivara.com.br

e sabores, dissolução de limites. Bomba emanadora de nutrientes que alimentam redes de afetos. Queremos o movimento, desejamos a amplitude e almejamos o desdobramento de receitas para a convivência.

cesso de reurbanização movido pelo governo entre os anos de

dos espaços públicos unida ao desinvestimento ou investimento

2007 e 2013, que teria esterilizado uma região antes conhecida

desigual do Estado parece justificar a forma espontânea como o

pela alta circulação de pedestres e comércio popular. A partir de

urbanismo tático vem aparecendo em diversas localidades.

um documento produzido pelas pessoas engajadas no Batata

Talvez seja possível relacionar esta atuação nos espaços

Precisa de Você, podemos perceber os elementos que caracteri-

públicos a uma forma de subjetividade característica dos re-

zam alguns de seus discursos. Suas ações aparecem imbricadas

gimes neoliberais, aquela da responsabilização individual, em

a uma dupla crítica: às formas de representatividade política e

que tomamos por natural que “cada um deve fazer a sua parte”.

ao planejamento urbano centralizado. Destacam-se a remissão a

Contudo, em um contexto crescente de políticas de austeridade

autores tais como Jane Jacobs e Henri Lefebvre, que já nos anos

fiscal e desinvestimento nos espaços públicos, parece bastante

1960 performatizaram a crise desse modelo de urbanismo.

conveniente que os cidadãos invistam suas energias na constru-

Os “urbanistas táticos” do Largo da Batata atribuem às in-

ção coletiva destes locais. O economista Bob Jessop relaciona as

tervenções um “forte caráter político, uma vez que expõem ca-

estratégias de implementação do neoliberalismo nas cidades à

rências de espaços públicos e demandas da população que vive

“mobilização de energias populares, da economia informal, ou

ou passa por esses locais” 2. A figura da sociedade civil também é

social, e valores comunitários” 3.

mobilizada, na forma de uma força horizontal, emergente e vo-

Não se tratam de forças que limitam, proíbem ou censuram,

luntária que põe a política em movimento. Contudo, é importan-

mas de uma certa produção desejante. Esta mobilização pare-

te indagar até que ponto ao ocupar um lugar que era antes do

ce se dar principalmente a partir dos mecanismos de gestão das

governo, os agentes do urbanismo tático estão realmente contra

vidas, que as analíticas empreendidas por Michel Foucault deno-

ele, ou se, de alguma forma, estão trabalhando a seu favor.

minariam por poder biopolítico 4. Esta forma de governamenta-

Para prosseguir com este questionamento, devemos olhar

lidade passa a produzir discursos que recortam manifestações

para as ações de urbanismo tático a partir de dois prismas que

eminentemente sociais para o âmbito da natureza. A sociabili-

se entrecruzam. De uma parte compreender este fenômeno no

dade estaria inscrita como grau-zero da espécie humana, justifi-

âmbito do neoliberalismo nas cidades, em que a mercantilização

2 SOBRAL, Laura et al. Ocupe Largo da Batata: como fazer ocupações regulares no espaço público. São Paulo, 2015, p. 22. Disponível em: http://largodabatata.com. br/publicacao/ (Acesso em fevereiro de 2019).

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3 JESSOP, Bob. Liberalism, Neoliberalism, and Urban Governance: A State-Theoretical Perspective. In: Antipode 34 (3): 452-472, 2002, p. 18, tradução nossa. 4 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: Curso dado no Collè ge de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

transnômades, edispositivos – foto: opavivara.com.br

brasa ilha, no largo do batata – foto: opavivara.com.br

BRASA ILHA


TRANSNÔMADES Módulos móveis, carrinhos adaptados, transignificados, movidos por tração humana que percorrem os transitórios espaços públicos das urbes, transviando dinâmicas de eterna errância, transitando sempre na resistência e no embate do corpo com a cidade, da carne com o asfalto. Uma colagem transcultural que busca se apropriar de dispositivos móveis do nosso cotidiano, transformando seus usos comuns, transcodificando uma atmosfera de familiaridade e estranhamento simultaneamente. Os dispositivos ficam à disposição do público para serem ativados, criando transversais nos intervalos do fluxo urbano, transtermporalidades que se opõem à aceleração do tempo e à compartimentação do espaço e, como num transe, permitem transcendermos a outros modos possíveis de se viver junto.

transnômades, na 32ª bienal de são paulo – foto: opavivara.com.br

transnômades, em lisboa – foto: opavivara.com.br

cando um liame natural entre um indivíduo e todos os outros: se

PARTILHA DO SENSÍVEL

a sociedade civil é um dado natural então o Estado é puro artifício. Ora, os agentes do Batata Precisa de Você parecem aderir e

Aqui convém nos debruçarmos sobre sensibilidade estética que,

se identificar totalmente à oposição entre sociedade civil e Estado

segundo Terry Eagleton, constitui o “protótipo secreto da subje-

oferecida pelos mecanismos biopolíticos de governamentalida-

tividade burguesa” 6. Se no âmbito da Era Democrática é verdade

de. Desta forma, constrói-se uma retórica que coloca o interesse

que o indivíduo passa a ser submetido a menos coações “exter-

coletivo como bloco uníssono, em contraposição a um Estado

nas”, isto por outro lado exige que haja consensos internalizados

que nada sabe sobre os desejos e necessidades de seus habitan-

conduzindo a liberdade dos sujeitos. Os paradigmas da liberda-

tes. Mas ainda que esta informação não seja de todo falsa, trata-

de e da autonomia surgem atrelados a uma espécie de consenso

-se de uma lógica que suprime as dissenções inerentes a qual-

espontâneo sobre as experiências sensórias, de modo que uma

quer espaço social.

forma homogênea de sentir acaba se abatendo sutilmente sobre

Ao trabalharem de acordo com uma categoria de identifi-

os corpos e enredando a todos em um tecido sensível comum.

cação que, nas palavras de Foucault, integra parte da tecnologia

Para Jacques Rancière, a experiência sensível não é jamais

governamental moderna, parece que as ações de urbanismo tá-

um dado imutável ou natural, mas uma partilha em disputa,

tico desenvolvidas no Largo da Batata perdem algo do estatuto

atravessada por uma série de vetores eminentemente históricos

político contestatório que advogam para si. Neste sentido po-

e sociais. O autor compreende que toda vez que a organização

demos mobilizar a compreensão de Michel Foucault, que com-

desta partilha do sensível é perturbada — mediante o exercício

preende o exercício de poder para além das estruturas de gover-

do dissenso, ou seja, de qualquer atividade que modifique aqui-

no, mas como prática social difusa, integrante da nossa produção

lo que é visível, dizível e contável — tenha havido a emergência

enquanto sujeitos 5. Para ele, se há uma relação de contiguidade

da política 7. Ao associar a apreensão dos sentidos a uma possi-

entre o poder e a resistência, então as práticas políticas devem

bilidade infinita de atribuição de sentidos, a arte produzida sob

estar invariavelmente associadas aos modos pelos quais nos fa-

a égide da sensibilidade estética tocaria a política, uma vez que

zemos sujeitos, às nossas subjetividades.

