AGOSTO 2018
#13 ANO 4
EDIÇÃO DA hq
Começe pelo outro lado
ISSN: 2446-886X
editorial Adaptação, transposição, recriação, montagem. Quando falamos em interseção entre linguagens na arte, normalmente absorvemos essas palavras como guia de um percurso que, mesmo sob inspiração de outrem, desemboca em uma nova obra — diferente e muito particular daquela que a originou, ou lhe foi tomada como mote. A versão de “algo” é sempre um desafio para os criadores. A presente edição da TREMA!, de número 13, debate essa questão a partir de um ponto de encontro pouco falado no meio artístico: história em quadrinhos + teatro. No geral, a HQ vive um casamento muito bem-sucedido com o cinema, do tipo “casal inteligente enriquece junto”. Com o teatro, porém, o flerte parece ser pouco dado às mesas de jantar em família, aos grandes holofotes do circuito do entretenimento. O encontro acontece geralmente “fora” do script, no terreno do experimental e, melhor ainda, do imprevisível. Nestas páginas, dois Paulos trazem o relato de suas experiências em transpor o universo das graphic novels para os palcos, por meio de obras que não necessariamente partem de uma história específica, mas de referências estéticas fortes, de autores como Will Eisner e seus personagens, por exemplo. Eisner, aliás, já foi fonte de inspiração tanto para Paulo Biscaia, da Vigor Mortis (PR), quanto para Paulo de Moraes, da Armazém Cia. de Teatro (PR/RJ). E, cada um à sua maneira, enfrentou o desafio de encenar a dinâmica fragmentada e muito peculiar das obras gráficas. “A linguagem pop dos quadrinhos é complexa e libertária. Os quadrinhos fazem com que consigamos unir o jogo com o pensamento através de imagens icônicas que hoje, mais do que nunca, reconhecemos como representações mitológicas contemporâneas”, afirma Biscaia em seu texto, que narra sua relação de geek com o universo da HQ e a história de criação de duas peças: Morgue story, sangue, baiacu e quadrinhos (2004) e Graphic (2006). Na entrevista com Paulo de Moraes, de outro lado, ele aborda a construção do espetáculo Pessoas invisíveis (2002). O interessante desta edição é que também fomos além, fazendo o percurso “inverso” dessa relação, ao convidar o designer, ilustrador e quadrinista Celso Hartkopf para “encenar”, em HQ, um trecho da peça Altíssimo, solo interpretado por Pedro Vilela com texto de Alexandre Dal Farra. O resultado está aqui nesta obra inédita e exclusiva. E tem mais: o perfil do cartunista Samuca e a reimpressão do programa do espetáculo de dança Desencaminhado, da Compassos Cia. de Danças, feito em HQ. Vire e revire as páginas, olhe por todos os ângulos esta que é uma edição que nos surpreendeu e que adoramos fazer. Recife, agosto de 2018 Boa Leitura!
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EXPEDIENTE TREMA! revista de teatro EDIÇÃO DA hq ANO 4
#13
AGOSTO 2018
COORDENAÇÃO TREMA! PLATAFORMA DE TEATRO Mariana Rusu e Pedro Vilela
CONSELHO EDITORIAL Mariana Rusu, Olívia Mindêlo, Pedro Vilela e Thiago Liberdade
EDIÇÃO Olívia Mindêlo
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Thiago Liberdade
PROPONENTE DO PROJETO Mariana Rusu
COLABORADORES DA EDIÇÃO* Celso Hartkopf, Eron Villar, Luciana Veras, Paulo Biscaya Filho, Samuca Andrade e Thony Silas *As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
PLATAFORMA TREMA! tremarevista@gmail.com tremaplataforma@gmail.com facebook.com/tremaplataforma www.tremaplataforma.com.br +55 (81) 9 9203 0369 | (81) 9 9223 5988
Tiragem: 500 exemplares (por edição) Impresso pela Brascolor ISSN: 2446-886X
Edição da hq | Nº #13 | Ano #4 | Recife, Agosto de 2018
Realização:
Incentivo:
A TREMA! Revista de Teatro de Grupo é uma publicação com incentivo do FUNCULTURA – Fundo de Incentivo a Cultura de Pernambuco.
p — 8h
colaboradores desta edição
THONY SILAS E ERON VILLAR Com trabalhos internacionais na Marvel e DC Comics, Thony Silas é ilustrador e desenhista pernambucano. Eron Villar é roteirista de quadrinhos, dramaturgo e iluminador. Juntos, fizeram a versão em HQ do livro A noiva da revolução.
