EDIÇÃO DO festival 17
ANO 2 #10 MAIO 2017
TREMA! revista de teatro
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R E C I F E , M A I O D E 2017
É isso mesmo, Sensacionalista? Botaram Rivotril na água do brasileiro? As panelas já voltaram a ser elas mesmas? As ruas continuam vazias... A gente pode, então, se encontrar nos teatros? Quem sabe nestas páginas? Já não sabemos o que podemos fazer em torno desta inércia… Mas haverá alternativas. Haverá o TREMA! Festival, e onde há o TREMA!, dificilmente água vira lodo. Este ano, chegamos à nossa quinta edição, com sangue nos olhos e um mínimo de dinheiro no bolso – até que enfim! –, pois esta é a primeira vez que contamos com patrocínio – do Itaú, através da Lei Rouanet, e do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura, o Funcultura, que incentiva esta revista desde 2014/2015, antes mesmo de apoiar o festival. Mais do que uma filha do TREMA! Festival, a TREMA! Revis-
ta é uma representante dos ânimos que alimentam nossa plataforma, nossos palcos, nossos artistas, nossos colaboradores; nós. Com vidas interdependentes, revista e festival se encontram pela segunda vez neste 2017, fortalecendo-se e fomentando os temas que inspiram o teatro contemporâneo e norteiam agora o trabalho de curadoria do festival. São 15 espetáculos, 25 apresentações, três lançamentos de livros, três oficinas e quatro debates entre os dias 3 e 14 de maio. Edição do Festival 17. Nas páginas a seguir, são três críticas so-
bre espetáculos da programação ("Leite derramado", "Cabeça" e "Noite), um artigo sobre o trabalho do Teatro Máquina (CE) e uma entrevista com Ronaldo Serruya (Teatro Kunyn, SP) e Marcondes Lima (Coletivo Angu de Teatro, PE), todos convidados do festival este ano. Também lançamos nossa pergunta Trema! com base nos horizontes de discussão destes dias de encontro nos teatros do Recife. “Esquerda: utopia ou distopia?”.
itorial
Escreve Jorge Louraço, de Portugal, sobre “Noite”, que: “Quan-
do terminarem as apresentações da peça, talvez as figuras desta Noite passem a fazer parte das assombrações de um Recife novo. Os espectadores terão sido contaminados e o dia amanhecerá com ou-
tras cores. Nas manhãs seguintes, os vultos serão vistos saindo dos
velhos sobrados, escorregando pelas portas, como sinais de fogo de uma noite que já passou, mas ainda não passou de vez...” Boa leitura!
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GALERIA
SALMO 91
"salmo 91" — foto: wilson lima
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DIAFRAGMA 1.0: COMO MANTER-SE VIVO?
"diafragma 1.0 – como manter-se vivo?" — foto: danilo galvão
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GALERIA
MEU NOME É ENÉAS – O ÚLTIMO PRONUNCIAMENTO
"meu nome é enéas - o último pronunciamento" — foto: caio tiburtino
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PROCURA-SE UM CORPO - AÇÃO Nº3
"procura-se um corpo - ação nº3" — foto: rubens henrique
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GALERIA
ABNEGAÇÃO 2 – O COMEÇO DO FIM
"abnegação 2 – o começo do fim" ("trilogia abnegação") — foto: claudinei nakasone
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UTOPYAS FOR EVERY DAY LIFE
"utopyas for every day life" — foto: mayra azzi
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ilustração para entrevista com alzira medeiros (então presidente do dce da ufpe) ao "suplemento dn", n. 4, 7/5/1979
ESQUERDA: utopia ou distopia? p — 12
pergunta
TREMA! "Eu estou mais para a utopia, a utopia como sendo algo que nos mobiliza, que faz a gente acreditar na possibilidade de transformar, de criar condições, de criar uma vida mais decente, mais harmônica, mais feliz. Então, é nessa perspectiva de não nos imobilizar, de não nos tornarmos pessoas comodistas e também de não acreditarmos em um sonho individualista, do individualismo, do sucesso, de que "eu tenho que ter sucesso para poder me sentir feliz e integrado socialmente, politicamente". A utopia é algo que mostra para gente que nós temos capacidade de construir, de transformar, de seguir adiante, para que todo mundo possa ter os mesmos direitos, para que todo mundo possa usufruir da vida culturalmente, socialmente, que possa existir igualdade e também existir respeito à diferença. São utopias que estão muito ligadas à vida contemporânea, mas que apontam para um caminho que mobiliza, mobiliza diferentes pessoas, mobiliza diferentes grupos sociais. Não aquela utopia que mobilizou a esquerda num determinado momento, de construir um Estado socialista, que também não correspondeu a uma determinada utopia de esquerda, transformando-se, para alguns, num pesadelo burocrático, com uma reprodução elitista de privilégio. Então, nós, na América Latina, no Brasil, temos que construir a nossa utopia. E a nossa utopia com certeza não está ligada à visão antiga de esquerda que construiu aquela ideia de Estado totalitário. Por isso, eu concordo com o que diz Eduardo Galeano: 'A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho 10 passos e o horizonte corre 10 passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar'."
ALZIRA MEDEIROS
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socióloga da economia solidária, militante do bem-viver
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colaboradores desta edição
JORGE LOURAÇO
MARCONDES LIMA
escreveu “Cassandra de Balaclava”,
mestre em Teatro pela UFBA e
MARIANA BARCELOS
“Xmas qd kiseres” e “O espantalho
professor do curso de licenciatura
mestranda em Ciência Política no
Teso”, entre outras peças, e encenou
em Teatro da UFPE. É integrante do
RONALDO SERRUYA
IESP-UERJ, graduanda em Ciências
“Conta-me como é”, com textos de
Mão Molenga Teatro de Bonecos
artista-fundador e dramaturgo do Teatro
Sociais pela UFRJ e bacharel em Teoria
Pedro Marques, Jorge Palinhos e Sandra
(PE) e do Coletivo Angu de Teatro
Kunyn (SP), com quem acaba de escrever
do Teatro pela UniRio. De 2008 a 2010,
Pinheiro. No Brasil, trabalhou com os
(PE). Atua como encenador,
a peça "Desmesura", mais recente trabalho
foi colaboradora do Fórum Virtual
encenadores Marco Antonio Rodrigues,
cenógrafo, figurinista, maquiador
do coletivo que estreia em maio no
de Literatura e Teatro da UFRJ. Desde
Cibele Forjaz e Marcelo Lazzarato, e
em teatro, dança e ópera, além de
Centro Cultural São Paulo (CCSP). Atua
2008, escreve para a revista eletrônica
publicou “Verás que tudo é verdade”,
fazer incursões em audiovisual e
também no grupo XIX de Teatro.
˜Questão de Crítica˜.
sobre o grupo Folias (SP).
cinema como diretor de arte.
FRAN TEXEIRA
POLLYANNA DINIZ
diretora de teatro e artista do
jornalista, crítica e pesquisadora
Teatro Máquina (Fortaleza/CE). Sua
de teatro. Idealizadora e editora do
pesquisa aborda principalmente a
blog “Satisfeita, Yolanda?” (PE), de
poética brechtiana, seus modelos de
críticas e notícias de artes cênicas.
encenação e a dramaturgia das peças
É mestranda em Artes Cênicas pela
didáticas. Investiga processos criativos
USP, onde também edita a “Revista
em teatro de grupo nas interfaces
Aspas”, vinculada ao programa de Pós-
dramaturgia e encenação. Participa dos
Graduação em Artes Cênicas da ECA-
Programas de Pós-Graduação em Artes
USP. Integra a Associação Internacional
do ICA/UFC e do IFCE. É professora da
de Críticos de Teatro (IACT-AICT),
Licenciatura em Teatro do IFCE.
afiliada à Unesco.
