TREMA! Revista - Edição do Fim [16]

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TREMA! revista de teatro

EDIÇÃO DO fim

ANO 4

#16

MAIO 2019


Manifest

p e r d


to

1

NOÁ ARAÚJO PRADO ????????s@gmail.com

A destituição do terráqueo. Escrito por uma legião. Múltiplas vozes. Por um corpo possuído por uma legião de alienígenas que não aceitam mais perpetuar esse modelo falido de modernidade civilizatória. Queremos mesmo é que sangre. Trabalhando com as feridas abertas e escarificadas.

1 Manifesto que compõe a minha dissertação de mestrado dentro do Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará, sob orientação da prof. dra. Fran Teixeira. O trabalho se chama Escritos de uma guerra planetária e foi pensado de dentro do olho do furacão.

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Consideramos o fim do mundo como um acontecimento fractal, pois assim escreve Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, definindo-o como “uma espécie de acontecimento fractal, que se reproduz indefinidamente em diferentes escalas, das guerras etnocidas em diversas partes da Africa ao assassinato sistemático de líderes indígenas ou militantes ambientalistas na Amazônia, da compra de territórios gigantescos de países pobres por potências hiperindustriais à grilagem e desmatamento de terras indígenas por interesses minerários e agronegociais, à expulsão de uma única família de camponeses para a ampliação de um campo de soja transgênica... Isso para não falarmos da ‘fractalização’ do fim que percorre de cima a baixo a Grande Cadeia do Ser, com a desaparição dos inumeráveis Umwelten [mundos próprios] dos viventes”. p­ — 4


Terráqueos,

herdeiros do uno. Os herdeiros desse mundo. Os herdeiros da fratura do mundo. Serão eles que ficarão com a fratura desse mundo quando essa ficção apocalíptica denominada por civilização tiver um fim.

Já estamos no fim e não queremos mais perpetuar essa farsa.

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Queremos uma onde nova organização os que proponha um terráqueos impedimento, uma continuarão quebra,uma fissura, sendo uma rachadura que os mobilize outras herdeiros possibilidades de desse desfecho. Falamos aqui mundo. do olho do furacão. Da boca do tornado. De dentro de um dos milhares buracos negros do universo. Sabemos que todos os esforços estão sendo feitos para que as nossas existências sejam mutiladas e apagadas. Esforços esses que intencionam agir para que o trajeto planetário desemboque em um fim p­ — 6


Nós não compactuamos com esse desfecho. Julgamos necessário cessar e reverter o processo interminável de colonização no qual estamos imersas. E pretendemos fazer essa ruptura através da subversão dos seus modos de operação falidos. Não queremos mais machos comandando essa nave incendiária. Nós vamos destruir as suas casas e vamos roubar os seus filhos homens para que sejam todos educados por corpos dos quais vocês nunca iriam querer proximidade. Por corpos que vocês julgam sujos e incapazes de oferecer uma estrutura potente de desenvolvimento de um ser. Vocês temem o fim do planeta. Vocês temem o fim da vida no planeta. Vocês nos localizam e nos capturam em suas diversas chaves de entendimento, mas a nossa chave é a ficção. Jogamos o seu real no lixo. Não queremos o seu real. Não queremos mais a sua dimensão limitadora de realidades. Vocês programaram e elaboraram um projeto de realidade. Vocês, os herdeiros desse mundo. Ou pelo menos é assim que vocês se sentem. Nós estamos agora rejeitando essa narrativa inventada que vocês tentam nos impor. Nós estamos inventando agora as narrativas que nos interessam. As narrativas que nos libertam. E entraremos na disputa. Não estamos aqui pedindo permissão, pois entraremos chutando e arrombando suas portas. Faremos a retomada do mundo e devolveremos suas vias respiratórias. Explodiremos o seu mundo e desmoronaremos suas certezas, pois como escreve Tertuliana Lustosa: “A ferida colonial ainda sangra na destruição dos povos da terra — humanos, animais, vegetais, minerais —, mas não há como ignorar as feridas não cicatrizadas e elas podem ser trabalhadas mesmo na dor” (Manifesto Traveco-Terrorista). Acreditamos no verbo L U T A R também com o objetivo de travar embates para que outras existências sejam garantidas. Para além das nossas. Pensamos ser importante estar dispostas a defender o espaço do outro, mesmo que o nosso lado não seja beneficiado. Uma quantidade de força merece ser imprimida, por acreditarmos na importância da entrada de outros em espaços que vocês, por diversos motivos, já estão instalados por gerações posteriores e desejam permanentemente isolar a entrada por medo TREMA!_fim

de perder o monopólio. Vocês precisam deixar de utilizar a presença do outro de maneira extrativista, garantindo que não seja esse apenas um lugar temporário, mas defendendo a continuidade, a perpetuação do que nós acreditamos. Para que o curso possa seguir. Sem enjaulamentos. Com sangue no olho contra o retrocesso. Contra o avanço do conservadorismo. Seremos estratégicas como o corte de um cirurgião. Compartilhamos de um sentimento de não-pertencimento ao ambiente natural de habitação: a Terra. Entendemos o corpo como uma entidade separada da natureza, criando a dicotômica e esgotada ontologia de toda uma cultura ocidental fundada a partir da ideia de que seria possível ao homem ser um ente independente dos processos naturais e do que se entende por natureza. É a ficção da natureza subjugada aos interesses do homem branco europeu civilizador, em sua busca insaciável por riqueza, poder, eternidade, supremacia e soberania, fundando assim, para citar Rita Natálio, “o oceano da coalienação entre mudança climática e capitalismo corporativo”.

Esse manifesto intenciona agir contra o projeto de dominação neodesenvolvimentista arquitetado pelo capitalismo e por um projeto moderno que nunca chegou a cumprir seu papel. p­ — 7


Somos aliadas dos que tentam elaborar estratégias de combate, fundando modos de resistência com seus corpos. Uma resistência ecopolítica. Somos aliadas de pensadores, artistas e cientistas do clima que estão interessados em questionar, de maneira brutal, a estrutura antropocêntrica de pensamento que colonizou os nossos corpos, os nossos discursos e nossas formas de ver. Estamos aliadas aos teóricos que tentam desmontar o projeto de civilização que o mundo europeu tentou incutir em nossas mentes e em nossos corpos. Somos aliadas dos interesses e das vozes ecoantes dos povos indígenas e do povo negro. Somos aliadas dos que permanecem à margem, seja por escolha, seja por falta de opção. Somos aliadas dos que veem a crise como uma oportunidade para fazer desmoronar de vez esses procedimentos estratégicos que nos aprisionam e nos adoecem, que desejam nos alienar na poeira do esquecimento, retirando a força vital dos que creem que outro mundo seria possível.

Essa escrita é um manifesto e uma obra. Essa escrita é um manifesto p­ — 8


e uma obra.

Utilizamo-nos aqui de termos elaborados por Bruno Latour e também desenvolvidos por Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, seguimos pensando o Antropoceno para elaborar estratégias de combate ao fim que se anuncia e sobre a guerra dos terráqueos contra os terranos. É preciso reconhecer que estamos em uma guerra, entender contra quem estamos nessa guerra e de que lado estamos nessa guerra, realizando então uma recusa do presente agenciamento cosmopolítico instaurado pelos Modernos.

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Essa guerra do Antropoceno não pode ser uma guerra para continuar a promover uma só raça, uma só vida. Não se pode silenciar a história das vidas que foram apagadas pela colonização. Importante atentar então para o que escreve Nicholas Mirzoeff: “(...) que tipo de ‘homem’ é subentendido quando falamos de Antropoceno?”. O autor lança a resposta: “No enquadramento temporal do Antropoceno (...), tal sistema só pode significar dominação ‘branca’ (euroamericana) sob populações africanas, asiáticas e nativas que foram colonizadas e escravizadas”. Esse é um manifesto de ficção científica sobre a insurgência dos terranos como um povo por vir ou ainda a construção de uma estratégia terrana que parte da visibilização e do aprendizado com os que já viveram o genocídio, pelos que são netos dos que viveram o genocídio, pelos que são bisnetos dos que viveram o genocídio, pelos que tiveram seus antepassados assassinados, pelos que tiveram sua linha genealógica interrompida. Nós, os terranos, somos os que se posicionam contra os terráqueos. Nós, os terranos, não queremos dar seguimento ao pensamento colonial. Não queremos ir na fonte para buscar no contato com os descendentes dos povos assassinados as suas receitas de felicidade, como fizeram e fazem eles ainda. Ser terrano é entender que são eles os corpos capazes de oferecer suporte firme para uma remodelação do mundo tal como conhecemos. É preciso, então, não apenas ouvir suas vozes já tão silenciadas, mas deixar que eles estejam à frente desse processo de restauração mundial, pois “(...) toda política do Antropoceno precisaria, em resposta, começar por ser antirracista e anticolonialista”. Pensar o Antropoceno é fazer como escreve Rita Natálio: “(...) muitos mundos estão a morrer ou já faleceram, enquanto o mundo dominante anuncia ironicamente um Grande Fim (também chamado Antropoceno)”. Contra o fim de que mundo estamos lutando quando apagamos o mundo de diversos segmentos que já viveram o apocalipse de seus mundos?

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Escrever sobre o não-humano é localizar um conceito de humanidade pensado pelo mundo dominante para gerar um processo interminável de Outros que não cabem dentro do conceito de humanidade. O não-humano é o que o mundo pôs para fora do humano. Tudo o que não coube dentro. Para Rita Natálio, seguindo o pensamento de Ailton Krenak:

“Para pensar o fim do mundo, teríamos então que pensar no genocídio de muitos mundos subalternizados, entre eles o mundo dos rios, o mundo indígena, o mundo dos escravizados, todos reunidos na categoria de não-humano que foi intensamente explorada como


Como subverter as narrativas de dominação dos humanos/ terráqueos no Antropoceno

recurso da antipolítica, mas que taticamente resiste ao desastre de formas que apenas podemos tatear”.

com a criação de contranarrativas, ou melhor, narrativas contra-hegemônicas terranas? Como não continuar silenciando as vozes dos segmentos minoritários realizando assim o impulsionamento e a visibilização de modos de vida que surgem distante ou à margem do que se mantém no centro do debate? Potencializar a multiplicidade das vozes. Pôr em xeque a noção de sujeito universal capaz de agir como um só povo. Agir contra a política do uno, contra os porta-vozes do Universal. Essa é uma maneira de inventar uma poética terrana para as Artes. A crise planetária é o meteoro. A crise planetária é o meteoro que expande os limites do pensamento terráqueo. A crise planetária é o meteoro que teve início com o massacre de tudo o que não se encaixou no perfil do que se entendia por terráqueo. A

CRISE PLANETÁRIA É A NOVA FORMA DE GOVERNAR! O massacre continua, desdobra-se e perpetua-se até os dias atuais. É preciso violentar a imaginação com essa temática para o surgimento de materiais artísticos que dialoguem com um futuro por vir consciente do apagamento do passado desses segmentos que foram abortados do projeto humano neodesenvolvimentista. “(...) o Antropoceno começou com um massivo genocídio colonial.” Há uma barbárie por vir: a intrusão de Gaia, anuncia Isabelle Stengers.

