TREMA! revista de teatro
EDIÇÃO DO esquecimento
ANO 2
#8
NOVEMBRO 2016
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O ano de 2017 nos trouxe uma série de questões que nos remetem
uma luta contínua contra o esquecimento causado pela “efemeri-
ao futuro. A principal delas: como viveremos em um mundo no qual
dade mesma do fazer teatral”, como aponta Cadengue. O jornalista
a ameaça do racismo, da misoginia, xenofobia e homofobia deixou
e pesquisador Leidson Ferraz segue a mesma linha e traz histórias
de ser uma potência em estado incubado para se tornar um poder
do cenário teatral nos anos 1930 no Recife, marcado pela atuação
manifesto, com representação política, força econômica e apoio
do Grupo Gente Nossa, e enfatiza a importância de resgatar e va-
público? Os maus prenúncios do futuro têm nos impedido de refle-
lorizar a memória do fazer teatral em Pernambuco. O ator e diretor
tir adequadamente sobre o passado. De fato, o cenário com o qual
Pedro Vilela narra os detalhes da peça “Cinderela”, do diretor e dra-
nos deparamos hoje é tão sui generis (para não dizer kafkiano) que
maturgo francês Joël Pommerat, exibida na última MITsp – Mostra
o passado parece não nos dizer coisa alguma sobre como devería-
Internacional de Teatro de São Paulo, na qual o conto clássico ho-
mos proceder diante do absurdo contemporâneo. Por outro lado, as
mônimo é reinventado por uma linguagem pós-moderna.
experiências do passado podem nos revelar justamente estratégias
É preciso, então, impedir “o esquecimento de tudo aquilo
de resistência, modos de proceder e formas de transformar o esta-
que é afeto, não utilitarismo”, como escreve Ronaldo Serruya, ator
do de coisas - que hoje, aliás, nos parecem invisíveis.
e dramaturgo do grupo XIX de teatro e do Teatro Kunyn, em seu relato sobre a ocupação da Vila Maria Zélia, o único exemplar de
P o r i ss o, é p r e c i s o l e m b r a r .
vila operária ainda existente em São Paulo. Sobre o processo de entrada no local em 2004, quando o Grupo XIX iniciou as ativi-
Nesta oitava edição, a TREMA! reflete sobre o esquecimento para
dades de revitalização da VMZ, Serruya narra: “os esqueletos que
retomar as ebulições, muitas vezes ainda vivas, do passado. Como
tiramos dali não foram apenas dos ratos, mas também de um país
escreve o dramaturgo e diretor José Fernando Peixoto em artigo
que não se alimenta de si e, assim, morre raquítico de memórias”.
que engloba reflexões sobre teatro, esquecimento e política, “em
Não só a vila hoje continua entregue aos entulhos, como o Grupo
grande medida, o passado não é aquilo que passou, mas algo que
XIX também não tem mais subsídios para realizar pesquisas no
permanece não resolvido, a travar nossas expectativas de futuro”. O
local e revitalizá-lo. O que parece ficar claro, então, é que tudo o
caráter tão anacrônico do presente é narrado por José Fernando
que é afeto tem o seu esquecimento prometido se a lógica da lem-
com provocação e ironia: “Tudo se passa como se uma parte da
brança for a de mercado.
sociedade brasileira tivesse adormecido ao estalo de um fuso lá em
No campo visual, o artista José Rufino dá a sua contribui-
1964 e, ao barulho de panelas, despertasse cinquenta anos depois
ção ao tema, com imagens da série Blots & Figments, na qual
e quisesse... Agir, como se estivesse lá, naquela infinda noite de
explora os dramas da memória – o colapso da doença de Al-
31 de março, sem saber distinguir entre a realidade e o seu sonho
zheimer – através da criação de uma série de obras produzidas
noturno. A gesticulação infantilizada quer nos fazer lembrar que o
com a colaboração de pesquisadores, pacientes e cuidadores
tempo não passou”.
do Centro de Pesquisas de Alzheimer (ADRC) da Universidade
As reflexões sobre o passado do teatro em Pernambuco tam-
de Pittsburgh nos Estados Unidos. A jornalista e pesquisadora
bém nos levam em direção ao presente: as práticas artísticas con-
Bárbara Buril traz obras do cinema para refletir sobre as com-
temporâneas não estão dissociadas daquelas das quais precedem.
plexidades do indivíduo que, ao contrário do paciente com Al-
O professor e diretor de teatro Antônio Cadengue traz a experiência
zheimar, não consegue esquecer. Nesse artigo, que vai contra a
do Teatro de Amadores de Pernambuco, instituição criada em 1941
corrente deste editorial, uma boa dose de esquecimento pode
que até hoje se encontra em plenas atividades, mas que vivencia
ser muito bem-vinda.
Editorial Recife, NOVEMBRO de 2016
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colaboradores desta edição
Antonio Candengue
RONALDO SERRUYA
José Fernando
Leidson Ferraz
é professor aposentado da Universidade
É ator e dramaturgo do grupo XIX
Possui graduação em Filosofia pela
É jornalista formado pela
Federal de Pernambuco. Tem mestrado
de teatro e do Teatro Kunyn, ambos
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Universidade Católica de Pernambuco
(1989) e doutorado em Artes-Teatro
coletivos de SP. Com o grupo XIX criou
Humanas da USP (2000) e doutorado em
(1995), Mestrando do Programa de
(1991) pela Universidade de São Paulo,
as peças Hygiene, Arrufos, Marcha
Filosofia pela Universidade de São Paulo
Pós-Graduação em História pela
com pesquisa sobre o Teatro de
para Zenturo, Estrada do Sul, Nada
(2007). Atualmente é professor doutor
Universidade Federal de Pernambuco
Amadores de Pernambuco (1941-1991),
aconteceu, tudo acontece, tudo está
da Escola de Arte Dramática da ECA/USP
e pesquisador do teatro. Organizou e
sob orientação do Prof. Dr. Antônio Sábato
acontecendo e Teorema 21. Com o Teatro
e Diretor e dramaturgo do grupo teatral
editou a coleção de livros Memórias
Magaldi. Publicou o livro “TAP: sua cena
Kunyn, criou as peças Dizer e Não pedir
Teatro de Narradores.
da Cena Pernambucana – em quatro
& sua sombra” (2011) pela Cepe/Sesc
segredo e ORGIA ou de como os corpos
volumes (sendo o primeiro em
Pernambuco. Está ligado à Companhia
podem subsitituir as ideias. Orienta os
parceria com Rodrigo Dourado e
Teatro de Seraphim no Recife desde 1990,
Núcleo de Pesquisa Ator-dramaturgo do
Wellington Júnior). Escreveu ainda
como diretor artístico.
grupo XIX desde 2006.
as pesquisas Teatro Para Crianças no Recife: 60 Anos de História
José Rufino
no Século XX e Um Teatro Quase
Vive e trabalha em João Pessoa,
Esquecido – Painel das Décadas
Paraíba. Artista e escritor, é também
de 1930 e 1940 no Recife (ambas disponíveis no site http://www.
professor do curso de artes visuais na Universidade Federal da Paraíba
Bárbara Buril
teatrosantaisabel.com.br/conheca-
(UFPB) e na Universidade Federal de
É jornalista formada pela
o-teatro/publicacoes.php), além
Pernambuco (UFPE). Desenvolveu sua
Universidade Federal de Pernambuco
dos livros Panorama do Teatro Para
jornada artística passando da poesia
(2015), mestranda do Programa
Crianças em Pernambuco (2000-
para a poesia-visual e, em seguida,
de Pós-Graduação em Filosofia da
2010) e Teatro Para Crianças no
para a arte postal, desenhos e pinturas
mesma universidade, com pesquisa
Recife: 60 Anos de História no Século
a partir dos anos 1980.
na tradição filosófica da teoria crítica.
XX (Volume 01).
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ARTIGO
TEATRO E
ES QUE CI MEN
(alguns esquemas)
TO
coveiro do filme "hamlet", de 1964, dirigido por grigori kozintsev — ator: viktor kolpakov
JOSÉ FERNANDO PEIXOTO DE AZEVEDO azevedojosefernando@gmail.com
p — 6
A
1
s demandas de esquecimento que pressionam a cultura são, a depender de quem demanda, ora exigências de superação, ora práticas de apagamento. Quem esquece corre sempre o risco de
lembrar, mas há coisas que ainda não podemos esquecer. A experiência do tempo presente não é homogênea: em grande medida, o passado não é aquilo que passou, mas algo que permanece não resolvido, a travar nossas expectativas de futuro. O teatro não escapa a essas demandas, nem à experiência do tempo. Antes, o teatro implica em um trabalho sobre as temporalidades que nos atravessam e que atravessamos. Em cena, ainda convocamos fantasmas, quando não somos por eles convocados. Sendo, todavia, uma arte de vivos para vivos, esse convívio com os mortos alerta a audiência: o decisivo está sempre fora de cena; mais do que aquilo que vemos, importa o que a cena nos faz imaginar. Há, sem dúvida, o problema da efemeridade da cena. Mas esta não é uma questão meramente epistemológica, ou antes, precisamente por sê-la, é sobretudo uma questão política. O teatro deve habitar a memória de quem fez e viu – portanto, importa saber quem faz e quem vê. Só no encontro entre as partes é que se pode discutir sobre aquilo que é feito e aquilo que é visto - o modo como é feito e visto.
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2
É possível que uma outra história do teatro brasileiro fosse antes uma história do esquecimento. O teatro, aliás, traz, já em sua certidão de nascimento, marcas de um apagamento reiterado. Da cena de um Gonçalves Magalhães, por exemplo, insistiase sobre a emergência do “assunto nacional”. Mas, visto a contrapelo, que assunto seria esse senão o fato de que a “independência da nação” não superava a situação de colônia? Tanto mais, quando a escravidão, apagada da cena, não alarmava uma plateia de proprietários de escravos. Em perspectiva, fazer a história do teatro a partir de suas tentativas de modernização ou seus turning points (o que levará à ideologia do “teatro brasileiro moderno”: desde o grupo Os comediantes, Nelson Rodrigues, EAD/TBC (Escola de Arte Dramática/Teatro Brasileiro de Comédia), Teatro de Arena e Teatro Oficina até os encenadores dos anos 1980, para ficar no fuso Rio-São Paulo), implicou negligenciar:
a
o teatro brasileiro não é apenas uma extensão do teatro europeu, mas é moderno no mesmo sentido em que se pode afirmar moderna a coloniza-
ção enquanto expansão do capitalismo;
B
as insuficiências desse teatro revelam não apenas as dificuldades de um processo de aclimatação de temas e formas, mas também antecipam limi-
tes desse processo quando nos devolvem ao modelo e à sua impossibilidade de universalização – a escravidão negra é uma invenção daquela modernidade;
C
a história do teatro é não apenas a história de endereçamentos e encontros, mas, sobretudo, a história de tensões que levam a alianças de imaginação (cena
e público), vínculos que são sempre de classe;
D
trata-se de uma cena, em mais de um sentido, crioula: por conta da língua que emerge das práticas de miscigenação, das sobrevivências dos extermínios in-
dígenas e negros ainda operantes, da consciência-levante de um racismo tão dissimulado quanto estruturante da nossa sociabilidade e da redução de diferenças em desigualdades, além da fisionomia própria de presenças até então apagadas da cena e as formas possíveis de sua elaboração;
E
a crítica da ordem patriarcal supressiva é não apenas o pressuposto dessa história, mas está posta a exigência de ver, de perto, no depoi-
mento das formas, as suas marcas; também agora, quando o negro, a mulher, o índio, os movimentos sociais, LGBT, imigrantes e as chamadas “minorias” ensaiam coros, testemunhos de uma luta que emergem, contemporâneos entre si, como ocupantes de uma cena que sempre os figurou – ou negou – como invasores;
F
mais que uma perspectiva pós-colonial, trata-se de um empenho anticolonial.
Não é possível fazer teatro hoje sem refazer a história desse teatro.