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CRÍTICA
ABANEM AS MOSCAS
DO LEITE PODRE! UMA REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE O ESPETÁCULO "LEITE DERRAMADO", DA CIA CLUB NOIR (SP)
"leite derramado" — foto: edson kumasaka
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POLLYANNA DINIZ pollydiniz01@gmail.com
N
o prólogo do espetáculo, para que não restem quaisquer dúvidas, um aviso é estampado: “Nossa tragédia é toda sua”. “Leite derramado”, adaptação do diretor e drama-
turgo Roberto Alvim para o livro de Chico Buarque, diz respeito a cada um de nós, sentados na cadeira do teatro por pouco mais de uma hora. Mesmo dividindo essa tragédia, logo de cara, com o seu interlocutor, o carioca radicado em São Paulo não se mostra interessado em construir uma obra realista, cuja narrativa se ajuste a parâmetros como coerência, encadeamento de fatos e consequências. Aliás, a trajetória do criador da companhia Club Noir, cuja sede fica na Rua Augusta, em São Paulo, tem como marcas justamente a experimentação e a radicalidade, principalmente no trabalho do ator e na concepção de uma espécie de microcosmo cênico bastante particular. Em “Leite derramado”, espetáculo mais recente da companhia, estreado no segundo semestre do ano passado no Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, a relação com o espectador se revela potente porque a
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a atriz juliana galdino interpreta eulálio em "leite derramado" — foto: edson kumasaka
encenação abre frestas na realidade, proporciona embaralha-
dícios que podem nos fazer pensar como chegamos até aqui.
mentos, permite associações e muitos estranhamentos. Uma
Nas memórias de Eulálio, resquícios do Império, passan-
das questões é que a montagem não tem a ver só com a his-
do pela escravatura, os primeiros anos da República, a dita-
tória do centenário Eulálio Montenegro d’Assumpção, perso-
dura militar, os 500 anos do Brasil. “A memória é deveras um
nagem nascido em 1907, e toda sua estirpe, o seu memorial
pandemônio”, diz Eulálio no livro. Bem mais adiante, comple-
familiar desde um antepassado dos tempos de Napoleão ao
menta: “Mas se com a idade a gente dá para repetir certas his-
tataraneto traficante de drogas. Está ali – tanto no livro, mas
tórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não
de maneira mais crua, condensada e direta no palco – uma
param de acontecer em nós até o fim da vida”. Tanto memória
representação do que é o nosso país: um retrato em tons fan-
quanto História correm sempre o risco de se tornarem cícli-
tasmagóricos, embora vibrantes, juntamente com alguns in-
cas. Indiretamente, “Leite derramado” sublinha nossos dias:
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o governo golpista, a lista de investigados na operação Lava
sonora original composta por Vladimir Safatle. Podem servir
Jato, os delatores da Odebrecht, o coronelismo na política
ainda como alegoria, incrementada pela utilização de uma
pernambucana (ainda) hoje, o corpo do garoto morto depois
iconografia de cores fortes que, se retirada do contexto, pode-
da ação truculenta de policiais em Itambé, na Zona da Mata de
ria ser considerada talvez infantil. Colorida demais para uma
Pernambuco – contraditoriamente durante um protesto que
encenação de tons sóbrios. Imagens em estandartes mostram
pedia por segurança –, os jovens negros assassinados todos os
peixe, cobra, onça, coqueiro e até um Saci Pererê. Dentro da
dias nas periferias do país, a miséria que mata.
teatralidade proposta pela encenação, fazem todo sentido.
Na reescrita cênica de Alvim, os personagens de Chi-
Para quem leu o livro, a principal adaptação ao romance
co Buarque assumiram um caráter quase espectral, envoltos
de Chico Buarque é a supressão de Matilde, por quem Eulá-
numa atmosfera de suspense constante, ampliada pela trilha
lio nutre praticamente uma obsessão. Ao longo do texto, por
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CRÍTICA exemplo, ele conta inúmeras vezes como a conheceu. Nesse
de criação da Club Noir, detalha que a “grotesca” cabeça de
sentido obsessivo, a obra de Chico traça semelhanças com
mosca remete ao filme “A mosca da cabeça branca” (1958),
“Dom Casmurro”, de Machado de Assis. Assim como Bentinho,
“um misto de terror e ficção científica”, lembra o crítico,
Eulálio é assombrado pelos ciúmes e pela possibilidade da
referindo-se à obra de Kurt Neumann refilmada em 1986
traição. Um dos mistérios de “Leite derramado” é o fim que
por David Cronenberg, sob o título “A mosca”. Mais à fren-
teria levado Matilde, que desaparece deixando a filha, Maria
te, acrescenta outra referência: “as moscas simbolizariam a
Eulália, ainda muito criança. Nas voltas que a memória de Eu-
busca que a antiga divindade síria Belzebu (cujo nome sig-
lálio dá durante toda a história, algumas possibilidades sur-
nifica literalmente “senhor das moscas”) encarna como o
gem: ela fugiu? Foi suicídio? Doença? Boa parte do romance é
príncipe dos demônios. Lembra ainda a fábula de La Fontai-
dedicado às memórias ou alucinações de Eulálio com Matilde.
ne, “A carruagem e a mosca”: “(...) a mosca pode simbolizar
Quando decide não investir nesse caminho em absoluto,
o pseudo-homem de ação – ‘ágil, febril, inútil e reivindica-
Roberto Alvim deixa claro ao espectador o recorte político do
dor’”, complementa.
espetáculo. São as histórias vinculadas à tradição da família
A imagem que me veio à mente ao longo do espetáculo
do personagem e sua derrocada, como as estruturas de poder
é a da praga de moscas nas cozinhas das roças de interior,
vão ruindo ou apenas se modificando ao longo do tempo, que
que insistem em não deixar uma simples refeição acontecer
servem ao propósito de Alvim. A adaptação do texto, inclu-
em paz. Um almoço sequer. Que incomodam e resistem a
sive, é um dos destaques da montagem: a maneira como os
todas as tentativas de nos livrarmos delas. As moscas que se
episódios mais significativos foram compilados, imprimindo
proliferam na casa-grande, mas também nos casebres pelo
à encenação um ritmo ágil, mas ao mesmo tempo, dando es-
país afora. Quais as pragas mesmo que não conseguimos
paço para respiros e dúvidas diante do jorro de memórias do
controlar neste país? A corrupção, por exemplo? Que apare-
personagem principal.
ce numa cena icônica do espetáculo, ao som de uma bateria de escola de samba? O racismo? A imagem chocante de um personagem negro sendo simbolizado por um saci? Ou a ín-
A MOSCA DA CASA GRANDE
dia vestida de enfermeira que Eulálio promete ensinar a usar os talheres?
A rigidez formal na encenação pode ser considerada uma das marcas do diretor Roberto Alvim. Em sua formalização estética, precisão e plasticidade, “Leite derramado” lembra
UMA ATRIZ ABSURDA
como, por exemplo, os do norte-americano Robert Wilson.