é baseada no dissenso. Assim, a arte política prescinde de uma

5 FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert & RABINOW, Paul. Michel Foucault, Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.,

TREMA!_política

6 EAGLETON, Terry. A Ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 13. 7 RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996.

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ENSAIO

chuvaverão, parede gentil n˚21 - galeria a gentil carioca – foto: opavivara.com.br

chuvaverão – foto: opavivara.com.br

afronta ao Estado, mas investe na produção

mos intelectivamente assentar, sem sucesso.

de pequenas fissuras na ordem do sensível

CHUVAVERÃO

que desloquem os sujeitos de sua identi-

Um sistema hidráulico com 5 chu-

profissionais das cidades, que habita obras

dade, abrindo potência para a emergência

veirões, livres para o uso de qual-

como Transnômades (2016) e Eu amo camelô

contingencial de singularidades.

Talvez o apreço especial pelos nômades

quer pessoa que passe pela rua.

(2009), advenha destes deslocamentos li-

A poética do coletivo Opavivará! parece

Remete as antigas fontes de água

minares do pensamento que os trabalhos do

lidar com o espaço urbano de uma forma que

públicas que existiam espalhas pela

coletivo possibilitam engendrar. Nesta ope-

ao mesmo tempo é análoga, mas totalmen-

cidade do Rio de Janeiro. O proje-

ração, o Opavivará! parece entrar na disputa

te distinta daquela do urbanismo tático. Ao

to tem como principal referência a

sobre o imaginário simbólico da cidade, em-

contrário de uma busca por soluções urbanas,

Fonte do Largo da Carioca.

baralhando os regimes que orientam aqueles

o coletivo parece produzir questionamentos

que merecem ter visibilidade e os que estão

que autorizam uma multiplicidade de pos-

destinados à desaparição. O coletivo insiste

síveis reflexões que nos mobilizam corpórea e intelectivamente.

em produzir fissuras na existência comum dos passantes e nos

Tratam-se de pequenos delitos táticos, situações incongruentes e

traga em direção a vivências não automáticas do corpo na cidade.

comunitárias que produzem rupturas nos fluxos normais da cida-

Em Chuvaverão (2014), por exemplo, eles instalaram cinco

de. São nossos próprios corpos que escrevem e são postos para

chuveiros na parede da galeria Gentil Carioca. Nesta operação

vibrar junto com outros corpos: somos incitados a performar.

que expõe as vísceras de um interior, podemos localizar uma

O coletivo produz recortes do mundo que sublinham as di-

reflexão sobre a dicotomia entre os âmbitos público e privado.

mensões rituais da vida cotidiana, visibilizam o caráter nômade

Através desta ficção, podemos estabelecer uma analogia entre o

de certos profissionais da rua, ressaltam a dimensão coletiva e

recorte do tecido urbano e o dos cômodos de um lar, entenden-

ritualística dos objetos e festividades, produzem novos fluxos e

do o intuito moralizante e disciplinar que esta operação histori-

espaços ou questionam os regimes de deglutição e circulação das

camente assumiu. Assim, o trabalho visibiliza um ponto em que

imagens. Mas trata-se de uma lâmina muito precisa, que desloca

o público e o privado se insinuam como um contínuo, dadas as

e eviscera, trazendo à luz algo que a inércia das repetições havia

forças que lhes configuram, e nos permite pensar de que maneira

cristalizado e invisibilizado. Ela nos dá acesso a espaços cegos do

as disposições espaciais estão imbricadas aos corpos.

nosso próprio tecido sensível, colocado em suspensão momentâ-

Esta questão também parece permear o trabalho Namoita

nea para modificar o tráfego de sentidos e sensações que procura-

(2007, 2011, 2012), que realiza o percurso inverso: cria pequenos

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eu ♥ camelô, rio de janeiro – foto: opavivara.com.br

eu ♥ camelô, rio de janeiro – foto: opavivara.com.br

redutos onde os corpos estão reservados dos olhares. Ele parte da apropriação de moitas urbanas, espaços configurados espontaneamente nos mais diversos locais da cidade, palcos de uma série de atos ilícitos e imorais do corpo, tais como o sexo e o uso de drogas, dos quais sobram apenas vestígios para a manhã seguinte. Estes locais, frutos de uma estratégia sem sujeito, dão a ver o poder naquilo que está além de sua força proibitiva. Aqui os olhos do poder impelem a efetividade do ato a estas heterotopias de desvio 8, destinando os prazeres do corpo a espaços recalcados. O que estava intocado nos recônditos da carne se vê

EU AMO CAMELÔ

refletido na própria disposição espacial da cidade.

Articulamos uma campanha em prol dos camelôs da cidade, foco das

O coletivo está invariavelmente engajado na produção

ações do “photochoque” de ordem que insistem em organizar a cida-

daquilo que seus membros denominam dispositivos relacionais,

de de cima para baixo. Foi proposta uma contaminação da assepsia

expressão apropriada diretamente do crítico de arte francês Ni-

do shopping onde fica a galeria com uma tiragem de 8 mil cartões

colas Bourriaud . É curioso notar que aqui uma certa fantasia de

com imagens dos ambulantes da praia de Ipanema, além de cadei-

comunidade parece estabelecer um ponto de contato entre os

ras triplas, um galão de mate e o projeto sonoro Faixa de Areia, que

trabalhos do coletivo Opavivará! e as ações de urbanismo táti-

transpôs para a galeria a paisagem sonora da orla antes da faxina da

co. Em ambos os casos, a criação de laços afetivos aparece como

prefeitura. Durante a exposição, que foi de 15 de Dezembro a 15 de

um fim em si mesma, como se ela fosse inescapável e intrinse-

Janeiro, foi realizada uma ação coletiva na praia, levando o potencial

camente positiva. Mas é nesta coextensividade impura entre o

e a campanha do grupo também para fora da galeria. Da venda dos

poder e as formas de resistência que o vetor político se produz:

cartões postais, um terço é destinado aos próprios camelôs, trazen-

uma experiência de fissura que atua no engendrar mútuo do cor-

do uma certa informalidade para a venda dos trabalhos.

9

po às possibilidades intelectivas.