3
Aquilo que se convencionou chamar teatro de grupo no Brasil, pelo menos desde o fim dos anos 1990 e durante a década de 2000, resultou de um movimento não premeditado, que trouxe para a cena, por razões inscritas no próprio movimento, aspectos de um processo a um só tempo de desmanche e de reconfiguração de estruturas e dinâmicas da sociedade brasileira na qual a cena estava inscrita, fazendo, do processo, a crônica, sem deixar de ser dele um sintoma. Menos um programa que uma situação, portanto, forjava-se aí uma outra imaginação e uma espécie de comunidade de grupos, tão provisória quanto a matéria que a alimentava. Até onde essa comunidade se excedia e se comunicava com outras, ou apenas as presumia, é algo ainda a se verificar.
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Esse teatro se definiu, sem dúvida, por formas específicas de produção, desde a sua relação com os materiais, a invenção ou reposição refletida de procedimentos às práticas de organização do trabalho, mas também por se deixar inscrever em uma continuidade relativa, determinada por uma espécie de resiliência dos processos e alguns programas, marcados, no entanto, por uma intermitência econômica – esta já uma espécie de antecipação dos limites da euforia inclusiva que tomaria conta do país nos anos mais recentes.
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Continuidade relativa, por um lado, antecipação de limites, por outro, já que as formas de interrupção foram sempre ensaiadas (política e economicamente). Quer dizer: a crise é um modelo de gestão; intermitência, precariedade e desaparecimento são as suas práticas. Ainda reincidentes, seguem as práticas de cooptação, legitimadas pelo bordão “todos precisam trabalhar”, e a consequente estilização da precariedade, quando passamos a ver de perto os riscos do uso da arte como laboratório para as diversas formas de pacificação: bastaria ver a retórica das contrapartidas sociais atravessando a exigência de justificativa das artes. De certo modo, a arte era usada para desenhar novos limites, ao mesmo tempo em que se desenhava um processo de recomposição de classes no país – pelo menos desde o início dos anos 2000. Ali onde o teatro intuiu mais decisivamente tal movimento, seus corpos e sua língua foram, por assim dizer, assimilando as marcas dos apagamentos reiterados de nossa história, ou, em seus momentos altos, fazendo ouvir e ver seus fantasmas ainda entre nós.
Nesse mundo habitado por fantasmas, a figura que emerge, em uma espécie de ritual de exorcismo, é o possuído. Aquela figura que se deixou incorporar pelo fantasma de uma revolta narcísica. Segundo algumas crenças (que, no contexto atual de regime pentecostal, talvez devêssemos levar a sério), ao morrer, alguns espíritos permanecem pairando entre nós, sem saber o rumo, teimando em acertar contas com os vivos, que veem como responsáveis por seus sofrimentos de alma penada. Em revolta permanente, precisam de corpos para fazer ouvir suas exigências. Então surge a pergunta urgente: quem são os nossos mortos?
O movimento de possuídos que tem tomado as ruas do país transformou a política nessa prática alucinada de exorcismo prolongado, ritual entre o cômico e o macabro, como, aliás, reitera o gênero para o qual um ritmo de suspense vazio deve adiar a solução. Solução essa também entre o previsível e o susto, já que o susto, neste caso, não se confunde com o espanto, pois, segundo as regras desse gênero menor, com seus efeitos de paradoxo rebaixado, é preciso produzir medo, mas medo daquilo que já conhecemos. O
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fantasma clama por um exorcista, que, no entanto, colocará à prova, até que o seu destino se cumpra, enviando a alma ao seu endereço final. No ritual de exorcismo, é preciso deixar que o fantasma fale e, para muitos, a sua fala tem poder de revelação. Mas não é preciso ser totalmente cético para saber que um fantasma só pode falar do passado. O tempo da possessão é o da justaposição dos fusos: o presente seria o momento de correção de um passado que não passou. O possuído difere do zumbi; não se trata de um morto-vivo à procura de energia vital e sangue. Ao contrário, muitas vezes, é do fantasma que vem a energia que faltava àquele corpo. O possuído tem sua consciência suspensa, convivendo com a voz-fantasma que o habita. Mas é preciso estar atento, pois o ritual uma hora cessa, deve ser interrompido, e o corpo exorcizado quase sempre é também aquele que não recorda. Também pode ser que o exorcista não cumpra todos os seus desígnios e o risco da série pode levar a continuidades ainda mais escabrosas. O pensamento não se confunde com exorcismo. TREMA!_esquecimento
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Tudo se passa como se uma parte da sociedade brasileira tivesse adormecido ao estalo de um fuso lá em 1964 e, ao barulho de panelas, despertasse cinquenta anos depois e quisesse... Agir, como se estivesse lá, naquela infinda noite de 31 de março, sem saber distinguir entre a realidade e o seu sonho noturno. A gesticulação infantilizada quer nos fazer lembrar que o tempo não passou. Foi isso, aliás, o que apareceu na fala de um deputado, durante a sessão televisionada de legitimação do impedimento, no dia 17 de abril de 2016. Na chanchada sinistra, segundo um procedimento de fusão, a antes torturada era agora a impedida e ainda uma vez torturada. Ao elogiar o militar torturador e afirmar que a esquerda, derrotada em 1964, era agora derrotada mais uma vez, o gesto do deputado revelou-se alegoria fúnebre: 1964 estaria ali, continuando naquele ato, que encenava em rede nacional uma sessão de tortura, em nome de um deus e de famílias, expressões privadas da ordem regida pela legião dos “bbbb” – os bancos e suas incorporações, os bois e sua sangria, as balas e seus alvos, a bíblia e suas conversões.
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Em grande medida, vivemos hoje uma disputa pelo tempo, plasmada para uns em uma luta em torno de narrativas, mas, de fato, em uma luta pela vida. O esforço é o de não aderir a nenhuma forma de regressão e, para tanto, é preciso estar também alerta às bandeiras levantadas. O risco de entoarmos bordões que nos devolvam ao tempo que devemos fazer passar é da mesma ordem que o risco de adiarmos o levante, porque precisaríamos ainda negociar.
Nem possessão, nem exorcismo: os mortos, diferentemente dos vivos, querem ser esquecidos. O problema, portanto, está em lidar com os vivos, como se esses já estivessem mortos. Se, no teatro, o trabalho de lembrança implica em um trabalho de reparação, não basta, no entanto, um olhar reparador ou a emergência de teatralidades marginais: é preciso reinventar o próprio teatro enquanto campo de lutas. Se é verdade que a história dos homens é a história da luta de classes, no interior dessa luta ainda há uma outra, pela verdade que, desde os gregos, é também uma luta contra as formas do esquecimento. Da pergunta “quem são os nossos mortos?” emerge outra sobre quem se recusa a esquecer.
10
Um dos maiores empenhos do governo interino de 2016 é o de apagar os vestígios de uma luta, de que o teatro é, sem dúvida, um dos principais elementos catalisadores. O fim do Ministério da Cultura foi a primeira tentativa e sua retomada não altera esse desígnio. O que está em jogo nesse movimento é o trabalho de apagamento e a conversão do Ministério em seu agente principal. A tarefa da arte, do teatro, não é apenas resistir a esse movimento, mas também aprofundar as alianças que, até então, se esboçavam. Desenhados os limites, eles tendem a explodir. Para o teatro, essa explosão poderia ser um programa.
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#E S QUE CIME NTO L E IT URA V I SUAL p —José 11 Rufino
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dante bebe as águas do rio letes (rio do esquecimento), para, purificado, ser recebido por beatriz no paraíso celeste — mural pintado por canato
BÁRBARA BURIL baiburil@gmail.com
P
ara salvaguardar a liberdade de lembrar, o ser humano cons-
pliação do subsolo e a verticalização do edifício. Para ter a liberdade
trói fortes espaços metodologicamente organizados, es-
de lembrar, diz o narrador de “Toute la mémoire du monde”, o ho-
truturas racionais, compartimentos, galpões com arquivos,
mem constrói fortes.
encontrados em bibliotecas, coleções, acervos, museus. Como
É assim que artefatos como litografias, selos, fotografias, me-
anuncia o narrador do documentário “Toute la mémoire du mon-
dalhas, periódicos, manuscritos, mapas e livros, para não serem es-
de”, de Alain Resnais, logo no início do curta-metragem de 1956,
quecidos, são meticulosamente arquivados na Biblioteca Nacional
“porque tem a memória curta, o homem acumula incontáveis au-
da França até hoje. São recebidos, autenticados, definidos, transfor-
xiliares de memória”. Não sabemos muito bem como, nem por-
mados em fichas e, finalmente, arquivados no espaço mais adequa-
que o ser humano não atribuiu aos mortos o papel de enterrarem
do para eles, sob uma temperatura e iluminação ideais, controlados
os mortos. Dotados da faculdade de lembrar, não conseguimos
por um sistema tecnológico semelhante à cabine do Capitão Nemo
abandonar o passado ao passado. Fora de nosso controle, o que
na nave Nautilus, espaço fictício criado por Júlio Verne na obra “Vin-
aconteceu nos assombra, constitui o que somos e, como um bicho
te mil léguas submarinas”.
parasita, o passado nutre-se da seiva do presente porque não tem vida própria. Porque, simplesmente, já passou.
Através da meticulosidade e inclinação burocrática e calculista de uma racionalidade instrumental, conseguimos guardar o passado
O passado não nos abandona e nós não abandonamos o pas-
e não nos esquecemos mais do que fomos. Congelamos o mundo
sado por um motivo impreciso. Sem essa relação que parece ser
grego, a arte moderna, as poesias trovadorescas, o cinema mudo, as
constitutivamente humana, não haveria história, nem historiadores,
cartas do tarô — e há um inegável mérito nisso! —, apesar de não ter-
arqueólogos ou paleontólogos; não saberíamos sequer da existên-
mos ideia de como realmente viviam os gregos ou como os trovado-
cia dos dinossauros ou dos mamutes ou de nós mesmos, antes de
res de fato amavam ou a que precisamente veio o tarô na sua missão
sermos homo sapiens. Não haveria a Biblioteca Nacional da França,
délfica. Em suma, guardamos o passado sem a saturação das cores de
que em 1956, como nos mostra Resnais, recebia três milhões de
quando era só presente, porque simplesmente não nos foi permitido
obras ao ano. Uma memória que arquitetonicamente aumentou
reviver o que já passou na divisão tríplice e ordinária do tempo em
para cima e para baixo, em reformas contínuas que incluíam a am-
passado, presente e futuro.
TREMA!_esquecimento
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ARTIGO
cartaz do filme "crepúsculo dos deuses" (sunset boulevard), de 1950 dirigido por billy wilder
PRECISAMOS ESQUECER, TODAVIA Não necessariamente de como achamos que viviam os gregos ou
como um processo acumulativo de saberes. Em outras palavras,
das obras-primas do cinema mudo, mas dos registros pessoais
entender e curar uma dor não são processos que podem ser resol-
que nos fazem arrastar correntes pelo presente. Friedrich Nietzs-
vido em contínuas idas à Biblioteca Nacional da França. Ao con-
che, na obra “Genealogia da moral” (1887) 1 , interpreta o esqueci-
trário do que diz o narrador de “Toute la mémoire du monde”, que
mento não como uma força inercial (vis inertiae), um desgaste de
afirma que a felicidade só será alcançada quando todos os seres
impressões passadas ou uma “moeda que perdeu sua efígie”, mas
humanos forem capazes de articular diversos saberes coerente-
como uma força plástica e ativa, capaz de nos libertar de impres-
mente, desvendando todos os segredos do mundo (em uma es-
sões repetitivas e doentias, produzidas quando tivemos que lidar
pécie de reinterpretação humana de toda a memória já acumulada
com ultrajes, decepções e descontentamentos.
ao longo de milênios), para Nietzsche o ser memorioso, aprisiona-
A terapia para as dores não se constitui, na visão nitzscheana,
do no passado, não vive uma “forma de saúde forte”. Não reconhece a força engendradora de vida que eclode quando o sujeito
1 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. 1ª Ed. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2009.