Os espectadores mais desavisados podem perfeitamente
Uma das características do pós-dramático, segundo o teóri-
deixar o teatro sem notar que Eulálio Montenegro d’Assump-
co Hans Thies Lehmann era, inclusive, a horizontalidade no
ção é interpretado por uma mulher. Uma atriz com um estofo
tratamento dos elementos da encenação. Todos eles tinham
corporal surpreendente e um trabalho de voz absurdo. Par-
a mesma importância, retirando do texto a primazia no es-
ceira de vida e de muitos trabalhos no teatro com Roberto
petáculo. “Leite derramado” pode ser considerado um bom
Alvim, Juliana Galdino assume, nas gradações da sua voz, a
exemplo dessa relação de equilíbrio entre texto, atuação,
complexidade dos fluxos de consciência do personagem. Se a
iluminação, cenografia, música.
obra literária já permeava e misturava em altas doses os cam-
O encenador demonstra sua competência no manejo
pos da realidade, da memória e da alucinação, na peça essa
desses elementos, erguendo um espetáculo que se mostra
fricção é potencializada. Além disso, o livro é escrito todo em
forte e potente em todas as suas frentes. Provocador e, ao
primeira pessoa, mas no espetáculo teatral a narrativa se des-
mesmo tempo, sedutor, justamente pelos estranhamentos
dobra noutras vozes, como a da filha de Eulálio. A voz fina e
que desperta na relação com o espectador. A iluminação de
infantilizada da personagem também é feita por Juliana Gal-
Domingos Quintiliano é responsável por criar espaços para
dino, com um apurado domínio técnico.
as alucinações e para o clima de pesadelo que repetidas ve-
Estão ainda no elenco Renato Forner, Diego Machado,
zes se instaura no espetáculo. Uma imagem recorrente nes-
Taynã Marquezone, Caio D’Aguilar, Marcel Gritten, Luis Fer-
se microcosmo de muito impacto plástico criado por Alvim
nando Pasquarelli e Nathalia Manocchio. Como em outros
em “Leite derramado” é a mosca. Quando digo estranho, é
espetáculos de sua trajetória, Roberto Alvim idealizou e
estranho no sentido literal mesmo: o espetáculo começa
imprimiu aos atores corpos que pouco se movimentam; e,
com uma espécie de duelo coreográfico entre três moscas,
quando o fazem, tudo revela bastante precisão. Ainda que
ao som da gravação original de “Aquarela do Brasil”, de 1939.
muitos deles se coloquem em cena praticamente estáticos,
Aliás, ampliando a informação, os atores carregam ca-
essa imobilidade coopera na instauração desse microcosmo
beças de moscas e vestem roupas hospitalares, uma alusão
cênico estranho e calculadamente construído por Alvim. Uma
ao ambiente de hospital no qual se encontra o personagem
espécie de teatralidade ritualizada, que se desloca da realida-
principal, centenário. As moscas voltam em diversas cenas.
de esteticamente, mas choca pela proximidade do discurso,
No ensaio “Leite derramado – Mise em Abyme” do desvario,
das interpretações que podem ser conferidas à narrativa, uma
o crítico Wellington Fernandes, que acompanhou o trabalho
tragédia que é, de fato, nossa.
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taynã amrquezone em "leite derramado" — foto: edson kumasaka
trabalhos da década de 1980 considerados pós-dramáticos,
o futuro ainda é feminino
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manifestação do coletivo #entre sem bater na vila autódromo (RJ) — foto: léo lima
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pergunta
TREMA!
"Toda forma de poder traz, em si, suas armadilhas. No Brasil de hoje, em que é visível o crescimento de pensamentos individualistas e do conservadorismo, tanto do ponto de vista social, quanto do econômico – ou será que ele sempre esteve ali e com a internet ouvimos e vemos mais? –, não consigo deixar de pensar no princípio do bem-estar social. A atual carga tributária no Brasil é injusta e arrecada mais de quem tem menos e menos de quem tem mais. Como se não bastasse, o Estado não garante a distribuição desses tributos de maneira igualitária. Tendo a direcionar minha esperança para o mundo em que o bem-estar social seja a lei, mas ainda não é o que acontece. Na ascensão neoliberal, é cada um por si e nenhum por todos. A real é que ainda não experimentamos um governo efetivamente de esquerda – de esquerda mesmo – que promovesse a proteção, a saúde, o respeito e a educação à toda população, pois até quando se acreditou, os “ideais” neoliberais estavam ali.
ERIKA MUNIZ Licenciada em letras, estagiária de jornalismo e diariamente feminista
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ENTREVISTA
RONALDO SERRUYA
& MARCONDES LIMA p — 24
V E R M E L H O
L A R A N J A
U
ma distância geográfica soa como mera convenção diante dos pontos de encontro que o teatro promove por meio dos seus temas e processos
criativos (cada vez mais urgentes). Assim é que São Paulo e Recife se encontram aqui ou nos palcos, por meio das falas e dos trabalhos de Ronaldo Serruya e Mar-
A M A R E LO
condes Lima. Enquanto o primeiro veste a identidade de dramaturgo e ator do Teatro Kunyn (SP), o segundo apresenta-se como, entre outras apostos, professor do curso de licenciatura em Teatro da UFPE e integrante e do Coletivo Angu de Teatro (PE). Abaixo, eles respondem a cinco perguntas do diretor e ator Silvero Pereira (enviadas por e-mail) sobre um ponto que lhes “move”, lhes “atravessa”, lhes tira da zona de conforto: as questões de Diversidade e Gênero postas em cena.
V E R D E
A Z U L
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R Op — XO 25
ENTREVISTA
ronaldo (esquerda) em "orgía ou de como corpos podem substituir as ideias" — foto: vitor vieira
por SILVERO PEREIRA
nós. Essa estrutura pauta os corpos, os pactos afetivos, as rela-
“Nós, artistas homossexuais, olhávamos para a dramaturgia produzida no Brasil, sobretudo, e víamos claramente duas vertentes de representação para personagens gays: a marginalidade e a caricatura. Queríamos outro viés”
ções sociais. Está impregnada em todo lugar. Então, processos
Ronaldo Serruya
Em que consiste a necessidade de construir processos criativos pautados em Diversidade e Gênero?
RONALDO SERRUYA Acho que essa necessidade surge da vontade de problematizar a estrutura normativa, que encarcera todos
criativos que são pautados na tentativa de fazer refletir questões de diversidade e gênero desestabilizam essa estrutura, e isso nos interessa porque, de alguma forma, a arte e os processos artísticos devem ajudar a ruí-la, devem fazer deslocar os pensa-
mar pessoas, a começar pelos próprios artistas. Se pode trans-
mentos acerca dos corpos e da sexualidade. No caso do Kunyn,
mutar a realidade, simbolicamente, no palco também pode al-
essa necessidade se deu, num primeiro momento, por uma cri-
terar a “ordem” de pensamento de alguns espectadores. Se isso
se de representatividade. Nós, enquanto artistas homossexuais,
acontece, para mim já está valendo o esforço no caminho das
olhávamos para a dramaturgia produzida no Brasil, sobretudo, e
mudanças de mentalidade e de comportamento que sabemos
víamos claramente duas vertentes de representação para per-
serem necessárias e leeeeeentas.
sonagens gays: a marginalidade e a caricatura. Queríamos outro viés. Queríamos falar dessa questão sob perspectivas outras. Para que a discussão se ampliasse.
por SILVERO Tratam-se de processos de demandas pessoais?
MARCONDES LIMA Numa sociedade machista e heteronormativa, como a brasileira e nordestina, onde os agravos que atingem mu-
RONALDO A princípio, sim. Acho que o artista sempre parte de uma
lheres (sejam cis ou trans) e homossexuais são tão corriqueiros,
demanda pessoal, porque sinto que ele precisa estar conectado
violentos e criminosos, é mais do que necessário pautar proces-
com o tempo em que vive, falar desse tempo, das contradições que
sos criativos sobre Diversidade e Gênero. A arte, sozinha, nunca
o permeiam enquanto sujeito e agente desse tempo. Agora, é claro
teve o poder de transformar o mundo, mas consegue transfor-
que precisa, sim, transcender uma pessoalidade, precisa elaborar o
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marcondes (esquerda) em "ossos" — foto: joanna sultanum
dos 13, me confessou que tenta se “enfeiar” para fugir do assédio
“Numa sociedade machista e heteronormativa, como a brasileira e nordestina, onde os agravos que atingem mulheres e homossexuais são tão corriqueiros, violentos e criminosos, é mais do que necessário pautar processos criativos sobre Diversidade e Gênero” Marcondes Lima
discurso para que não se acabe em um processo terapêutico. A terapia é um processo individualizado, quase “egoico” de busca de au-
masculino. Morro de vergonha por causarmos medo e repulsa nas mulheres. Tento todo dia não reproduzir um comportamento machista e muitas vezes me vejo voltando casas atrás. Dou aulas num curso de teatro há exatos 25 anos e encontro em minha sala de aula, em maior número, mulheres e seres desviantes da dita normatividade e do binarismo. Vejo o quanto a vida é mais dura para quem não se enquadra nas regras ditadas, e isso não está apartado de mim.