8 FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, As Heterotopias. São Paulo: n-1 edições, 2013. 9 BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

TREMA!_política

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CONTRIBUIÇÃO ESQUEMÁTICA


ENTRA NESSA JOGADA? Para preencher as lacunas vire a pรกgina

cassiana.reis.lopes@gmail.com

CASSIANA REIS LOPES COMO O TEATRO


CONTRIBUIÇÃO ESQUEMÁTICA

OBSERVAÇÃO: As palavras se repetem nas lacunas de cada texto.

E

ste artigo foi escrito como parte de minha pesquisa de

(2004, p. 15) “O

doutorado, cujo tema envolve procedimentos de re-

um direito especial (como o direito de guerra), mas, enquanto sus-

sistência da arte/teatro ao terrorismo de Estado. Como

penção da própria ordem jurídica, define seu patamar ou seu con-

processo de investigação foi estudado primeiramente o ter-

ceito-limite”. Essa seria uma medida ilegal e, no entanto, jurídica e

rorismo, para então chegar às acepções do terrorismo de Esta-

constitucional, a produção de novas normas.

não é

aqui é parte de meu trajeto, utilizando palavras-chaves de

2

conceitos e expressões para pensar, e convidar a pensar, como

Horácio Luján Matínez (2013), em seu artigo Carl Schmitt e a res-

o teatro existe, se sustenta e se reinventa em um contexto de

significação de seu conceito de “inimigo” pelo terrorismo de Estado

terrorismo de Estado.

argentino (1974-1983), desenvolve sobre a utilização do termo

do. Sendo assim, superficialmente, pode parecer que esse jogo de palavras-cruzadas hibridizado com conteúdo acadêmico esteja deslocado em um artigo de teatro, mas o que mostro

DUAS PALAVRAS

14 LETRAS

Para isso tomo um formato não habitual, cruzando sentidos da palavra “cruzada”:

1. Enquanto o momento histórico 1 . 2. Fazendo referência à frase dita por George

, cujo sinônimo poderia ser “oponente nacional”. O autor argumenta que o conceito de “ ” funda a legitimidade do

W. Bush então

Estado e justifica sua violência. Defendendo a aniquilação física do

presidente dos Estados Unidos da América, logo após os inci-

, justifica-se o direito à vio-

dentes com as Torres Gêmeas e o Pentágono, em 11 de setembro

lência para preservação do Estado. Isso pode ser visualizado, de

de 2001: "esta cruzada, esta guerra contra o terrorismo, durará

acordo com o autor, na ditadura militar na Argentina, que, a partir

algum tempo".

de 1976 com a lei antissubversiva, baseada na moralidade, tomou

3. O jogo cruzada/cruzadinha/palavras-cruzadas. obs: Àquelas e àqueles que não têm interesse

medidas drásticas na perseguição e morte de seus adversários,

em jogar, as

respostas da cruzada estão na página seguinte (é só virar), com

constituindo-se como pretexto para o uso da violência, em nome da “segurança nacional”.

o título de “respostas”.

A denominação do muda de acordo com o contexto histórico e local. Eles já foram deno-

1

minados “comunistas”, “subversivos” e ultimamente tem sido perseguidos como “anarquistas” 2. Vê-se, então, que o caminho do Brasil e

DUAS PALAVRAS E UMA PREPOSIÇÃO 15 LETRAS

de outros países está sendo traçado com essa prerrogativa da criação de um personagem “mal”, que “impede o país de progredir”.

é uma situação oposta ao estado de direito, em que certas leis são suspensas em favor de uma “necessidade” urgente. Agamben

(2004, p. 13) enfatiza que o totalitaris-

mo moderno tem a possibilidade de instaurar, por meio do

3

DUAS PALAVRAS 1 4

LETRAS

A

foi uma manobra de re-

, uma guerra civil legal,

pressão conjunta entre os países do Cone sul que viviam a di-

que autoriza o assassinato tanto dos adversários políticos, como

tadura na década de 1970/1980: Brasil, Argentina, Bolívia, Chile,

de agrupações de cidadãos que, por determinada razão, aparen-

Uruguai e Paraguai. Utilizavam-se de métodos ilegais e crimi-

tem não ajustáveis ao sistema político. Com a criação arbitrária de

nosos de identificação, caça, prisão, sequestro, tortura e mor-

um estado de permanente emergência, mesmo que não declarado,

te de discidentes políticos, contrários aos governos militares,

essa tornou-se uma das práticas fundamentais dos Estados con-

classificados como comunistas. Eles promoveram conferências

temporâneos, até mesmo dos chamados democráticos. Para o autor

de inteligência, espionagem conjunta, troca de prisioneiros en-

1 A Cruzada ocorreu entre os séculos XI e XIII. Se trata de um termo utilizado para designar as expedições militares cristãs que partiram da Europa Ocidental em direção ao território dominado pelos muçulmanos, incluindo a cidade de Jerusalém, com o intuito de conquistá-lo, ocupá-lo e mantê-lo sob domínio cristão. Muitas pessoas morreram, tanto muçulmanos como cristãos. Mais de 200 anos de guerra, lutas por territórios que, invadidos e conquistados temporariamente pelos cristãos, mais tarde foram novamente tomados pelos muçulmanos.

2 Operação Érebo, liderada pelo delegado da Polícia Civil Paulo César Jardim, em outubro de 2017, em que policiais apreendem materiais de leitura anarquista, garrafas de plástico e outros objetos considerados subversivos em Porto Alegre - RS. Apesar de não ser enquadrada na lei antiterroristas, são denominados enquanto terroristas em discursos policiais e jornalísticos. Disponível em: https:// www.vice.com/pt_br/article/d3d7nz/policia-civil-do-rs-faz-operacao-contra-anarquistas (Acesso em 5 de jan. de 2018).

p­ — 26


tre paises e outras ações que ultrapassaram as fronteiras. O que

Qual o perfil desses mortos? Em geral pobres, negras e negros,

favoreceu essa organização foi seu contexto, já que, depois da

moradores de periferia 4. Afinal, quem são os terroristas?

mente, segundo Caroline Bauer (2007, p. 21), em agosto de 1975,

5

quando o chefe da Dina (Direção de Inteligência Nacional) do

No dia 17 de março de 2016, Dilma Rousseff, então presidenta,

Chile, Manuel Contreras 3 se encontrou com Vernon Walters, di-

sancionou a

retor-adjunto da CIA (Central Intelligence Agency) dos Estados

(13.260/2016). Para tentar impedir a criminalização dos movi-

Unidos. Contreras viajou à Argentina, Bolívia, Paraguai, Venezuela

mentos sociais, Dilma Rousseff inseriu um novo parágrafo, ar-

e Estados Unidos, para apresentar seu projeto repressivo suprana-

gumentando que esta lei não se aplicaria a questionamentos de

cional e convencer os chefes dos serviços secretos destes países

oposição 5 . Porém, esse parágrafo pode vir a ser retirado depen-

sobre a importância da coordenação e cooperação “para eliminar

dendo das forças políticas que estiverem no poder.

o comunismo” e defender a sociedade “ocidental e cristã”

A

Guerra Fria, foi construído, de maneira global, um ideal patológico de anticomunismo (SOUZA, 2011). A

foi criada oficial-

DUAS PALAVRAS 1 7

LETRAS

se torna

Para Souza (2011, p.172), existem provas suficientes e irrefu-

problemática quando a definição de quem seria ou não “terroris-

táveis da prática de terrorismo de Estado em escala internacio-

ta” não é explícita. Essa falta de especificidade abre campo para

nal. De acordo com o autor, as atrocidade cometidas em nome da

criminalizações de todos os tipos e intensifica preconceitos com

segurança nacional pela

grupos sociais que já são marginalizados e estigmatizados.

coloca a América Latina no roteiro dos grandes genocídios cometidos pela humanidade.