CELSO HARTKOPF Bacharel e mestre em Design pela UFPE, premiado no Prêmio Design Museu da Casa Brasileira em 2018. Atua como designer visual e ilustrador, explorando, em
SAMUCA ANDRADE
especial, a combinação entre as duas linguagens.
é cartunista e artista gráfico. Recebeu vários prêmios de charge
LUCIANA VERAS
e cartum, com destaque para
Jornalista formada pela UFPE, por nove
PAULO BISCAIA FILHO
o World Press Cartoon - Sintra
anos atuou como repórter e crítica de
Encenador e cineasta paranaense.
Portugal. Publicou charges no
cinema do caderno Viver, do Diario de
Criador da companhia Vigor Mortis,
Diario de Pernambuco durante 14
Pernambuco. Atualmente, é repórter
que existe há mais de 20 anos e
anos. Atualmente, é diretor de
especial da revista Continente.
trabalha nas fronteiras do teatro, do
arte na Samucartum Produções e
vídeo e dos quadrinhos, dos quais é
organizador do Salão Internacional
um amante inveterado.
de Humor Gráfico de Pernambuco.
CARTÕES | CONVITES PAPELARIA | SACOLAS REVISTAS | TAGS LIVROS | FOLDERS ENCARTES | RÓTULOS PANFLETOS | TABLÓIDES
IMPRIMIR O QUE VOCÊ TEM DE MELHOR, É O NOSSO COMPROMISSO. Av. Norte Miguel Arraes de Alencar, 3311 Rosarinho | Recife | PE | 52041-080 Fone: (81) 3366.9000 |www.brascolor.com
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p — 9h
ENTREVISTA
PAULO MORAES de
Em busca da síntese entre os quadrinhos e a cena
PEDRO VILELA vilelaproducao@gmail.com
C
om mais de 30 anos de trajetória, a Armazém Cia. de Teatro é referência obrigatória para pensar o teatro brasileiro nos últimos anos. Não recorrer às criações do grupo
para esse exercício é tarefa quase impossível. Seu campo de atuação e abordagem envolve desde autores clássicos, como Nelson Rodrigues (em Toda nudez será castigada) e Shakespeare (seu recente Hamlet), a dramaturgias geradas nas salas de ensaio, a exemplo de A marca da água e O dia em que Sam morreu, em sua grande maioria escritas pelo diretor Paulo de Moraes, com quem conversamos a seguir. Em 2002, a companhia resolveu mergulhar no universo das histórias em quadrinhos criadas por Will Eisner, através do espetáculo Pessoas invisíveis. Considerado por muitos como o maior gênio das graphic novels, Eisner traz a cidade como protagonista, imprimindo seu olhar sobre a solidão urbana. Paulo de Moraes relata no site da companhia sobre a criação dessa obra: “Desenvolvemos, durante o processo de ensaios, um amplo trabalho de reconstrução baseado em temas e roteiros contidos na obra de Eisner ou indicações técnicas e estilísticas utilizadas como pontos de referência pelos atores: a transposição da linguagem das HQs para o teatro, a busca por uma intersecção entre essas linguagens, a valorização da fragmentação das HQs, os personagens se desencontrando de outros pela ação da cidade (trânsito, ruído, balas perdidas), a solidão da metrópole, o choque entre a delicadeza e o vulcão contido nessas vidas anônimas.” p — 10h 10
paulo de moraes — foto: ricardo martins
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ricardo martins no espetáculo pessoas invisíveis — foto: acervo cia. armarzém
Pessoas invisíveis conta a história de três fantasmas que ron-
Voadores, um disco todo construído como uma HQ desenhada
dam o edifício onde viveram toda sua vida: Monroe Mensh,
pelo Luiz Gê. Piratas do Tietê, do Laerte e Chiclete com Banana,
um sujeito alheio a tudo e a todos; Antonio Tonatti, um músico
do Angeli também são, mais ou menos desta época. Ronin, uma
frustrado e apaixonado; e Geraldo Shnobble, que possui o in-
HQ genial do Frank Miller e Contrato com Deus, a absurda graphic
sólito dom de voar. Tudo isso é fruto de personagens ou temas
novel do Will Eisner, foram lançadas no Brasil em 1988. Toda a
propostos por Eisner em Contract with God, Dropsie Avenue, The
formação da companhia se deu nesse ambiente, éramos completamente influenciados pelas
Building, New York – The Big City, Will Eisner Reader e Spirit. Para conversar um pouco mais sobre esse processo de trabalho, a TREMA! Revista apresenta uma entrevista exclusiva de Pedro Vilela com o diretor, mais de 15 anos após a criação da obra.