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se abre para o novo. Para se abrir ao devir, entretanto, é preciso aprender a arte do esquecer.
still do documentário "tout la mémoire du monde", de 1956 dirigido por alain resnais
Nietzsche, ao interpretar o esquecimento como uma força plás-
a personagem Julieta do filme homônimo de Pedro Almodóvar,
tica ativa, dá um golpe nas formas de cultura e educação de seu
lançado neste ano, busca esquecer o que ainda é dela. As dores
presente, que entendiam a evolução do homem em termos de
imensas causadas pela fuga da filha Antía para um retiro espiritual
acumulação de saber histórico, fático e científico. Ler o máximo
acompanha Julieta por anos. Até que ela resolve simplesmente
que a Biblioteca Nacional da França nos oferece não resolve os
bloquear tudo o que pudesse lembrá-la de que teve uma filha:
nossos problemas, nem nos liberta das correntes que arrasta-
muda-se de casa, rasga fotografias e guarda os pedaços em uma
mos hoje. Acumular informações não é uma terapia, em suma. Só
caixa, se livra das roupas e de tudo o mais. Quer se esquecer de
as forças criativas e artísticas nos abririam para a vitalidade do devir, mas, para isso, seria preciso esquecer, fazer uma higiene no espaço psíquico e expelir toda a mobília desnecessária do nosso espaço interior. Jogar fora o que já não é nosso. Como deveria ter feito (mas não fez) a personagem Norma Desmond, no filme
tudo, radicalmente. Há anos sem entrar em contato com a dor da perda de Antía, Julieta encontra uma ex-namorada da filha, que lhe dá algumas notícias sobre a vida levada por Antía à distância há tantos anos. É assim que a tentativa de esquecimento de Julieta se desmorona e ela simplesmente volta ao começo: muda-se para o apar-
“Sunset Boulevard” (1950), de Billy
tamento onde morava antes do su-
Wilder. Uma atriz decadente da
miço da filha, resgata as fotogra-
era do cinema mudo, Norma
fias, monta os pedacinhos das
vive como se ainda fosse uma
imagens rasgadas e se entrega
estrela de Hollywood em uma
novamente à dor do início. Rapi-
época em que o cinema sonoro já tinha se desenvolvido largamente em Los Angeles. Apegada ao passado, vive rodeada por fotografias de uma juventude de fama que já tinha se esvaído e não consegue esquecer os diálogos que protagonizou nos seus anos de ouro. Literalmente, a mobília interna da casa de Desmond já não se adequava mais ao seu status atual de completa anônima e, por não
damente, a mobília interna e externa de Julieta se reestrutura, como se nunca tivesse deixado de existir – e realmente, nunca deixou. Provavelmente, o esquecimento que definitivamente nos redireciona para o futuro pensado por Nietzsche é aquele esquecimento de tudo o que já não é nosso. De toda a mobília interna que, de algum modo, já foi
abrir espaço para o que poderia se manifestar (quem sabe, uma
carcomida por um processo interno de autodigestão. Da mobília
vida de diretora de cinema ou escritora capaz de lhe dar um novo
interna que ainda não foi mastigada (mas que infelizmente ainda
signo de fama, ou até uma existência mais calma, lenta e profun-
nos faz sofrer) parece não ser possível nos livrar, como nos indi-
da, proporcionada finalmente pelo anonimato), Norma Desmond
cam as histórias de Julieta e de Norma. Desses móveis novos ou
caminha como se carregasse, dentro de si, todo o peso do mundo.
velhos, mas feios, que atravancam os nossos caminhos, só nos é
Enquanto Desmond não quer esquecer o que já não é dela, TREMA!_esquecimento
possível lembrar, todavia. E mastigar. p — 19
apontamentos da plataforma
PEDRO VILELA vilelaproducao@gmail.com
peça "ça ira" — foto: elisabeth carecchio
nada deve estar
consumado p — 20
A
pesar de sua curta trajetória, a MITsp – Mostra Internacional
Théâtre des Bouffes du Nord, a convite de Peter Brook, onde traba-
de Teatro de São Paulo vem se configurando como o prin-
lhou entre 2007 e 2010. Atualmente, é artista associado da Odeon
cipal evento teatral do país. Na edição deste ano, sem dúvi-
Theatre da Europa e do Teatro Nacional da Bélgica.
das, o destaque do evento foi a presença de Joël Pommerat, dra-
Nas duas obras apresentadas por este artista nesta última
maturgo e diretor francês que ficou conhecido no Brasil em 2013,
edição da MITsp, “Ça ira” e “Cinderela”, é evidente a aproximação
após a montagem de sua obra “Esta criança” pela Cia Brasileira de
do autor com a poética pós-moderna, estabelecendo de forma
Teatro (PR), em parceria com a atriz Renata Sorrah.
autoconsciente “a contradição metalinguística de estar dentro e
Consolidado como um dos criadores mais atuantes de sua geração, Pommerat fundou a Cia. Louis Brouillard em 1990. De lá
fora, de ser cúmplice e distante, de registrar e contestar suas próprias formulações provisórias” 1 .
para cá, vem comungando processos criativos ora com seu grupo, ora em cooperação e residências em diferentes lugares na Europa. No período de 2005 a 2008, por exemplo, esteve em residência no Espace Malraux – Cena Nacional Chambéry e Savoy, além do TREMA!_esquecimento
1 HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
p — 21
apontamentos da plataforma
joël pommerat — foto: cici olsson
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ORQUESTRANDO CAMADAS E EQUÍVOCOS O teatro é colocado às escuras. Ao fundo se vê uma mulher moribunda, proferindo suas últimas palavras à filha, que se encontra ao seu lado. As palavras são entrecortadas por soluços e gemidos da mulher, enquanto sua filha realiza um esforço tremendo em compreendê-la. Algo parece ter sido dito e guardado: “não se esqueça de mim, nem por um minuto” 2 . “Cinderela” nos apresenta um Pommerat pouco conhecido do público brasileiro, retomando o exercício realizado pelo mesmo nos últimos anos a partir da releitura de contos clássicos, tal como “Chapeuzinho Vermelho” e “Pinóquio”. Com “Cinderela”, o dramaturgo e diretor nos propõe uma experiência intensa e desconcertante (como destacou o jornal Le Monde) ao realizar uma estimulante reflexão sobre a dor e a culpa, apontando para o fundo trágico da infância: o medo, a solidão, os pesadelos e as esperanças, questões que giram ao redor do mote maior do enredo, que é a morte da mãe. Contado e recontado através de milhares de variantes em todo o mundo, “Cinderela” é uma das obras que mais possui versões na história da humanidade. Uma das primeiras é oriunda da Grécia e datada do século 1 a.C, seguida de uma versão chinesa, por volta de 860 d.C na China, na qual o pequeno tamanho do sapato da protagonista estaria relacionado com a tradição no país da amarração de pés de jovens. Entretanto, as versões que ficaram mais populares são derivadas dos autores Charles Pearrault e dos Irmãos Grimm. "Até aqui, consideramos Cinderela uma unidade compacta, negligenciando as variantes, que são muito numerosas. Examinemos aquelas que se referem à figura do ajudante mágico, de quem a heroína obtém os objetos que lhe permitem dirigir-se à festa no palácio. Na versão de Perrault, a ajudante é uma fada, madrinha de Cinderela. Com mais frequência, as mesmas funções são desempenhadas por uma planta ou um animal — uma vaca, uma ovelha, uma cabra, um touro, um peixe — que a heroína protege" 3. Vale também destacar que a maneira como a estória vem sendo contada no mundo ocidental provavelmente nasce de um equívoco de tradução. De acordo com diferentes teóricos da literatura infantil, existe uma confusão relacionada à tradução entre duas palavras em francês: vaire (pele, couro) e verre (vidro ou cristal). Originalmente os sapatos seriam de couro, mas o erro de tradução, como num passe de mágica, transformou-os em “sapatinhos de cristal”. Cinderela, sob a ótica de Pommerat nasce, do equívoco, do erro de compreensão da personagem título em relação às palavras ditas no leito de morte por sua mãe. A partir disto, somos colocados diante da complexidade existente entre o discurso emitido e a compreensão do mesmo. “Se você tiver imaginação suficiente, sei que poderá me entender. E, quem sabe, até me compreender. Então, vou começar. Na estória que vou contar, as palavras podem ter consequências catastróficas para a vida de uma menina” 4 , diz a Cinderela de Jöel.
2 Trecho do espetáculo “Cinderela”, sob direção de Joël Pommerat. 3 GINZBURG, Carlo. História noturna. Tradução de Nilson Moulin Louzada. 2a ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1991. (Parte III, capítulo 2: ossos e pele). 4 Trecho do espetáculo “Cinderela”.
TREMA!_esquecimento
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apontamentos da plataforma Alguns críticos afirmam que seu grupo se denomina Louis Brou-
A Cinderela de Pommerat é estranha fisicamente, usando, na maior
illard, nome que alude à enevoada paisagem que adentra suas
parte do tempo, um imobilizador de tronco, tipificando-se também
criações (brouillard é uma palavra francesa que significa nevoeiro),
como uma personagem que sempre diz algo errado na hora errada,
mas que ironiza também aquele de Ariane Mnouchkine (Théâtre
o que amplia ainda mais a ideia de ser errante no mundo. Torna-se,
du Soleil), que pretende ser solar em suas encenações, num ine-
assim, uma heroína, não por se configurar dentro dos ideais pré-
quívoco traço intertextual marcando essa pia batismal.
concebidos de herói, mas pela humanidade que carrega.
Para Lyotard, o pós-modernismo se caracteriza exatamente
No percurso de desestruturação do que acreditamos já co-
por uma espécie de incredulidade em relação às narrativas-mes-
nhecer sobre o conto, encontramos desde uma nova proposição
tras ou metanarrativas. Em “Cinderela”, esta intenção se reforça na
para o “sapato de cristal” a um novo olhar para o ato de nomi-
desconstrução de paradigmas pré-concebidos, encaminhando o
nar, como é o caso da inexistência do termo “madrasta”, traduzido
espectador a navegar por questões como a morte, a vida e o tempo.
para “futura mulher do pai”. A fada madrinha desta versão carrega
O autor constrói seus personagens sob o princípio da afasia
consigo a dificuldade de lidar com o ato mágico e está sempre a
(do grego afasia, a+fasia), que seria uma perturbação da formu-
fumar. Tal como outros personagens, abre espaço para a brinca-
lação e compreensão da linguagem. Com aprimorado vigor, o es-
deira dramatúrgica com as palavras francesas cendrier (cinzeiro) e
petáculo é estruturado sob um duplo desenvolvimento narrativo.
cendrillon (cinderela). Desta vez, o equívoco da tradução é ferra-
Ora nos leva a uma possível tentativa de registro realizado pela
menta de composição.
própria personagem, ora para o acompanhamento destes fatos.
Pommerat, portanto, sabedor da importância do ato de re-
Para além destas duas camadas, realiza-se o aditivo de uma
cepção por parte dos espectadores, constrói todo um espetáculo
terceira, que está ligada à manipulação do senso comum criado
que requer a presença dos mesmos para comungar do que conhe-
pelos espectadores em relação ao conhecimento do próprio con-
cemos e do que podemos (re)conhecer pelo exercício de contem-
to. Pommerat nos diz que os tempos são outros e que as possi-
poraneizar obras. Eleva o status do receptor como co-autor da
bilidades de “maneiras do contar” também. Neste sentido, insere
trajetória percorrida pelos personagens. Desta forma, aproxima-se
procedimentos pós-moderno em sua narrativa, a partir do mo-
de Christopher Norris, ao afirmar que “nenhuma narrativa pode ser
mento em que leva em consideração que,
uma narrativa ‘mestra’ natural: não existem hierarquias naturais, só existem aquelas que construímos” 6 .
o importante em todos os desafios internalizados ao humanismo é o questionamento da noção de consenso. Agora, todas as narrativas ou sistemas que já nos permitiram julgar que poderíamos
EXERCÍCIOS DE METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA
definir, de forma não problemática e universal, a concordância pública foram questionadas pela aceitação das diferenças – na
Estamos em assembleia. Ou melhor, estaremos em assembleia nas
teoria e na prática artística 5 .
próximas quatro horas. É esta a experiência que o dramaturgo e diretor francês em questão nos proporciona com seu espetáculo “Ça ira”.
