TREMA! Revista - Edição da Especulação [03]

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EDIÇÃO DA especulação ANO 1 #3 NOVEMBRO 2015

TREMA! revista de teatro de grupo


pergunta

TREMA!1/5

terra se vende? “Em 2015, é difícil pensarmos na terra em outros termos. Se não é de alguém particular, acaba sendo do Estado, do governo. É assim que acontece na Turquia. Infelizmente, é isso. Mas, mesmo sendo assim, os territórios deveriam ser abertos a todos. Gostaria que não existissem fronteiras, que todo mundo pudesse ir e vir para qualquer lugar, para morar, ocupar... Todos nós somos humanos, cara! A Terra é a nossa casa e temos direito a ela!”

CAN METE E S T U D A N T E D E E C O N O M I A E M I S TA M B U L

foto do gráfico da obra "the prophets peygamberier", de richard ibghy e marilou lemmens (istanbul bienali 2015)


EDITORIAL

repressão policial na praça taksim, em istambul – foto: jenny ortiz

E

m meados de 2013, uma parcela sig-

ideia seria construir o projeto Novo Recife,

algumas janelas fechadas (com reboco)

nificativa da população turca foi às

um conjunto de espigões bem ao estilo de

nas fachadas de prédios históricos. Um

ruas para impedir que um parque de

modernidade dos Emirados Árabes, diga-

fato controverso, em se tratando da arqui-

Istambul fosse devastado e, em seu lugar,

mos assim. Eis o plano de uma micro — e

tetura europeia, mais ainda quando sabe-

construído um complexo com direito a

abastada — parcela da cidade junto ao

mos que esta intervenção, aparentemente

lojas, uma mesquita e uma réplica de um

poder municipal.

sem sentido, é resultado de uma estratégia

antigo quartel otomano. Eis o projeto so-

dos moradores dessas construções para

nhado, na época, pelo governo da Turquia.

Disputa por espaço, por território. Disputa

economizar dinheiro, na época da Revolu-

Quase um ano depois e bem distante dali,

por pontos de vista, de vida...

ção Francesa. Conta–se que, no século 18,

centenas de pessoas iniciavam, no Recife,

o governo francês passou a cobrar um im-

Brasil, uma luta histórica para preservar a

Vejam que história curiosa, para dizer

posto à população a partir da quantidade

área do Cais José Estelita, terreno da União

o mínimo. Em Lyon e outras cidades da

e do tamanho de portas e janelas de suas

leiloado a um grupo de empreiteiras cuja

França, persistem até hoje, na paisagem,

casas. Para não ceder aos cofres públicos,

TREMA!_especulação

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reintegração de posse do cais josé estelita com intervenção policial – foto: eric gomes

os habitantes fechavam essas aberturas. Conta–se, aliás, que esse

militariza cada vez mais e se mostra, dia após dia, mais próximo

tipo de imposto foi uma versão moderna de uma taxa cobrada na

do islamismo.

Roma antiga, referente a essa mesma questão. Como os romanos, através de Júlio César, tomaram conta da Gália (51–52 a.C.), uma re-

Política...

gião que compreendia parte significativa do Sul da França e cujas marcas podem ser vistas até hoje, não é de se espantar que isso

No Recife, a questão Estelita não é tão diferente da questão Gezi,

tenha tido ecos no local.

embora ainda não tenha tido igual desfecho. Ainda. O projeto Novo Recife encontra–se aparentemente parado, inclusive sob investi-

Disputa por espaço, território... Disputa por pontos de vista, de vida...

gação de fraudes no leilão que tornou possível a compra do terreno federal pelas construtoras. A prefeitura da cidade, o governo

Em Lyon, por exemplo, algumas dessas janelas permanecem até

do Estado e até o governo federal foram (e continuam sendo, de

hoje, empatando a vista dos moradores, mas contando a história a

certa forma) aliados desse processo, tendo facilitado a entrega ao

olhos vivos. Não se sabe ao certo por que ainda permanecem aí, uma

poder privado de uma área que poderia servir ao bem comum, com

vez que o imposto deixou de existir, contudo é sabido o quanto os

a criação de parques, praças, vilas de moradia popular, hortas co-

europeus gostam de preservar memórias. Aproveitando o espaço

munitárias, espaços culturais etc.