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Essa alteração do tempo-espaço não é algo para ainda inventar. Há, no tempo presente, uma alteração na forma de pensar o tempo-espaço ocasionada pelas alterações climáticas e modificações causadas pela ação humana na esfera terrestre e no território de diversos povos. O que Stengers nomeou como INTRUSÃO DE GAIA é a forma como a crise planetária (ou ainda um fenômeno planetário) afeta diretamente as nossas vidas e das outras

espécies vivas. p­ — 12


Tendo consciência dos efeitos gerados por esse contexto e o surgimento de um corpo da sobrevivência terrana, ou, para citar Viveiros de Castro e Déborah Danowski, um corpo do qual “(...) se subtraíram suas condições fundamentais de existência”, devemos sempre forçar nossa lembrança para pensar que antes desses acontecimentos, o próprio homem branco retirou as condições fundamentais de existência de outros povos. Precisamos de corpos implicados e dispostos ao treinamento para o surgimento de um corpo terrano resiliente (o corpo da sobrevivência). Precisamos erguer espaços para aprender a sobreviver com os corpos que tiveram suas existências quase que totalmente extintas pelo projeto de dominação europeu. Precisamos alterar os rumos dos nossos pensamentos quando o debate acerca da Terra. Redirecionar o olhar para o dentro. “ ́[...] crise climática surge. Precisamos modificar A direção não é para frente, plus ultra, e sim nosso posicionamento existencial, para dentro, plus intra, de volta para casa”. desviando nossas posturas da reprodução Há algo de urgente nisso. A transição do terráqueo de estratégias que continuam silenciando e para o terrano ocorre de maneira metamórfica apagando as vozes de diversos segmentos através de um reposicionamento existencial. minoritários. Precisamos reverter a A saída está na volta. Na alteração da rota. sensação de extrema impotência diante do O terráqueo está voltado para o fora. quadro que se revela. Precisamos produzir O terrano é o que olha para dentro. estratégias de resiliência e resistência Da Terra. E não de si apenas. O ser em através da criação de uma arte terrana: composição com o corpo voltado para dentro do “[...] Eles se confundiriam assim, talvez, antes que planeta que habita. Em conexão com o planeta com o‘público fantasma’ das democracias ocidentais que habita. Esse é o pensamento da revolução [...], muito mais com aquele povo que falta de quem terrana. É um pensamento necessário. falam Deleuze e Guattari, o povo menor de Kafka e Tomamos como prioridade a descolonização Melville, a raça inferior de Rimbaud, o Índio que o fi- permanente dos nossos corpos e sabemos que lósofo devém [...] o povo por vir, capaz de opor uma a criação não é o lugar da consciência, mas o ‘resistência ao presente’ e de assim criar ‘uma nova lugar onde é preciso se experimentar no terra’, o mundo por vir”. território do desconhecido. Defendemos uma arte da perda do domínio e do controle. Da O antigo ideal de fuga do planeta Terra perda do controle para além da dimensão da fracassou. Não haverá colônias humanas em identidade. E a busca de uma corporeidade que outros planetas. A colonização dos outros investigue a criação de uma experiência planetas seria uma forma de continuidade de um ritualística de exposição das mazelas pensamento que falhou. É necessário e urgente repassadas aos nossos corpos como uma que voltemos nosso olhar para dentro. Não mais espécie que foi capaz de aniquilar e colonizar para o espaço, mas com o intuito de adentrar a elementos humanos e não-humanos, servidos por uma matriz antropocêntrica de pensamento que acreditou ter o homem como protagonista do drama cósmico. Em nome desse protagonismo, o humano aniquilou, colonizou e civilizou o planeta, as outras espécies e a própria espécie. Em nome da construção de um mundo moderno, no qual reina o progresso, o crescimento econômico e a busca desmedida por uma aceleração do tempo que violenta nossos corpos, nossos gestos e nossos modos de existir. TREMA!_fim

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Queremos expor, através dos nossos corpos, o lamento de catástrofes ambientais como as acontecidas em Hiroshima, Nagasaki, Chernobyl, Mariana, Brumadinho. Movemo-nos na tentativa de não esquecer os ativistas ambientais mortos. O Brasil: país onde mais ambientalistas são assassinados. Dançamos o massacre dos povos indígenas. A destruição planetária em larga escala. Na tentativa de expor as vísceras de uma estrutura falida, onde o minoritário não encontra espaço para existir e ser. Escolhemos não contar e não criar dramas inteligíveis especulativos de um futuro por vir. Tivemos uma epifania após noites sem dormir devido aos pesadelos apocalípticos que insistiam em retornar: inúmeras catástrofes e acontecimentos que ameaçavam dizimar parcelas da população terrestre. Consideramos difícil acordar todos os dias. Precisamos sempre de um tempo para nos recompor. Tentamos nos convencer através de uma negação. Tentamos imaginar um futuro, dançando em um mundo repleto de árvores imensas. Um mundo onde ainda existisse oxigênio para respirar. Fracassamos nessa tentativa. Um niilismo paralisante tomou conta de nós. Só nos restou o movimento. Dançamos hoje com nossas p­ — 14

carcaças alienígenas uma espécie de reposicionamento existencial. Dançamos à beira de mares contaminados. Consideramos impossível voltarmos a sermos as mesmas. Nos interessa os deslocamentos dos modos de ver, enquanto a eles apenas interessa a destruição de tudo o que poderia ter nos salvado. Eles fundaram essa época em que nada mais está garantido. Esqueceram de onde viemos e dos que vieram antes de nós. Nós não estamos seguros aqui. Não há como escapar da Terra.


v

EDITo REAL FIM

A escolha pela arte é — muitos já disseram — um ato político. O artista visual Paulo Bruscky, que iniciou sua carreira na década de 1970, em plena ditadura militar, não cansa de reafirmar isso e, quase sempre, complementa seu discurso alertando: “A arte é a última esperança”. Estamos em 2019. No texto curatorial da exposição Arte democracia utopia — Quem não luta tá morto, que esteve em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR) até o final de março, o curador Moacir dos Anjos escreveu: “São muitas as maneiras de fabular outro lugar que possa existir no futuro, embora fazer política e fazer arte sejam duas das mais antigas e constantes”. É acreditando nesta relação tão intrínseca e necessária que a

TREMA! Revista alicerça sua edição de número 14, que abre a Trilogia da extinção. Sim, a publicação inicia sua despedida depois de três anos sendo publicada com o apoio do Funcultura, em periodicidade variada. Fechamos esta edição com um artigo de Thiago Torres, que trabalha a ideia de coreografia a partir de um pensamento político em dança. O objeto de análise do autor é a Dancinha do impeachemnt surgida em Fortaleza, ainda em 2016, no processo contra a presidenta Dilma, e que, em 2018, durante as eleições presidenciais, ganhou uma nova proposta. O mesmo grupo que coreografou a Dancinha do impeachment passou a executar a Dancinha Pró-Bolsonaro. O espaço físico, o figurino, a maquiagem, a música, a coreografia, o público, esse conjunto de elementos é chamado por Thiago, em seu artigo, de Dramaturgia do fascismo. Essa “dancinha”, esta edição, as duas outras que compõem a Trilogia da extinção dizem muito sobre este 2019 no Brasil. Fechamos esta edição com um artigo de Thiago Torres, que trabalha a ideia de coreografia a partir de um pensamento político em dança. O objeto de análise do autor é a Dancinha do impeachemnt surgida em Fortaleza, ainda em 2016, no processo contra a presidenta Dilma, e que, em 2018, durante as eleições presidenciais, ganhou uma nova proposta. O mesmo grupo que coreografou a Dancinha do impeachment passou a executar a Dancinha Pró-Bolsonaro. O espaço físico, o figurino, a maquiagem, a música, a coreografia, o público, esse conjunto de elementos é chamado por Thiago, em seu artigo, de Dramaturgia do fascismo. Essa “dancinha”, esta edição, as duas outras que compõem a Trilogia da extinção dizem muito sobre este 2019 no Brasil.

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modo fênix

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colaboradores desta edição

LARA DUARTE é bacharela em artes cênicas pela Universidade Federal da Bahia, formada em dramaturgia pela SP Escola de Teatro. Participou do programa de iniciação científica

o Teatro Base – Grupo de Pesquisa Sobre o Método da Atriz, como performer e

RAPHAEL TENÓRIO

JUMA GITIRANA TAPUYA MARRUÁ

dramaturga, através da pesquisa Tem drama: construções dramatúrgicas de uma

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da UFBA com o projeto A escrita-falada: dramaturgias da contação de história; Integrou

realidade ficcionada. Participou do núcleo experimental de artes cênicas do SESI.

ALTEMAR DI MONTEIRO

Atuou como atriz e assistente de dramaturgia na peça Acúmulos, com direção de

é ator, dramaturgo e encenador,

Kênia dias e Ricardo Garcia, dramaturgia de Márcio Abreu. Dramaturgista da peça

diretor do Nóis de Teatro, de

Resposta ao capataz, espetáculo de formatura da turma 67 da escola de arte dramática

Fortaleza – CE, onde exerce pesquisa

da universidade de São Paulo, com direção de Kênia Dias. Dramaturgista da peça

continuada em Teatro de Rua. Mestre

Stabat Mater, direção de Janaína Leite com estreia prevista para junho de 2019. Como

em Artes pela UFC, é doutorando em

performer e dramaturga trabalhou no espetáculo A bunda de Simone, com direção

Artes da Cena pela Escola de Belas

de Diego Pinheiro, recebendo a indicação de melhor texto pelo prêmio BRASKEM

Artes da UFMG onde realiza a pesquisa

de teatro. Participou do projeto História sob Rocha, com direção de Daniel Guerra.

Corporeidades Periféricas sob a

Integrando a programação do Festival Internacional de Artes Cênicas. Criadora da

NOÁ ARAÚJO PRADO

orientação da Prof Dra Mônica Ribeiro

performance cênica Como Medeia para minha mãe e da peça Remedeia.

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e com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Altemar é organizador do livro A arte que vem das margens e autor do livro Caminhares periféricos.