Assim, Pommerat traça um caminho que vai muito além do co-
A obra, que inicia de forma seca com o apagar das luzes e a
nhecido por todos, marcado pela perspectiva do avanço social e
composição de uma mesa na qual encontramos presentes o rei
da resolução de conflitos da personagem através do amor. Vemos
Luís XVI e o seu primeiro ministro, expõe o problema ativador que
na obra uma trajetória de empoderamento à medida que aumenta
se desenvolverá ao longo da encenação: a França encontra-se em
a compreensão do mundo que a rodeia.
profunda crise econômica e a possível alternativa de reconfigura-
Os ideais românticos, traduzidos em versões anteriores, servem de ferramenta para o exercício da ironia, como as cenas de
ção do sistema financeiro do país é refutada pelas forças da sociedade que a domina.
encontros e desencontros de Sandra com o Príncipe. O que vemos
O ano é 1789, momento de encaminhamento para a Revolu-
comumente encarnado na história da protagonista (a busca por
ção Francesa. O autor nos oferece o privilégio de sermos inseridos
ser reconhecida como especial e levada a uma existência superior),
nos passos da história. Passamos pela convocação dos Estados
nesta encenação é deslocado para o eixo familiar, proporcionando
Gerais, reunião para deliberação sobre assuntos relacionados à
uma série de atitudes de “equívocos” risíveis.
situação política da França, pelo estabelecimento da Assembleia
Nesta busca por alcançar status, destaca-se a cena da ida da ma-
dos Estados Gerais, com o objetivo de decidir pelo voto os rumos
drasta, suas duas filhas e o pai de Sandra ao baile promovido pelo Rei.
do país, e pela Assembleia Nacional, que visava formular nova
Ao vesti-los com roupas renascentistas, o diretor constrói uma ale-
constituição para a França.
goria paródica diante da própria tradição cultural francesa. Diferente-
Mais do que um percurso, interessa ao autor a possibilidade de
mente da maioria das versões encontradas, não temos acesso ao que
os espectadores esmiuçarem as forças que interagiram na composi-
acontece dentro do baile, mas sim na porta de entrada dele. Ao mani-
ção dos acontecimentos daquele período, jogando uma espécie de
pular o posicionamento das caixas de som do teatro, o diretor nos faz
lupa sobre o encaminhamento do ato revolucionário e sobre seus
escutar músicas pop com efeito de abafamento, além de pessoas gri-
diferentes tensionamentos. O autor não assume para si um interesse
tando e vindo de dentro do castelo, tal como a entrada de uma boate.
por narrar ou contextualizar, mostrando-nos, então, toda a composi-
5 HUTCHEON, Linda, op. cit., p. 24
6 HUTCHEON, Linda, op. cit., p. 31
p — 24
ção do ato que viria a deflagrar a Revolução.
reparos são criações humanas, mas que, a partir desse mesmo
Desta vez, o processo de ficcionalização pós-moderna proble-
fato, eles obtêm seu valor e também sua limitação. Todos os repa-
matiza esse modelo com o objetivo de questionar tanto a relação en-
ros são consoladores e ilusórios. Os questionamentos pós-moder-
tre a história e a realidade como a relação entre a realidade e a lingua-
nistas a respeito das certezas do humanismo vivem dentro desse
gem. Aproxima-se, portanto, do que Hutcheon chama de “metaficção
tipo de contradição 9 .
historiográfica”, através da autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas, passando esta a ser a base para seu
Explicita dialeticamente as contradições da sociabilidade contem-
repensar e sua reelaboração das formas e dos conteúdos do passado.
porânea, investindo na contramão do que Hans-Thies Lehmann e Denis Guénoun questionam quanto à presença de conteúdos po-
O teatro acontece no espaço político, mas ele faz com que aí
líticos na obra teatral, quando muitas vezes essas formas de teatro
aconteça algo diferente daquilo que a política faz acontecer. Há
não atingem seu próprio objetivo de transformação social. A his-
teatro no lugar da política (dentro do seu espaço, mas também
tória, pelo menos a que se diz oficial, já nos contou a trajetória da
em seu lugar – como uma usurpação). A representação teatral
revolução francesa. Restava à arte investigar seus meandros. As-
consiste em produzir, na área assim organizada, determinada –
sim, a teorização pós-modernista desafia as narrativas “mestras”
uma outra palavra, outros signos, outros adventos do sentido 7 .
sem necessariamente assumir este status para si. Afastando-se do clichê de que “todo” teatro é político, a radica-
As tensões na obra são oriundas da inter-relação dos três dife-
lização política que caracterizou a revolução francesa é evidenciada
rentes estados nos quais a população se enquadrava no período
enquanto forma e conteúdo em “Ça ira”. Como bem define Hans-
absolutista francês: o primeiro, representado pelos bispos do Alto
Thies Lehman, “não é pela temática direta do político que o teatro se
Clero; o segundo, pelos representantes da nobreza ou da aristo-
torna político, mas pelo teor implícito de seu modo de representação” 10.
cracia francesa; e o terceiro, pela burguesia, que se dividia entre
“Ça ira” se encerra sem podermos acompanhar a revolução
membros do Baixo Clero, comerciantes, banqueiros, empresários,
em si, restando-nos o sentimento de iminência do que está por
sans-cullotes, trabalhadores urbanos e camponeses, totalizando
vir. Pela reação de grande parte da plateia, seria possível passar
cerca de 97% da população.
mais quatro horas junto daqueles atores destrinchando os fatos históricos. Na obra francesa, as luzes vão se apagando com o Rei
O conceito de não-identidade alienada (que se baseia nas opo-
Luís XVI repetindo que “tudo dará certo”. Mero engano, Luís. Não
sições binárias que camuflam hierarquias) dá lugar, conforme
sabia ele o que a história o reservava.
já disse, ao conceito de diferenças, ou seja, à afirmação não da
Não à toa, é recorrente Foucault utilizar-se da Revolução
uniformidade centralizada, mas da comunidade descentralizada
Francesa para o desenvolvimento de suas teses. Tal como “Ça ira”,
– mais um paradoxo pós-moderno 8 . a contestação do individuo unificado e coerente se vincula um quesPommerat, através de um exercício de encenação sem grandes
tionamento mais geral em relação a qualquer sistema totalizante ou
rebuscamentos visuais, nos propõe atentar para o caráter perfo-
homogeneizante. O provisório e o heterogêneo contaminam todas
mativo que o próprio ato das assembleias políticas possui.
as tentativas organizadas que visam unificar a coerência (formal ou
Diferentemente de “Cinderela”, a obra em questão é confi-
temática). Porém, mais uma vez a continuidade e o fechamento históricos e narrativos são contestados a partir de dentro 11.
gurada de tal forma que já não encontramos divisão entre palco e plateia. Ainda que não exista brecha para interação entre atores e espectadores, a quarta parede é completamente quebrada,
Apesar de ter seu nome inscrito como um dos criadores mais pro-
tornando o espaço teatral um potente campo de discussões de
fícuos da contemporaneidade, faz-se necessário cada vez mais
ideias. Os atores, espalhados pelo público, aplaudem as decisões
compreendermos os modos de operacionalizações das recentes
tomadas por seus representantes e gritam em manifestações. Os
criações de Joël Pommerat. Sem a pretensão de carregar para si a concepção de novo pa-
enfrentamentos corporais e ideológicos são constantes. Chama a atenção que, em grande parte do espetáculo, temos
radigma e fruto de uma cena um pouco mais conservadora como
acesso apenas às assembleias realizadas pelo terceiro estado. O
a francesa, o artista investe no passado, na tradição das narrativas,
autor sutilmente evidencia o desejo de que boa parte do público
em um caminho que se apresenta para além de um retorno nos-
enfrente seu espelho, como se dissesse para percebermos o que
tálgico, para além de uma manipulação de nossas lembranças.
um dia já fomos capazes de mobilizar. Não objetiva, contudo, con-
Sua reavaliação crítica das narrativas mestras, alimentada
figurar a burguesia como possíveis heróis desta revolução, uma
pela ironia que o cerca, pauta sua genialidade na atuação dentro
vez que procura não carregar, em sua escrita, juízo de valor sobre
dos próprios esquemas que tenta subverter e encanta os especta-
os atos apresentados.
dores mediante o domínio sobre seu ofício. “Ça ira 2” encontra-se em processo de montagem. Esperemos.
O pós-modernismo atua no sentido de demonstrar que todos os
7 GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003. 8 HUTCHEON, Linda, op. cit., p. 29
TREMA!_esquecimento
9
HUTCHEON, Linda, op. cit., p. 24
10 LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 11 HUTCHEON, Linda, op. cit., p. 29
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peça ‘‘nossa cidade’’ (1949), do teatro de amadores de pernambuco — foto: divulgação
PERFIL
teatro de amadores de pernambuco:
MEMÓRIA e ESQUECIMENTO
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ANTONIO EDSON CADENGUE a.cadengue@uol.com.br
O
Teatro de Amadores de Pernambuco, criado no Recife pelo médico Valdemar de Oliveira (1900-1977) em 1941, é hoje uma instituição consolidada ao longo de 70 anos de intensa ativi-
dade. Não se trata apenas de uma honorável instituição somente para o teatro recifense, mas também para as artes cênicas do país. Atuante no Grupo Gente Nossa, conjunto profissional pré-
moderno fundado em 1931 por Samuel Campelo e Elpídio Câmara, Valdemar de Oliveira é convidado a realizar uma “hora d’arte”, nos festejos comemorativos do centenário da Sociedade de Medicina de Pernambuco. Propõe e realiza, então, a montagem de uma obra teatral com médicos, esposas e familiares. A peça “Knock, ou o triunfo da medicina” (Knock, ou le triomphe de la médecine), de Jules Romains, estreia em 5 de abril de 1941, no Teatro de Santa Isabel. Por conveniência administrativa, esse espetáculo ainda aparece como uma produção do Grupo Gente Nossa. É apenas o gérmen do grupo que virá a ser. Somente na montagem seguinte, “Primerose”, de Robert de Flers e Gaston Arman de Caillavet, a identidade do TAP é devidamente instituída, mas como “departamento amador” do Gente Nossa, só se tornando independente dele a partir de 1945. Desde seus primeiros espetáculos, o TAP reúne figuras da “alta sociedade” recifense em torno de um programa de encenação de originais que se distancia do repertório comercial, comum tanto às companhias do Sudeste que visitavam o Recife quanto aos grupos atuantes na capital pernambucana. Além disso, cria e mantém com sucesso um “teatro de cultura”, aliando “amadorismo teatral à filantropia” e mudando a fisionomia do teatro pernambucano. De 1941 a 1947, o conjunto se desenvolve técnica e artisticamente de maneira expressiva. Nesse período, monta 21 peças, realiza excursões a Natal (1941), Fortaleza (1941), Salvador (1944) e Maceió (1946) e conta com o apoio da crítica, que reconhece o alto nível artístico alcançado. São seus “anos de aprendizagem” — em que renova o repertório e educa a si mesmo e ao público — para receber o “grande teatro universal”. Continua, entretanto, a usar o ponto, os velhos telões pintados, e o elenco é sempre escolhido em função do physique du rôle. TREMA!_esquecimento
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PERFIL
peça ‘‘vestido de noiva’’ (1944), do teatro de amadores de pernambuco — foto: acervo
peça ‘‘pagador de promessas’’ (1944), com reinaldo de oliveira — foto: acervo
Este clima de “velho teatro” é quebrado, em 1944, com a mon-
mandados de Valdemar de Oliveira montaram “Knock”, de Jules
tagem de “A comédia do coração”, de Paulo Gonçalves, sob a di-
Romains, Os Comediantes no Rio iam apresentar, por sua vez,
reção do polonês Zygmunt Turkow. Antes dele, o TAP conhecia
“A verdade de cada um”, de Pirandello, sob a direção de Adacto
apenas a figura do ensaiador. Agora, a função do encenador e as
Filho, se não estou enganado. Responsabilizaram-se, assim, os
possibilidades da iluminação teatral vão sendo descobertas. Daí
dois grupos — o do Norte e o do Sul — pelo início de uma fase
até 1947, o TAP torna seus espetáculos mais refinados, prevale-
que está levando o teatro brasileiro a alturas ainda não atingi-
cendo uma tendência realista. Delineia-se uma das característi-
das. (...) O grupo dirigido por Valdemar de Oliveira criou — não
cas do grupo que permanece nos dias de hoje: o ecletismo em
resta dúvida — uma mentalidade diferente no Recife, com rela-
seu repertório.