Como se deu a aproximação com a obra de Will Eisner?
“TODA A FORMAÇÃO DA COMPANHIA SE DEU NESSE AMBIENTE, ÉRAMOS COMPLETAMENTE INFLUENCIADOS PELAS HQS, PELA POESIA, PELA MÚSICA POP, PELO CINEMA, MUITO MAIS QUE PELO PRÓPRIO TEATRO”
HQs, pela poesia, pela música pop, pelo cinema, muito mais que pelo próprio teatro (tanto o produzido na época quanto o que a gente conhecia de dramaturgia). Chegavam também muitas histórias do Spirit na época, me apaixonei muito por uma delas (The Story of Gerhard Shnobble), sobre um cara que tinha a habilidade de voar. Eisner sempre teve um jeito lindo de abordar personagens que são pinçados da multidão anôni-
PAULO DE MORAES
No finalzinho
ma e mostrar aquelas vidas em
da década de 1980, quando for-
toda a sua potência. Desde lá, já
mei a companhia, ainda no Paraná, as maiores referências mi-
tinha interesse em trabalhar com a obra dele.
nhas e de toda a minha turma envolvida com arte vinham da chamada cultura pop. Londrina vivia um momento incrível em música, poesia, teatro e todo mundo se misturava muito, as referências se cruzavam. Arrigo Barnabé tinha lançado Tubarões p — 12h
Qual a dinâmica utilizada para criação da obra teatral a partir do quadrinho?
cenografia do espetáculo pessoas invisíveis — foto: acervo cia. armarzém
PAULO
Pessoas Invisíveis estreou em 2002, quando a gente já
Quais as aproximações e distanciamentos gerados no
tinha fixado sede no Rio de Janeiro e estava completando 15
campo dramatúrgico? Que possibilidade as HQs trouxeram para
anos de grupo. Queríamos voltar a atenção para uma influên-
o processo de criação do grupo, demarcando sua trajetória?
cia da origem do nosso teatro. No início do processo, era uma pesquisa formal. Não se tratava apenas de usar as histórias de
PAULO Quando começamos uma nova pesquisa, a ideia cen-
Eisner no palco. O projeto era sobre a confluência entre qua-
tral nunca é criar um texto teatral, mas um fato teatral — um
drinhos e teatro. Era esse o nosso mote. Começamos a levantar
fato estético. E meu trabalho na dramaturgia (em parceria
exercícios sobre a obra do Will Eisner como um todo — traba-
com o Maurício Arruda Mendonça) sempre teve isso em
lhando tanto com as histórias curtas quanto as longas, com ou
mente. Na construção de Pessoas Invisíveis isso se evidenciou
sem palavras — antes de saber exatamente qual seria a abor-
com muita clareza — a gente precisava encontrar uma forma
dagem temática predominante. Mas a cada exercício, ia fican-
que fosse conteúdo, as coisas precisavam ser indissociáveis.
do mais claro que o personagem central era a “cidade”.
Ou então, seria melhor que as pessoas simplesmente lessem
Havia uma dificuldade central no processo que era o
as histórias em quadrinhos do Eisner. Para isso, os corpos dos
“tempo”, o tempo das ações, porque o tempo das HQs é mui-
atores ficaram em primeiro plano. Eram oito atores interpre-
to preciso em sua fragmentação. Quando a gente tentava re-
tando 42 personagens, com mudanças muito rápidas, utili-
petir esse tempo da HQ, nada funcionava, ficava fragmentado
zando muita precisão nas variações corporais. As palavras
demais como cena. Quando a gente partia para um “tempo
não poderiam vir de um texto de gabinete. Ele precisava ser
teatral”, tudo ficava estendido demais e não retratava bem os
uma parte da engrenagem, mas dependente da encenação
acontecimentos e personagens, havia uma fluidez excessiva. A
e das descobertas compartilhadas dos atores. Isso moldou
questão era encontrar um comportamento corporal que des-
nosso trabalho.