“criado” pelo concreto, por sinal, artistas do coletivo Cité de la Création de Lyon transformaram as janelas tapadas em arte. Desde 1987,

Moradia, teto.

eles vêm dialogando com esses elementos, por meio de intervenções com afrescos nessas janelas e fachadas. O Mur des Canuts, por

No Coque, bairro próximo ao Cais José Estelita, moradores vivem

exemplo, se tornou um dos pontos de atração da cidade lionesa.

para não serem expulsos do próprio lar. E seguem travando uma batalha histórica com o Estado, a gestão municipal e o poder priva-

Olhares...

do para se manter no território, ameaçado pela especulação imobiliária e pelo desrespeito aos seus habitantes, cujo direito sobre

Em Istambul, avista–se, ainda, o Parque Gezi, motivo do emba-

o espaço foi conquistado há décadas. O educador e morador do

te entre a sociedade civil e o governo turco, em 2013. O fim da

bairro, Cleiton Barros, nos dá seu testemunho, nos dá sua palavra

história foi feliz. Pelo menos para os manifestantes e apoiadores

de quem vive de dentro essa realidade. Assinando o texto que abre

do movimento em prol do Centro de Istambul e da paisagem da

esta edição, ele nos conta como o Coque resiste e existe para além

Praça Taksim, onde o espaço verde permanece intacto após uma

das folhas de jornal e edições policiais televisivas.

intervenção da justiça turca no mesmo ano. Uma esperança para aqueles que lutaram, e até morreram, pela não privatização de

Especulação...

um território público e para os mesmos que lutam até hoje contra os arbítrios de um governo aliado aos Estados Unidos que se p­ — 4

Eis uma palavra tão reticente quanto seus significantes, tão ampla


janelas de lyon vedadas como estratégia de não pagar impostos no séc. 18– foto: thiago liberdade

quanto seus significados. De terra? Sim. De terreno? Sim. Imobi-

prédios e ganhar grandes volumes de dinheiro. Tratar do tema da

liária? Sim. Econômica? Sim. Política? Sobretudo. Simbólica? Nem

especulação não é, pois, apenas olhar para o território. Mas, sobre-

se fala. Quando pesquisamos termos irmãos do verbete no “Di-

tudo, para o seu uso e o pensamento em torno do espaço em que

cionário Houaiss de Sinônimos e Antônimos”, encontramos es-

vivemos. Será que o meu desejo traz benefício para o outro? Ou só

peculação também como “ágio”, “agiotagem”, “rebate”, “usura”;

pra mim e os meus pares?

“estudo”, “análise”, “averiguação”, “exame”, “investigação”, “observação”, “pesquisa”; “raciocínio”, “abstração”, “argumentação”,

No artigo sobre a Vila Itororó, escrito pela jornalista Mariana Pires,

“conje(c)tura”, “consideração”, “(e)lucubração”, “meditação”, “re-

recifense radicada em São Paulo, descobrimos que a questão está

flexão”, “teorização”.

longe de ser óbvia. E se a iniciativa cultural, por exemplo, for também uma ameaça a uma população tanto quanto a

Este leque de sentidos nos soprou ideias para ele-

construção de um viaduto ou um metrô? E se os mo-

ger o tema desta terceira edição da TREMA! revista,

radores forem expulsos para longe só para termos

que procura abordar o assunto com a ajuda de di-

direito a ver uma peça de teatro na poltrona confor-

ferentes colaboradores. São nossos especuladores

tável? O caso do espaço que se encontra atualmente

do pensamento, que lançam suas especulações

em discussão no bairro da Bela Vista, com o projeto

nas páginas a seguir, colocando em cena reflexões

Vila Itororó — Canteiro Aberto, no Centro da capital

sobre o assunto em seus diferentes prismas. Não

paulista, é uma peça–chave neste quebra–cabeça

estamos aqui falando somente em disputas por

de discussões proposto por nós da TREMA!, nesta

território, mas também na abertura de ideias, hori-

terceira edição.

zontes, janelas... Para a cultura, para a moradia, para a vida na cidade, para o cotidiano dos que sobrevivem sob o pavor do “destino” ou dos que vivem da arte, sobretudo do teatro.