por SILVERO O que se espera como resultado de contato obra e espectador?
toconhecimento. A arte precisa dar conta de falar por muitas vozes, precisa dar conta de trazer à tona vozes que historicamente foram
RONALDO Se espera deslocamento. Se espera que, com o resulta-
relegadas à invisibilidade.
do de nossos trabalhos, o espectador em fricção com a obra possa se deslocar, sair de maneira diferente da qual entrou. Se afetar
MARCONDES
Eu penso que todo artista, em algum nível, sem-
e ser afetado. Se sempre conseguimos, é uma outra história. Mas
pre pauta seus processos sobre demandas pessoais. Não daria o
é sempre essa a tentativa. E que esse deslocamento não se dê
nome da arte a algo que não surja desse ponto de partida. Se não
através de respostas. A gente nunca quer responder nada. A gen-
for assim, o discurso já nasce torto, falso, morto. Senti na pele o
te quer fazer novas perguntas, diferentes das que estão sendo
peso da androginia desde a primeira infância. Já sofri abusos e
feitas. Por que o mundo insiste em oprimir tudo aquilo que não
agressões por não me enquadrar nos padrões comportamentais
se encerra em um compartimento esperado e seguro? Por que à
do “macho alfa”. Em minha família, as mulheres são em maior
resposta ao que foge da norma, do padrão é sempre violenta? Por
número que os homens e, desde cedo, vi muito bem o que pas-
que esse medo quase sempre vence? A quem interessa essa in-
sam. Tenho uma sobrinha trans que mora no interior de Pernam-
sistência em não nos encontrarmos e afirmarmos nossa potência
buco, em Petrolândia. Fiquei arrasado quando minha filha, antes
exatamente pelas diferenças?
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ENTREVISTA
MARCONDES
Apenas um toque já vale a
pena. Afetar, sensibilizar, destampar falatórios, contribuir para que aconteçam reflexões, divertir, agradar e desagradar. Quando jogamos uma pedrinha no lago íntimo do espectador, nunca sabemos a exata reverberação que causamos com ela. O que sei é que é esse contato — parte comunicação, parte expressão — que dá sentido ao que faço e a como faço. por SILVERO É um ato de resistência, urgência? Até onde se caminha com ética e estética? Arte e Social, Didático e Artístico?
RONALDO É sempre um ato de pura urgência. Porque estamos morrendo. As identidades exiladas estão sempre morrendo. Aqui e agora, enquanto respondo essas perguntas, elas estão morrendo. O Brasil é esse país bizarro, campeão em feminicídios, em mortes por motivação homofóbicas, transfóbicas, racistas. Como ser um artista e não se inquietar diante desse extermínio? É um ato de resistência, porque é isso ou morrer. E não queremos morrer, nem enquanto artistas, nem enquanto identidades. E, ao mesmo tempo, temos noção dos nossos privilégios, enquanto um coletivo criado numa cidade como São Paulo, um lugar onde ainda existem muitas possibilidades de criação, embora, nesse exato momento, haja uma clara tentativa de desmanche de tudo o que se conquistou em termos de
ronaldo (direita) no espetáculo do kunyn "dizer e não pedir segredo", que integrou a primeira edição do trema! festival — foto: adalberto li
políticas públicas. Além disso, somos homens, gays, brancos e cisgêneros. É preciso reconhecer os pri-
podemos falar sobre isso que estamos querendo falar e de que
“Não vivemos mais no tempo em que o que pode te motivar como artista seja a personagem, o desafio de uma determinada atuação. Isso é ego. É vaidade. O que precisa te motivar é o que te atravessa, o que te tira o sono, o que te estarrece”
forma podemos falar sobre isso que estamos querendo falar.
Ronaldo Serruya
vilégios, é preciso entender o recorte nesse momento em que os desajustes históricos abissais estão sendo cobrados, para que a gente não caia na armadilha de roubar protagonismos de ninguém. Por isso que hoje precisamos, sim, na condição de artistas, refletir muito sobre o que estamos querendo falar, se
Durante muito tempo, o teatro foi o lugar inquestionável do Ator. Eu não sei se é mais assim, e eu acho bom não ser mais assim, acho bom saber dos limites. O limite, antes de ser censura, ele é um alargamento da consciência, abre seu olhar para o entorno, para aquilo que não é você, que te faz ver além da sala
MARCONDES As urgências se agudizam a cada dia e não cessam.
de ensaio, da “pesquisa”. Te conecta com a vida e todos os seus
Não é só ato de resistência: é marginal e vital. Dentro da estética,
brutais atravessamentos. Isso só pode te fazer um artista me-
está a ética. Inseparáveis. Junto a elas, a dialética. O caminho deve
lhor. E por último, em relação ao Didático e Artístico, acho que
ser o da dignidade e da integridade, sempre. Tudo tem limite e
é um risco que sempre corremos e para fugir disso, temos que
precisamos nos dar conta de que limite é sutilmente diferente de
estar sempre olhando para os modos como nossos discursos
limitação. Somos uma raça de gente que gosta de revirar coisas
artísticos são elaborados, como construímos as pontes com o
pelo avesso e, com isso, corremos muitos riscos. Mas a vida é um
tempo e o tema.
risco do começo ao fim. Não vejo como apartar arte e social, visto
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teias e possíveis financiamentos?
RONALDO
Essa pergunta é bem delicada e
pertinente, porque a estrutura normativa se apropria de tudo. Até dos temas que, a princípio, parecem questioná-la. É esse o seu caráter perverso, porque aquilo que é norma não vai ceder nunca. Então, hoje temas como Diversidade e Gênero estão na crista da onda, pululam em todos os lugares: nas academias, nos teatros, nas galerias, nos cinemas... até a TV já se apropriou disso. Acho que uma forma de evitar a armadilha da “cafetinagem artística” é sempre se perguntar sobre a legitimidade de sua fala, de onde ela nasce de fato, que desejo é esse que te move, porque isso vai sempre te dizer do real motivo de sua intenção como artista. Eu particularmente acho que não vivemos mais no tempo em que o que pode te motivar como artista seja a personagem, o desafio de uma determinada atuação. Isso é ego. É vaidade. O que precisa te motivar é o que te atravessa, o que te tira o sono, o que te estarrece. E se isso por um acaso é algo que não é uma vivência do seu próprio “corpo”, se esse discurso não está no seu próprio “corpo”, você ainda terá o desafio de criar e elaborar uma forma de isso não parecer leviano. Quanto a atrair plateias e possíveis financiamentos, fico sempre pensando: se você está mesmo propondo deslocamentos para o espectador, isso vai causar um certo incômodo, porque isso de se deslocar, de sair da sua zona de conforto, de fazer pensar e
ima
refletir não é sempre agradável; então, ‘‘atrair plateias’’ é relativo. Mas, às vezes, conseguimos criar trabalhos de forte impacto que alia isso tudo, e é bom
“Somos uma raça de gente que gosta de revirar coisas pelo avesso e, com isso, corremos muitos riscos. Mas a vida é um risco do começo ao fim. Não vejo como apartar arte e social, visto que a alteridade é o que dá sentido às duas” Marcondes Lima
quando acontece. Quanto aos financiamentos, os nossos sempre foram a partir de editais públicos, nunca tivemos outra forma de patrocínio, e por isso defendemos que a arte seja pública, um lugar forte do estado fomentando construção de discursos de problematizações dessa estrutura normativa heterofalocêntrica.