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PEDRO VILEL A


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o resto é silêncio

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ARTIGO

PERFORMATIVIDADE DA PARRESIA, PARRESIA DA PERFORMATIVIDADE

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ALTEMAR DI MONTEIRO altemargm@yahoo.com.br


N

o mundo contemporâneo, parece não cessar a necessidade

performativo defendido por Josete Feral e reflexões empreendi-

de outra Teoria do Teatro, ou mesmo de pensar a singulari-

das por Michel Foucault acerca da parresia. A busca é entender

dade da cena a partir de outros referenciais. Em um século,

como esta noção pode ajudar a pensar um teatro contemporâ-

os campos de atuação se misturaram, as fronteiras entre drama-

neo que se nega ao fake, ao simulado guardado nas representa-

turgia e encenação foram borradas, as linguagens começaram a

ções embrutecidas de corporeidades subservientes. Não busco

ser manuseadas de modo interdisciplinar e o lugar da arte segue

aqui legitimar a noção de parresía como base das teorias da cena

se movendo de tal modo que a vida, em sua chancela de real, é

contemporânea, mas, pelo menos, apresentar paralelos concei-

colocada em pauta como alicerce basilar para a produção cultural

tuais que podem nos ajudar a pensar na potência dessa crítica

de artistas que, cada vez mais, negam a produção de simulacros.

aos jogos de fabricação e representação do real.

Mais do que representar, o agora se coloca com o desafio de, em presença, estar.

De forma breve, poderíamos traduzir a parresía como a fala franca do filósofo diante da cidade, um dizer que incorpora uma

Para debater em que domínios a noção de presença atua

urgência diante dos fenômenos que constituem a pólis, a “pura e

na composição desse movimento da vida, urge desconfiar tam-

simples fala franca, de dizer o que se tem na cabeça, da liberdade

bém dessa presença, não romantizando-a e buscando avistar

de falar, de dizer exatamente o que se pensa, sem limites, sem

em que esferas ela atua. Em vista disso, cada vez mais me parece

vergonha” 1 . Foucault analisa momentos distintos da constitui-

que esse elogio ao agora precisa convocar também uma crítica

ção da parresía para nos dizer que ela sai da seara dos discursos

ao embuste de um estado corpóreo que foge das suas potên-

políticos para se incorporar ao exercício da filosofia, essa vista

cias de presença para se ater a um simulacro do real. Para isso,

como a livre coragem de dizer a verdade, esta constituída como

defender o presente é lançar um olhar que, entendendo a con-

uma forma de vida. Mas de que verdade nos fala Foucault?

tingência das linhas de vida que nos constitui, astuciosamente desconfia do “fake”, da hipocrisia, da performance de mundo que não tangencia suas reais intenções, interesses, circuitos de afetos e atravessamentos: seja por má fé ou por embrutecimento. Assim, de forma breve, busco tecer aqui alguns paralelos entre o teatro

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1 FOUCAULT, 2010, p. 332.

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ARTIGO

V E RDA D E RELAC I O N AL Trazendo esse conceito para o mundo contemporâneo, atomizado de deslocamentos e suspeitas sobre as formas de constituição do real, como podemos operar com o conceito de verdade num mundo estimulado e concebido como território dos simulacros e do cinismo? É preciso admitir que a consolidação de uma verdade não só é projeto fascista como incoerente às forças vivas que constituem o tempo-espaço das subjetividades que compõem, sempre em luta, a política dos afetos. No tempo da pós-verdade e das fake-news, me instiga uma cena teatral muito mais envolta nas sombras de um tempo que celebra o culto narcísico, no que está oculto sob a máscara empavoada da representação quase pornográfica da realidade, do que necessariamente na veridicção de um discurso proferido por outrem. Mais do que tentar mensurar qual é a verdade, interessa muito mais pensar quando ela não acontece. “A política não opera num espaço vazio, mas em um espaço saturado de representações, construções, fantasias, significações postas, trajetos de afetos corporais” 2, por isso que ao resgatar a ideia de parresía tento pensá-la muito mais como um jogar-se a um movimento oculto que não cessa de interpelar aquele que está interessado em tensionar as máscaras de composição da realidade. Por isso que, desde aqui, importa um teatro que não necessariamente se lança à luz do que é verdade, mas ao cavar profundo de desvelar o que não é. A ideia de verdade precisa ser pensada como efeito e não como dado, como construto e não como essência. Ela é sempre relacional, relativa e construída. Ainda assim, parece haver paralelos singulares entre a concepção de parresia — pensada como um modo de vida que está ligado a uma ética imanente — e os modos como algumas poéticas do teatro contemporâneo vem trabalhado com a concepção de performatividade. E é Féral 3 mesmo quem diz que “obras performativas não são verdadeiras, nem falsas. Elas simplesmente sobrevêm”; afirmativa que desloca o lugar do drama na estrutura central do teatro para colocar em pauta uma ação no mundo que se afirma, ainda mais que produto, como processo. Buscando se distanciar dos cânones de uma teatralidade refém de mecanismos de composição dramáticos, ela admite que a teatralidade ainda está presente no teatro performativo, ou mais que isso, que a própria fabricação processual da teatralidade já é em si um ato performativo. Para isso, é importante salientar que teatralidade e teatralidade cênica não são a mesma coisa, e que o que o teatro performativo tem defendido com tanta força é a urgência dessa teatralidade que se faz na vida, no real. “Lá onde a teatralidade está mais ligada ao drama, à estrutura narrativa, à ficção, à ilusão cênica que a distancia do real, a performatividade (e o teatro performativo) insiste mais no aspecto lúdico do discurso sob suas múltiplas formas” 4. E parece ser exatamente essa característica da teatralidade da vida, marca do teatro performativo, que faz com que as inserções do real em cena – quase sempre no jogo cambiante com o fictício – contribuam para que sua ação se distinga da salvação

2 SAFATLE, 2016a, p. 95. 3 2015, p. 121. 4 FÉRAL, 2015, p. 128.

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e purificação preconizada pelo ascetismo cristão primitivo, aquele que via na confissão da verdade o júbilo erigido pela prática penal aplicada ao confessor. Foucault reconhece que a parresía foi transferida, no decorrer da história, da política para a filosofia e depois da filosofia para a pastoral cristã, mas o que o interessa é a relação da parresía filosófica com a política, colocando-as numa relação de exterioridade e correlação. Neste movimento é que a parresía abandonará seu compromisso com a moral cristã, reconhecendo que não há ação sobre a episteme na confissão. “Não é manifestando a verdade de si mesmo diante de um juiz que pune que vocês poderão, vocês que são injustos, se transformar em homens justos” — é com essa afirmativa que Foucault 5 nos alerta que as palavras são ruídos, e que a episteme reside na alma. Por isso mesmo que tenho considerado o interesse da cena teatral performativa em pensar no seu campo de subjetividades corpóreas para, na cena, compor outras realidades como acontecimentos possíveis para o mundo contemporâneo. Concordando com a potência filosófica do acontecimento teatral, da mobilização de realidades empreendida pelo mesmo, cumpre destacar que a cena contemporânea vive uma “passagem do teatro para a celebração, o debate, a ação pública e a manifestação política — em suma, para o acontecimento” 6. Diante da indicernibilidade entre ficção e realidade, é o evento vivido que interessa para pensar a cena contemporânea. “A escrita cênica não é mais hierárquica e ordenada; ela é desconstruída e caótica, ela introduz o evento, reconhece o risco” 7, exigência que não se efetiva somente no campo discursivo de uma linguagem verbalmente rastreável, mas nas nuances intersubjetivas das formas às quais os artistas enredam seu fazer, ou seja, no cerne da episteme que está sendo convocada, no discurso entendido em suas múltiplas formas. E essa episteme acionada, envolvida por visões de mundo e posturas éticas, não precisará estar refém de uma performance de confissão da verdade para garantir sua potência de ação. Seu engenhar não está na confissão do que é real ou do que é verdadeiro, mas no levante inquietante que se estabelece no próprio fenômeno do acontecimento, naquilo que acontece e se presentifica no agora do jogo da cena. Foucault (2010, p. 313), sugeria que a parresia pode acontecer perfeitamente em qualquer canto, “no teatro, nas assembleias, nos jogos, no que pode se dar nas esquinas”; é por isso que tenho pensado que esse presente manifesto num agora que afeta o artista disposto a acessar linhas de composição da vida está intimamente ligado a uma ação parresiasta do teatro. Para esses tipos de poéticas, o interesse está na qualidade viva da própria coisa que se manifesta, a sua episteme. É esse o ponto nevrálgico do que a parresía pode ensinar para o mundo contemporâneo. Interessa pensar no teatro performativo porque não é sobre um efeito garantido que suas poéticas têm operado, mas exatamente pelo risco eminente que se constitui como possível. Sua força política, tal qual a concepção de filosofia e de parresía em Foucault, acontece na forma de exterioridade permanente e correlativa.

5 2010, p. 330.. 6 LEHMANN, 2007, p.170. 7 FÉRAL, 2015, p. 124.

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ARTIGO

“ FA L S O ” X “FAK E” Contudo, o próprio Foucault 8 coloca que um discurso sem ornamento, um discurso que aquele que o pronuncia crê verdadeiro, tudo isso caracterizaria um discurso sincero, mas não necessariamente um discurso verdadeiro. “Arte requer verdade, não sinceridade”, já nos dizia Malevich (1879-1935). Sinceridade também é refém de automatismos. Daí é que a questão levantada por Foucault me leva a intuir, numa dobra conceitual, a diferença que gostaria de destacar nesse texto entre o “falso” e o “fake”. O “fake” a que me refiro não se trata simplesmente da ausência de sinceridade com o plano de imanência estabelecido no presente, com a malha de composição da vida, mas revela uma instância performativa que incorpora uma não-verdade com os fenômenos que constituem o real, como no caso do cinismo e da hipocrisia. O “falso” constitui matéria de composição do teatro contemporâneo, sendo construto passível de tessitura poética, inscrição que nos remete de volta à mimesis ou mesmo a fabulação de realidades ainda não existentes ou ainda vistas apenas como ficção. Desse modo é que a noção de coerência se apresenta de modo categórico nesse fazer teatral contemporâneo. O teatro não teria que compartilhar o verdadeiro e o falso no domínio da sua criação. Tal qual a filosofia parresiasta, ele teria que exercer perpetuamente sua crítica ao que é logro, engano e ilusão, e é nisso que ele joga o jogo dialético da sua própria verdade 9 . Foucault esboça então um quadro inquietante sobre a parresía, colocando-a como uma verdade que se manifesta de forma adequada, coerente, ao que se refere. Ela não será a tékhne do homem do ornamento, mas se fará como étymos, aquilo que dirá o verdadeiro do real. Para isso, não será o logos que se estabelecerá como parresía do filósofo, mas o érgon, aquilo que ele faz que se manifestará como atitude efetivamente parresiástica. “É do real político que o discurso filosófico tirará a garantia de que não é simplesmente logos, de que não é simplesmente uma palavra dada em sonho, mas que efetivamente toca o érgon, aquilo que constitui o real” 10 . A parresía estaria interessada num dizer-a-verdade irruptivo, “um dizer-a-verdade que fratura e que abre o risco: possibilidade, campo de perigos, ou em todo caso eventualidade não determinada” 11 . Isso, no entanto, não significa dizer que a parresía está livre da sua finalidade, que ela não tem um propósito. A parresía interessa-se em tensionar realidades ou mesmo provocar fissuras nos estados das coisas, contudo a enunciação parresiástica nunca terá por garantia o sucesso do seu feito. De modo semelhante, o “Teatro Performativo” irá incorporar um redirecionamento proposto por Derrida na evolução do conceito e terá, assim como a parresía, o conceito de risco como jogo fundante na concepção desse fazer teatral que se engenha como situação. A performatividade, Judith Butler também irá dizer, é entendida como um processo diferencial e diferenciador que incorpora a indeterminação e a imprevisibilidade. Para ela, “o performativo seria um exercício de articulação que traz uma realidade aberta em existência. O “fim aberto” talvez seja uma maneira de descrever esta indeterminação que significa o exercício de liberdade fora da teleologia (e escatologia)” 12 . A ação poética de um teatro performativo trabalha, então, por contingência, peregrinando no acaso, incorporando o efêmero de sua ação e apropriando-se do instante-já de uma ação que, mesmo não prevendo seus desdobramentos, joga constantemente com essa responsabilidade. Assim, reconhecendo que “todo teatro é político”, estaríamos afirmando, sem julgamentos de valor, que não é somente a performance com efeitos direcionados que opera politicamente, mas também na contingência se vê a manifestação de uma ação política na cena contemporânea. Daí que, para a efetivação de efeitos que fujam do objeto de verdade — ou mesma da ação fascista daqueles que não se responsabilizam pelos efeitos de suas ações —, o Teatro Performativo sugere um engajamento total do artista, colocando em cena o desgaste que caracteriza suas ações, ao ponto em que ele pode correr riscos reais em cena. Tal como o discurso parresiástico, esse Teatro Performativo está interessado em abrir para quem diz “a verdade” um certo espaço de risco, abrir um perigo, abrir um perigo em que a própria existência do locutor vai estar em jogo 13 . É por isso mesmo que