A luta da classe artística por espaço — de ação, visibilidade e existência – também é mostrada ao longo das próximas páginas, através de vozes de grupos cênicos como O Poste Soluções Luminosas, do Recife, e o Piollin Grupo

Especulação não é só papo de urbanista, ambientalista, sociólogo

de Teatro, da Paraíba. Abordamos ainda o esforço incansável e

ou economista. É também de educador, artista, diretor de teatro,

cansativo desses coletivos por pauta em teatros locais ou pela

jornalista, escritor, morador, cidadão. Estamos todos no mesmo

existência de uma sede. No entanto, essa demanda soa no míni-

palco, não podemos fugir de um tema que afeta todos nós — e

mo incoerente se eles mesmos não levarem em consideração os

também a produção artística, para impedi–la ou inspirá–la. Quan-

desafios do seu entorno. Precisamos pensar amplo, grande, tanto

do falamos em especulação, trazemos embutida uma reivindica-

quanto o termo especulação nos permite. Especulemos, pois!

ção por existência, por reconhecimento. Não só daqueles alijados dos direitos básicos, mas ainda dos que desejam construir grandes TREMA!_especulação

RECIFE, NOVEMBRO DE 2015 p­ — 5


colaboradores desta edição

CLEITON BARROS Nasceu e vive no Coque. Ainda não foi expulso. É coordenador de Articulação e Desenvolvimento Comunitário

GRUPO ESPANCA!

do Neimfa (Núcleo Educacional

Um dos mais aclamados grupos de teatro do Brasil, com 11 anos de trajetória. Nascido

Irmãos Menores de Francisco de

e criado em Belo Horizonte (MG), mantém há quatro anos “um espaço cultural no

Assis), organização social presente

hipercentro” da cidade, como dizem. Estima–se que os projetos da companhia já

na comunidade há quase 30 anos. É

alcançaram mais de 116.000 pessoas em 58 cidades de 14 estados brasileiros.

ALEXANDRE DAL FARRA

também membro da Rede Coque Vive,

Dramaturgo e diretor musical

pedagogo, mestre em educação e

do grupo Tablado de Arruar, da

doutorando em educação pela UFPE.

Cooperativa Paulista de Teatro. Graduado em regência e composição, pela Associação Santa Marcelina – Faculdades Santa Marcelina, e mestre em letras (língua e literatura alemã), pela Universidade de São Paulo, com a dissertação “A Lehrstück pós– moderna de René Pollesch”. Nascido em São Paulo, em 25/11/1981, Dal Farra

MATEUS ARAÚJO

RUY FILHO

ganhou o Prêmio Shell de melhor

Jornalista, repórter e crítico de teatro

Um tanto encenador e dramaturgo,

autor por “Mateus, 10”, em 2012, além

do Jornal do Commercio. É também

outro de jornalista, outra parte de crítico

do Prêmio CPT de melhor espetáculo

MARIANA PIRES SANTOS

titular do blog Terceiro Ato

de teatro, dança, performance, estudioso

em espaços alternativos, no mesmo

Jornalista formada pela UFPE

http://jc.ne10.uol.com.br/blogs/

e intrometido sobre política cultural,

ano. Foi também agraciado, em 2012,

e bacharela em Letras pela USP.

terceiroato/ e colabora com críticas

viciado em filosofia e pensadores

com o Proac para a publicação de seu o

É editora do Blog ObservaSP:

para os sites nacionais Teatro Jornal

contemporâneos, desconfiado 360 ,

primeiro livro, a novela “Tudo o que eu

www.observasp.wordpress.com.

e Agora Crítica Teatral.

além de editor da Revista Antro Positivo.

tenho a dizer talvez seja isso”.