ção às coisas da arte dramática” 1.
De 1948 a 1958, tem início a superação do autodidatismo
Em 1949, o TAP contrata Zbigniew Ziembinski, que encena
que impedia o avanço do grupo na modernidade teatral. O lema
três peças: “Nossa cidade” (Our town), de Thornton Wilder; “Pais
é realizar espetáculos bem-feitos "tecnicamente" e acompa-
e filhos” (Missalliance) de Bernard Shaw; e “Esquina perigosa”
nhar os movimentos estéticos europeus. Para essa “renovação
(Dangerous corner), de John Boynton Priestley. Para Valdemar de
da cena”, o TAP contrata diversos encenadores de outras regiões:
Oliveira, no primeiro espetáculo concebido por Ziembinski havia
Adacto Filho (1948), Zygmunt Ziembinski (1949), Willy Keller
um equilíbrio entre encenação e desempenho; no segundo, de-
(1951), Jorge Kossowski (1952), Graça Melo (1953 e 1957), Flamí-
sencontro entre cenário e texto; e, no terceiro, harmonia de to-
nio Bollini Cerri (1955), Bibi Ferreira (1956) e Hermilo Borba Filho
dos os seus elementos 2. Em quase dez meses de permanência no
(1958) — pernambucano que, desde 1953, atuava em São Paulo.
Recife, Ziembinski modifica o ambiente teatral da cidade: além
É o momento mais ousado do grupo, pela atualização artística
de seu trabalho com o TAP, ministra cursos e monta espetáculos
que promove no palco e pela formação de uma plateia capaz de
para o Teatro Universitário de Pernambuco (TUP).
compreender suas inovações.
Depois de Ziembinski, Graça Melo é o mais produtivo encena-
A passagem de Adacto Filho gera debates e controvérsias,
dor contratado pelo TAP, dando ao grupo uma contribuição impor-
estimulando o ambiente teatral do Recife. Mesmo que a renova-
tante: traz para o elenco uma naturalidade artística na interpretação.
ção trazida por ele ao TAP tenha sido sutil e que seus processos
Suas montagens são bem-recebidas pela crítica teatral, que destaca
de encenação ainda fossem à moda antiga (constrói um espetá-
sua habilidade como encenador, dominando todos os elementos
culo em pouco tempo, confiando na perspicácia do ponto), per-
que compõem um espetáculo: da cenografia à interpretação.
cebe-se que, com ele, o repertório sofre uma mudança. Além dis-
Em 1955, a montagem de “Vestido de noiva” pelo italiano
so, Adacto Filho introduz algumas lições de mise en scène que são
Flamínio Bollini Cerri suscita debates entre a crítica e o público.
aprendidas por Valdemar de Oliveira: a maneira de o encenador
Encenador detalhista, seu rigor com a encenação é comparado ao
conduzir os atores a compor diferentes tipos, a técnica de “levan-
de Ziembinski. Bollini cria um espetáculo em que os três planos
tar” diálogos e marcas, a gesticulação precisa e a mobilidade das
da peça — realidade, memória e alucinação — se intercambiam,
máscaras faciais.
criando cenas de impacto visual e gerando também uma maior di-
Em 1948, após a apresentação de dois espetáculos dirigi-
ficuldade na compreensão do enredo da peça. Para o dramaturgo
dos por Adacto Filho, ex-integrante de Os Comediantes, Hermi-
Ariano Suassuna, na época crítico do Diario de Pernambuco, “Ves-
lo Borba Filho percebe uma sintonia entre esse grupo carioca e
tido de noiva”, como espetáculo, é a culminância da trajetória do
o conjunto liderado por Valdemar de Oliveira: “Quando alguém
TAP 3.
for escrever a história do teatro brasileiro, necessariamente terá de dar um saltinho até aqui em Pernambuco e procurar documentar tudo quanto diga respeito às atividades do Teatro de Amadores, pois esse conjunto é, sem favor, um dos pioneiros
1 BORBA FILHO, Hermilo. ‘Amadores’ e ‘Estudantes’. Folha da Manhã, Recife, p. 5, 15 maio, 1948.
no movimento de renovação que aconteceu nos processos
2 Cf. OLIVEIRA, Valdemar. A propósito... Jornal do Commercio, Recife, p. 8, 8 jan.,1950.
teatrais do país. Lembro-me que, há sete anos, quando os co-
3 Cf. SUASSUNA, Ariano. A encenação de Vestido de noiva. Diario de Pernambuco,
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peça ‘‘um sábado em 30’’, texto de luiz marinho — foto: acervo
peça ‘‘yerma’’ (1978), com geninha da rosa borges — foto: acervo
Em 1958, Hermilo Borba Filho é contratado pelo TAP como encena-
encenação e o texto. O conjunto realiza montagens eficazes,
dor. Na década de 1940, ele dirigira o Teatro do Estudante de Per-
porém convencionais, cujo resultado já não provoca o mesmo
nambuco (TEP) — grupo que se opunha ao caráter elitista do teatro
choque estético de antes. Nessa fase, um dos espetáculos que
feito por Valdemar de Oliveira. Dezessete anos após a sua fundação,
merece destaque é “O pagador de promessas”, de Dias Gomes,
o TAP se encontrava em plena maturidade e leva ao palco um tex-
dirigido por Graça Melo. Quase todos os cronistas afirmam que o
to que discute o próprio fazer teatral: “Seis personagens à procura
TAP necessitava do arejamento propiciado por essa montagem.
de autor” (Sei personaggi in cerca d’autore), de Luigi Pirandello. Em
Com novos atores, nova peça, novos processos de representar,
seguida, Hermilo encena “Onde canta o sabiá”, de Gastão Tojeiro,
o grupo se encaminha para uma linha teatral revitalizada, além
como “caricatura sentimental de uma época”. A construção desse
de se integrar à "realidade brasileira", saindo de suas constantes
espetáculo se utilizava de formas teatrais antigas — como aquelas
opções pelo teatro estrangeiro.
contra as quais o TAP se insurgira quando do seu aparecimento. Esse
No entanto, nesse período, a montagem mais polêmica e
procedimento dava sinal de que o grupo evoluíra ao ponto de poder
decerto a de maior êxito parece ter sido “Um sábado em 30”, de
brincar com um passado que também era seu.
Luiz Marinho, com direção de Valdemar de Oliveira. Parte consi-
Na primeira excursão ao Rio, em 1953, a crítica carioca elo-
derável da crítica aprova o texto de Marinho, mas questiona as
gia o grupo que, “humildemente”, apresenta-se como aquele que
opções estéticas de Valdemar de Oliveira no que diz respeito à
desejava mostrar o teatro amadorista que se faz em Pernambuco,
encenação e, sobretudo, à adaptação do texto. Segundo os críti-
e não como aquele que ia dizer “como se faz teatro”. Na impren-
cos, Valdemar transgredira as feições originais do texto de Mari-
sa, tornou-se comum uma pergunta-boutade de Paschoal Carlos
nho, imprimindo-lhe uma interpretação histriônica, aproximan-
Magno: “Criticar? Mas criticar o quê?”. Tudo era harmonioso, a
do a montagem da chanchada e diluindo a seriedade e a crítica
disciplina artística era impecável, sem deixar de lado o espírito
social implícitas na peça. Apesar das críticas, o espetáculo se tor-
de equipe. De volta ao Recife, o grupo é declarado de “utilidade
na sucesso de público, fazendo parte, ainda nos dias de hoje, do
pública” pelo Governo do Estado.
repertório do conjunto.
Em Porto Alegre, em 1954, a aprovação foi semelhante. Este
Na ocasião do jubileu de prata do TAP, o crítico teatral Adeth
depoimento de Fernando Peixoto dá a dimensão dessa tempo-
Leite, do Diario de Pernambuco, ressalta a importância decisiva
rada: “Em março de 1954, o Teatro de Amadores de Pernambuco
desse grupo para o desenvolvimento das artes cênicas na região:
(TAP) (...) apresentou-se no Teatro São Pedro com espetáculos
“Muito já se disse, mas não cansa repetir que, não fora o TAP, mui-
inesquecíveis (...). Estávamos todos na plateia e todos os dias,
tos dos melhores originais da literatura teatral universal jamais
fascinados com a força do elenco, a precisão da encenação, a
seriam conhecidos do público do Recife. A semente brotou, criou
descoberta dos textos, a coesão do grupo (que nos parecia mais
raízes e deu bons frutos. E a verdade (...) é que o historiador, ao
fácil no caso do TAP, porque eram famílias muito ligadas entre si e
escrever a arte cênica em Pernambuco, forçosamente terá de ci-
sabíamos que, no nosso caso, seria necessário construir uma uni-
tar a frase fatal ‘antes e depois do TAP’” 5.
dade a partir de nossas, às vezes complicadas, individualidades).
O espetáculo “TAP - Ano 25” leva ao palco a principal carac-
Sem dúvida, a temporada do TAP foi mais que uma revelação:
terística do grupo entre 1966 e 1976: a nostalgia. Esse período se
deixou claro que precisávamos romper barreiras” 4.
caracteriza pela “ordenação do passado” do conjunto liderado
De 1959 a 1965, é o tempo de “consolidação da cena”, em
por Valdemar de Oliveira. O olhar retrospectivo balizará diversas
que se buscam preservar as conquistas da fase anterior e pro-
montagens e, sobretudo, remontagens. Deslocando a saudade de
cura-se manter um equilibrado rendimento artístico entre a
si mesmo para outros espaços e tempos, o TAP encena peças que vão da belle époque parisiense a um Portugal e Espanha “armo-
Recife, p. 6, 23 out., 1965; SUASSUNA, Ariano. Nelson Rodrigues e a imprecisão vocabular. Diario de Pernambuco, Recife, p. 1, 11 dez., 1955. 4 PEIXOTO, Fernando. Treze à mesa e crise na volta. In: PEIXOTO, Fernando. Um teatro fora do eixo. São Paulo: Hucitec, p. 45-46, 1993.
TREMA!_esquecimento
riais” ou aos Estados Unidos em fins do século XIX. Isso sem falar
5 LEITE, Adeth. Visão correta do que foi produzido num quarto de século: TAP – Ano 25. Diario de Pernambuco, Recife, p. 3, 15 maio, 1966.