8 2010, p. 285. 9 FOUCAULT, 2010. 10 Idem, p. 255. 11

Idem, p. 61.

12 BUTLER, 2013, p. 130. 13 FOUCAULT, 2010.

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a vida do artista é colocada em jogo como território do discurso proferido, mobilizando, por as-

RE F E RÊ NCIA S B I B L I OGR Á F I CA S

sim dizer, todo o seu arsenal moral e ético. Na cena contemporânea performativa, é em virtude de uma disposição ética interessada nas múltiplas implicações e camadas que agenciam seu discurso

BUTLER, J; ATHANASIOU, A. Dispos-

poético que tem sido cada vez mais necessário evocar experiências, privilégios, desejos e outros

session: The Performative in the Poli-

meandros de ordem subjetiva do ator-performer; o que significa dizer que há, nessa prática teatral,

tical. Cambridge: Polity Press, 2013.

tal qual a parresía, não necessariamente uma recusa ao falso, à ficção — já que esse também é matéria de composição —, mas uma renúncia constante ao engano, à lisonja, à hipocrisia, ao cinismo,

FÉRAL, J. Além dos limites: teoria e

em suma, ao que insisto em chamar de “fake”, matéria nefasta utilizada por uma onda neoliberal,

prática do teatro. São Paulo, Perspec-

neofascista e sem responsabilidade ética com o mundo.

tiva, 2015.

No entanto, cumpre a tarefa de estabelecer “critérios seguros de distinção entre uma profanação de real conteúdo disruptivo e seu simulacro, essa secularização operada pela lógica contempo-

FOUCAULT, M. O governo de si e dos

rânea do capitalismo”. E é o alerta de Safatle que me leva, urgentemente, a lembrar que mesmo o

outros. São Paulo: Editora WMF Mar-

teatro performativo pode cair no risco do seu simulacro a partir de lógicas de manipulação “fake” do

tins Fontes, 2010

14

performativo. Muito por uma necessidade de ajuste aos interesses da indústria cultural, é possível percebermos a voracidade de manuais operativos de criação, procedimentos formais reiterados que

LEHMAN, Hans-Thies. Teatro pós-

servem muito mais a uma rede fechada de curadores e formadores de opinião do que necessaria-

-dramático. São Paulo: Cosac Naify,

mente no processo de emancipação criativa. Essa crítica, no entanto, precisa nos servir muito mais

2007.

para nos deixar em alerta sobre os modos e procedimentos de criação que temos utilizado do que para paralisar a potência da cena performativa. Pensamento que demanda ação. Mas uma ação que reconheça que não há soluções mensuráveis para esse mundo. As soluções são todas do agora, da

SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

emergência, elas não podem se fixar. Mas precisamos de uma emergência que realmente nos desloque, que nos coloque em jogo, implicados num processo que é sempre movimento vivo.

14 2008, p. 176.

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p­ — 29


raphael.douglas@hotmail.com

RAPHAEL DOUGLAS MONTEIRO TENÓRIO FILHO

ARTIGO

Considerações filosóficas sobre a comicracia

p­ — 30


A

política da risadagem, a narcotização por memes, a cultura do riso histérico são o atestado de óbito do pensamento. De saída, esse não é um escrito pessimista. Considere,

amigo leitor, uma análise estrutural, em sentido filosófico, de um apocalipse que já está em plena marcha. Assinala o historiador Georges Minois, recém-citado, a propósito de Schopenhauer, que “o pessimismo não é inimigo do riso, ao contrário. Quanto mais o mundo parece uma realidade absurda e deslocada, mais se deve rir dele” 2 . Mas há risos e risos. E riscos. Escuta atenta. Observando as condutais atuais, quais as razões de sempre haver “bom humor” após uma crítica, neutralizando-a, não importando sua intensidade? Por que domesticar o pensamento a golpes de gargalhadas? É preciso pôr os risonhos de lado. Se se deseja entender o pano de fundo do comportamento coletivo de uma sociedade que se tornou alérgica aos temas sérios, é preciso pausar a risadagem. Que entendamos logo que viver numa comicracia 3, regime no qual o humorismo é discurso normativizante e mesmo os humoristas tomam conta da vida intelectual, é ser testemunha do processo de soterramento da crítica por quilos de risos histéricos. Repare: a intoxicação humorística cobra seu preço. O cinismo generalizado nos faz passar ao largo dos fatos. Há quem diga que o nome disso é Pós-verdade, palavra do ano de 2016, aquilo que “denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos

1

influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais” 4 . E é por via do excesso de emoção que há muito estão indiscerníveis as fronteiras entre fato e ficção e o remédio, em doses cavalares, é rir. Rir de tudo. Em discurso público 5 acerca da crescente cultura de anti-intelectualismo, em janeiro de 2019, Barack Obama invocou pertinente frase de Carl Sagan: “Podemos julgar nosso progresso pela coragem dos nossos questionamentos e pela profundidade de nossas respostas, nossa vontade de abraçar o que é verdadeiro, ao invés daquilo que nos faz sentir bem”. Se a ditadura do cinismo difuso (Pós-verdade) e da humorização se faz presente nas condutas dos sujeitos contemporâneos, o que significa ainda a crítica em uma época na qual a sátira passou de necessidade à banalização? Charles Darwin, em sua obra A expressão das emoções no homem e nos animais, afirma que “nos idiotas a risada é a mais prevalente e frequente das expressões emocionais” 6 . Se isso é verdade para o indivíduo, não é necessário ter receio de aplicar a tese à coletividade. Não há aqui espaço para uma psicanálise de boteco? Quem de tudo ri não esconde algum sofrimento?

2 Idem, p. 514 3 C.f L'YVONNET, François. Homo comicus ou l'intégrisme de la rigolade. Paris: Fayard/Mille et une nuits, 2012. 4 Cf. definição no Oxford English Dictionary. Disponível em: https://en.oxforddictionaries.com/definition/post-truth 5 Cf. Barack Obama — Anti-intelectualismo, Ciência e Carl Sagan in: https://www. youtube.com/watch?v=1CKOt161Igo 1 MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora UNESP, 2003. p. 553.

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6 DARWIN, Charles. A expressão das emoções no homem e nos animais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 169.

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ARTIGO

PE TE R SL OTE RDIJ K COM O M ODE L O DIAGNÓSTICO DO CINISM O PÓS-FAC TUA L Fenomenologia rápida. Há algo mais profundo ocorrendo nas estruturas da racionalidade que ressoam na dimensão da práxis. É o que detecta Peter Sloterdjik, filósofo alemão contemporâneo, em sua Crítica da razão cínica. Há “um modo cínico de funcionamento dessas estruturas que aparece normalmente em épocas e sociedades em processo de crise de legitimação” 7 . A assim chamada era da Pós-verdade, cínica e excessivamente lúdica, demonstra que contra fatos há argumentos e toda sorte de estratagemas retóricos capazes de fazer com que a subjetividade contemporânea tenha prejudicada a habilidade de discernir o real do imaginário, de delinear fronteiras que ofereçam o contraste do que é verdade, do que é falso, do que é ficção, do que é satírico, do que é irônico, do que é verossimilhante. Como diagnostica Sloterdijk, “a série de formas de falsa consciência que tiveram lugar até agora – mentira, erro, ideologia – está incompleta. A mentalidade atual obriga a adicionar uma quarta estrutura: o fenômeno cínico” 8 . Sloterdijk sustenta que a resposta ao nosso mal-estar na cultura é a adoção de um “cinismo universal e difuso” 9 que se tornou o estigma central da pós-modernidade. Detectando na humanidade contemporânea uma inconsistência de valores, Sloterdijk aponta os perigos de um presente quietismo e de um recorrente ativismo exacerbado, características de uma “humanidade neutra [...] que ainda não desenvolveu suas capacidades de agir e, por assim dizer, presa entre a casuística da impotência e a casuística do ativismo agudo”  1 0 . O filósofo vai de encontro ao cinismo difuso de qualquer projeto moderno em favor da humanidade. Todos falharam, já temos consciência, mas continuamos a operá-los e discutí-los. Eis a generalização da disposição neocínica: uma falsa consciência ilustrada, ou seja, uma consciência de posições resultantes de um tempo que conhece bem os pressupostos ideológicos da ação, mas não encontra muita razão para reorientar, a partir daí, a conduta. Age-se hoje, jubilatoriamente, contra as mais íntimas convicções. “Nós somos ilustrados, estamos apáticos. Já não se fala de um amor à sabedoria.” 11 Não se trata do cinismo em seu sentido grego, mas em seu sentido contemporâneo, vulgar e pejorativo  1 2 . Em revanche, o cinismo em sua mais profunda derrelição é a reposta da cultura hegemônica à subversão quínica 13 que reconhece e dá-se conta

7

SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 13.