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IMPRIMIR O QUE VOCÊ TEM DE MELHOR, É O NOSSO COMPROMISSO. Av. Norte Miguel Arraes de Alencar, 3311 Rosarinho | Recife | PE | 52041-080 Fone: (81) 3366.9000 |www.brascolor.com



COQUE: p­ — 8

Especulação do negativo, resistência sem fim


CLEITON BARROS mahacleiton@gmail.com

D

ona Chica não estava em casa quando o funcionário da Secretaria Executiva de Desapropriações veio tirar

as medidas dos cômodos para estipular o valor da indenização. Dessa vez, o alargamento de uma pista justificava aquela “expulsão inevitável” de uma centena de famílias. Essa não era a primeira vez que os moradores do Coque recebiam cartas de despejo: pelo menos desde o início da década de 1950 até hoje, o território da comunidade já foi reduzido em mais de 50%. Em matéria de 3 de maio de 1950, o jornal recifense “Folha do Povo” chama a atenção: “Ameaças de expulsão na Ilha Joana Bezerra”. O enredo não é novo: a aristocracia da cidade alega ter adquirido o terreno e pretende instalar suas empresas e construir casas para vender ou alugar. Desde então, as histórias de expulsão na comunidade se repete: das cheias do Capibaribe, na década de 1970, que tiveram como resposta do poder público a criação de um desvio no rio, até a implantação do Metrô do Recife, a construção do Fórum Rodolfo Aureliano e até mesmo a pavimentação do canal Ibiporã, que melhoraria as condições de esgoto e saneamento da comunidade, todas essas obras sempre trouxeram na sua esteira o assombro da expulsão dos moradores. Um raciocínio perverso parece ficar cada vez mais evidente: para que o Coque seja um lugar melhor, as pessoas que moram ali precisam desaparecer. Que o Coque não exista, eis a solução para a comunidade. Mas a história do Coque se confunde com essa insistência para permanecer no chão que criamos com as nossas próprias mãos. Entretanto, quando figura nos jornais, no rádio e na televisão locais, o Coque tem um lugar marcado nos assuntos

ação realizada pelo coque (re)existe! no bairro recifense – foto: chico ludermir

TREMA!_especulação

p­ — 9


dona chica resiste – foto: chico ludermir

tavam inclusos nesse jogo que, utilizando o discurso da utilidade pública e do desenvolvimento, sempre se mostrou minosos potenciais que pesa sobre nós.

incapaz de incluir os próprios morado-

Por um lado, a desqualificação da

res do Coque. Para estes, ou o abandono

“comunidade violenta”; por outro, a ex-

à própria sorte numa comunidade com

pulsão dos moradores em função do in-

problemas básicos de saneamento, saú-

teresse imobiliário no território: não é de

de, educação, cultura e lazer; ou a expul-

surpreender que essas duas figurações

são do território que construíram e com

do Coque no imaginário da nossa cidade

o qual têm uma ligação afetiva profunda.

da violência, do crime e das diversas ma-

venham operando de maneira correlata.

É bastante curioso observar que o

zelas sociais atribuídas aos moradores.

Levantamentos da Rede Coque Vive, pro-

Coque foi tomando forma e dimensão

“Morada da morte!”, apresenta um jornal

jeto de pesquisa e formação que envolve

num momento em que o Recife também

de grande circulação; “Favela quente!”,

a Universidade Federal de Pernambuco

passava por um processo de expansão ur-

emenda um apresentador de programa

(UFPE) e coletivos locais, evidenciaram

bana e demográfica, sem um projeto de

policial; “Tu vai fazer o que lá?”, se espanta

que o intenso processo de negativização

cidade claramente delimitado, o que re-

o cidadão recifense diante de algum des-

da comunidade nos jornais impressos de

sultou na periferização de diversas áreas

cuidado que segue para a comunidade.

grande circulação e a expulsão dos mora-

na região central da cidade, entre elas o

Assim, a imagem do Coque ainda é toma-

dores desse território obedeceram a um

próprio Coque. A comunidade se viu, en-

da como conhecida na nossa cidade pela

curioso jogo de (in)visibilidade e (des)in-

tão, rodeada pelo que viria a ser uma das

cifra do medo que se tem (e que se deve

teresse pela “localização privilegiada” do

áreas mais importantes da capital: próxi-

ter) de frequentar o local. E a vida dos mo-

Coque na geografia da cidade.

ma à Ilha do Leite, onde está localizado um

radores fica exposta à sua própria sorte,

Talvez pouca gente saiba, mas na

relevante polo médico; a cinco minutos do

ao seu próprio desaparecimento: desde

região em que hoje está construído o

Centro do Recife; a dez minutos do bairro

as negativas de emprego quando o ende-

Fórum Rodolfo Aureliano e a AACD, per-

de Boa Viagem, um dos mais ricos da cida-

reço do candidato revela sua pertença à

to da estação Joana Bezerra, seria cons-

de; ao lado do bairro de Afogados, um dos

comunidade até os projetos sociais que,

truído um shopping na década de 1980.