4

6

DUAS PALAVRAS E UMA PREPOSIÇÃO 1 8

LETRAS

UMA PALAVRA 9

Apesar da dificuldade de definição de

LETRAS

por depender de seu contexto social,

Em uma perspectiva ocidental tradicional, quando se pensa em ter-

político, histórico e cultural de onde for concebido, existem

rorismo a palavra

alguns esforços para sua conceitualização. André Duarte, o de-

logo surge, referenciada

na ação praticada pelos “terroristas islâmicos”, em conexão com

fine provisoriamente como:

mortes de civis, atentados, homem-bomba, carros desgovernados que atropelam inocentes, destruição das Torres Gêmeas, etc. O que

[...] aquela forma do poder soberano estatal caracterizada por um conjunto de

autores como Ianni (2004), Hobsbawm (2017), Chomsky (2005)

práticas e discursos políticos abusivamente violentos, de caráter legal ou ex-

defendem é que a maior

, a mais mortal, é

tralegal, visando controlar populações por meio da disseminação do medo e do

praticada pelo Estado e por países que detém o poder político e

terror, da repressão à oposição e pela indução de comportamentos passivos nos

econômico de financiamento de armas e tecnologia militar.

âmbitos público e privado de um país ou região territorial. (DUARTE, p. 11, 2013).

Para Hobsbawn (2017, p. 46), como tática o terrorismo é considerado inaceitável, mas seus perigos são irrisórios para a estabili-

Nesse sentido, expressões como: “lutas antiterroristas”, “Guerra

dade do mundo, pois matam menos pessoas do que os Estados. Ele

Justa”, “Guerra às drogas” são utilizadas como justificativas para

dá o exemplo de que por mais horripilante que tenham sido os atos

consolidar e expandir o poder, transformando o próprio Estado

do 11 de setembro de 2001, eles não abalaram a estrutura interna

em uma instituição terrorista.

dos Estados Unidos, se alguns efeitos negativos ocorreram não foi devido à ação dos terroristas, mas sim à do governo americano. No caso da América Latina, não temos um “inimigo” com “turbantes” e “bombas” que nos amedronta, mas, ainda assim, existe um poder que quer se manter. Quando a vem do Estado, quantos mortos são inocentes? Atualmente, no Brasil, quantos civis perdem a vida em uma guerra camuflada?

3 Contreras era considerado o braço direito do ditador chileno Augusto Pinochet e foi o chefe da Direção de Inteligência Nacional do Chile (Dina), entre 1973 e 1977.

TREMA!_política

4 Um exemplo disso é o caso do Rio de Janeiro, em que 90% dos mortos por policiais foram pessoas negras, em 2017. “Cerca de 22% dos casos ocorreram em ‘morros ou favelas’. Veja mais em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/07/26/rj-9-em-cada-10-mortos-pela-policia-no-rio-sao-negros-ou-pardos.htm (Acesso em 5 de jan. de 2018). 5 “O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei”. Art. 2º § 2o da Lei 13.260/2016.

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CONTRIBUIÇÃO ESQUEMÁTICA

RESPOSTAS CRUZADA TERRORISMO: 1- Estado de Exceção; 2- Inimigo interno; 3- Operação Condor; 4- Violência; 5- Lei antiterrorismo; 6- Terrorismo de Estado Essas não são somente palavras, mas conceitos e fundamentos que podem ser base para um pensamento crítico sobre o terrorismo. As palavras parecem soltas nesse texto, mas podem ser construídas diversas lógicas em sua junção para formação de um argumento. Minha proposta de encaixe entre elas é: O Estado, regido sob “estado de exceção”, engloba como uma de suas medidas a “lei antiterrorista” que cria um suposto “inimigo interno”, subterfúgio para sua extrema “violência” concretizando o “terrorismo de Estado” para mantenimento de seu poder, um exemplo disso seria a “Operação Condor”. Depois dessa reflexão, tomo a liberdade de fazer um bombardeio de perguntas: Como fazer teatro/arte em situações de extrema violência do Estado? Que teatro é esse? Quem são as pessoas que fazem esse teatro? Como ele resiste? Os caminhos que venho trilhando se dirigem a uma verificação de estratégias adotadas pelo teatro na época das ditaduras militares na América Latina (focalizando no Brasil, Chile e Argentina), além de investigar grupos atuais de teatro que nascem em territórios que vivenciam o terrorismo de Estado em seu cotidiano, como favelas e regiões periféricas. Também venho afinando pesquisas práticas de um possível teatro anarquista como arte que resiste. Existem inúmeros percursos diferentes que podem ser feitos. Isso é uma provocação.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção: homo sacer, II, I. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. BAUER, Caroline Silveira. O Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul: Terrorismo de Estado e polícia política durante a ditadura civil-militar brasileira. Revista Ágora, Vitória, n. 5, 2007, p. 1-31. CHOMSKY, Noam. Poder e Terrorismo. Rio de Janeiro: Record, 2005. DECLERCQ, Marie. Polícia Civil do RS faz operação contra anarquistas. Vice. 2017. Disponível em: https://www.vice.com/pt_br/article/d3d7nz/policia-civil-do-rs-faz-operacao-contra-anarquistas (Acesso em 7 de jan. de 2018). HOBSBAWM, E. J. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. IANNI, Octávio. Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. MATÍNEZ, Horácio Luján. Carl Schmitt e a ressignificação de seu conceito de “inimigo” pelo terrorismo de Estado argentino (1974-1983). In: CASTELO BRANCO, Guilherme (org.). Terrorismo de Estado. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 107-119. SOUZA, Fabiano Farias de. Operação Condor: Terrorismo de Estado no Cone Sul das Américas. Aeodus: Revista do corpo discente do PPG – História da UFRGS, n. 8, vol. 3, Janeiro – Junho, 2011, p. 159-176.