8

SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la razón cínica. Madrid: Ediciones Siruela, 2003. p. 37.

9

Idem.

10 FINKIELKRAUT, Alain; SLOTERDIJK, Peter. Les Battements du monde. Paris: Éditions Pauvert, 2003. p. 175. 11

SLOTERDIJK, p.14.

12 ONFRAY. Michel. Cinismos. Retratos de los filósofos llamados perros. Buenos Aires: Paidós, 2002. p. 224. 13 Sloterdijk, na extensão da sua obra, tenta aduzir como se pode superar a disposição neocínica através do cinismo em seu estado originário, propondo utilizar os termos quínico ou kínico para diferenciar o conceito de cínico no sentido original, filosófico, daquele está hoje em voga. Onde ainda atuaria o cínico em sentido helenístico (grego) e por que deve ser antídoto ao cinismo difuso das nossas sociedades lúdicas e neocinicas?

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do interesse particular que subjaz à universalidade ideológica, delineia claramente as fronteiras entre a máscara ideológica e a realidade e, ainda sim, encontra razões para manter a máscara: eis a falência da crítica. Qual a substância do cinismo da sociedade ludicamente pós-factual, quem são os atores sociais que a tudo ironizam sem teleologia e à que instância de poder serve uma constante risada satírica, quiçá patológica, que acentua a atual fobia de aprofundamento em uma crítica? O que significa dizer que é o cinismo o crepúsculo da falsa consciência? A realização do cinismo em seu sentido vulgar e pejorativo? Desta competência das consciências surgiu essa penumbra característica do presente: a perseguição mútua das ideologias, a assimilação dos contrários, a modernização do engano; em poucas palavras, essa situação que enviou o filósofo ao vazio e na qual o mentiroso chama o mentiroso de mentiroso 14 . Para além de um pontual apocalipse, Sloterdjik deseja postular que mais do que uma “cunhagem episódica, [a constatação sobre a falsa consciência ilustrada] é um indício sistemático, um modelo diagnóstico” 15 . Um “diagnóstico de uma época na qual o poder não teme a crítica que desvela o mecanismo ideológico [uma vez que] o poder aprendeu a rir de si mesmo” 16 . A ludicidade neocínica pós-verdadeira, tratemo-la assim, uma crise moral e epistemológica generalizada, é forte movimento de esterilização da crítica. “A época é cínica e sabe que os valores têm as pernas curtas” 17 . E, ademais, observa Sloterdjik: Há muito tempo que pertencem ao cinismo difuso os postos chave da sociedade em juntas diretivas nos parlamentos, nos conselhos de administração, na direção de empresas, nos lectorados, consultórios, faculdade, chancelarias e redações. 18 O comportamento social em voga apoia-se num cinismo difuso no qual os sujeitos já estão esclarecidos, conhecem os pressupostos que subjazem às suas ações alienadas, fingem não saber, se riem e seguem aplaudindo todos os escândalos. Há uma “história do cinismo marcada pela passagem de uma economia restrita a uma economia generalizada” , da qual nosso comportamento é um epifenômeno e se realiza em profunda “hipertrofia lúdica" como veremos junto a Gilles Lipovetsky 19 .

14 SLOTERDIJK, Peter. op. cit. p. 15. 15 Ibidem. p. 41. 16 SAFATLE, Vladimir. op. cit. p. 69 17 SLOTERDIJK, Peter. op. cit. p.15. 18 Ibidem. p. 40. 19 SAFATLE, Vladimir. op. cit. p. 70.

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ARTIGO

G IL L E S L IPOV ET SK Y E A D E PRE C I AÇ ÃO LÚ D I CA D O SEN T I D O

O vazio ideológico da sociedade neocínica e hipermoderna — segundo a classificação de Lipovetsky —, sem gravidade, de condutas ironizantes, desapropriada de valores políticos e mo-

Em Gilles Lipovetsky, autor francês da moda, adentramos

rais tradicionais, desiludida, irresponsável, indiferente, atravessa-

em uma lógica social pós-disciplinar, nomeada pós-modernida-

da por uma constante autozombaria destrutiva, viu-se destinada

de, permeada por um individualismo inflado de códigos humorís-

à “ausência de fé pós-moderna, o neoniilismo, [que não] é nem

ticos. Esse autor nos insta a questionar quando o humor, através

ateia e nem mortífera, se tornou humorística”  2 7 .

do código humorístico, um “aroma espiritual do hedonismo de

Significa dizer que, para Lipovetsky, a pós-modernidade,

massa” 20 , se tornou um imperativo social generalizado, um in-

solo de dúvidas potencialmente angustiantes, de alguma manei-

gresso coletivo inexorável, um bilhete de navegação indispensá-

ra substituiu o drama de respostas filosóficas tradicionais pela

vel a quem deseja fazer-se ouvir. “O humor se torna uma quali-

expressão humorística. A sociedade humorística: o leve contra o

dade exigida ao outro.”

pesado, o publicitário suprindo o filosófico, a rede social no lugar

21

Sloterdijk afirma que “não se pode em nenhuma época reprimir o direito humano à frivolidade” . Fugindo cinicamente da  22

do pensamento, a emoção no da razão, o imaginário suplantando o real, a ficção pelo fato, a verdade pela pós-verdade.

crítica, ou seja, da assunção às estruturas mais profundas da rea-

Lipovetsky classifica o atual paradigma não apenas de

lidade já postas a nu, o homem contemporâneo busca a leveza

pós-moderno, mas de hipermoderno, a “era do hiper”, do ele-

do sentido para suportar o seu natural autoengano.

vado hedonismo individual, da comicidade autorreflexiva  2 8 , do

Com as ideologias desmascaradas, o homem vê as coisas

“consumo emocional” 29 , “uma sociedade liberal caracterizada

como elas são, não as suporta e se refugia em individualidade,

pelo movimento, a fluidez, a flexibilidade, desligada como nun-

“individualização que se instalou no moderno clima urbano e de

ca dos grandes princípios estruturantes da modernidade”  3 0 . É o

mídias” , em personalização, nas emoções, no mundo do consu-

momento, afirma Sloterdijk 31 , citado pelo próprio Lipovetsky, da

mo dos signos pós-modernos, em riso permanente, intoxicado

“guerra do leve contra o pesado” 32 .

2 3

voluntariamente por códigos humorísticos, pela ironização do discurso em cada esfera da existência. “O mundo deve rir para

Se cada cultura desenvolve de maneira preponderante um es-

camuflar a perda de sentido. Ele não sabe para onde se encami-

quema cômico, unicamente a sociedade pós-moderna pode ser

nha, mas vai rindo.”

chamada de humorística, pois só ela se instituiu globalmente

24

A política, convertida em um circo do entretenimento, é o

sob a égide de um processo que tende a dissolver a oposição,

campo no qual foram detectadas sobretudo as dissonâncias do

até então estrita, do sério e do não-sério. Como as outras gran-

fenômeno que aqui tentamos aprisionar para descrição. É chega-

des divisões, a do cômico e do cerimonial se esvai, em benefício

da a “fase humorística e particularista das democracias” . Uma

de um clima amplamente humorístico. Enquanto que, a partir

sociedade cínica, pós-ideológica e ludicamente hipertrofiada.

das sociedades estatais, o cômico se opõe às normas sérias, ao

25

Estado, representando para ele outro mundo, um mundo carDepois da fase de afirmação gloriosa e heróica das democracias

navalesco popular na Idade Média, mundo da liberdade satí-

nas quais os signos ideológicos rivalizaram em ênfases (a nação,

rica do espírito objetivo desde a idade clássica, na atualidade

a igualdade, o socialismo, a arte pela arte) com os discursos hie-

essa dualidade tende a desintegrar-se sob o impulso invasor do

rárquicos destronados, entramos na era democrática pós-mo-

fenômeno humorístico que incorpora todas as esferas da vida

derna que se identifica com a desubstancialização humorística

social, por mais que desagrade. 33

dos principais critérios sociais. 26 Seguindo as indicações de Lipovetsky, podemos chegar à Se é o discurso pós-verdadeiro o modo de acetinar e tornar

compreensão de como o humor pós-moderno é autoconscien-

mais leve a gravidade da verdade, apelando sobretudo à emo-

te, assim como é autoconsciente o cínico contemporâneo, como

ção e não aos fatos, nos conectamos ao que classifica Lipovetsky

visto em Sloterdijk. Concentrada num riso pesado, numa onipre-

como “código humorístico”. O código humorístico, afirma o au-

sença do cômico que não faz rir, mas que encobre contentemen-

tor, enfraquece a reinvindicação do sentido, destitui os conteú-

te a verdade com signos humorísticos, nossa era encontra forma

dos. Ao invés de transmissão ideológica, a desubstancialização

de ficcionalizar a realidade para torná-la suportável aos sujeitos

humorística [...] A glorificação do sentido foi substituída por uma

desubstancializados e exercer sobre eles, ainda, alguma forma de

depreciação lúdica, uma lógica inverossímil. 27 Ibidem. p. 137. 20 LIPOVETSKY, Gilles. La era del vacío. Barcelona: Anagrama, 2003. p. 156. 21 Ibidem. p. 160. 22 SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad voluntaria y responsabilidad ciudadana. Madrid: Siruela, 2014. Kindle Version. 23 ______. op. cit. p. 39. 24 MINOIS, Georges. op. cit. p. 554.

28 LIPOVETSKY, Gilles. La era del vacío. Barcelona: Anagrama, 2003. p. 145. 29 CHARLES, Sébastian; LIPOVETSKY, Gilles. Les temps hypermodernes. Paris: Grasset, 2004. p. 36. 30 Ibidem. p. 26. 31 Cf. SLOTERDIJK, Peter. Essai d’intoxication volontaire. Paris: Pluriel, 1999.

25 LIPOVETSKY, Gilles. op. cit. p. 167.

32 LIPOVETSKY, Gilles. Da leveza: rumo a uma civilização sem peso. Barueri, SP: Amarylis, 2016. p. 33.

26 Ibidem. 162. Grifo nosso.

33 ______. op. cit. p. 137. Grifo nosso.