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de um Rio de Janeiro da década de 1920 e outro da década de
2) o discurso do saneamento da cena, combatendo pri-
1950, incursionando também por uma Bahia longínqua.
meiramente as “chanchadas” e, depois, os “profanadores”
Essa amostragem passadista tem algo de positivo: tanto apre-
e “criminosos” que desfiguram obras alheias na moderni-
senta a síntese das conquistas formais (e já em desuso) do TAP,
dade teatral;
quanto possibilita parâmetros de leituras comparativas. Também é provável que, ante a escassez de movimentação cultu-
3) o discurso da “nutrição intelectual” e “moral”, isto é, da
ral imposta pela ditadura militar reinante no país, tornava-se
“formação do público”, empenhado em dar ao espectador
importante esse levantamento do imaginário tapiano, para
um cardápio que lhe modifique o paladar, “estragado pela
que surgissem diversos contrapontos teatrais — o que de fato
televisão” e pelo “afrouxamento dos laços familiares”.
aconteceu. À margem desse retorno ao passado, o presente se alegoriza em montagens que trouxeram importante atualiza-
Mas a longevidade do grupo, independentemente do prestígio
ção estética. Agora, Valdemar de Oliveira concentra suas for-
institucional que sempre gozou, deve-se, acima de tudo, à qua-
ças para fazer o grupo sobreviver às intempéries de tempos de
lidade do teatro que realizou, como reconhece Décio de Almeida
instabilidade política, estética e social. E, como a dar provas do
Prado: “O Teatro de Amadores de Pernambuco, fundado na década
instinto de sobrevivência, monta, nesses anos, 21 peças e um
de 40 pelo médico, professor e crítico de arte Valdemar de Oliveira
show carnavalesco; inaugura, em 1971, sua casa de espetácu-
(...), representava o papel de um TBC menor, valendo-se fartamen-
los, o Nosso Teatro; funda o TAP-Júnior e, em excursão, vai até
te de um repertório estrangeiro, importando do Sul encenadores
Manaus. Talvez a mais importante montagem dessa fase tenha
europeus (lá estiveram Ziembinski e Bollini), buscando e achando
sido “Odorico, o bem amado”, de Dias Gomes (estreia nacional
com frequência o ponto exato de equilíbrio entre o profissionalis-
da peça), em 1969, dirigida por Alfredo de Oliveira, quando um
mo e sem abandonar o regime de temporadas esporádicas, o TAP
crítico acentuou que estava a rever o grupo em um de seus
assegurou, com admirável pertinácia até os dias de hoje, a conti-
melhores momentos.
nuidade da vida teatral pernambucana, mantendo sempre alto o
Com a morte de Valdemar, em 1977, seu filho, o ator Rei-
nível de interpretação e chegando até mesmo a construir — e a
naldo de Oliveira, assume a direção geral do conjunto. Três
reconstruir, após um incêndio — a sua própria sala de espetáculos,
anos depois, o Nosso Teatro sofre um incêndio, só reabrindo
em um exemplo único de junção entre desinteresse amador e as
em 1982, agora com o nome de Teatro Valdemar de Oliveira.
responsabilidades econômicas do profissionalismo” 7.
Entre 1977 e os dias de hoje, 2016, o grupo busca retomar suas
A memória se esgarça no repassar destas cenas do TAP no
antigas diretrizes. É a fase da “cena refletida”. Embora com lu-
folhear tão breve de sua história, e isso se torna uma questão
cros investidos na filantropia, o TAP não perde de vista o mer-
para a contemporaneidade por se tratar da perda da tradição,
cado, procurando encenar peças de “bom nível” e de “bom
da quebra que une passado e presente. Perder esta memória ou
gosto”. Voltam as tragédias lorquianas, o teatro regional, o rea-
forjar um esquecimento dela não é uma simples operação para
lismo norte-americano, o boulevard, o suspense, a comédia de
os que trabalham com a História. Como adverte o linguista ale-
costumes e a peça de tese. Geninha Sá da Rosa Borges monta
mão Harald Weinrich: “Ninguém pode permitir-se dizer leviana-
“Yerma”, de Lorca, em 1978, e “Jogos na Hora da Sesta” (Juegos
mente: é inesquecível! Isso eu jamais esquecerei! O homem está
a la hora de la siesta), de Roma Mahieu, em 1979. Na primeira,
naturalmente sujeito à lei do esquecimento, ele é fundamental-
uma repercussão que há muito não se via em relação aos es-
mente um animal obliviscens” 8.
petáculos do TAP; na segunda, pela temática e pela cena, um
O Teatro de Amadores de Pernambuco luta até hoje contra
“abalo sísmico” dentro do tradicionalismo do grupo. Entretan-
o esquecimento, talvez pela efemeridade mesma do fazer tea-
to, o maior destaque desse período é a encenação de “Se cho-
tral. Tenta resguardar por meio de uma nova geração, que vai to-
vesse vocês estragavam todos”, de Tânia Pacheco e Clóvis Levi,
mando as rédeas do grupo amador, intermediado agora por Yêda
direção de Adhelmar de Oliveira Sobrinho (que, hoje, assina
Bezerra de Mello, Pedro de Oliveira e Thiana Santos. Como no
como Pedro de Oliveira), em 1983.
poema “Mnemosyne”, do alemão Friedrich Hölderlin, esta nova
O sucesso do TAP ao longo de sua história se explica, sobre-
geração declara sua paixão pelo lembrar e pela memória mesma
tudo, pela habilidade de Valdemar de Oliveira ao dosar “qualida-
do grupo (tornaram-se guardiões de todo o acervo fotográfico
de artística” com o gosto do público que ele formou. Sua receita
do TAP), sem que sintam ser este um “fardo”, uma ilusão, nem
foi: “dois passos à frente, um passo atrás, para melhor consecu-
algo impalpável, pois, como dizia Nietzsche, “o homem pode ser
ção dos planos traçados” 6. O ideário estético-ideológico do TAP
feliz sem a lembrança, mas a vida é absolutamente impossível
se constrói sobre:
sem o esquecimento” 9.
1) o discurso da "qualidade artística", calcado em uma compreensão moderna do teatro e na encenação de peças de comprovado valor dramatúrgico;
7 PRADO, Decio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988. 8 WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
6 OLIVEIRA, Valdemar de. O Teatro de Amadores de Pernambuco: origem e evolução. Dionysos, n. 17, Rio de Janeiro, p. 23, jul. 1969.
p — 30
9 Apud SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória coletiva & teoria social. São Paulo: Annablume, 2003.
pergunta
TREMA!2/2
"Lembro bem quando, ainda na adolescência, uma experiência de ouvir canto gregoriano me fez sentir algo indescritível, mas também percebi que, de algum modo, há uma dimensão constitutiva do religioso que é também estético. Ali, compreendi (se é que se pode falar em compreensão) que a arte proporciona um sentido próprio de liberdade, que aponta para uma dimensão estética que transcende a própria arte".
filipe campelo
"os intocáveis" , trabalho de erik ravelo
fil ó sofo
TREMA!_esquecimento
p — 31
dossiê
XIX “Há um romance de Louise Erdrich, onde, a certa altura, um bisavô encontra seu bisneto. O bisavô está completamente lelé e sorri com o mesmo beatífico sorriso de seu bisneto recém- nascido. O bisavô é feliz porque perdeu a memória que tinha. O bisneto é feliz porque não tem, ainda, nenhuma memória. Eis aqui, penso, a felicidade perfeita. Não a quero”
Eduardo Galeano, in “O livro dos abraços”
p — 32
RONALDO SERRUYA ronaldoserruya@gmail.com
sede do grupo xix de teatro, vila maria zélia — foto: alê mandu
UM PAÍS QUE NÃO SE ALIMENTA DE SI
F
oi no final do ano de 2003 que adentramos, pela primeira
arquitetônica e todos os seus paradoxos de um microcosmo,
vez, os portões da Vila Maria Zélia, graças a uma reporta-
inserido dentro da maior cidade da América do Sul, não tive-
gem do jornal Folha de São Paulo, que nos revelou a sua
mos dúvidas: decidimos que ali seria o local onde queríamos
existência. Na época, estávamos começando a pesquisa que re-
fincar a nossa pesquisa. E assim foi o nosso primeiro projeto de
sultaria, mais tarde, na peça “Hygiene”. Tudo o que sabíamos, até
fomento contemplado pela Secretaria Municipal de Cultura de
então, era que a casa e os modos de habitá-la seriam o mote de
SP e que marcou o início de nossa residência artística na VMZ ,
nossos estudos iniciais. Ao nos depararmos com aquela riqueza
que, neste ano, completa 12 anos.
TREMA!_esquecimento
p — 33
sede do grupo xix de teatro, vila maria zélia — foto: alê mandu
Assim, é imprescindível dizer que a nossa ocupação na Vila e a
urbano da cidade de SP e, embora seja o único exemplar de vila
Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de SP andam na mais
operária existente por aqui, era (ou ainda é) pouco conhecida pela
profunda comunhão. Uma não existiria sem a outra.
população tanto paulistana como brasileira. O Brasil não conhece o Brasil. Ao longo desses 12 anos, esse talvez seja o caráter mais alarmante da nossa ocupação: revelar esse país desinteressado de si
O QUE É A VILA MARIA ZÉLIA?
mesmo, que não se conecta com a própria história. A vila é formada pelos chamados prédios públicos (históricos),
Tombada como patrimônio histórico, a Vila faz parte do traçado p — 34
que, em sua origem, eram compartilhados por todos os moradores
(operários) e que consistem em dois armazéns, o boticário, a igreja
continuam em estado de completo abandono, com exceção da
e as duas escolas (uma para meninos e outra para meninas: prédios
igreja, enquanto as casas, geridas pelo viés privado de seus mora-
-espelhos que ficam no centro da Vila). Fora isso, há um conjunto de
dores, continuam inteiras, preservadas pelo habitar, mas comple-
pouco mais de 180 casas, todas pertencentes aos descendentes dos
tamente descaracterizadas de suas fachadas históricas: a maioria
operários originais e dos moradores atuais, que acabaram atraídos
com alterações desconcertantes que culminaram em bangalôs de
por essa aparente tranquilidade que a vila parece exalar.
até três andares.
Há um importante fato a revelar: todos os prédios públicos
Ora, olhar para isso é apenas constatar o que é a cara do
e históricos (que eram de uso coletivo e bem comum) estavam e
Brasil: o triunfo do privado sobre o público, o descaso com tudo
TREMA!_esquecimento
p — 35
cena da peça ‘‘hygiene’’, com os atores ronaldo serruya e juliana sanches — foto: jonatas marques
aquilo que poderia ser um bem comum e compartilhado, um
grupo, dos Núcleos de Pesquisa - oficinas de longa duração
certo desdém por espaços de convivência.
que, desde 2006, levam mais de 100 pessoas anualmente a
O armazém-galpão, que ocupamos desde 2004, estava
vivenciar conosco nossa residência - e de outras atividades
fechado há 40 anos e, de lá, tiramos três caminhões repletos
que trouxeram outros coletivos da cidade e do Brasil para as
de entulho. Muito dos moradores adultos que nos ajudaram
dependências da V M Z.
nesse ato haviam nascido, crescido e nunca tinham entrado ali.
Nós seguimos a premissa que vinga no País de que ocupar
Passavam por ali em seus trajetos cotidianos há mais de 30, 40
é resistir. Ao longo desses 12 anos, esses espaços que original-
anos e nunca tinham pisado no chão de azulejos hidráulicos
mente pertencem ao INSS foram cedidos pela prefeitura atra-
ingleses ou visto os armários de madeira de lei da antiga boti-
vés de um convênio que durou alguns anos e que tinha o intuito
ca. Uma vida de esquecimento, portanto. De relegar ao escani-
de preservação e restauro. Nada foi feito. Os prédios voltaram
nho da memória a curiosidade pelo que havia por trás daquelas
ao INSS. Nada foi feito. Enquanto isso, cá estamos, lutando com
portas de madeiras.
nossas exíguas forças de um grupo de teatro de pesquisa para
Os esqueletos que tiramos dali não foram apenas dos ra-
que os espaços permaneçam de pé. Nesse ano de 2016, con-
tos, mas também de um país que não se alimenta de si e, assim,
seguimos, através de um sistema de financiamento coletivo,
morre raquítico de memórias.
reformar o telhado do armazém que ocupamos (o único que ainda está de pé), deteriorado por anos de chuvas intensas.