se conta desta síntese entre quadrinhos e cena. Num estudo escrito pelo próprio Eisner sobre a interação da palavra com a imagem, a gente começou a encontrar o caminho. Eisner falava
Existe algo em mente para retornar aos quadrinhos?
de postura e gesto. Começamos a encontrar a melhor postura de cada personagem, ou seja, o que daria a impressão geral do
PAULO Tenho ainda um grande interesse em adaptar Day Tri-
sujeito. E os gestos, por natureza mais minuciosos, tentavam
pper, de Fabio Moon e Gabriel Bá. Já fizemos uma primeira ten-
desvendar aspectos emocionais dos personagens. Isso tinha
tativa de contato, mas não houve possibilidade de negociar a
primazia sobre a palavra.
cessão de direitos. E gostaria muito de remontar.
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p — 13h
“QUANDO COMEÇAMOS UMA NOVA PESQUISA, A IDEIA CENTRAL NUNCA É CRIAR UM TEXTO TEATRAL, MAS UM FATO TEATRAL. NA CONSTRUÇÃO DE PESSOAS INVISÍVEIS, A GENTE PRECISAVA ENCONTRAR UMA FORMA QUE FOSSE CONTEÚDO”
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simone mazzer no espetáculo pessoas invisíveis — foto: acervo cia. armarzém
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NOTAS DE PROCEDIMENTO
quando o teatro encontra com a linguagem dos quadrinhos PAULO BISCAIA FILHO biscaia@me.com
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cena de morgue story adaptada para o cinema - foto: acervo vigor mortis
NOTAS DE PROCEDIMENTO
E
m 1988, eu era aluno do segundo ano do Curso Superior de Artes Cênicas da PUC/Fundação Teatro Guaíra e continuava a ser o mesmo piá (a forma como falamos “garoto” aqui por
Curitiba) que amava quadrinhos. O mesmo piá que, em 1979, ficou chocado em ver a morte de Gwen Stacy pelas mãos do Duende Verde, agora estava vivendo uma nova e empolgante fase de lançamentos de quadrinhos. Aqueles meus primeiros anos na faculdade foram os mesmos da chegada às bancas brasileiras de clássicos que mudaram a forma como compreendemos a arte sequencial: Watchmen, Batman – O Cavaleiro das Trevas, Batman Ano Um, O Wolverine de Frank Miller, V de Vingança etc. Minhas acadêmicas leituras de Stanislavski e Artaud se alternavam com os relançamentos de Spirit de Will Eisner e as obras de Alan Moore. Em um trabalho da disciplina de expressão corporal, resolvi, de última hora, emular alguns dos quadros de Arma X —
quando Logan está imerso e seus ossos são substituídos por um esqueleto de adamantium — na cena que era para fazer uma composição física livre. A professora ficou super impressionada com o resultado e eu fiquei mais surpreso ainda, tendo em vista que expressão corporal nunca foi o forte deste bom e velho geek de HQs. A precisão dos gestos naqueles desenhos me inspirou e, a partir dali, fui criando pontes inquebráveis entre a cena e os quadrinhos. Quando estava prestes a me formar, a montagem de New York por Will Eisner, dirigida por Edson Bueno, veio para reforçar que a interseção de linguagens resultava em espetáculos potentes não apenas visualmente, mas também dramaturgica-
cena da peça morgue story - foto: acervo vigor mortis
mente. A montagem era inspirada em Nova York, A grande cidade, O edifício e diversas aventuras do Spirit. A relação afetuosa que a peça estabelecia com o público foi uma das mais incríveis que já vi. Não à toa que esta produção veio a inspirar novas adaptações para o teatro a partir das obras em HQ: Pessoas invisíveis, da Armazém Companhia de Teatro (encenada pela primeira vez em 2002), e Avenida Dropsie, da Cia. Sutil, que estreiou em 2005. A direção de Edson Bueno gerou muito mais crias do que se podia imaginar. Em 1997, com o apoio de alunos da Faculdade de Artes do Paraná, criei a Vigor Mortis. Um espaço onde eu pudesse continuar a tentar compreender o que o Grand Guignol, tema da minha dissertação de mestrado, poderia ser quase um século depois de seus maiores êxitos.
salta para 2004!!