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dominação. A ditadura do bom-humor?

que o sujeito, “alérgico à solenidade do sentido” 40 , adote preferencialmente uma postura humorística para a compreensão do

Pelo relaxamento ou distensão das mensagens que engendra, o

mundo, aplicando um verniz cínico e irônico sobre a realidade,

código humorístico forma parte do amplo dispositivo polimor-

tornando-a mais aprazível.

fo que, em todas as esferas, tende a personalizar as estruturas

O cinismo vigente é o mais duro de aceitar: trata-se do ci-

rígidas e as obrigações. Ao invés das cominações coercitivas, da

nismo de quem manda. O poderoso — corrupto —, antes alvo

distância hierárquica e da austeridade ideológica, se dão a pro-

das sátiras e dos produtos humorísticos, geralmente à esquerda

ximidade e desenfado humorísticos, linguagem de uma socie-

do poder, hoje, apropriado da estética, ri de si e do mais fraco. Se

dade flexível e aberta. 34

até a máquina contra-hegemônica, a ironia e a sátira, armas outrora apenas nas mãos dos mais carentes de armas, estão apro-

Hipertrofiada ludicamente e cinicamente manejada, a rea-

priadas por quem detém o poder. O humor de quem obedece,

lidade se ficcionaliza nos traços pós-factuais da sociedade con-

agora, é um humor histérico. Elaborado para evitar ao máximo a

temporânea. Arremata Lipovetsky que

autopercepção de dominado. Se ri de tudo, o mais alto possível, para nada ouvir, para nada profundamente elaborar. Alienação

há tantas mais representações alegres quanto mais monótono

humorística.

e pobre é o real. A hipertrofia lúdica compensa e dissimula a

Quando termina a banalização do humorístico? Seriedade

angústia real contemporânea. Na realidade, o código humorís-

não é rispidez, senso de humor não é comportamento circen-

tico aspira ao relaxamento dos signos e despojá-los de qualquer

se. Este não é um tratado de mauhumorismo. É uma imaginação

gravidade. Deste código resulta o verdadeiro vetor da demo-

acerca das possibilidades de retorno a um estado de percepção

cratização dos discursos mediante uma desubstancialização e

do humor como instrumento contra-hegemônico. Será ainda

neutralização lúdicas. 35

viável o humor como veículo sério de injeção de crítica?

Uma ligeira análise de discurso de qualquer área de produção de informação, mesmo a filosofia, mostrará que o relaxa-

Seguimos sem conhecer a contribuição do humor para a configuração cultural das nossas sociedades. 41

mento e a neutralização lúdica dos signos fazem com que “os valores superiores se tornem paródicos” 36 . Não se pode ignorar que a expressão crítica mais evidente em voga no senso comum, sobretudo nas querelas políticas, sejam os memes 37 . Sobre essa última linguagem, o meme, tornado expressão oficial do pensamento atual, o aforismo contemporâneo, substituto quase absoluto do texto — o atual pathos imagético —, afirma acertadamente Achilles Mbembe, filósofo camaronês, que “a imagem tornou-se um fator de aceleração de energias pulsionais” 38 . Mesmo na linguagem científica, na qual se deposita todo o crédito de um discurso sem espaço para bazófias, podem-se encontrar aventuras de um discurso piadista. Em suma, o humor penetrou em espaços outrora reservados exclusivamente a discursos austeros. A banalização do código humorístico, inundando a sociedade com um riso difuso, mascara as fronteiras do que é a crítica banal e a crítica necessária. Precisamente por isso, afirma Lipovetsky, “somos superinformados em crônicas jornalísticas, mas subdesenvolvidos em matéria de compreensão histórica e social do fenômeno 39 . Parece natural em nossos dias — classifique-se como modernidade tardia, pós-modernidade ou pós-pósmodernidade — 34 LIPOVETSKY, Gilles. op. cit. p. 156. Grifo nosso. 35 ______. op. cit. p. 158. Grifos nossos. 36 ______. op. cit. p. 162. 37 Cf. MARTÍN, María. Memes, a única instituição funcionando plenamente no Brasil. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/18/ politica/1495122702_582065.html Acesso em 04/06/2017. 38 MBEMBE, Achilles. Critique de la raison nègre. Paris: Éditions La Découverte, 2013. p. 14. 39 LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 09.

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40

LIPOVETSKY, Gilles. op. cit. p. 157.

41 BORDERÍA ORTIZ, Enrique; GÓMEZ MOMPART, Josep Ll.; MARTÍNEZ GALLEGO, Francesc A. La risa periodística: teoría, metodología e investigación en comunicación satírica. Valencia: Tirant Le Blanch, 2010. p.42.

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ARTIGO

foto: rovena rosa/agência brasil

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A pEDRA E FAZER A ARTE FALAR: Chamamento público anticolonial a artistas não-indígenas JUMA GITIRANA TAPUYA MARRUÁ limarina70@gmail.com

1 Na noite em que foi eleito para presidência de nosso país, mais uma faceta da barbárie e violência colonial, baixo nome de Jair Bolsonaro, incendiaram criminosamente a única unidade de saúde da comunidade Bem Querer de Baixo, no território do povo Pankararu, na cidade de Tacaratu em Pernambuco. O valor recebido pela publicação deste texto (excerto da dissertação de mestrado em Teatro, pela Universidade Estadual de Santa Catarina) será encaminhado para a vaquinha virtual organizada por este povo para a reconstrução de suas escolas e posto de saúde. Para saber mais e doar: https://www.vakinha.com. br/vaquinha/unidade-de-saude-pankararu e também para a Aty Kuña — Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá que estão solicitando ajuda para a construção da pré-reunião Kuñangue Aty Guasu, que acontecerá em maio/2019 na Terra Indígena Sombrerito (MS). Para saber mais e colaborar de alguma forma possível: https://www.facebook.com/atykuna2017/.

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1


DEMARCAÇ E

m dois de outubro de 2013, a Comissão Guarani Yvyrupa,

Para nós, povos indígenas, a pintura não é uma agressão ao

junto com outros movimentos sociais, tingiu de tinta ver-

corpo, mas uma forma de transformá-lo. Nós, da Comissão

melha os dorsos dos que representariam os indígenas no

Guarani Yvyrupa, organização política autônoma que arti-

Monumento às bandeiras, de Victor Brecheret, no Parque do Ibi-

cula o povo guarani no sul e sudeste do país, realizamos no

rapuera, cidade de São Paulo. Além da exposição simbólica do

último dia 2 de outubro, na Av. Paulista, a maior manifes-

sangue indígena que fora derramado pela ação bandeirante no

tação indígena que já ocorreu em São Paulo desde a Confe-

Brasil, foram, em grupo, em muitos, à frente dos “homens bran-

deração dos Tamoios. Mais de quatro mil pessoas ocuparam

cos de pedra” do monumento e abriram a sua faixa onde se podia

a Av. Paulista, sendo cerca de quinhentas delas dos nossos

ler: “Guarani resiste, demarcação já”.

parentes, outros duzentos de comunidades quilombolas

Segundo o pesquisador e artista visual Guilherme Leite da Cunha:

e mais de três mil apoiadores não-indígenas, que viram a força e a beleza do nosso movimento. Muitos meios de comunicação, porém, preferiram noticiar nossa manifestação

A ação guarani de atacar, ainda que simbolicamente, o Monu-

como se tivesse sido uma depredação de algo que os brancos

mento às Bandeiras da cidade de São Paulo cumpre o papel

consideram ser uma obra de arte e um patrimônio público.

de resgatar o monumento para o curso da história. E ao rea-

Saindo da Av. Paulista, marchamos em direção a essa es-

presentá-lo ao processo histórico, podemos novamente en-

tátua de pedra, chamada de Monumento às Bandeiras, que

xergar nele as chagas da maldade que ele representa. ‘Nunca

homenageia aqueles que nos massacraram no passado. Lá

há um documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo,

subimos com nossas faixas, e hasteamos um pano vermelho

um documento de barbárie. E, assim, como ele não está livre

que representa o sangue dos nossos antepassados, que foi

da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão,

derramado pelos bandeirantes, dos quais os brancos pare-

transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro’, atesta

cem ter tanto orgulho. Alguns apoiadores não-indígenas

Walter Benjamin. Ao realizar a intervenção na estátua, os indí-

entenderam a força do nosso ato simbólico, e pintaram com

genas tentam interromper esse processo de transmissão. E in-

tinta vermelha o monumento. Apesar da crítica de alguns,

terrompendo esse processo, podemos relembrar que uma obra

as imagens publicadas nos jornais falam por si só: com esse

de arte não se encerra somente em seus valores formais, mas

gesto, eles nos ajudaram a transformar o corpo dessa obra

fundamentalmente em seus valores culturais, de significação e

ao menos por um dia. Ela deixou de ser pedra e sangrou.

representação. (CUNHA, 2013, p. 2)

(FÓRUM, 2013, s/p)

Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupa,

A ação simbólica que é capaz de transformar o corpo da obra.

escreve um relato com o ponto de vista Guarani sobre a ação.

E ao dar vida aos homens de pedra, também nos convida a deixar-

Começa se posicionando em relação à pintura corporal e reve-

mos de ter coração de pedra e se identificar com essa luta. Marcos

la as condições que formaram as “obras de arte” e seus autores

Tupã ainda segue travando diferenças entre o “simbolismo coloni-

(grifos meus):

zador” e a “intenção simbólica” dessa ação:

cacique aky abro kayapó — foto: thiago gomes/agência pará

p­ — 38


ÇÃO Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram nosso povo e transformou-se em um monumento à nossa resistência. Ocupado por nossos guerreiros xondaro, por nossas mulheres e crianças, esse novo monumento tornou viva a bonita e sofrida história de nosso povo, dando um grito a todos que queiram ouvir: que cesse de uma vez por todas o derramamento de sangue indígena no país! Foi apenas nesse momento que esta estátua tornou-se um verdadeiro patrimônio público, pois deixou de servir apenas ao simbolismo colonizador das elites para dar voz a nós indígenas, que somos a parcela originária da sociedade brasileira. Foi com a mesma intenção simbólica que travamos na semana passada a Rodovia dos Bandeirantes, que além de ter impactado nossa Terra Indígena no Jaraguá, ainda leva o nome dos assassinos. A tinta vermelha que para alguns de vocês é depredação já foi limpa e o monumento já voltou a pintar como heróis, os genocidas do nosso povo. Infelizmente, porém, sabemos que os massacres que ocorreram no passado contra nosso povo e que continuam a ocorrer no presente não terminaram com esse ato simbólico e não irão

TREMA!_fim

p­ — 39


ARTIGO cessar tão logo. Nossos parentes continuam esquecidos na

Desde 2013 até hoje, os povos originários do Brasil vêm se

beira das estradas no Rio Grande do Sul. No Mato Grosso do

manifestando publicamente, utilizando-se de distintas estraté-

Sul e no Oeste do Paraná, continuam sendo cotidianamente

gias, tanto contra a PEC 215 quanto a outras séries de propostas

ameaçados e assassinados a mando de políticos ruralistas que,

que tramitam no Congresso Nacional e que ferem profundamente

com a conivência silenciosa do Estado, roubam as terras e a

o modo de vida indígena. Nas palavras do pesquisador e professor

dignidade dos que sobreviveram aos ataques dos bandeiran-

Casé Angatú Xukuru Tupinambá, no dia seguinte às manifestações

tes. Também em São Paulo, esse massacre continua, e perto

nacionais indígenas de 11 de novembro de 2015,

de vocês, vivemos confinados em terras minúsculas, sem condições mínimas de sobrevivência. Isso sim é vandalismo. Fica-

derrotar a PEC 215 é urgente, mas a luta indígena vai muito

mos muito tristes com a reação de alguns que acham que a

mais além. Desde o ano passado, quando muitos comemora-

homenagem a esses genocidas é uma obra de arte, e que vale

ram (ao findar de 2014) a vitória parcial após o arquivamento

mais que as nossas vidas. Como pode essa estátua ser consi-

da proposta, estamos salientando as ponderações aqui pre-

derada patrimônio de todos, se homenageia o genocídio da-

sentes. A PEC 215 está diluída em várias outras PECs no Con-

queles que fazem parte da sociedade brasileira e de sua vida

gresso Nacional, em ações políticas, administrativas, jurídicas,

pública? Que tipo de sociedade realiza tributos a genocidas

econômicas e na prática cotidiana, como acontece nos territó-

diante de seus sobreviventes? Apenas aquelas que continuam

rios onde existem disputas. As mortes constantes de indígenas,

a praticá-lo no presente. (FÓRUM, 2013, s/p)

prisões, difamações, as ações violentas contra os Povos Originários, Belo Monte, queimadas, as propostas dos juízes locais

E finaliza falando sua definição para arte:

para solucionar conflitos, em seu conjunto, são ações que já colocam em prática muito da PEC 215.