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ARTIGO

OS IMPACTOS E CONTRIBUIÇÕES DOS FESTIVAIS DE TEATRO NO BRASIL Pesquisa visa consolidar o Sistema de Indicadores de Festivais de Teatro do Brasil (SIFTB), reunindo dados que demostrem a dimensão econômica e cultural desses eventos

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ALEXANDRE VARGAS alexandrevargasft@gmail.com

O

Sistema de Indicadores de Festivais de Teatro do Brasil (SIFTB) está em desenvolvimento desde novembro de 2015. Ele visa coletar, analisar e disseminar informações

sobre os festivais de teatro do território nacional, integrando e expondo o papel crucial desses eventos, tanto na dimensão econômica quanto na cultural —gerando emprego e renda, fomentando a inovação e o crescimento econômico sustentável e, ao mesmo tempo, transmitindo identidade e valores para promover a inclusão social e o senso de pertencimento. A intencionalidade é produzir reflexão sobre o setor cultural dos festivais de teatro no Brasil e compartilhar a experiência e o conhecimento resultante do desenvolvimento do SIFTB, pela primeira vez — uma estrutura de avaliação para o setor, com propostas de indicadores. É uma pesquisa continuada que apresenta análises, tendências e desafios enfrentados por atores relevantes dessa cadeia produtiva, com sugestões e exemplos de políticas e medidas inovadoras que tratam de questões contemporâneas, incluindo: mobilidade transnacional e acesso a mercados internacionais através dos festivais de teatro. O SIFTB é resultado de um longo caminho trilhado pelos festivais de teatro do Brasil. Na última década, esses eventos vêm buscando a elevação dos seus patamares de qualidade e serviços, enfatizando a sua conformidade, a confiabilidade, a durabilidade e, sobretudo, o atendimento das necessidades dos espectadores, através de ações integradas, voltadas à difusão, ao desenvolvimento sociocultural, político e econômico brasileiro. Para alcançar esses objetivos, os festivais de teatro estão engajados em iniciativas de melhoria de desempenho, principalmente através do desenvolvimento desse sistema. O problema comum no setor dos festivais de teatro é a insuficiente análise de indicadores de modo a utilizar as informações para auxiliar na tomada de decisão, seja gerencial, artística ou estratégica ou de política pública setorial. Em função disto, os festivais de teatro têm dado maior importância ao desenvolvimento e implementação de sistemas de medição de desempenho. Esse sistema fornece informações essenciais para

iv ftrpa, grupo sarcaustico na orla do guaíba – foto: rodrigo gorski

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ARTIGO

intercena, projeto de internacionalização das artes cênicas do estado do rio grande do sul– foto: divulgação

o planejamento dos processos, possibilitando o monitoramento

mostram necessários devido à inexistência de um marco teórico

dos objetivos e metas estratégicas para o desenvolvimento

e conceitual que compreenda o papel dos festivais de teatro

setorial dos festivais.

brasileiros sob uma ótica de valor econômico diversificado e

A Rede Brasileira dos Festivais de Teatro vêm avançando no

heterogêneo, como fomentadores de geração de renda, criação

processo de implementação do Sistema de Indicadores de Festivais

de empregos e com potencial de exportação para a produção

de Teatro do Brasil, que está sendo estabelecido por meio de um

cênica do país.

mecanismo de formulários periódicos anuais, que inicialmente

Podemos considerar que os festivais de teatro no Brasil

foram apresentados no I Encontro Internacional de Políticas de

formam um conjunto de atividades econômicas baseadas

Fomento e Sustentabilidade para Festivais de Teatro, realizado em

no conhecimento, com uma dimensão de desenvolvimento

Fortaleza, em 2015, uma ação articulada pelo Observatório dos

e que têm relação com os níveis macro e micro da economia?

Festivais, Quitanda das Artes e pela Política Nacional das Artes

É possível também compreendê-los como um espaço para o

do Ministério da Cultura/Funarte e, ao longo dos últimos quatro

ciclo de criação, produção e distribuição de bens e serviços

anos, ativamente incorporada pela Rede Brasileira dos Festivais de

que utilizam capital intelectual e criatividade como insumos

Teatro — com mais de 60 festivais integrantes.

primários? Esses eventos continuados, alguns com quase 50

Os dados gerados pelo (SIFTB) podem ser um auxílio

anos, são opções viáveis de desenvolvimento que constituem

oportuno à implementação de um marco teórico e conceitual

um conjunto de atividades baseadas no conhecimento, focado

para assegurar a efetividade e maximizar impactos, contribuindo

(mas não limitado) nas artes, com potencial de geração de

para que os festivais de teatro, o poder público e a iniciativa

receita de comércio internacional e propriedade intelectual que

privada possam avaliar objetivos, políticas públicas estruturais

englobam produtos tangíveis e serviços intelectuais ou artísticos

e desenvolver medidas capazes de satisfazer as demandas e as

intangíveis, que possuem conteúdo criativo, valor econômico e

necessidades do setor e da sociedade.

objetivos de mercado? Os festivais de teatro podem constituir

O aprofundamento e a continuidade da pesquisa do

um novo setor dinâmico no comércio internacional? Como

Sistema de Indicadores dos Festivais de Teatro do Brasil se

se inserem os festivais de teatro nos modelos de indústrias

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criativas? Quais os fundamentos de uma agenda em Economia

do Sistema de Indicadores dos Festivais de Teatro do Brasil

da Cultura e Indústrias Criativas para os festivais de teatro no

desde a sua concepção. Assim, métodos de estudo de caso serão

Brasil? Existem políticas pró empreendedorismo para os festivais

incorporados ao processo metodológico da pesquisa de modo a

de teatro? Quais são os incentivos à produção (instrumentos

imputar o devido distanciamento em relação ao objeto.

institucionais, modelos de negócios nascentes e ativação de

Entende-se que a descrição dos processos vivenciados e

mercados) para os festivais de teatro? Quais as leis de incentivo

análise crítica conformarão um rico produto que merece registro

e Fundos de Cultura e Educação (formação) existentes para os

não só pela singularidade do objeto vivenciado — primeiro

festivais de teatro no país? Quais os incentivos ou regulação

Sistema de Indicadores dos Festivais de Teatro do Brasil —, como

ao consumo (capital humano e renda) dos festivais? Quais as

também pelas teorias com as quais a equipe e as instituições

políticas claras e modernas de direitos autorais dos festivais

parceiras 2 desse processo estão imersas no seu dia a dia e se

no século XXI? Existe mapeamento das cadeias produtivas dos

configurando como agentes executores.

festivais? Existe estruturação de política fiscal para os festivais? Existe leis de regulação para festivais nascentes?