Depois de anos de experiências malsucedidas que quase culminaram na minha desistência da vida artística, estreamos Morgue story, sangue, baiacu e quadrinhos. Antes de iniciarmos o processo, falei para o elenco que faria uma peça que fugisgraphic - foto: acervo vigor mortis
p — 18h
se das pretensões acadêmicas que haviam me afastado de minhas paixões iniciais, dos divertidos filmes de horror, das histórias em quadrinhos. Isso não significava que seria uma montagem boba. Roubei, como se deve roubar artisticamente, elementos daquilo que eu gostava de ver no cinema: a canastrice de anti-heróis como o Ash, de Uma noite alucinante, unida ainda a uma cobertura pop do estilo de diálogos de Kevin Smith em O balconista. Obviamente, eu precisava render uma homenagem a Edson Bueno, diretor de New York por Will Eisner, que fazia uma aparição nas projeções em vídeo como o personagem do Dr. Samuel. Quando a peça estreou, os primeiros minutos foram silenciosos. O público não sabia se aquela canastrice toda era piada ou motivo para ficar constrangido. Aos poucos, a montagem ia se desenvolvendo e suas intenções maliciosas em ridicularizar os personagens, sendo reveladas. Quando a cena de abertura da peça se repete no final, o público já a recontextualiza. Embora não tenha havido nenhuma alteração na forma da interpretação, a comicidade surgia como uma algema que se abria para o prisioneiro. Em provocação concreta, disse à imprensa que Morgue story era uma peça de teatro para quem não gostava de teatro. Uma poética que emprestava elementos do cinema e dos quadrinhos e não se prestava a fazer o “belo”, o “lírico”, nem mesmo o “político” ou o “edificante”. Com a Vigor Mortis reativada em Morgue story, estava ficena da peça morgue story - foto: acervo vigor mortis
nalmente encontrando um caminho espontâneo, pessoal, verdadeiro, cômico, repaginado e empolgante para o Grand Guignol. Agora em uma libertária união à linguagem de quadrinhos. No meio da temporada, um certo colega veio assistir à montagem e, ao final, me cumprimentou dizendo: “Bonito trabalho”. Minha vontade foi de dizer: “Você pode falar qualquer coisa, mas ‘bonito’ é a última palavra que se encaixa aqui!!!”. Apenas sorri e agradeci. Estava feliz demais por não ter feito um espetáculo “bonito”. É certo que não é nenhum poema de Florbela Espanca! O impacto que a peça teve até hoje me surpreende. Diversas pessoas dizem o quanto a peça foi importante para elas; para voltar a ir ao teatro ou até mesmo para começar a fazer teatro. Os resultados externos da montagem — estes sim — posso considerar, de fato, “bonitos”. O projeto seguinte, no entanto, veio a consertar algumas falhas “morais e estéticas" que pensei haver cometido em Morgue story. Graphic, encenado pela Vigor Mortis em 2006, foi um espetáculo que resultou em impacto muito maior que sua predecessora, com público superior, mais de 100 apresentações, com seu cenário de uma tonelada e uma marca indelével na memória de muitos que estiveram na plateia. Havia algo de irresponsável em Morgue story. Algo que estava justamente no título: “quadrinhos”. O que foi impresso naquela narrativa era uma abordagem intuitiva da linguagem de arte sequencial, sem o compromisso de pesquisa estética que está sugerido desde a chamada para a obra. Graphic surgiu como um trabalho para corrigir esta lacuna. Juntamente com o elenco formado por Carolina Fauquemont, Leandro Daniel Colombo e Rafaella Marques e o cenógrafo Guilherme Sant’ana, comecei a construir a dramaturgia.
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NOTAS DE PROCEDIMENTO
graphic - foto: acervo vigor mortis
O roteiro de Graphic foi construído basicamente a partir de
de algo que haviam lido numa revista ou uma anedota do uni-
observações e anotações que traçei em meio a um curso de
verso dos artistas gráficos. Eu ia até a oficina do Guilherme
desenho que fizemos com o DW (que já havia produzido os
e pensávamos no cenário, e os espaços que ele concebia se
desenhos de Morgue story). Mais do que aprimorar técnicas em
tornavam depois parte integrante do texto.
artes visuais, o que mais fiz foi perceber as idiossincrasias da
Em uma manhã tradicional de chuva curitibana, o Gui-
forma de expressão gráfica. Ao longo das semanas do curso,
lherme ajudou a delinear um quarto protagonista para a peça.