MARCONDES Quando nos damos conta de que estamos abrindo concessões para agradar apenas uma parcela do público. Quando abrimos os olhos e percebemos a nossa real sujeição. É preciso colocar no lugar certo, na medida certa, o oportunismo e o pretenciosismo. A presunção, a vaidade exacerbada, a soberba, a
que a alteridade é o que dá sentido às duas. Também não dá para
impostura ou estragam a arte ou o artista, ou os dois ao mesmo
apartar de algo artístico o seu caráter pedagógico, ontológico, de
tempo. Não perder o tino do sagrado em nossos rituais nos ajuda a
nascença. Agora o didático pode resultar em algo muito chato e
não cair na pura sacanagem da “cafetinagem artística”. E isso não
limitado. Precisa ser bem-empregado.
tem nada a ver com sentidos religiosos ou puramente econômicos. Em se tratando de cafetinagem, os buracos sempre são mais
por SILVERO
embaixo. Ela fica adernando na superfície e precisamos mergulhar
Quando criamos a consciência de não cairmos numa “cafetinagem
mais fundo, ir sempre mais fundo. Até onde nosso “fôlego” permi-
artística” de apelar para temas da moda, no intuito de atrair pla-
tir. Consciência identitária ajuda a manter a autonomia.
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pergunta
TREMA!
arte pop de andy warhol a partir de retrato de mao tse tung — imagem: reprodução
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3/4 "A ideia utopista tem a ver com uma história grande desse conceito - tanto na Filosofia como nas ideias políticas - que é uma história que na modernidade tem muito a ver com os ideais de esquerda, de transformação social e de busca por uma sociedade igualitária, de um mundo diferente do que a gente vive. A utopia vista desde sua etimologia: utopos, um não lugar, um sem lugar, um lugar que não existe e que seria uma petição por uma transformação radical do que existe concretamente através de uma idealização, de um mundo idealizado melhor. Isso pode ter um lado positivo e negativo, e a esquerda apresenta as duas faces. Existe uma esquerda reformista — que apresenta ideais de mudanças graduais na sociedade, que vê as injustiças concretas do mundo e tenta combatê-las — e existe algo que foi muito forte, principalmente no século passado, que é a ideia de uma utopia revolucionária - que as esquerdas muitas vezes abraçam, e seguem inclusive abraçando - de uma transformação radical através da força, da destruição de todo o arranjo institucional que a gente tem em troca de uma promessa de um mundo melhor. O que aconteceu, a meu ver, eu que sou um antiutopista, nesse sentido mais radical do termo, foi que as esquerdas muitas vezes abraçaram a ideia de um mundo melhor destruindo ou prometendo destruir toda a cadeia de injustiça social, e acabaram criando, como no caso da União Soviética, de Cuba, da China, enfim, uma nova instituição de poder, uma nova forma de arranjo de poder que acabou, a meu ver, sendo mais injusta e cruel, e mais reacionária, no fim das contas, do que a proposta das democracias liberais com todos os seus problemas, que a gente vê todos os dias. Essa ideia de uma utopia das esquerdas, que passa pela negação total do que há e vai a uma promessa de um mundo que não existe, para mim é muito perigosa, porque, claro, quando a gente compara um mundo concreto, com seus problemas, com suas misérias, com o ideal abstrato, sempre esse ideal abstrato vai ganhar; moralmente vai ser muito melhor o mundo que a gente vê. O problema é a condição concreta de se fazer essas transformações sem criar uma nova estrutura ditatorial, sem criar uma distopia. Por isso acho que a esquerda falha muito ao propor utopias. Claro, existe uma esquerda liberal, libertária, que eu admiro, existem pensadores nesse sentido que eu admiro bastante, atuais, e eu acho que há caminho, sim, para uma esquerda que sonha com uma utopia gradual, um melhoramento passo a passo da realidade, e não por essa aposta na violência, na radicalidade da luta armada, por exemplo, ou nas destruições das instituições liberais, burguesas, porque eu acho que não é por aí. Mas eu sei que é um ponto de vista difícil de a esquerda aceitar, mas é assim que eu penso e acho que um mundo melhor passa por essas mudanças lentas e graduais."
EDUARDO CESAR MAIA crítico literário diletante, ou filósofo de botequim
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CRÍTICA
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PARA O FUTURO
QUE ESCAPOU MARIANA BARCELOS marianabarcelos1@hotmail.com
N
a prática social de troca de correspondências entre artistas, muitas são as formas que, durante determinados períodos, foram protagonistas desta espécie de diálogo. Cartas, críticas, ensaios etc. dominaram setores de publicações e, por vezes, repercu-
tiram e imprimiram uma importância maior do que a própria obra comentada. Respostas a obras inquietantes são uma maneira de dar continuidade a pensamentos que ainda estão em processo, compreendendo que obras não estão acabadas na visualização do ponto final, ou mesmo, circunscrita à sua data de estreia no mundo. *** O teatro documentário ascende na última década na cena latino-americana, desdobrando-se em algumas estéticas – a peça-palestra, a peça-processo, o biodrama, a performance autobiográfica etc. – que levam ao palco um reposicionamento público diante das histórias políticas dos países que, olhadas sob o ponto de vista das narrativas biográficas, põe em cheque ou questionam o lugar de poder das narrativas históricas dominantes. É como uma resposta a determinadas escolhas e legitimação de narrativas que podem ter sido escritas por especialistas, mas não se encerram nas curiosidades descritas nas notas de rodapé dos livros. Pode-se pensar o teatro documentário como uma correspondência trocada entre as narrativas do tempo, com ou sem uma autoria de remetente determinado. Há ainda as dobras: obras que já se configuram como respostas aos temas e narrativas dominantes pertinentes aos seus períodos específicos, e, posteriormente, as correspondên-
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CRÍTICA
"cabeça" — fotos: ricardo brajterman
cias, que quando vêm também em forma de expressão artística
nomicamente detentora de poderes começam a ser desconstruí-
respondem à obra primeira e, ainda, às narrativas que a compõe;
dos e seus temas passam por títulos universais: política, religião,
numa correspondência trocada entre artistas e historiografia, ofi-
polícia, educação, trabalho, família. Categorias que carregam em si
cial e pública.
pertinências sociais incontestáveis, mas que não estão blindadas em formatações advindas de um pensamento conservador que ***
ora tende ao tradicionalismo, ora ao anacronismo. É neste contexto que chega à rádio, justo em 1986, “Cabeça
1986 foi um ano marcante para o Brasil, com a abertura demo-
dinossauro”, álbum icônico da banda de rock Titãs. Materializada
crática após a ditadura. Estavam em discussão e transformação
primeiramente no vinil, a dramaturgia da obra se estabelece no
na sociedade os valores e a moral propagados durante esses anos
diálogo entre o lado A e o lado B, que sutilmente apresentam uma
difíceis, que investiram num moralismo punitivista (torturador) e
variação na relação entre os eus líricos sujeitos das canções e seus
estigmatizante para exercer um controle atroz sobre os meios e
temas-objetos. Lado A: o mundo e os outros sobre mim. Lado B:
condições de vida. Os valores de uma parcela populacional eco-
eu no mundo, à revelia dos outros. O primeiro parte de uma di-
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mensão mais expandida das categorias já mencionadas – “Atrás
Em 2016, ano de estreia de “Cabeça (um documentário cênico)”
de portas frias/O homem está só/Homem em silêncio/Homem
– segundo espetáculo da trilogia paramusical do diretor Felipe
na prisão/Homem no escuro/Futuro da nação/Estado violência; o
Vidal, do Complexo Duplo, precedido por “Contra o vento (um
segundo é mais íntimo – Eu não trabalhava, eu não sabia/Que o
musicaos)” –, fez 30 anos do lançamento do álbum dos Titãs. A
homem criava e também destruía/Homem primata/Capitalismo
peça, ao retomar o disco, diz que 1986 é um ano que pode não ter
selvagem/Ô ô ô/Eu aprendi/A vida é um jogo/Cada um por si/E
acabado, ou quem sabe, diante de todos os retrocessos políticos
Deus contra todos/[...]/Eu me perdi na selva de pedra”.
e sociais que o país vem passando, 1986 pode ser um ano que
A polaridade mundo x casa, exterior x interior, mobilizadora
sequer começou.
das questões dramáticas do teatro desde os primórdios, ganha nes-
“Cabeça (um documentário cênico)” é uma correspondên-
te disco, assim como faz o teatro documentário, uma curva direcio-
cia teatral, realizada pelos artistas que estão em cena e destinada
nada ao espectro do real. Respostas e correspondências trocadas e
à obra “Cabeça dinossauro” e aos Titãs. Não como uma homena-
direcionadas ao real, provenientes de artistas cujas subjetividades e
gem, mas talvez como uma resposta à banda e à historiografia
biografias escapam às narrativas elaboradamente editadas.
do período.