mais significativos centros comerciais da

ao prometerem reduzir a violência, par-

A própria construção do metrô e a pos-

capital; a alguns minutos do bairro do Der-

tem de um reforço ao estereótipo de cri-

terior ideia de um “complexo viário” es-

by, importante ponto de articulação do

p­ — 10


foto: chico ludermir

sistema de transporte da cidade; praticamente colado com o Cais José Estelita, que figura, hoje, o centro do debate político do Recife em torno da ocupação do território urbano pelas grandes empreiteiras.

importantes qualificações urbano–polí-

Os próprios moradores do Coque en-

ticas são uma conquista dos movimen-

fatizam em qualquer conversa sobre a vida

tos sociais ainda nas décadas de 1980 e

na comunidade: o Coque é “perto de tudo”.

1990. Em conjunto, esses zoneamentos

Assim, a “favela quente”, a “morada da mor-

significariam, entre outras coisas, a pre-

te”, o lugar de gente perigosa é também

servação do ambiente e da paisagem; o

um espaço estratégico do debate sobre

uso predominante para fins de moradia,

planejamento urbano na cidade do Recife.

sobretudo de famílias de baixa renda; a

de moradores do Coque, consumiram,

Na verdade, é uma grande pedra no sapa-

melhoria das condições de vida dos mo-

juntas, R$ 60 milhões e não ofereceram

to desse planejamento míope e elitista.

radores; e a proteção contra a crescente

nenhuma alternativa digna aos morado-

Desqualificar a vida dos moradores do Co-

especulação imobiliária frente às comu-

res removidos durante as obras.

que até identificá–la integralmente com o

nidades pobres (como Brasília Teimo-

O “desenvolvimento” e a “utilidade

medo, a violência e a indignidade é uma es-

sa e o próprio Coque) e às áreas verdes

pública” invocados para justificar esse tipo

tratégia para minar os sentidos do perten-

remanescentes nas proximidades do

de expulsão obedecem a uma racionalida-

cimento à comunidade e facilitar o proces-

Centro do Recife (como a Ilha do Zeca).

de perversa. Em reunião com uma comis-

so de expulsão e de entrega do território às

Significariam! Porque na prática não há

são de moradores que, como Dona Chica,

forças do capital imobiliário que sustentam

interesse político para fazer valer essas

seriam afetados por mais uma desapro-

o doentio jogo político da cidade.

garantias mínimas. Vou ilustrar com um

priação, o ex–secretário da Casa Civil Ta-

Parece que nem o fato de ser uma

único exemplo: R$ 19 milhões foram gas-

deu Alencar expressou essa racionalidade

Zeis (Zona Especial de Interesse Social)