Adicionalmente, o objeto de análise proposto evoca ainda o debate da Economia da Cultura, em particular da articulação

Essas são algumas das questões que mostram a relevância

com o Sistema de Indicadores dos Festivais de Teatro do Brasil

social do problema a ser investigado. Não termos, no Brasil,

e de sua influência na gestão e avaliação de políticas públicas

respostas concretas com razões de ordem teóricas de forma

no país. Entende-se que o conhecimento gerado a partir do

clara, objetiva e rica em detalhes para compreender que os

esforço empreendido no SIFTB retroalimenta o arcabouço

festivais de teatro promovem a inclusão social, a diversidade

teórico, promovendo subsídio ao debate conceitual de estudos

cultural e o desenvolvimento humano.

de caso que podem também contribuir à geração de novos

Compreendemos que a contribuição que a pesquisa pode

conhecimentos de aplicação no campo das políticas públicas.

trazer é no sentido de proporcionar e aprofundar respostas aos

É nesse sentido que se propõe o Sistema de Indicadores dos

problemas propostos e ampliarmos as formulações teóricas a

Festivais de Teatro do Brasil para aprofundar, através de análises

esse respeito. Inédita no país, pode, através da fundamentação

comparadas, os estudos e metodologias de mensuração e

teórica, possibilitar a sugestão de modificações no âmbito da

compreensão da demanda em Economia da Cultura para o setor

realidade setorial dos festivais de teatro. O estudo em andamento

dos festivais de teatro do Brasil.

se enquadra como sistema estatístico sobre o setor cultural

Os objetivos do trabalho podem ser entendidos em

dos festivais de teatro do Brasil e engloba o financiamento à

nível geral e específico. Compreende o desenvolvimento e o

cultura, uma vez que estudamos os modelos e a produção de

aperfeiçoamento do Sistema de Indicadores dos Festivais de

indicadores econômicos conjunturais e do setor. Cabe ressaltar a

Teatro do Brasil, incorporando um marco teórico e conceitual

possibilidade de investigação sobre os festivais como plataforma

fundamentado na Economia da Cultura e nas Indústrias Criativas

de novos modelos de negócios para a internacionalização e

para os festivais de teatro no Brasil.

comércio internacional da produção cênica produzida no Brasil

Como objetivos específicos, pretende-se adicionalmente

e o mercado de trabalho cultural dos festivais com as ocupações

aplicar o Sistema de Indicadores dos Festivais de Teatro do Brasil

criativas dos profissionais do setor.

em alguns festivais, contribuindo com o sistema de gestão dos

É necessário registrar que a Rede de Festivais de Teatro do

mesmos e discutindo resultados (vantagens e desvantagens)

Brasil tem atuado diretamente na gestão executiva da iniciativa

dessas aplicações práticas. Construir massa crítica acadêmica

1

e pesquisa aplicada a festivais de teatro no Brasil. Isso, a partir 1 Os festivais integrantes da Rede, através de participações em reuniões presenciais e/ou informações para o SIFTB: FITRUPA – Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre/RS, Festival Porto Alegre Em Cena/RS, Festival Palco Giratório Porto Alegre/RS, Festival de teatro popular – Jogos de Aprendizagem/ RS, Floripa Teatro – Festival Isnard Azevedo/SC, Festival Internacional de Teatro de Blumenau/SC, Festifante – Festival de Teatro de Artes Integradas para a Infância/ SC, FILO – Festival Internacional de Londrina/PR, Festival de Teatro de Curitiba/ PR, Mostra Espetacular/PR, Mostra Novos Repertórios/PR, Só Em Cena – Mostra de Solos e Monólogos/PR, Mostra Internacional de Teatro São Paulo MITsp/SP, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto/SP, Janeiro Brasileiro da Comédia/ SP, FEVEREFESTIVAL – Festival Internacional de Teatro de Campinas/SP, Festival Em Janeiro Teatro pra Criança é o Maior Barato/SP, Festival Nacional de Teatro de Campo Limpo – FESTCAL/SP, Festival Santista de Teatro-FESTA/SP, Festival de Teatro de Matão-FESTEM/SP, Mostra de Teatro de Sertãozinho/SP, Festival Internacional Paideia/SP, Circuito de Teatro Português/SP, Festival de Teatro de Rua e Teatro A Gosto/SP, Cena Brasil Internacional/RJ, Tempo Festival/RJ, Festival Atos da Fala – ADF/RJ, Fil – Festival Internacional Intercâmbio de Linguagem/RJ, Niterói Em Cena/RJ, Festival Internacional de Teatro Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte/ MG, FESTIM – Festival de Teatro em Miniatura de BH/MG, Festival Latino Americano de Teatro Ruínas Circulares/MG, Festival Estudantil de Teatro – FETO/MG, Festival Integrado de Cultura e Arte –FICA/MG, FACE – Festival de Artes Cênicas de Conselheiro Lafaiete/MG, Festival Nacional de Tetro de Juiz de Fora/MG, Festto/ MG, Festival de Teatro Brasileiro/DF, Cena Contemporânea - Festival Internacional de Teatro de Brasília/DF, Festival de Teatro da Amazônia Mato-grossense/MT, Encontros Possíveis/MT, Festival Zé Bolo Flô de Teatro de Rua/MT, Festival de Teatro Velha Joana/MT, Festival Latino Americano de Teatro da Bahia – FILTE/BA, Festival

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da produção de subsídios teóricos, avaliações aplicadas e estratégias de políticas para demarcar, compreender e propor formas de desenvolvimento do campo da Economia da Cultura no escopo da Economia e Indústrias Criativas.

Internacional de Teatro da Bahia/BA, Festival Maré de Março/BA, Janeiro de Grandes Espetáculos-Festival Internacional de Artes Cênicas de Pernambuco/PE, Trema! Festival/PE, Festival de Teatro do Agreste – FETEAG/PE, FESTEL – Festival de Teatro de Limoeiro/PE, Festival de Teatro Lusófono/PI, Festival O Mundo Inteiro é um Palco/RN, Mostra Internacional de Teatro Paraíba em cena/PB, Festival Popular de Teatro de Fortaleza/CE, Festival Internacional de Máscaras do Cariri/CE, Festival Nordestino de Guaramiranga/CE, Festival Nacional de Teatro de Rua/CE, Festival dos Inhamus/CE, Festival Internacional de Teatro de Rua do Aracati/FESTIMAR/ CE, Mostra de Artes de Rua de Jaguaribe/CE, Festival Curta Teatro/AP, Semana do Teatro no Maranhão/MA. 2 Secretaria da Economia da Cultura do Ministério da Cultura/Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura (NECCULT) da Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS/RS), Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS/RS), área de gestão e implementação de políticas públicas, Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais(Face/UFMG) e Observatório dos Festivais.