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LADO A Felipe Vidal fez uma escolha determinante para que a lógica da correspondência pudesse ser aludida aqui. Ao optar por cantar todas as músicas do álbum, seguindo inclusive a ordem de seus respectivos lados do disco, a dramaturgia da peça se forma numa dobra, na qual todas as músicas têm um comentário, resposta, retornos. Se cada uma fosse uma carta, todas teriam sido respondidas criticamente. O L ADO A traz músicas com temas e títulos mais universais (Igreja, Polícia, Estado Violência), e os textos dos atores mesclam fatos históricos, dados científicos, atualização de conjunturas e leves relatos biográficos que possibilitam transições entre as faixas, enquanto demonstram o quão implicados estão memória pessoal e história oficial nos relatos. A dramaturgia criada no espetáculo não polariza fatos e afetos, tão pouco hierarquiza a qualidade dos enunciadores. O off que dá início ao espetáculo já estabelece este ponto de partida: vozes anônimas respondendo a perguntas sobre o ano de 1986. Força jovem, música de protesto, lembranças de um mundo nem tão distante, fotos de infância. As músicas que embalaram momentos das vidas dos atores (como trilha sonora) dão um passo além do flerte com a nostalgia, pois refletem também determinadas estruturas familiares. Estruturas estas que não estão tão distantes no tempo como se poderia desejar e, por isso, dão base para que os relatos, embora pessoais, não estejam presos ao passado, e nem mesmo a uma condição puramente individual. Parece ser uma função dramatúrgica que estes relatos biográficos, quando surgem, tendam a apreender uma dimensão social da biografia, que está mais para uma “carta aberta” do que para uma página de diário. Por exemplo, a memória do ator Guilherme Miranda sobre a parte da família que frequentava a Assembleia de Deus e iria ao Maracanã assistir à pregação do pastor Jimmy Swaggart, que se envolveu num escândalo sexual após mobilizar milhares de fiéis pelo mundo. Faz parte da resposta à música “Igreja” todos os detalhes deste relato, como também o crescente poder adquirido por pastores evangélicos neopentecostais na política nacional desde então. A resposta mostra que, neste tema, piorou-se muito na falta de laicidade estatal e ampliou-se o poder de coerção religiosa sobre os mais vulneráveis. A música faz um movimento de retorno a si, continua sendo enunciação e autorresposta. “Eu não gosto de bispo/ Eu não gosto de Cristo/Eu não digo amém”. Outro exemplo, o ator Sérgio Medeiros cresceu em Curitiba, cidade tão emblemática para o Brasil nos dias atuais, e tinha medo do alistamento obrigatório do Exército. O medo de vestir a farda verde e o medo no olhar do policial fardado do relato posterior de Gui Stutz, que foi surpreendido por um oficial evidentemente despreparado enquanto deixava um amigo em casa na favela, produzem um encontro entre os tempos e anos. De um ator de 40 e tantos, que em 1986 tinha 18 anos, e outro de 30 e poucos, que em 1986 tinha dois, e Rodrigo Nogueira Batista, ex-policial que tem parte da entrevista concedida à revista “Carta Capital” em 2015, lida durante a cena. A música, entretanto, é a mesma – “Polícia”; a mesma que continua tema de abertura de programas de TV e cantada em atos a favor da desmilitarização nos dias de hoje. A relação entre disco, biografias e anos chega a 2016 até pelas partes que ficaram de fora. Como a música “Vai pra rua”, que não entrou no álbum, mas que, tocada na peça, evidencia inclusive a proximidade vocabular entre os períodos agora tão estreitos. Voltar ao ano da abertura democrática é importante para buscar pistas dos fios que ficaram soltos, já que o desejo pela estabilidade política democrática não reverberou na necessidade de reorganizar valores coletivos capazes de sustentar a própria estabilidade política. O teatro documentário não é um arquivo de museu histórico em cena, é uma tentativa estético-política de revirar as memórias coletivas e individuais e, a partir daí, gerar hipóteses do que se pode fazer com elas. Enquanto o lado A termina aos gritos de um homem que se diz cansado, o elenco marca sua posição, seu lugar de locução dentro das narrativas dominantes: “parasitas de um organismo podre, na contramão do ódio”.
LA D O B No LADO B, a investida nas biografias dos artistas se verticaliza. Porque parece que as questões não vêm mais do exterior, do que anda acontecendo no mundo, mas da pergunta sobre a responsabilidade deste “cidadão civilizado” diante dos acontecimentos. Os cinemas viraram igrejas, quem rezava antes de dormir na infância não acredita mais em Deus, filhos que não nasceram, pais que morrem. Um indivíduo sozinho e o que ele pode ser sem o sentido das estruturas, sem a construção de uma memória fixa. Tudo se desfaz, e é daí que algo pode surgir. Proposições, não constatações. Qual o valor da ordem e o valor da desordem? De que ano se fala quando se fala de 1986? A citação ao filme “De volta para o futuro” (1986), com a projeção em vídeo de paródias recentes que podem ser encontradas na internet (com Marty McFly se deparando com Donald Trump como presidente dos EUA), põe uma derradeira interrogação nessa ideia de cronologia e progresso. Marty McFly foi ao futuro de 2016, mas o futuro não estava bem ali. Quando se fala de 1986, fala-se de 2016, de 2017 e dos próximos anos, que precisarão ir de volta ao futuro que 1986 ansiava, mas que escapou.
*** Em 1986 eu não tinha nascido. Entretanto uma parte de mim está por ali junto à lembrança da passagem do cometa Halley que eu não tenho, mas que roubei da minha tia. Meu pai ainda não tinha dinheiro para comprar os vinis que queria. Anos mais tarde, já na época do CD, ele passou a comprar os álbuns que eram seus desejos de adolescência. Lembro de cantar de cor “Homem primata”, sentada com ele no chão da sala, com uns cinco anos.