Esse monumento para nós representa a morte. E para nós, arte

Aliás, antes da PEC 215, o Direito à Demarcação do Território

é outra coisa. Ela não serve para contemplar pedras, mas para

Originário já estava sendo negado. Bem como ocorrem re-

transformar corpos e espíritos. Para nós, arte é o corpo trans-

visões de demarcações já efetuadas. Na nossa leitura, o Es-

formado em vida e liberdade e foi isso que se realizou nessa in-

tado brasileiro segurou as demarcações, alegando equívocos

tervenção. Aguyjevete pra todos que lutam! (FÓRUM, 2013, s/p)

na forma como eram realizados os relatórios demarcatórios e pendências jurídicas para que ocorressem alterações e revisões

Tupã nos convida a pensar a função da arte como produtora de uma corporalidade viva e liberta. E oferece aos nossos sentidos, através de seu texto e da ação que correalizou, uma possibilidade, um modelo de ação, pistas para se chegar a essa outra corporeidade, diferente da do “povo da mercadoria” 2, que transforma em pedra tudo que toca. Tal ação foi uma das mais noticiadas, à época, acerca da luta indígena – envolvendo diversos povos e localidades brasileiras – contra a Proposta de Emenda Constitucional número 215 (PEC 215), apresentada à Câmara dos Deputados em 28 de março de 2000, pelo então deputado Almir Sá 3. Em abril de 2013, foi organizada (pela bancada ruralista) uma comissão especial para examinar e emitir parecer sobre essa proposta. Por ela, a competência para a demarcação de terras no país passaria da União para o Congresso Nacional, possibilitando a revisão de terras já demarcadas, além da criação de novos critérios e procedimentos para a demarcação de novas terras. Segundo vários setores indigenistas, a proposta é inconstitucional e fere direitos fundamentais dos povos originários em prol do fortalecimento do agronegócio brasileiro, suportado pela bancada ruralista dentro da Câmara dos Deputados.

2 Segundo David Kopenawa Yanomami, “os brancos dizem: ‘somos os únicos a nos mostrar tão engenhosos! Somos realmente o povo da mercadoria! Poderemos ser cada vez mais numerosos sem jamais passar necessidades!’. Abriu-se, assim, um ímpeto de expansão; seu pensamento se enfumaçou e a noite o invadiu. Ele se fechou às outras coisas. Foi com estas palavras da mercadoria que os brancos começaram a cortar todas as árvores, maltratar a terra e a sujar as águas”. (TIBLE, 2013, p. 432). 3 A Proposta de Emenda Constitucional 215 pode ser lida na íntegra através do enlace disponível em: http://imagem.camara.gov.br/imagem/d/pdf/dcd19abr2000.pdf#page=69. Acesso em: 4 de junho de 2016.

p­ — 40

nos Processos Demarcatórios.

REAFIRMAMOS QUE A PEC 215 REVELA UM PROCESSO QUE ANTECEDE, PERMEIA E PODE SUCEDÊ-LA, MESMO QUE ELA SEJA DERROTADA! ACREDITAMOS QUE O ESTADO BRASILEIRO (EXECUTIVO, LEGISLATIVO E JURÍDICO), AO COLOCAR EM PRÁTICA OS PROJETOS DESENVOLVIMENTISTAS, E A ELITE NACIONAL/INTERNACIONAL NUNCA ASSEGURARÃO AOS POVOS ORIGINÁRIOS O DIREITO ANCESTRAL À TERRA, SUA ALTERIDADE, AUTONOMIA E A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL.


Assim tem acontecido ao longo de 515 anos de ditaduras contra

A vida em confinamento é viver sem arte, viver sem sonho, viver

os Povos Originários no Brasil e na Latino-América.

sem a terra. A vida em confinamento é fazer viver sem vida, a

O Estado brasileiro, suas instituições e os donos do poder polí-

gente tem que fazer a arte falar, ser artista é fazer a arte falar

tico e econômico há mais de cinco séculos nos apontam qual o

e a vida em confinamento é matar a arte dentro da gente, é

caminho a seguir:

matar a arte dentro da vida do povo Kaiowá. Então, viver a arte, fazer arte falar é ser livre e não viver em confinamento.

O DA LUTA PELA COMPLETA

Estar em confinamento: o que é a vida sem sorrir, o que é a vida sem viver, o que é a vida sem a arte de viver a terra, de viver

AUTONOMIA DOS TERRITÓRIOS

na terra, na terra tradicional do povo Kaiowá-Guarani. Então, essa forma que nós estamos vendo e nos sentimos muito emo-

INDÍGENAS,

cionados porque isso é viver em confinamento, isso é confinamento. Então, agradecemos a vocês essa oportunidade, essa

como fazem os Zapatistas em Chiapas no México e os Mapuches

pequena oportunidade de ouvir um pouco do nosso canto, do

entre Chile e Argentina. Por isso, falamos que, antes de tudo,

nosso sorriso, que ainda resta para o povo Kaiowá-Guarani. A gente agradece a todos vocês: e vivam essa arte, todos os ar-

SOMOS POVOS E NÃO BRASILEIROS,

tistas. Vocês são artistas que trazem para o mundo ver a tristeza daqueles que não podem falar, o choro daqueles que não

CUJOS TERRITÓRIOS FICAM SOB A

podem ser ouvidos, a voz daqueles que já não existem mais, que tombaram na luta pela terra, tombaram na luta por um

TUTELA DE UM ESTADO NACIONAL

pedacinho de teto, tombaram na luta pela vida mesmo, em todos os lugares deste mundo, vocês são a voz, a voz do povo

QUE NÃO NOS REPRESENTA E

é o artista. Agradeço por podermos vir e por poder estar aqui com vocês. (BAROUCKI, 2013)

PRECISAMOS ROMPER COM ESTA SITUAÇÃO. (ANGATÚ, 2015, s/p)

RE F E RÊ NCIA S BIBL IOGRÁ F ICA S

É possível “romper com essa situação” que Casé Angatú nos narra, enfrentar tanto a PEC 215 quanto o próprio capitalismo através de “intenções simbólicas”, através da arte? A arte pode ser uma ferramenta de luta no plano do simbólico e no plano do real?

ALMEIDA, Lígia Marina de. “Nós fizemos isso para vocês, brancos, saberem que nós existimos!”: imagens de luta dos povos originários do Brasil (2013-2015). Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Mestrado em Teatro, Florianópolis, 2016.

O mesmo Prof. Dr. Casé Angatú Xukurú Tupinambá, como membro da banca de avaliação da dissertação de mestrado “Nós

ANGATÚ, Casé. Derrotar a PEC 215 é urgente, mas a luta indígena vai

fizemos isso para vocês, brancos, saberem que nós existimos!”: imagens

muito além: pela completa autonomia dos territórios dos povos originá-

de luta dos povos originários do Brasil (2013-2015) 4, de onde retirei

rios. Índios online. 12 de Nov de 2015. Disponível em: http://www.

as reflexões aqui apresentadas, responde a pergunta acima junto

indiosonline.net/derrotar-a-pec-215-e-urgente-mas-a-luta-indi-

com Paulo Freire: educação (e arte) não mudariam o mundo por

gena-vai-muito-alem-pela-completa-autonomia-dos-territorios-

si, mas transformam as pessoas que transformam o mundo, num

-dos-povos-originarios/. Acesso em: 21/03/16.

sentido anticolonial. Mas apenas pessoas indígenas podem lutar pelo que lutam

BAROUCKI, Wilson. A palavra que age — Medida performativa #1.

os povos indígenas? Não seria essa causa uma luta de todos sobre

2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Lar_Lt-

essa Terra, uma luta anticolonial, para manter viva a própria vida,

mmVeQ. Acesso em: 18/07/16.

humana e não-humana? Seguindo a pista de Angatú, e para encerrar este chamamen-

CUNHA, Guilherme Leite. Sobre a morte das estátuas. Rede Brasil

to público aos artistas de Pindorama, trazemos a voz da liderança

Atual. Disponível em: http://.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-

Guarani-Kaiowá Valdelice Verón e seu apelo aos artistas (em sua

narede/2013/10/sobreamortedasestatuas540.html. Acesso em:

maioria das artes cênicas) que foram corresponsáveis pela perfor-

20/01/16.

mance A palavra que age — Medida performativa #1, acionada na edição de 2013 do Festival de Internacional de Teatro de Dourados/MS, para se somar a essa grande luta:

FÓRUM. “Monumento às bandeiras homenageia aqueles que nos massacram”, diz liderança indígena. 5 de out. de 2013. Disponível em:

4 ALMEIDA, Lígia Marina de. “Nós fizemos isso para vocês, brancos, saberem que nós existimos!”: imagens de luta dos povos originários do Brasil (2013-2015). Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Mestrado em Teatro, Florianópolis, 2016. Disponível em: http://sistemabu.udesc.br/pergamumweb/ vinculos/000020/00002092.pdf. Acesso em: 14/10/18.

TREMA!_fim

http://www.revistaforum.com.br/2013/10/05/monumento-as-

-bandeiras-homenageia-genocidas-que-dizimaram-nosso-povo-diz-lideranca-indigena/. Acesso em: 23/05/16. TIBLE, Jean. Marx selvagem. São Paulo: Annablume, 2013. p­ — 41


PÂNICO VAGINAL LARA DUARTE laraduart@hotmail.com


Ela atravessa um longo corredor adorna-

Georgia atravessa um longo corredor

Georgia interrompe seu caminho

do por luzes brancas, ecológicas.

adornado por luzes brancas, ecológicas.