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CONTRIBUIÇÃO VISUAL

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a d ra AN B GILV

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, faz r re to a B n , qu e G i l va ilitar s ual M i v a a r te s , is t du agen Dita e ar t e a o d f d a o da te p gr f o tó a te n a ro s e gru p b t o r s a d á e , x i b A s ba ra d a mais 985. i to r e is de ie Tig 4e1 ime s opos 6 r ficia c e 9 o 1 A s ér s d s s qu e do tr e ao uns i n a to n te s ç ão il en g s e s n l s g a e a a r a s m s de as oB rã o , cia o to r i a nou ama os e n r r u C ê e p a r v u e g a , S go re f es t ada j e i ra rió, mo ra s , re d i t , Vare o Cu a co a r to r tu v m r e o e ra c l e o , m s de ez s c dis s o a , co ho, B agen imai l l c n e o m o a c o é p l é e As eis, o, C .A es d ré p t ro s . . Lob gime r t m e u D o m r , o n o a c ao ar os n te s codi das apiv tant p a te am s tu r a el e i i ga , C m v a m e m usav r c te s xib as as Fo agen ue e man ão, C e n te q a u t e r h L n t s , s e o T t o as nç a rmas ins e o, m i ó ti c de O m fo es e p a tr s s ad a v a r e t a p t Mão s , n s o e bo. no xe da m mo hum ns am , pei c o s e c t o e i e d T i g ra r nfíb As sim is s õe s p anos os, a dos õe s. m o ç fe l i n ã a m s r e s o e s ndec re p r flado e co om a amu c c a s t r ico e fle públ í s qu a p m de u


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ARTIGO

DANCINHA 1

QUANDO O FASCISMO INAUGURA UMA DRAMATURGIA

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THIAGO TORRES thiagotorres021@gmail.com

C

omo falar de coreografia a partir de um pensamento político em dança após as eleições presidenciais

de 2018 ocorridas no Brasil? Dividido em três atos a análise dramatúrgica da chamada dancinha pró-Bolsonaro, surgida em Fortaleza no ano de 2018, deriva das discussões com o Prof. Dr. Pablo Assumpção no Programa de Pós-Graduação em Artes da UFC em Artes UFC e cria um diálogo a partir de algumas teorias marxistas do corpo para com seus desdobramentos em dança.

1° ATO. Até meados de 2016, ainda no período da graduação em Dança, escutava periodicamente nas falas dos artistas acerca do processo de criação a frase: “Toda dança é política, sim”. Pensar a dança politicamente nesse contexto seria ampliá-la como campo do saber cujas ações políticas, éticas, estéticas e poéticas desse corpo se mostram e, ao mesmo tempo, produzem um campo possível de posicionamento nesse convívio. Mas, desde o ano de 2016, falar essa frase coloca em conflito o pensamento sobre dança e política que agora podemos traduzir como: “Toda dança é política, sim! E pertence a um partido”.

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ARTIGO

FORTALEZA

2° ATO.

surgira uma apresentação surpresa, uma ação estranha para as

Bolsonaro conhecido por suas falas racistas, preconceituosas e

pessoas da cidade, a chamada Dancinha do Impeachment. Essa

machistas, ganha apoio nacional e um apreço aos valores condu-

dança — partidária — chamou atenção das pessoas e viralizou

zidos pelo seu slogan de campanha:

nas redes sociais ganhando visibilidade como o hino contra a corrupção que destroçava a moral cívica brasileira. As apre-

“Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”.

sentações aconteceram na Praça Portugal, localizada no bairro Aldeota, espaço de concentração empresarial e residências da

Seu discurso em tom nacionalista pela ordem e progresso reproduzira

classe alta de Fortaleza.

nos corpos de gays, negros e pobres, corpos uma subjugação a serem

Por meios de uma música com teor de rítmicos carnava-

expurgadas do país. O clima de terror assombra o Brasil e é desse ter-

lescos seguidos por uma sequência rítmica de movimentos agi-

ror que Bolsonaro se alimentou durante a campanha. Michael Taussig

tados e explosivos, que fazem lembrar as coreografias de axé

vai pensar o terror como um modo eficaz de dominação do corpo

music dos anos 1990 criou-se certas condições para se pensar

desde as colônias a partir da criação de um imaginário da repulsa do

a dança como argumento partidário e, em consequência, a co-

que é diferente (culturalmente e racialmente). Bolsonaro produzira a

reografia como símbolo político promovido pelo movimento

mesma situação, a crença nas narrativas incertas de que um governo

reativo manipulado para desestabilizar e, ao mesmo tempo,

diferente do dele levaria o país ao caos. Uma narrativa que corporifica-

reafirmar um sentimento de “Basta! Quero meu Brazil de volta”.

ra uma rejeição da diferença: “medo do corpo perigoso”.

Explicita um dos coreógrafos a referida dancinha, em entrevista à Folha de São Paulo:

Movido por uma espécie de alienação do corpo como uma possível governabilidade pelo medo 2, Bolsonaro desmascara a nítida e perversa divisão do país. Como cita Elizabeth Grosz acerca do pensamento

“Dança feita no Brasil é a ‘dança’ da corrupção e a ‘coreografia’

dualista no mundo, voltamos ao pensamento binário do bem e do mal,

latino-americana da construção do socialismo e do comunis-

o certo e o errado, a oposição que cria a recusa: um abjeto, aquilo que

mo para subjugar as nações e suas sociedades a um regime po-

não desejo: os fantasmas colonialistas dos séculos passados voltam a

pulista e terrorista. Essa sim é a dança da vergonha nacional”.

atormentar o Brasil de 2018, só que agora eles se corporificaram. A obra coreográfica Dancinha Pró-Bolsonaro se realiza na Av. Beira

Uma coreografia cujo sentido foi capturado e reestruturado

Mar, cartão-postal da cidade e de intenso fluxo turístico. Essa dancinha

aos modelos pré-formatados de uma condição política e social

teve a concepção dos mesmos envolvidos na Dancinha do impeach-

do corpo no Brasil. Assim, segundo Lepecki:

ment liderada pelo grupo consciência patriótica. Entre espaço físico, figurino, maquiagem, música, coreografia, pú-

[...] ao entrar no concreto mundo das relações humanas, a co-

blico, tudo se converge para uma dramaturgia que opera por discursos

reografia aciona uma pluralidade de domínios virtuais adversos

visíveis e invisíveis 3 ao corpo. Penso que essa dramaturgia salta da rela-

– sociais, políticos, econômicos, linguísticos, somáticos, raciais,

ção engendrada entre as partes que compõem essa coreografia e seu

estéticos e de gênero – e os entrelaça a todos no seu muito parti-

discurso no emaranhando poético da dança. Como dramaturgista de

cular plano de composição, sempre à beira de um sumiço e sem-

processos de criação, neste momento, chamo-a de Dramaturgia do Fas-

pre criando um por vir.  1

cismo. Seus figurinos trazem calças e blusas, sendo esta última a grande faceta da coreografia. Em suas camisetas de diferentes cores, estampa

2 TAUSSING, 1993. 1 2012, p. 46.

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3 PAIS, 2004.