tos nos últimos dez anos para “promover

nos seguintes termos: “Nós do governo te-

e de ser também uma Zepa (Zona Es-

melhoras” em todas as Zeis do Recife (via

mos clareza que para realizar o que é me-

pecial de Proteção Ambiental) garante

fundo Prezeis); apenas o alargamento do

lhor para um espectro maior de pessoas,

que Dona Chica e os demais moradores

Viaduto Capitão Temudo e a ampliação

às vezes é preciso passar por cima da vida

do Coque terão alguns dos seus direi-

do Terminal Integrado de Joana Bezerra,

de alguns”. O que o governo (municipal,

tos mais básicos respeitados. Essas duas

duas obras que promoveram a expulsão

estadual ou federal) assumem com esse

TREMA!_especulação

p­ — 11


foto: chico ludermir

discurso é o que o filósofo francês Michel Foucault chamou de biopolítica 1 , ou seja, a decisão soberana sobre as vidas que merecem viver e ser beneficiadas pelas obras realizadas, e aquelas que podem ser descartadas ou, mais ainda, serão sacrificadas para que essas mesmas obras se realizem e beneficiem os primeiros. Assim, enquanto o número espectral de “muitas pessoas” que serão beneficiadas pelo alargamento de uma via é posto em evidência, faz–se pouco caso sobre a vida concreta daqueles que serão expulsos das suas casas. Além disso, por que as vidas descartadas, sacrificadas, esmagadas pelas ações são sempre as dos moradores do Coque, dos Coelhos, de Santo Amaro, de Brasília Teimosa e de tantas outras comunidades de periferia da nossa cidade? Descartar a vida do pobre utilizando o discurso esvaziado da “utilidade pública” é uma decisão política que precisa ser questionada e problematizada. O que dona Chica se pergunta é “que utilidade pública tem uma obra da qual eu, que sou moradora do Coque, não vou poder me beneficiar?”. Ou seja, como se pode resistir a esse modo de exercer poder que assume como tarefa passar por cima da vida de alguns em benefício de outros? A vida exposta de dona Chica, seu Antônio, dona Creuza e de tantos outros moradores do Coque e de outras favelas Brasil afora é dotada de uma potência surpreendente. Sua fragilidade diante de uma maquinaria gigantesca, que vai muito além do alargamento de uma via, da construção de estádios ou de um shopping center, expõe a arbitrariedade e os interesses escusos que circulam no jogo político da nossa cidade, do nosso estado e do nosso país. O que a expulsão iminente de dona Chica expõe é que o jogo político no Recife se joga nu, com as vergonhas de fora, sem nenhum pudor, sem nenhum cuidado genuíno com a vida daqueles que foram historicamente mantidos nas margens. Enrubescida, essa racionalidade perversa recua e a casa de dona Chica pode permanecer de pé, pois seu valor não pode ser medido por uma indenização, mas pelo enraizamento no chão de uma comunidade que nasceu e ainda resiste no coração enlameado do Recife. T

O COQUE (R)EXISTE! 1 FOUCAULT, Michel. “Nascimento da Biopolítica”. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

p­ — 12


pergunta

TREMA!2/5 “Numa abstração das mais estranhas, como a do próprio dinheiro, dela se toma posse. Mas na verdade é ela que nos possui. Do pó viemos e ao pó voltaremos. Viva o pó e abaixo as pós/sessões indevidas. Que as legiões saiam dos corpos ou das terras que não lhes pertencem...”

MARCONDES LIMA A R T I S TA E P R O F E S S O R D E T E AT R O N O R E C I F E

arte de thiago liberdade inspirada no trabalho de murat germen (istanbul bienali 2015)

TREMA!_especulação

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A VILA

MARIANA PIRES SANTOS

E

m abril deste ano, teve início o processo de restauro da Vila Itororó, um conjunto habitacional dos anos 1920, localizado no Centro

de São Paulo, no bairro da Bela Vista. Sem muita coerência estética, sua arquitetura é chamada por muitos de surrealista, especialmente em função de alguns elementos bem peculiares presentes no palacete que ocupa o centro da vila e que lhe confere forte apelo cênico. Mas essa arquitetura é bem mais do que isso, é o resultado das múltiplas camadas de tempo, usos e afetos que marcam sua história nesses quase cem anos. São 11 edificações, além de escadarias, passarelas e um amplo espaço público comum, lugar de jogos, brincadeiras, festas e atividades culturais. Em 2006, diante dos planos dos governos estadual, comandado por Geraldo Alckmin, e municipal, sob a gestão de José Serra e Gilberto Kassab, de implementar na Vila Itororó um centro cultural, teve início um longo processo de luta dos moradores para permanecer no local. Naquele mesmo ano, a vila foi desapropriada pelo Estado, que concedeu à Secretaria Municipal de Cultura o direito de uso do lugar por 99 anos. Em 2013, os últimos moradores foram removidos. Alguns moravam lá há mais de 30 anos. A resistência desses moradores 1 é, sem dúvida, a marca maior da história recente da vila. E o processo de restauro que está sendo levado a cabo pelo Instituto Pedra, por meio do projeto Vila Itororó – Canteiro Aberto 2 , financiado via Lei Rouanet, recoloca a discussão sobre o uso habitacional, abrindo a possibilidade de que essa história não seja apagada sob o verniz de um centro cultural. Para isso, o galpão que dá acesso à vila pela Rua Pedroso tem abrigado esse e outros debates relacionados ao futuro da vila e ao próprio processo de restauro,

antiga vila de moradores no centro de são paulo – foto: thiago kaneshiro

e o desafio de unir cultura e moradia

ITORORÓ

marianapires@gmail.com

funcionando como centro cultural temporário, inclusive com ocupação espontânea de diversos atores. Essa é uma grande inovação, pois em vez de isolar a área por anos e devolver à cidade o produto acabado, busca–se valorizar o processo, abrindo espaço para reflexões e experimentações simultâneas ao trabalho de restauro. Além disso, são realizadas visitas guiadas ao canteiro de obras propriamente dito. Na verdade, foi nos anos 1970 que se começou a pensar em transformar a vila num centro cultural. O