além de compreender melhor o que significa a narrativa de
Um personagem invisível e onipresente: a cidade. A peça se
quadrinhos, fomos percebendo as dificuldades e as particu-
situava em uma cidade sem nome e caótica, como qualquer
laridades que existem no caminho entre visualizar algo na
cidade de porte médio/grande. Uma Gotham City para aqueles
cabeça e passar para o papel. Ouvia os comentários do DW
inusitados super-heróis. As avenidas de acesso ao aeroporto,
atentamente e percebia todos ali falando de suas dificulda-
as regiões centrais sujas e poluídas, as regiões nobres etc. Bus-
des: os traços que saem indecisos, a linha que nunca fica reta,
camos traçar um perfil para a cidade que interagia diretamen-
o impacto que uma imagem naïf pode ter, o problema com a
te com os protagonistas concretos. A conclusão do texto está
perspectiva. Em uma frase dita pelo Dani, esta última situação,
justamente na morte da cidade já amalgamada, em especial
em especial, serviu como norteadora para a composição dos
com a personagem Raf.
personagens em Graphic: os problemas de perspectiva, em todos os sentidos.
O foco sempre esteve na descrição dos personagens. Artie é o geek, pseudossuicida e amante de quadrinhos com difi-
Após o curso, seguimos pesquisando em um estúdio
culdades de expressão social, mas com uma delicadeza e uma
fotográfico no bairro Seminário que sublocamos como base
verdade estranhamente contagiantes em suas paixões. Becca
para os trabalhos. Eu ficava trancado em uma pequena sala
é a executiva que oprimiu seus talentos como desenhista em
com as pernas cruzadas e o laptop no chão, produzindo situa-
prol de uma carreira profissional bem-sucedida entre núme-
ções que ainda não formavam uma história. Por vezes, a Carol
ros. Existe uma bomba-relógio dentro dela em direção a seus
ou a Rafaella invadiam o espaço para me dar alguma sugestão
sonhos adolescentes. Raf é uma artista de rua que aceita sua
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graphic - foto: acervo vigor mortis
condição social como motivação para suas obras; ainda assim,
das situações construídas foi uma das maiores lisonjas para
ambiciona secretamente uma vida longe da periferia. São per-
este texto. Essa dificuldade enorme em equilibrar os anseios
sonagens melancolicamente cômicos e com o mesmo nível de
por uma profissão adequada economicamente e o desejo de
grotesco da própria realidade.
fazer o que gosta é a tônica aqui. Um traço de perspectiva que
O título da peça já prepara nosso olhar para uma relação
não consegue se resolver.
maior com elementos gráficos. Cada personagem é represen-
Essa condição de pathos trazia risos amargos da plateia.
tado não apenas por suas características de relação, mas tam-
Mais uma vez, estavam em cena três personagens irremedia-
bém por sua expressão gráfica. Sendo assim, havia ainda uma
velmente desconectados da sociedade, na busca do utópico
outra linha de personagem a ser seguida: a rubrica dos dese-
equilíbrio entre seus olhares para o mundo e a forma como o
nhos de Artie, Becca e Raf. Existem outros profissionais que
mundo olha para eles. Em um e-mail de uma pessoa que viu
trabalham lado a lado nesta narrativa, a fim de puxar a plateia
a montagem durante a temporada do CCBB do Rio de Janeiro,
para dentro da cabeça dos protagonistas. Cada personagem
recebi uma resposta tocante quanto às intenções da monta-
é representado pelos traços de um artista gráfico específico.
gem. Ele me escreveu que, depois de ver a peça, ligou para um
A visão tradicional de quadrinhos de super-herói de Artie se
amigo e eles voltaram a produzir um fanzine que abandona-
mistura a seus desenhos de manuais de instruções e a seus
ram 10 anos antes.
delírios de formas de suicídio. Os gráficos financeiros de Becca
Essas aparentemente insignificantes irradiações são, na
se fundem à singela poética de seus fanzines. A arte de rua de
verdade, a real essência do que motiva a produção de textos e
Raf encontra no estêncil uma forma de transformar a cidade e
montagens da Vigor Mortis. A linguagem pop dos quadrinhos
tentar deixá-la mais suportável e um pouco menos real.