ARTIGO
PERSEGUIR O TEATRO É VIVER UMA
ANACRONIA FRAN TEIXEIRA franteixeira00@gmail.com
TEATRO MÁQUINA E O TEATRO DE GRUPO
O
Teatro Máquina é um grupo de Fortaleza, no Ceará. Fazemos
na, contudo, não se encerra em uma prática criativa nem em seus
teatro aqui há quase 14 anos e entendemos que as práticas
produtos, mas se movimenta o tempo todo pelo interesse que te-
criativas se afirmam na sua resistência e na descoberta e re-
mos em permanecer juntos e, assim, investigar os elementos que
descoberta constante do que significa criar junto. Participamos
dão suporte ao teatro, que lhe fundam e que nos fundam também
de uma geração que fortaleceu seu fazer porque lutou, ajudou a
como artistas, elementos e princípios que estão na base de nossas
criar e teve acesso a incentivos produzidos por políticas culturais
obras e dão sentido ao permanecer junto.
que contemplavam as práticas coletivas e fomentavam a manu-
Nosso trabalho, como grupo, está centrado em descobrir
tenção de grupos, com estímulos à pesquisa e à criação. O teatro,
possibilidades de tratar a palavra como material, ancoradas, espe-
e não só o teatro, precisa ter garantidas as condições de produção.
cialmente, nas questões que se tornam urgentes ao teatro. Nosso
Entendemos isso quando, em 2009, passamos a dividir um espaço
interesse está também em poder fazer do corpo e da sua presen-
com outro grupo de Fortaleza, o Bagaceira. A partir da realidade de
ça uma forma de narrar. Tratamos o texto como potência visual e
ter uma sede, começamos a estruturar uma reflexão mais ampla
como material para nos organizarmos diante de suas figuras, de
sobre o que nos interessaria produzir como artistas de teatro em
suas possíveis fábulas e situações. Em nosso processo de aproxi-
Fortaleza. Ter um espaço para criar é também ter tempo para o
mação aos materiais de partida, improvisamos e compomos com
encontro, para pensar o teatro ali diante dele: convivendo com as
os fantasmas de Sófocles, de Büchner, de Tchekhov, de Brecht, de
antigas cenografias, com os arquivos de imagem, com os figurinos
Müller, em um trabalho de análise e decupagem do texto, a fim de
por renovar.
deixar expostos os mecanismos do que fazemos. Expondo o tea-
Hoje somos um grupo formado por seis artistas que se divi-
tro ao exame, assumimos as chaves da nossa criação.
dem na gestão compartilhada do Teatro Carlos Câmara 1, na ma-
Para nós, o teatro deve ser um lugar para a produção de uma
nutenção de sua sede e de seu repertório, e no desenvolvimento
razão densa e ardente, um lugar no qual trabalhamos para trans-
de projetos e de novos espetáculos. O trabalho do Teatro Máqui-
formar a potência incendiária do teatro em produção de pensamento e ação vivos e intensos. Trabalhamos para colocar em luta os tempos e os espaços da ação. Nosso esforço é o de produzir es-
1 O Teatro Carlos Câmara, vinculado à Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Ceará, tem sua gestão compartilhada com o grupo Teatro Máquina de novembro de 2016 a maio de 2017. O grupo foi selecionado, via chamada pública, para realizar ocupação artística no equipamento.
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panto. Espanto diante uns dos outros, espanto diante da história, espanto diante do inacabado, diante do caos construído, espanto diante do mistério do teatro.
"diga que você está de acordo! máquinafatzer" — foto: deivyson teixeira
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"diga que você está de acordo! máquinafatzer" — foto: deivyson teixeira
“DIGA QUE VOCÊ ESTÁ DE ACORDO! MÁQUINAFATZER”
grupos têm produzido outros interesses e novos caminhos. Quando olhamos para os nossos trabalhos ou quando temos que estar diante
Eis o trabalho mais recente do grupo. Estreamos em 2014 e, a par-
de todos eles ao mesmo tempo, em situações como a que vivemos
tir dessa obra, fruto de um longo processo de criação com cola-
em 2016, com a circulação nacional de nosso repertório pelo Projeto
boradores muito importantes como Guillermo Cacace, Michael
Palco Giratório do Sesc, temos a oportunidade de olhar, sobretudo,
Wehren e Stephane Brodt, uma verdadeira reviravolta se operou
para nós mesmos e o teatro que fazemos. Podemos, diante da revisão
no grupo, gerando questões que desde então nos interpelam
de nossa trajetória, entender o que das obras já fez bastante sentido,
como artistas. Com a criação desse espetáculo, fomos como que
o que ainda faz e o que está deixando de fazer. Esse movimento é
reapresentados novamente ao teatro, a um teatro que nos desa-
muito interessante, porque nos coloca diante do nosso teatro como
briga das certezas compositivas, que nos coloca diante da natu-
se ele já fosse peça de museu, mas uma peça que pede, para que seja
reza e que nos faz encarar, como artistas, os impasses entre o que
apresentada, que nos engajemos novamente nela. O caso é que nem
sabemos e o que ainda não conhecemos.
sempre estamos com a mesma disposição para esse engajamento
Em 2015, fizemos uma viagem de pesquisa e criação deriva-
e, muitas vezes, para que recuperemos essa atitude mobilizadora,
da, em parte, das questões surgidas no embate com o “Material
precisamos rever a obra, praticamente remontá-la. E em teatro, pelo
fatzer", de Brecht. Essa viagem nos abriu outras novas possibili-
menos em teatro de grupo, que é o que fazemos, já entendemos que
dades de experimentação, especialmente a descoberta na carne
não se remonta uma obra, sempre surge uma outra obra, porque pas-
da beleza da co-criação com outras linguagens, como a música, o
samos por outras experiências e porque — justo por causa do teatro
vídeo, a fotografia e a performance. E também nos indicou como
que fazemos — vamos nos tornando outras pessoas.
2
é possível criar a partir de práticas de rua, de festa, de encontro, a partir de jogos e de brincadeiras tradicionais.
Aqui me parece que enfrentamos um problema de topologia, assim como a metáfora que Jean-Luc Nancy utiliza para analisar a
Ao longo do tempo de teatro que acumulamos, temos perce-
política contemporaneamente. Diante dos desafios de ser um gru-
bido que os processos criativos e os encontros com outros artistas e
po de teatro, muitas vezes não sabemos definir propriamente nós mesmos, perdemos o topos, perdemos o lugar. Num texto que se
2 O referido projeto se chamava Sete Estrelas do Grande Carro e foi contemplado no Edital Rumos Itaú 2013-2014. O projeto consistia em uma viagem do grupo por três regiões do semiárido, a saber: o Raso da Catarina (BA), a Serra da Capivara (PI) e o Sertão dos Inhamuns (CE). Mais sobre: https://seteestrelasdograndecarro.wordpress.com.
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chama “Política” 3, Nancy diz que justamente essa noção, a de po-
3 NANCY, Jean-Luc. “Política e/ou Política”. Alea [online]. 2015, vol.17, n.1, pp. 166- 178. ISSN 1517-106X. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2015000100013.
lítica, tem se esgarçado, tem se retraído, tem também perdido um
que se desejaria viver e contar sobre a história do teatro de gru-
lugar de onde se pode defini-la. É difícil identificar o que é propria-
po. Essa anacronia é, ao mesmo tempo, produtiva e avassaladora.
mente político, porque a política está em estado de desconstrução,
A tarefa que inventamos para nós é a de fazer teatro e o
tendo que lidar com polaridades como esquerda e direita que, cada
teatro que fazemos, mesmo que tentemos evitar, estará sempre
vez mais, fazem sentido apenas espacialmente e cada vez menos
pleno do que somos, do que fomos e do que vamos nos tornar. O
ideologicamente, porque essas polaridades estão sujeitas à lei do
grupo vem resistindo e fortalecendo o teatro de grupo no Ceará,
mercado, que é, afinal, a lei da equivalência.
porque defende e produz obras abertas e experimentais em cria-
E sendo um problema de topologia, para afirmar uma
ção compartilhada com artistas de outras linguagens, gestando,
prática política é preciso retraçar um novo topos para a polí-
assim, uma poética centrada em uma política da cena e no tea-
tica. Assim também no teatro, no nosso teatro de grupo, para
tro como invenção de realidades. No agora da representação se
afirmarmos uma prática coletiva e resistirmos nela precisamos
condensa toda a historia vivida, a história que ainda se conhecerá
continuamente revolver os lugares que estabelecemos para
e a que ainda não conseguimos tratar. Os processos criativos em
nossa criação e, diante desses novos lugares, retraçarmos nós
teatro são necessariamente atividades coletivas. Um coletivo se
mesmos como grupo.
segura pela consciência de que o teatro é produção de história.