1 No blog da AmaVila – Associação dos Moradores e Amigos da Vila Itororó, é possível resgatar parte da memória da luta dos moradores. http://vilaitororo.blogspot.com.br/ 2 Confira o site do projeto: http://www.vilaitororo.org.br/

p­ — 15


um canteiro aberto... – foto: alfred myers

primeiro projeto nesse sentido foi apresentado em 1976, pelos arqui-

P E R S P E C T I VA S

tetos Benedito Lima de Toledo, Cláudio e Décio Tozzi. Naquele momento, o conjunto que havia sido construído como casas de aluguel

A gestão do prefeito Fernando Haddad tem sido marcada, de al-

para a classe média já estava ocupado por famílias de baixa renda.

gum modo, pela tentativa de reverter certas lógicas excludentes de

Nessa época, iniciavam–se também as discussões sobre o tomba-

produção da cidade. Isso se desenhou na revisão do Plano Diretor

mento da vila, solicitado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil.

e é notório, especialmente na política de mobilidade urbana, com

No conselho do Condephaat, órgão estadual de preservação

a implementação de faixas exclusivas para ônibus, redução de ve-

do patrimônio histórico, o parecer decisivo contrário ao tomba-

locidade nas vias e construção de infraestrutura cicloviária. Existe

mento veio do professor de história da USP Ulpiano Bezerra de Me-

ainda um esforço de valorizar espaços públicos, como é o caso da

neses, para quem tombar a Vila Itororó só faria sentido no âmbito de

abertura da Avenida Paulista aos domingos para o lazer das pessoas,

um projeto de renovação urbana que evitasse a remoção dos mora-

com fechamento total para automóveis.

dores. Anos mais tarde, diante do estágio avançado de degradação

Vale lembrar ainda que quem está à frente hoje da Secretaria

da vila, o processo de tombamento foi retomado e concluído tanto

Municipal de Cultura – responsável pelo projeto da Vila Itororó – é

em âmbito municipal (2002), quanto em estadual (2005).

o urbanista Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura

O parecer do professor Ulpiano, de 1985, colocava em

e Urbanismo da USP, com trajetória política marcada pela defesa

cheque uma noção de cultura e de preservação do patrimônio

do direito à moradia. É possível, então, pensar que politicamente

histórico como algo elevado e intocado. Afinal de contas, por que

esse é o cenário ideal para levar adiante a ideia de que a vila não

preservação histórica, cultura e habitação não poderiam convi-

deve ser apenas mais um centro cultural – entre tantos outros já

ver? Experiências mundo afora mostram que isso era possível.

existentes na região –, enterrando violentamente sua longa histó-

A restauração em execução na Vila Itororó, embora formalmen-

ria de lugar de moradia.

te tenha por base o projeto de centro cultural de 1976, revisado

Obviamente que a definição dos usos que terá não depende

e aprovado no Condephaat em 2010, coloca essa pergunta na

apenas da vontade dos gestores de plantão. Muitas decisões foram

mesa para debate com a sociedade.

amarradas em gestões anteriores e exigem certo grau de articu-

Esse projeto prevê apenas a preservação das fachadas das

lação e diálogo institucional para serem revistas ou adaptadas, de

edificações da vila. Uma das adaptações possíveis que vêm sen-

modo a permitir esse uso. Por exemplo, a concessão de uso da vila

do pensadas é a manutenção da tipologia das casas, remetendo à

à Secretaria de Cultura está atrelada ao uso cultural. Além disso, o

memória do uso habitacional. Outra possibilidade que volta à dis-

projeto de restauro em curso é o de um centro cultural. Isso implica

cussão é o projeto elaborado pelo Mosaico 3 , escritório modelo da

necessariamente a exclusão do uso habitacional? Não, mas certa-

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie,

mente impõe limitações práticas e burocráticas que só poderão ser

no bojo da luta dos moradores para permanecer na vila. Essa pro-

vencidas com vontade política.

posta prevê a construção de quatro edifícios residenciais na área do galpão, conciliando, assim, o uso cultural com o habitacional.