"frango" – foto: pedro lacerda


em grande escala, o rosto de Bolsonaro como símbolo maior da apre-

3° ATO.

sentação. Repetições de movimentos = repetições da face de Bolsona-

Como dramaturgista, tropeço: como falar de dança e política de-

ro. Neste caso, nota-se o poder entre a reprodução do capital e a sub-

pois dessa coreografia? Como pode a dança?

versão do corpo a esse poder como estratégia entre a força de trabalho — coreografia — e o capital, o produto consumido por seus aliados. Há ainda, no movimento coreográfico, o jingle que em êxtase se repetia. Há ali uma vibração corporal que extrapola as fronteiras do corpo,

O QUE PODE A DANÇA?

vibrando em frequências mais altas pelos sentidos da ação que a dança realiza naquele espaço. É importante pensarmos que esta coreografia imbrica uma espécie de consciência social a qual Raymond Williams

Desta maneira, colocam-se em questão os regimes

(1978) cita como uma operação de modificação da presença na própria

compositivos da coreografia e suas articulações ema-

vivência do acontecimento. Assim, criou-se um movimento coreográ-

ranhadas aos corpos. Uma dança política de modos

fico contraditório: o “mito” como verdade corporificada. A estrutura da

discursivos intrínsecos ao mundo e de corpos que em

obra citada converge com essa “estrutura de sentimento” pensada por

coro realizam uma coreografia com funções fascistas.

Raimund Williams e que, segundo o próprio autor, é uma ideologia.

Partindo desse pensamento crítico, o gesto que resgata

Esse aparato coreográfico estabelece uma relação corpórea com

a metralhadora ergue então o fascismo dessa dança.

os presentes na dancinha. Sua estrutura dramatúrgica convoca relações internas específicas que, ao mesmo tempo, engendram uma experiência

Oferecer de espetáculo camuflador, uma ação da

social em tensão: o aparecimento de uma nova estrutura de sentimento

política de extermínio.

se relaciona melhor com a ascensão de uma classe, afirma Williams (1978). Os movimentos coreográficos aparecerem em alto nível com trabalho de braços, um rigor de execução que muito nos lembra as marchas dos grandes exércitos. Se formos comparar bem, nas demonstrações dos corpos dos exércitos em seus desfiles, existe a exigência de uma execução

RE F E RÊ NCIA S BIBL IOGRÁ F ICA S.

fina, limpa e organizada. O corpo de baile de Jair Bolsonaro não seria diferente, eis um sinal: é preciso instituir ordem aos corpos brasileiros. Assim se mostra a Jair Bolsonaro cia de dança: limpa, precisa, rigorosa. Mas, um ato simbólico surge: o gesto que mimetiza a arma de fogo. Executado como imagem da campanha de Bolsonaro, o gesto da arma reproduz um discurso: a liberação do armamento. Os coreógrafos inseriram esse gesto inaugurado pelo candidato na estrutura coreográfica das danças que o celebram, e agora esse gesto passa a ser dançado: a dança como arma. Um gesto que condiz inúmeras tramas: se Adolf Hitler cons-

GROSZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu, v. 8, n. 14, p. 45-86, São Paulo, 2000. KATZ, Helena. O corpo como mídia de seu tempo. Cd Rom Rumos Itaú Cultural Dança. Itaú Cultural. São Paulo, 2004. LEPECKI, A. Coreo-política e coreo-polícia. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 13, n. 1,2, p. 041-060, jan. 2013. PAIS, Ana Cristina Nunes. O discurso da Cumplicidade: Dramaturgias contemporâneas. Lisboa: Colibri, 2004.

trói o nazismo em cima de um movimento coreograficamente repetido,

TAUSSIG, Michael. O espelho colonial de produção in Xamanismo,

Bolsonaro inaugura um gesto para ser fielmente repetido: a arma. Essa co-

colonialismo e o home selvagem: Um estudo sobre o terror e a cura.

reografia, em sua natureza festiva, passa a camuflar e disfarçar o percurso

Tradução de Carlos Eugenio Marcondes de Moura. Rio de Janeiro:

inevitável a ser traçado neste governo, desde a liberação da posse de arma

Paz e Terra, 1993.

de fogo até a ordem e homogeneização do país prometido: um percurso em declívio que se compõe de uma apologia pelo gesto dançado.

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WILLIAMS, Raymond. Estrutura de sentimento in Marxismo e Literatura. Tradução de Waltesnir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1979.

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EXPETREMA! revista de teatro EDIÇÃO DA política ANO 4

#14

ABRIL 2019

COORDENAÇÃO TREMA! PLATAFORMA DE TEATRO Mariana Rusu e Pedro Vilela

CONSELHO EDITORIAL Mariana Rusu, Olívia Mindêlo, Pedro Vilela e Thiago Liberdade

EDIÇÃO Mariana Oliveira

REVISÃO Olívia Mindêlo, Mariana Oliveira e Pedro Vilela

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Thiago Liberdade

PROPONENTE DO PROJETO Mariana Rusu

COLABORADORES DA EDIÇÃO* Alexandre Vargas, Cassiana Reis Lopes, Elilson, Gilvan Barreto, Pedro Caetano Eboli, Thiago Torres, Wagner Schwartz, Rodrigo Maroja e Tereza Bettinardi *As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

PLATAFORMA TREMA! tremarevista@gmail.com tremaplataforma@gmail.com facebook.com/tremaplataforma www.tremaplataforma.com.br +55 (81) 9 9203 0369 | (81) 9 9223 5988

Tiragem: 500 exemplares (por edição) Impresso pela Brascolor | ISSN: 2446-886X

Edição da POLÍTICA | Nº #14 | Ano #4 | Recife, Abril de 2019

cartaz, feito por rodrigo maroja

Realização:

Incentivo:

A TREMA! Revista de Teatro de Grupo é uma publicação com incentivo do FUNCULTURA – Fundo de Incentivo a Cultura de Pernambuco.


ISSN: 2446-886X

T I RO S NÃO É AC ID E NT E politiká

1. Ciência do governo das nações. 2. Arte de regular as relações de um Estado com os outros Estados. 3. Sistema particular de um governo. 4. Tratado de política. 5. [Figurado] Modo de haver-se, em assuntos particulares, a fim de obter o que se deseja. 6. Esperteza, finura, maquiavelismo. 7. Cerimónia, cortesia, civilidade, urbanidade.


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