Para permanecer junto, temos que cultivar formas de exis-
Essa consciência faz do teatro um teatro politico.
tir distintas das formas de existir de quem persegue a ideia de
Pensando assim, articulando resistência, experiência, arte,
sucesso ou a de atingir determinado público. Vivemos juntos
história, política e teatro como um comum que decidimos par-
perseguindo uma espécie de anacronia, porque a prática do
tilhar, podemos finalizar trazendo algumas perguntas que são,
teatro vai nos revelando saídas nem coincidentes nem conse-
antes de tudo, perguntas que nós mesmos temos nos feito:
quentes: precisamos, ao mesmo tempo, saber o que queremos
como o teatro hoje tem lidado com o esgarçamento da noção
dizer com o teatro que resolvemos fazer e também precisamos
de política? Como o teatro tem operado no “retraçamento” do
nos esquecer disso, para que o teatro possa acontecer, desim-
político? O que cabe ainda ao teatro? Como lidar com a lei do
buído de uma tarefa.
mercado, insistindo na produção de obras abertas e na forma-
Anacronia é a não coincidência da ordem dos acontecimen-
ção e criação desinteressadas no sucesso como fim de uma
tos com a ordem contada na história. É um pouco isso que vive-
produção em artes? Que outras anacronias nos interpelam?
mos ao perseguir o teatro: um desencontro entre a ordem dos
Qual o novo topos do teatro de grupo, diante de políticas cul-
acontecimentos que atravessam a rotina do teatro de grupo e o
turais descontinuadas?
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CRÍTICA
"noite" — foto: josé caldeira
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A NOITE PASSADA JORGE LOURAÇO jorgelouraco@gmail.com
Q
uando terminarem as apresentações da peça, talvez
corpos iniciaram um movimento que encontra no negativo, precisa-
as figuras desta Noite passem a fazer parte das as-
mente na sombra e precisamente na noite, a assunção de uma expe-
sombrações de um Recife novo. Os espectadores
riência material, terrivelmente terrena, que não tem nome, mas que
terão sido contaminados e o dia amanhecerá com outras
é real como as coisas que se veem à luz do dia. Eles buscam um lugar
cores. Nas manhãs seguintes, os vultos serão vistos sain-
neste tempo e neste espaço onde seja possível assentar os arraiais do
do dos velhos sobrados, escorregando pelas portas, como
transe. Só a noite os acolhe.
sinais de fogo de uma noite que já passou, mas ainda não passou de vez...
André Braga e Cláudia Figueiredo andam à procura de formas que estruturem o tempo e o espaço de outra maneira, partindo do
“Noite” procura o desdobramento dos performers (e de
que é reconhecível e familiar, sejam os materiais concretos (a água, a
cada um de nós que presenciamos a performance) numa outra
areia, a madeira), sejam as tradições (os ritos, os gestos, os símbolos),
coisa qualquer; num outro ser; numa sombra de nós próprios.
para chegar a uma nova intimiidade com as coisas. Eles sabem que
Esse desdobramento não se dá como resto, nem como sobra,
esse território comum, alternativo às respostas certas dos testes de
nem como mero excesso, mas como verdade para lá das apa-
avaliação na escola e à pontuação dos concursos oficiais do Estado,
rências. Estamos dentro da noite urbana de Portugal, feita de
está no outro lado das coisas. O caminho é pelo corpo de cada um dos
meias-caves, garagens sem carros, hangares desativados, mas
performers, ora tenso, e cada vez mais tenso, ora distendido, entregue
estamos também em plenas festas populares, verão alto, no
aos deuses. São estes performers, e não outros, quem faz esse trabalho
interior do país; nos bailes perpétuos do salão da paróquia ou
porque é com estes que tem vindo a ser feita a pesquisa sobre novos
do terreiro atrás da igreja; vindo de saídas pelos campos, de
lugares e novas temporalidades de palco. Por isso, além de materiais,
corridas nas estradas locais, de idas pelos caminhos reais. Se há
de ações e de corpos, que sempre parecem achados nas ruas das ci-
portugueses, são estes.
dades e nos caminhos do interior, a dupla de criadores socorre-se de
As palavras do espetáculo são do poeta Al Berto e do escritor Sándor Marai, mas o que vêm à memória são aqueles
todos e quaisquer recursos cênicos, seja da dança, seja da música, seja do teatro, seja da performance.
famosos versos de Jacques Brel: “Deixa-me vir a ser/ a sombra
Que tem o outro, que tem a noite, que tem o transe, que tem
da tua sombra/ a sombra da tua mão/ a sombra do teu cão”.
— até — a recolha e o uso de materiais crus e de tradições arraiga-
A submissão do sujeito dos versos de Brel à coisa amada é
das mais o cruzamento disciplinar das artes cênicas, que tem tudo
comparável à submissão dos três homens aos desmandos no-
isto, afinal, que nos interesse? A liberdade. Como Circolando ou em
turnos. Eles entregam-se aos desígnios da noite, reverso das
nome próprio, estes artistas são o que tem de melhor em Portu-
coisas, rainha que tudo pode, para se tornarem reis, ou melhor,
gal: terra a terra e surrealistas ao mesmo tempo, líricos e carnais a
homens livres. Os atores que dançam querem ser como as
uma só vez, noturnos e luminosos simultaneamente. Como fazem?
sombras, não para se aniquilarem perante o outro, mas como
Olham-se nos olhos antes de sonhar, para poderem sonhar em co-
afirmação de uma outra coisa que seja diferente dos dias. Estes
mum. Olhemo-nos olhos deles.
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"noite" — foto: josé caldeira
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pergunta
TREMA!
4/4 Boa pergunta para ser respondida por um venezuelano, desde que não seja partidário de Maduro. O crescimento da direita na América Latina está intimamente relacionada à decepção com os sonhos utópicos da esquerda. As promessas de um estado provedor de toda as necessidades de uma população esbarram nos números frios da economia, que por não ter ideologia, impõe a realidade nua e crua. O que infelizmente é comum é o sonho virar um grande pesadelo, é ver minorias alinhadas ideologicamente, imporem suas ideias à força, desconsiderando qualquer outra, nascem assim as ditaduras e todo o resto.
LUCAS MEDEIROS via facebook
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EXPEDIENTE TREMA! revista de teatro EDIÇÃO DO festival 17 ANO 2
#10
MAIO 2017
COORDENAÇÃO TREMA! PLATAFORMA DE TEATRO Mariana Rusu e Pedro Vilela
CONSELHO EDITORIAL Mariana Rusu, Olívia Mindêlo, Pedro Vilela e Thiago Liberdade
EDIÇÃO Olívia Mindêlo
PROJETO GRÁFICO Thiago Liberdade
PROPONENTE DO PROJETO Mariana Rusu
COLABORADORES DA EDIÇÃO* Alzira Medeiros, Eduardo Cesar Maia, Erika Muniz, Fran Teixeira, Lucas Medeiros, Jorge Louraço, Mariana Barcelos, Marcondes Lima, Pollyanna Diniz, Ronaldo Serruya e Silvero Pereira *As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
PLATAFORMA TREMA! tremarevista@gmail.com tremaplataforma@gmail.com facebook.com/tremaplataforma www.tremaplataforma.com +55 (81) 9 9203 0369 | (81) 9 9223 5988
Tiragem: 500 exemplares (por edição) Impresso pela Brascolor ISSN: 2446-886X
Edição do FESTIVAL 17 | Nº #10 | Ano #2 | Recife, Maio de 2017
Realização:
Incentivo:
A TREMA! Revista de Teatro de Grupo é uma publicação com incentivo do FUNCULTURA – Fundo de Incentivo a Cultura de Pernambuco.
TREMA!_festival 17
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ISSN: 2446-886X