OCUPAR É RESISTIR “HYGIENE” E A DANÇA MACABRA DOS ESCOMBROS Nossa ocupação, ao longo desses 12 anos, foi legitimada por si mesma. Sendo subvencionada por vários editais de fomen-
A primeira peça criada em nossa residência na VMZ , “Hygiene”, é
to, um Programa Petrobrás Cultural, alguns outros de circu-
a que, de certa forma, mais revela o traçado da própria vila e seus
lação (todos públicos), nossa ocupação na V M Z sempre teve
prédios históricos abandonados. Ela é um convite para pensar a
o intuito claro de devolver a vila à cidade, fazer a cidade re-
cidade, para pensar como historicamente a maneira como habi-
conhecer ali um espaço cultural, um lugar de convívio, um
tamos foi um construto social, criada para estabelecer esse triunfo
polo de cultura, de criação e de produção de conhecimen-
do privado sobre o público. Para soterrar o sentido de coletividade
to. Realizamos essa missão através das criações artísticas do
que grassava nas habitações coletivas em fins do século XIX. Os
p — 36
público aplaude estreia de teorema 21, do grupo xix de teatro — foto: jonatas marques
cortiços, antes de serem uma ameaça à vigilância sanitária, eram
parceria com o Grupo ESPANCA! de Minas Gerais e o único tra-
um caldeirão que propiciava o surgimento de ideias e movimen-
balho que não apresentamos na Vila); “Estrada do sul”; “Nada
tos que o status quo não queria ver florescer.
aconteceu, tudo acontece, tudo está acontecendo”; e a nossa
Na peça, que é itinerante, o espectador passeia por essa
mais recente criação, “Teorema 21”, inspirada no romance ho-
arquitetura da V MZ e suas fachadas servem de anteparo para
mônimo de Pier Paolo Pasolini. “Hysteria”, primeiro trabalho
que os personagens contem o último dia da existência de um
do grupo, já existia quando chegamos à V M Z, mas é feito lá
cortiço antes de sua demolição. Ali, o abandono do poder pú-
também desde então.
blico, que relega esses prédios históricos ao status de ruína,
Esse inventário de criações sempre dialogou, de maneira
potencializa o discurso da peça. Em outras palavras, “Hygie-
indelével, com a Vila e sua arquitetura, friccionando ao máxi-
ne” propõe uma dança macabra dos escombros, que serve
mo as relações possíveis entre eles.
não só para expor uma ferida social, mas também para revelar
“Teorema 21”, o último dos trabalhos, acontece nos es-
a ferida do patrimônio público brasileiro e do descaso com a
combros da escola de meninas, onde uma floresta cresceu a
memória do que somos. Em certa altura do espetáculo, um
partir do concreto. A peça leva ao paroxismo a inércia diante
personagem diz: “não existe tapete capaz de ocultar a sujeira
dos nossos espaços em ruínas, tantos os internos (a psiquê de
da memória”.
uma família burguesa) como os externos (as relações de todos
A Vila Maria Zélia, que hoje trabalha na lógica de um con-
nós, espectadores e atores, diante de um espaço que soçobra).
domínio fechado, com uma cancela no portão de entrada, é
Nossa residência artística na V M Z continua mais difícil
ela mesma vítima da vitória desse discurso, de um país reacio-
do que nunca, pois não conseguimos renovar a subvenção
nário e individualista, que caminha a passos largos para uma
da Lei de Fomento no início do ano. Isso revela que é impos-
lógica utilitária de todos os processos de convivência humana.
sível essa ocupação sem subsídios. Nossa lógica não é a de mercado, nossa existência não segue esses parâmetros e isso nos obriga a mudar o modus operandi de permanência ali - o
TEOREMA 21 OU O ESQUECIMENTO DE TUDO AQUILO QUE É AFETO, NÃO UTILITARISMO.
que por si só é uma aberração da própria história que construímos. Em um momento em que a cultura é relegada a uma inutilidade típica de governos fascistas, é importante olhar
Além de “Hygiene”, criamos, em nossa residência artística na
para isso: para o esquecimento de tudo aquilo que é afeto,
VM Z, os espetáculos: “Arrufos”; “Marcha para Zenturo” (em
não utilitarismo.
TREMA!_esquecimento
#E S QUE CIME NTO L E IT URA V I SUAL José Rufino
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TREMA!_esquecimento
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p — 40
nos condena, é preciso apagar as suas marcas ignóbeis. O tom é de violência, mas a afirmação é justa para definir a obsessão que dominou a cena teatral brasileira após os anos de 1940”. Era essa relação entre o velho e o novo, o ultrapassado e o moderno que me chamava atenção. Lendo a dissertação de Ana Carolina Miranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), intitulada “O Grupo Gente Nossa e o movimento teatral no Recife (1931-1939)” 2, um panorama diferente se apresentou para mim e resolvi investigar mais aquele período tão desacreditado pela historiografia teatral brasileira. Lancei, então, a proposta da pesquisa “Um teatro quase esquecido – painel das décadas de 1930 e 1940 no Recife”, aprovada pelo Funcultura, projeto que durou dois anos para ser concluído. Além de divulgá-lo em DVD, distribuído por bibliotecas e centros de documentação e pesquisa das artes cênicas em várias partes do Brasil, o material também pode ser acessado no site www. teatrosantaisabel.com.br/conheca-o-teatro/publicacoes.php.
Mas
com qual realidade teatral me deparei ao estudar a malograda década de 1930 na capital pernambucana? É preciso, antes de tudo, ressaltar que a apreensão histórica até então propagada é textocêntrica, ou seja, parte da análise da dramaturgia apresentada naquele momento, quando as comédias de costume dominavam a cena teatral com o claro objetivo de fazer rir. Percebe-se certa negação ao cômico, como se as peças dos comediógrafos não trouxessem elementos para além da diversão, a exemplo da crítica aos costumes e as tentativas de ousadia temática que nos remetem à modernidade. No caso do Recife dos anos 1930, quando vários autores locais despontaram, esta análise dramatúrgica se complica, pois os intérpretes ainda não recebiam o texto completo da peça, ficando cada qual com suas falas e as deixas respectivas. Após a junção das partes, poucos textos sobraram à posteridade, sendo o Centro de Documentação Osman Lins, localizado no Centro de Formação e Pesquisa das Artes Cênicas Apolo-Hermilo, no Bairro do Recife, um lugar para encontrar relíquias.
PASMACEIRA? desenho do teatro santa isabel e praça da républica na década — gravura: luís krauss
Pela influência que recebíamos da então capital da República, o Rio de Janeiro, muitas das peças de maior sucesso por lá foram também
LEIDSON FERRAZ
montadas na capital pernambucana, com destaque para os autores
leidson.ferraz@gmail.com
de maior projeção, como Joracy Camargo, Paulo Magalhães, Miguel Santos e Armando Gonzaga. Entretanto, para além das escolhas dra-
A
matúrgicas daquele tempo – comédias ou dramas que ganharam a té pouco tempo, o teatro brasileiro dos anos 1930 significava para
classificação de “ingênuos”, reflexo do “descompasso” e do “pasmo-
mim atraso, inércia, acomodação. Lendo o que pesquisadores es-
so atraso” em que vivíamos –, outros aspectos há que se considerar,
creveram sobre aquele momento, tudo se resumia a desalento,
afinal o teatro está inserido no mundo social e, a meu ver, tanto suas
como bem lembrou Maria Helena Werneck no livro “História do Teatro
conquistas como suas derrotas precisam ser levadas em conta. Por-
Brasileiro” , referindo-se às constatações a que chegou o crítico-histori-
tanto, toda a minha pesquisa, hoje no Programa de Pós-Graduação
ador Décio de Almeida Prado: “É a época do atraso, do provincianismo,
em História da UFPE, abre outras interpretações para aquele teatro
da falta de ambições artísticas”. Naquela mesma obra, outra conclusão
considerado “velho”, “decadente” e “desalentador”, mas que soube
da pesquisadora Tania Brandão me despertou curiosidade: “O passado
disseminar sua resistência para além desta história.
1 WERNECK, Maria Helena. “O teatro profissional dos anos de 1920 aos anos de 1950 – A dramaturgia”. In: FARIA, João Roberto (Org.). História do Teatro Brasileiro, Volume 1: das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva: Edições SESCSP, 2012. p. 417.
2 MIRANDA, Ana Carolina. O Grupo Gente Nossa e o Movimento Teatral no Recife (1931-1939). Recife: dissertação do programa de pós-graduação em História pela Universidade Federal de Pernambuco, 2009. Disponível em: http://repositorio.ufpe.br/bitstream/handle/123456789/6987/arquivo3262_1. pdf?sequence=1&isAllowed=y.
1
TREMA!_esquecimento
p — 41
ARTIGO Até os anos 1920, o fazer teatral no Recife, fruto direto da coloniza-
REVIRAVOLTA
ção portuguesa, era herdeiro de uma prática hoje totalmente em desuso, mas que demorou a ser questionada e transformada. Tan-
Contra o abismo que sentíamos com o restante do mundo, o drama-
to que o uso de prosódia aportuguesada ainda imperava nas ra-
turgo e jornalista Samuel Campelo, em parceria com o ator Elpídio Câ-
ras peças melodramáticas ou cômicas apresentadas pelos poucos
mara, aceitou lançar um novo coletivo na cena teatral recifense, alguns
pernambucanos que se aventuravam a atuar. As primeiras equipes
meses depois da tentativa frustrada do Grupo Cine-Teatro, também
locais a oferecer teatro como diversão noturna às famílias com um
com ele à frente e que pouco sobreviveu no Teatro Moderno. Os dois
pouco mais de regularidade, nos chamados grêmios ou socieda-
artistas já haviam atuado em vários conjuntos, como o Grêmio Fami-
des dramáticas lançados desde fins do século XIX, tinham, na sua
liar Arraialense, a Sociedade Dramática do Feitosa ou o Núcleo Diver-
maioria, intenção beneficente. Eram formadas exclusivamente por
sional de Tejipió, quase todos de vida efêmera, e dividiam este sonho
sócios do sexo masculino e contavam com a presença de poucas
de possuir uma equipe continuada de teatro profissional, mesmo
atrizes de fora. Quando estavam presentes, elas eram geralmen-
diante da incredulidade da imprensa e do público. Para tanto, estraté-
te de origem portuguesa e haviam se estabelecido no Recife ou
gias diferentes foram usadas e o campo teatral, sem dúvidas, passou
sob o comando de samuel campelo, grupo gente nossa marcou época nos anos 1930 e 1940 — foto: acervo projeto memórias da cena pernambucana
porque alguma companhia itinerante havia se dissolvido ou pela simples desistência de seguirem adiante.
por profundas transformações. A estreia do Grupo Gente Nossa (o nome já sugere o tipo de
Ainda que algumas equipes tenham sobrevivido por décadas
proposta que lançavam) se deu na noite do dia 2 de agosto de 1931,
– são deste momento o Congresso Dramático Beneficente, o Clu-
no palco do Teatro de Santa Isabel, casa de espetáculos que, desde
be Dramático Familiar, a Phoenix Dramática e a Arcádia Dramática
a revolução de 1930, estava sob a administração de Samuel Campe-
Júlio de Santana – e até inaugurado teatros próprios, suas ações
lo, partícipe do movimento empreendido por Getúlio Vargas. A peça
resumiam-se a apresentar mensalmente um “espetáculo social”,
escolhida foi a comédia “A honra da tia”, de sua autoria, reunindo no
nem sempre com regularidade. Somente nos anos 1920, quando a
elenco Elpídio Câmara, Ferreira da Graça, Lourdes Monteiro, Diógenes
Companhia Trá-Lá-Lá chegou a apresentar espetáculos diários no
Fraga, Lélia Verbena, Luiz de França, Jovelina Soares e Irene Mariz. Mas
Cine-Teatro Helvética por quase dois meses e a Companhia Teatro
o tiro certeiro veio com a sessão programada em homenagem à Asso-
Mirim trabalhou no Teatro de Santa Isabel, ainda que com pou-
ciação dos Cronistas Desportivos e a jogadores pernambucanos que
ca regularidade, o panorama fugiu minimamente daquele “vazio”
viajariam para uma competição em São Paulo. Essa mistura de futebol
imposto aos recifenses. Afinal, o reconhecimento profissional do
e teatro foi pensada para atrair maior público, o que de fato aconteceu.