é complexa e libertária. Os quadrinhos fazem com que con-
Logo na estreia da peça, em outubro de 2006, Fernan-
sigamos unir o jogo com o pensamento através de imagens
da Baukat, esposa do quadrinhista e colaborador de Graphic
icônicas que hoje, mais do que nunca, reconhecemos como
José Aguiar, comentou que não imaginava que a peça seria
representações mitológicas contemporâneas.
uma livre biografia de seu marido. Não era. A concretização TREMA!_hq
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PROGRAMA EM HQ Eron Villar (roteiro), Wamberto Nicomedes (layout) e Thony Silas (desenhos)
CONCEPÇÃO, ROTEIRO E COREOGRAFIA Ivaldo Mendonça
ELENCO Gervásio Braz, Janaina Gomes, Patrícia Costa, Raimundo Branco, Sandra Rino ou Elis Costa
TRILHA SONORA Amon Tobin (música), Ivaldo Mendonça (seleção), Raimundo Branco e Ivaldo Mendonça (mixagem)
CENÁRIO E FIGURINO Marcondes Lima
CONFECÇÃO DO FIGURINO Maria Lima
CONFECÇÃO DA CENOGRAFIA George Cabral, Nátalia Bordalo, Kátia Virgínia, Eduardo Autran, Nenzinho e Elenco
CONTRA-REGRAS Eduardo Autran, Fernando Armazém e Kátia Virgínia
PROJETO DE ILUMINAÇÃO E OPERAÇÃO Eron Villar
PRODUÇÃO EXECUTIVA Patrícia Costa e Raimundo Branco
REALIZAÇÃO Compassos Cia. de Dança
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capa do livro sem palavras
Um humor que atravessa fronteiras
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editorial Adaptação, transposição, recriação, montagem. Quando falamos em interseção entre linguagens na arte, normalmente absorvemos essas palavras como guia de um percurso que, mesmo sob inspiração de outrem, desemboca em uma nova obra — diferente e muito particular daquela que a originou, ou lhe foi tomada como mote. A versão de “algo” é sempre um desafio para os criadores. A presente edição da TREMA!, de número 13, debate essa questão a partir de um ponto de encontro pouco falado no meio artístico: história em quadrinhos + teatro. No geral, a HQ vive um casamento muito bem-sucedido com o cinema, do tipo “casal inteligente enriquece junto”. Com o teatro, porém, o flerte parece ser pouco dado às mesas de jantar em família, aos grandes holofotes do circuito do entretenimento. O encontro acontece geralmente “fora” do script, no terreno do experimental e, melhor ainda, do imprevisível. Nestas páginas, dois Paulos trazem o relato de suas experiências em transpor o universo das graphic novels para os palcos, por meio de obras que não necessariamente partem de uma história específica, mas de referências estéticas fortes, de autores como Will Eisner e seus personagens, por exemplo. Eisner, aliás, já foi fonte de inspiração tanto para Paulo Biscaia, da Vigor Mortis (PR), quanto para Paulo de Moraes, da Armazém Cia. de Teatro (PR/RJ). E, cada um à sua maneira, enfrentou o desafio de encenar a dinâmica fragmentada e muito peculiar das obras gráficas. “A linguagem pop dos quadrinhos é complexa e libertária. Os quadrinhos fazem com que consigamos unir o jogo com o pensamento através de imagens icônicas que hoje, mais do que nunca, reconhecemos como representações mitológicas contemporâneas”, afirma Biscaia em seu texto, que narra sua relação de geek com o universo da HQ e a história de criação de duas peças: Morgue story, sangue, baiacu e quadrinhos (2004) e Graphic (2006). Na entrevista com Paulo de Moraes, de outro lado, ele aborda a construção do espetáculo Pessoas invisíveis (2002). O interessante desta edição é que também fomos além, fazendo o percurso “inverso” dessa relação, ao convidar o designer, ilustrador e quadrinista Celso Hartkopf para “encenar”, em HQ, um trecho da peça Altíssimo, solo interpretado por Pedro Vilela com texto de Alexandre Dal Farra. O resultado está aqui nesta obra inédita e exclusiva. E tem mais: o perfil do cartunista Samuca e a reimpressão do programa do espetáculo de dança Desencaminhado, da Compassos Cia. de Danças, feito em HQ. Vire e revire as páginas, olhe por todos os ângulos esta que é uma edição que nos surpreendeu e que adoramos fazer. Recife, agosto de 2018 Boa Leitura!
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ISSN: 2446-886X