.

toc, toc, toc, toc...

toc, toc, toc, toc...

Tamanquinhos tão estúpidos quanto

Ainda adaptando-se ao processo, mas

a necessidade de usar onomatopeias,

ansiosa para agir em legitima defesa.

tum, tum, tum, tum...

aulas de muai thai e ioga, grande controle respiratório-espiritual.... Georgia esvazia completamente o pulmão

Ainda adaptando-se ao novo peso, dri-

(FUUUUUUUuuuuuuuuU)

blando o medo de que ao primeiro es-

Retoma seu caminho e o seu shulep-

barulho que ecoa, som ritmado, casado com o pulso do seu coração

Antes de optar pelo armamento, tomou

pirro a Winchester escorregue pro chão.

shulep

suor escorrendo pela testa, órgãos, pelos,

toc, toc, toc, toc...

secreções variadas — tudo tentando

Tamanquinhos ritmados, certeiros em

mantê-la coesa num ballet vigoroso e

caminhar tranquilamente até a sua casa,

rodopiante, limitada ao contorno do

mesmo que tarde da noite... A rua com-

gossssssssssssssstosa!

seu corpo.

pletamente vazia, a espingarda em des-

Em câmera lenta e completamente

canso, os dedinhos ansiosos que procu-

consciente de seus direitos, Georgia

ram a chave do portão na bolsa.

deixa a calça do pijama escorregar até os

Fluxo sanguíneo, talvez um pouco de

Ela atravessa um longo corredor adornado por luzes brancas, ecológicas.

joelhos, pressiona levemente seu clitóris Deu tudo certo.

Novo tempo de um futuro inevitável,

A Boca insiste:

por cima da calcinha bege com flores roxas

dois e mil e mais algumas centenas:

UFA!

Superou-se a terceira guerra, pouca

Dorme-acorda, café preto que se traves-

POW!

água, muito plástico, navegações espa-

te de incenso e perfuma tudo-tudo.

Um disparo que acerta por entre os olhos

ciais acessíveis à classe média (principalmente acumulando milhagens)... Novo tempo! Existe um procedimento

em cima da boca insistente, o homem Georgia caminha até a padaria pra cum-

cai no chão como uma fruta bem podre.

prir com dignidade esse ritual repetitivo

Poça de sangue se forma na calçada.

que é acordar todas as manhãs.

bem caro, mas já possível de realizar

Georgia suspende a calça e segue...

pelo SUS:

Chinelinhos que se arrastam

ARMAMENTO ÍNTIMO.

shulep shulep shulep....

Mulheres que tenham vulva, podem

A padaria fica a três quadras

instalar no canal vaginal os seguintes

shulep shulep shulep.... Sem grandes percalços na padaria, pão costuma apaziguar os ânimos... Tudo se resolveu com um calculado tiro de ras-

das (aconselhada apenas a mulheres que

shulep shulep shulep....

tiveram fácil adaptação ao DIU), carabi-

Eis que uma Boca babada e gorda:

se pode recusar..

Bom dia, princesa

Georgia ainda tentava com os homens,

– Tudo hipoalérgico e disponível também nas versões rosa, roxo e gliterizado.

(som de sucção)

armamento.

itens: Pistolas, escopetas, fuzis, espingar-

nas, rifles, submetralhadoras

TREMA!_fim

pão num sujeito que a encarava pressionando os olhinhos, num convite que só

namorou quatro beldades após o

p­ — 43


CONTRIBUIÇÃO LITERÁRIA

1 – JHONI BRAVO

2 – DON JUAN

Adoravelmente estúpido e musculoso, encarregava-se de todas

Fazia o tipo boa pinta, tinha um sedutor sotaque, adepto do

as funções braçais, tais como: Abrir potes, montar estantes, car-

poliamor e da culinária vegana. Sempre comparava Georgia

regar bujão de gás... Além disso, ele gostava de futebol, porno-

com outras mulheres, dissolvendo a autoestima da nossa

grafia, carne mal passada e UFC.. Maravilhosamente masculino,

heroína. Ele se dizia um amante da figura feminina, princi-

dispunha de uma violência tão óbvia, que na primeira sentença

palmente da figura feminina que o servia. Georgia era res-

começada em “mulher minha não...” recebeu delicadamente um

ponsável pela organização da casa, da comida, dos futuros,

tiro em cada joelho e depois de muito chorar e implorar para

enquanto Don Juan não lavava nem a sua própria cueca. Me-

que Georgia não compartilhasse o vídeo que ela estava fazendo,

teu-lhe um tiro bem no meio do coração, colorindo o chão

morreu de susto mesmo quando ameaçado pela penetração de

em inúmeros tons de vermelho... Sujeira essa feita pelo san-

mais uma bala.

gue que Georgia se recusou a limpar.

POW!

POW POW!

p­ — 44


3 – SABICHÃO

4 – POETINHA

Politicamente engajado, carreira acadêmica, teorias belíssimas

Um fofo! Artista libertário, homem sensível, fotos abstratas no

sobre todas as coisas, que se desmanchavam no ar quando ques-

Instagram. Gostava do bar mais alternativo, da música mais un-

tionavam o seu próprio comportamento. Sabichão falava com

derground, do filme mais deprimido. Poetinha tinha uma sexua-

maestria e falava muito, sempre interrompendo, ponderando e

lidade difusa, transcendental e líquida. Durante o sexo chamava

ajudando Georgia... Inclusive sobre ser mulher Sabichão sabia mais,

Georgia de minha musa e escrevia poeminhas de amor e gozo

óbvio... Então, Georgia se viu como tanto a olharam: Louca demais,

pelos corpos que se conectavam na cama. Mas ainda assim pra

sensível demais, não podia se deparar com um copo d'água dando

ele o sexo começava com a penetração e terminava quando ele

sopa que seu impulso primeiro e mais primitivo era o de fazer uma

gozava, fora isso tinha em seu repertório de “preliminares”: Um

tempestade... Até que ele deixou escapar, foi por uma brecha míni-

oral bem meia boca, de quem faz tudo rápido demais e uma

ma, um intelectualismo misógino e autoritário.

unha comprida pra tocar violão que só desgraçava as tentativas.

POOOOOOOOOOOOOOOW!

Georgia poupou a munição de sua pistola, tirou poetinha do pedestal e disse: Você é um artista de merda. Pronto. Ele chorou tanto que se engasgou e morreu.

Nessa reprodução cafona de poder... E pra surpresa geral, Sabichão caiu morto no chão, mas dentro do seu corpo não circulava uma gota de sangue. TREMA!_fim

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CONTRIBUIÇÃO LITERÁRIA

Georgia ainda tentava com os homens, mas isso lhe custava muita energia. E essa energia gasta precisava ser levada em conta, quem sabe reduzida do seu imposto ou algo assim. A principio ela anotava a quantidade de mortos num caderninho, depois a coisa tomou um certo automatismo. Georgia passou a ser respeitada nos lugares que frequentava, ocupava a rua sem maiores preocupações e a noticia correu... Correu rápida e urgente, na mesma proporção em que outras mulheres precisavam dessa autorização do Estado pra disparar uns tirinhos. Surgiam as mais variadas denúncias, os mais variados relatos de violência, Georgia impávida e viril pressionava o seu clitóris com muito carinho e precisão.

POW pof POW pof POW pof SOC POW pof TUM POW pof !!! Um cotidiano banhado de sangue e resoluções... Tudo somado a uma solidão que sei lá como se cura. Até que:

Óóóóóóóóóóóóóóóóóóóó (som de algo divino) Georgia conheceu outras mulheres que também andavam armadas, mulheres que também optaram por se defender... Era uma alcateia, um cardume, uma matilha, uma manada, um bando, um rebanho, uma matula, uma ninhada, uma quadrilha, um ramalhete, uma corja, uma choldra, uma horda uma caravana, uma cambada, uma frota, uma legião, uma constelação, um coro, uma tropa, uma gangue... Multidão! A armada das armadas, com direito a uniforme de super-heroína. Debateram sobre o couro, flertou-se com a possibilidade da lycra, baniram o jeans e os superdecotes assim como o maiô e a saia plissada... Optaram por uma espécie de macacão feito de helanquinha, com um recorte vazado na região da vagina para facilitar o tiroteio, zíper nos seios para as heroínas que amamentam, velcro por entre as coxas pra agilizar a fila do xixi e não molhar o uniforme, mais os adereços opcionais – ombreira, gola rolê, ou estampa de animal print. Criaram também um símbolo possível de se projetar no céu: Um triângulo vermelho apontado pra baixo, num fundo branco, com os seguintes escritos nas laterais

“Libertas quae sera tamen” Tuf Tuf Tuf Tuf Tuf Tuf Tuf.... Soavam os coturnos da armada quando corriam pela rua, ou pulavam de poste em poste a cada chamado desenhado no céu. Era uma avalanche, uma espécie de tsunami violenta como só a água sabe ser e ensinar. Envenenou-se a própria gramática, toda vez que as palavras nojo e vagina estavam concordando na mesma sentença o cidadão já caía morto. Equiparação, revolta, revanche, vingança: Um convite bordado com vísceras históricas, um encontro urgentíssimo no qual ninguém teve a coragem de aparecer.

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EXPETREMA! revista de teatro EDIÇÃO DO fim ANO 4

#16

MAIO 2019

COORDENAÇÃO TREMA! PLATAFORMA DE TEATRO Mariana Rusu e Pedro Vilela

CONSELHO EDITORIAL Mariana Rusu, Olívia Mindêlo, Pedro Vilela e Thiago Liberdade

EDIÇÃO Mariana Oliveira e Olívia Mindêlo

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Thiago Liberdade

PROPONENTE DO PROJETO Mariana Rusu

COLABORADORES DA EDIÇÃO* Altermar Di Monteiro, Lara Duarte, Juma Gitirana Tapuya Marruá, Noá Araújo Prado, Raphael Douglas Monteiro Tenorio Filho

*As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

PLATAFORMA TREMA! tremarevista@gmail.com tremaplataforma@gmail.com facebook.com/tremaplataforma www.tremaplataforma.com.br +55 (81) 9 9203 0369 | (81) 9 9223 5988

Tiragem: 500 exemplares (por edição) Impresso pela Brascolor | ISSN: 2446-886X

Edição da POLÍTICA | Nº #14 | Ano #4 | Recife, maio de 2019

Realização:

Incentivo:

A TREMA! Revista de Teatro é uma publicação com incentivo do FUNCULTURA – Fundo de Incentivo à Cultura de Pernambuco.

TREMA!_fim

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ISSN: 2446-886X

fim

(latim finis, -is, limite, fronteira, termo, alvo) 1. Termo, cabo, remate, conclusão. 2. Extremidade. 3. Morte. 4. Resultado. 5. Escopo, desígnio, alvo. 6. [Lógica] Causa.


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