teatro estava restrito aos que chegavam de fora, especialmente
No entanto, a expectativa da plateia era a pior possível, fruto da infe-
companhias de Portugal, França, Itália e Rio de Janeiro. Foi a partir
rioridade que a fazia acreditar que apenas companhias estrangeiras ou
dos anos 1930 que tudo mudou.
oriundas da capital da República tinham qualidade.
p — 42
Os jornais da época atestaram o contrário. O Diario de Pernambuco
FREQUÊNCIA
do dia 5 de agosto de 1931, por exemplo, festejou: “Foi, enfim, uma bela festa e uma radiante promessa do Grupo Gente Nossa [...] Bas-
Para atrair a atenção do público, as estreias tinham que ser constantes.
ta-lhe agora o apoio do público e da imprensa”. Começou, assim,
Se, nos anos 1920, eram raras as chances de alguma produção recifense
a trajetória que mudou os rumos do teatro no Nordeste. Segundo
conseguir pauta no Teatro de Santa Isabel, centro de gravitação de toda
Joel Pontes, no livro “O teatro moderno em Pernambuco” , o Gru-
a atividade cultural, política e social em Pernambuco, somente entre
po Gente Nossa surgiu “para coibir o excesso de estrelismo, cumprir
os anos de 1932 e 1933 o Grupo Gente Nossa chegou a exibir-se 231
seus deveres com os artistas contratados e sócios mantenedores
vezes por lá. Em maio de 1932, por exemplo, a equipe apresentou 22
(estes contribuíam mensalmente, com direito a assistirem aos pri-
espetáculos em um mês, encenando nada menos que doze autores
meiros espetáculos) e ocupar o Teatro de Santa Isabel, sempre que
diferentes, isto sem contar apresentações por diversos palcos da ca-
companhias itinerantes não o demandassem”. Como muitas destas
pital pernambucana, além de visitas a outros municípios, inclusive de
vinham com frequência ao Recife, Samuel Campelo levou a peça de
estados próximos.
3
estreia às salas dos subúrbios, “para afinar o elenco”.
Os elogios na imprensa não paravam, principalmente pela
a princesa rosalinda (1939) teatro infantil do grupo gente nossa — foto: e baptista
Em outubro de 1931, a equipe voltou ao palco do Santa Isabel com
atenção que o grupo vinha recebendo dos dramaturgos locais – no-
a farsa “Engano da peste”, do próprio Campelo, e o sainete – peça
mes como Silvino Lopes, Lucilo Varejão, Hermógenes Viana, Filgueira
curta – “Mamãe quer casar”, tradução de Celestino Silva para obra
Filho, Irmãos Valença, Umberto Santiago e Miguel Jasseli – e do Rio
argentina. Novos e consagrados atores passaram a integrar a turma,
de Janeiro, com perspectivas ainda melhores para o seu repertório.
como Luiz Maranhão, Barreto Júnior e Lenita Lopes. Em dezembro
Entre algumas das peças de maior responsabilidade, destacam-se
daquele ano, o Grupo Gente Nossa já possuía uma renda mensal as-
“Deus lhe pague”, de Joracy Camargo; “O dote”, de Artur Azevedo;
segurada pelos sócios e era elogiado nacionalmente. Pouco depois,
“Mãe”, de José de Alencar; “O feitiço”, de Oduvaldo Viana; e a opereta
iniciou a série de espetáculos musicais com a presença do tenor
“Ninho azul”, de Valdemar de Oliveira. Naquele momento, o público
Vicente Cunha e da atriz soprano Maria Amorim, egressa da Com-
gostava de revistas, comédias e burletas, uma espécie de sátira com
panhia Portuguesa de Revistas e Operetas de José Clímaco. Outras
números musicais. Há quem critique o repertório do GGN por estas
presenças ilustres eram a dos compositores João e Raul Valença,
escolhas, mas foi a estratégia certeira para se legitimar.
além do maestro Nelson Ferreira, regendo muitas das orquestras.
“Ao contrário de alguns conjuntos que despontavam pelo Brasil e propunham um teatro de arte elevada, de elite para a elite, Samuel Campelo defendia um teatro como diversão e cultura. Tanto
3 PONTES, Joel. O Teatro Moderno em Pernambuco. Recife: FUNDARPE/ Companhia Editora de Pernambuco, 2. ed., 1990.p. 23
TREMA!_esquecimento
que o Gente Nossa era formado, em sua maioria, por artistas populares e a plateia era a mais diversificada. O importante era dissemip — 43
nar o amor pela arte teatral e ele acreditava que o riso também era
Câmara. No seu livro de memórias “Mundo submerso” 4, Valdemar de
um poderoso instrumento para educar o público”, afirma a pesqui-
Oliveira confessou: “O Grupo Gente Nossa já não era o mesmo. Faltava-
sadora Ana Carolina Miranda, que discorda daqueles que não veem
lhe alguma coisa, embora não faltasse dinheiro. Mas essa alguma coisa
com bons olhos a produção daquele período.
era tudo”. Referia-se a Samuel Campelo.
“O Gente Nossa surgiu na década de 1930, época pouco ex-
Deste lento desaparecimento, ainda no ano de 1941, surgiu o gru-
plorada e por vezes desvalorizada pela historiografia teatral. Muitos
po Teatro de Amadores, com Valdemar à frente de um novo núcleo de
pesquisadores negligenciaram a nossa realidade porque queriam
artistas, desta vez amadores que, nas suas primeiras peças, assinava
que o teatro brasileiro tivesse uma ‘cara europeia’, mas o país estava
como “departamento autônomo do Gente Nossa”. Somente a partir
em outro caminho. Buscava-se uma identidade nacional, de estí-
de 1944 tornou-se independente e trilhou outro caminho de suces-
mulo à dramaturgia, e é neste ponto em que se encontra sua grande
so, especialmente na década de 1940, quando fez parte do processo
riqueza”, defende.
de modernização do teatro brasileiro, com a figura do encenador vindo garantir a coesão interna e dinâmica da realização cênica, subvertendo antigas convenções e apostando numa renovação de valores.
CRISES
Ou seja, pela iniciativa de um grupo teatral formado por “gente da gente”, que não teve medo de ousar estratégias diferentes para le-
Manter a “estabilidade” do Gente Nossa era difícil. Além da falta de sub-
gitimar o fazer teatral local, o campo cultural recifense reorganizou-se
venção, já que muitas vezes o grupo foi abandonado tanto pelos sócios
totalmente e passou a usufruir de outras perspectivas em sua relação
financiadores como pelo público, o revezamento constante de elenco
com a sociedade, claro que com lutas ferrenhas a todo instante. Le-
era um dos maiores problemas. Muitos eram empregados no comér-
gitimado pelos próprios artistas, por outros coletivos, pelas plateias,
cio e não conseguiam dedicar-se exclusivamente ao teatro, impossi-
pela imprensa e pelo poder público, o teatro pernambucano ganhou
bilitando, inclusive, um aprimoramento na interpretação. Também não
contornos inimagináveis, atingindo espectadores de todas as classes
foram poucas as perseguições que Samuel Campelo sofreu. No entanto,
sociais e faixas etárias e ocupando novo lugar social a partir dos anos
em meio a momentos de quase desistência, a equipe fez parcerias com
1930. Mas esta reviravolta que aconteceu não pode continuar a ser tão
companhias em visita no estado, projetou obras para fora de Pernam-
pouco estudada e desvalorizada, como algo que precisava ser deixado
buco, ajudou a realizar um congresso de amadores teatrais, contratou
na poeira pesada do tempo, esquecido. É por isso que continuo nesta
ensaiadores e atrizes-cantoras de outras praças e deu estímulo à cria-
militância pela memória teatral pernambucana. Sigamos...
ção de várias seções especializadas em teatro nos jornais do Recife. Além do já citado corpo de sócios mantenedores, também abriu récitas com horários específicos para moças e crianças e chegou a publicar duas revistas e o jornal “Nosso Boletim” (até o 11° número), entre vários projetos pensados para atrair cada vez mais público. Sem dúvidas, também influenciou coletivos como o Grêmio Familiar Madalenense, Grêmio Lítero-Teatral D. Pedro II, Grêmio Dramático do Barro, Tuna Portuguesa, Troupe da Boa Vontade, Grêmio Cênico Espinheirense, Grêmio de Comédias Cruzeiro, Grêmio Familiar Afogadense, Grêmio Artístico da Paz, Companhia Brasileira de Comédias e Conjunto Nosso. Isto sem contar os grupos no interior de Pernambuco e de outros estados. Para tantas realizações, a parceria de Samuel Campelo com Valdemar de Oliveira, iniciada ainda em 1931, foi fundamental. Mesmo após a morte de Samuel, em janeiro de 1939, Valdemar seguiu com o projeto, iniciando intensa maratona de espetáculos quase diários nos palcos do Santa Isabel, dos cineteatros dos subúrbios do Recife e de Olinda, do interior de Pernambuco e de estados próximos, graças a financiamentos estaduais e municipais - sonho acalentado por Campelo durante anos. Assim, foi possível concretizar produções importantes, como o melodrama sacro “Jesus”, obra do maestro Felipe Caparrós, e a peça de cunho social “Mocambo”, de autoria dele próprio e Filgueira Filho, levada a operários através de convênio com o Governo Pernambucano. Foi fundado ainda o teatro infantil do Grupo Gente Nossa, que apresentou, entre 1939 e 1942, três grandes operetas infantis, “A princesa Rosalinda”, “Terra adorada” e “Em marcha, Brasil!”, abrindo no Recife o mercado teatral voltado à infância, com dramaturgia dele e atuação de crianças. As últimas aparições do Grupo Gente Nossa – cuja morte nunca foi anunciada – aconteceram em 1942, na época liderado por Elpídio
samuel campelo (1938) — foto: acervo projeto memórias da cena pernambucana
4 OLIVEIRA, Valdemar de. Mundo Submerso (Memórias). Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 3. ed., 1985. p. 137.
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capa do livro "um teatro quase esquecido", do historiador e jornalista leidson ferraz
TREMA!_esquecimento
p — 45
EXPEDIENTE
TREMA! revista de teatro de grupo EDIÇÃO DO esquecimento ANO 2
#8
NOVEMBRO 2016
Uma edição bimestral da Trema! Plataforma de Teatro
COORDENAÇÃO TREMA! Plataforma de Teatro Mariana Rusu e Pedro Vilela
CONSELHO EDITORIAL Mariana Rusu, Olívia Mindêlo, Pedro Vilela e Thiago Liberdade
EDIÇÃO Bárbara Buril
CAPA E PROJETO GRÁFICO Thiago Liberdade
PROPONENTE DO PROJETO Mariana Rusu
COLABORADORES DA EDIÇÃO* Antonio Edson Cadengue, Bárbara Buril, Filipe Campelo, José Fernando Peixoto de Azevedo, José Rufino, Juliana Brayner, Leidson Ferraz, Pedro Vilela e Ronaldo Serruya *As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
PLATAFORMA TREMA! tremarevista@gmail.com tremaplataforma@gmail.com facebook.com/tremaplataforma www.tremaplataforma.com.br +55 (81) 9 9203 0369 | (81) 9 9223 5988
Tiragem: 500 exemplares (por edição) Impresso pela Brascolor ISSN: 2446-886X
Edição do ESQUECIMENTO | Nº #8 | Ano #2 | Recife, Novembro de 2016
Realização:
Incentivo:
A TREMA! Revista de Teatro de Grupo é uma publicação com incentivo do FUNCULTURA – Fundo de Incentivo a Cultura de Pernambuco.
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ISSN: 2446-886X
1. Fazer com que (alguma coisa) saia da lembrança (própria ou alheia); 2. Pôr em esquecimento; desprezar; omitir; 3. Sair da memória; 4. Não se lembrar; 5. Deixar (alguma coisa por esquecimento ou descuido em alguma parte); 6. Perder a sensibilidade; 7. Não se lembrar; 8. Perder a lembrança; 9. Ter (algum sentido) enlevado; 10. Obrar de modo pouco em harmonia (com a sua pessoa ou dignidade).