Ainda há outras questões em jogo. A decisão de incluir o uso habitacional implicaria, por exemplo, o necessário envolvimento da Secretaria de Habitação nas discussões e demandaria um

3 O projeto está disponível neste link: https://observasp.files.wordpress. com/2015/05/vila–itororc3b3_final.pdf

p­ — 16

amplo debate sobre como viabilizar a construção de habitação de interesse social naquela área, sem o risco de perder o foco no


...um espaço em discussão – foto: tatiana missawa

atendimento a famílias de baixa renda. Isso porque o modelo de

HISTÓRIA

política habitacional que predomina hoje é o da propriedade privada, que já se demonstrou incapaz de atender às necessidades

Um dos produtos em elaboração pelo Instituto Pedra é uma publi-

dessa população. O destino de alguns ex–moradores da Vila Itoro-

cação que contará a história da vila e do seu processo de restauro. As

ró é um exemplo disso.

informações hoje disponíveis carecem de precisão, mas já fornecem

Não sendo possível permanecer na vila, as mobilizações dos

uma boa noção da história da construção e ocupação desse lugar.

moradores ao menos resultaram em um acordo de realocação con-

A Vila Itororó começou a ser construída nos anos 1920, por

siderado positivo. A maior parte foi morar em conjuntos habitacio-

Francisco de Castro, um mestre de obras descendente de portu-

nais ofertados pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habi-

gueses. Ele fez ali um conjunto de habitações de aluguel para a

tacional e Urbano) no mesmo bairro, e outros ficaram um pouco

classe média, incluindo, além das casas, um palacete para uso pró-

mais longe, no Bom Retiro. Todos, porém, tiveram que aderir a um

prio e um clube com a primeira piscina privada da cidade, alimen-

programa de financiamento habitacional e o resultado é que alguns

tada pelas águas do Córrego Itororó.

já repassaram seus imóveis, provavelmente voltando a viver em condições precárias.

Chama a atenção na construção da vila o reaproveitamento de materiais e elementos da fachada do Teatro São José, demolido

Isso ocorre por várias razões. Seja pela impossibilidade de arcar

para dar lugar à sede da empresa Light. São colunas gregas, cariá-

com os custos decorrentes da propriedade individual, seja porque

tides, esculturas de animais e de deuses que compõem o aspecto

o imóvel torna–se meio de gerar recursos para resolver problemas

monumental do conjunto. Sobressaem–se ainda os vitrais com bra-

financeiros, corre–se sempre o risco de que as unidades sejam ven-

sões de países, que fazem parte da ornamentação do palacete, e a

didas para outras famílias, deixando de atender o público ao qual se

utilização de trilhos de trem nas construções, algo comum à época.

destinavam. O modelo da locação social, em que a propriedade do

Nos anos 1950, já tendo falecido Francisco de Castro, a vila é

imóvel é pública e os aluguéis são subsidiados , seria uma alternativa

leiloada para pagar dívidas e, mais tarde, doada a uma instituição

a essa situação. Outras, no entanto, precisariam ser pensadas.

beneficente que continua cobrando os aluguéis. Esse é um mo-

4

O projeto Canteiro Aberto abre a possibilidade de repensar

mento de grandes transformações na cidade. Largas avenidas são

não apenas os usos da Vila Itororó, mas as próprias concepções de

abertas, a verticalização se intensifica e, nesse processo, muitos

cultura e de cidade que estão em jogo no processo de restauro.

trabalhadores migrantes vêm atuar na construção civil. Essas pes-

Conceber a moradia como cultura, enquanto ato expressivo, pro-

soas vão morar em assentamentos informais nas periferias ou em

dutor de memórias, afetos e sentidos, ajudaria a nortear as reflexões

cortiços nas áreas centrais.

sobre o futuro da vila.

É nesse contexto que a Vila Itororó começa a ser ocupada por dezenas de famílias de trabalhadores, que passam a dividir os espaços já existentes e a improvisar novos. No final dos anos 1990, a

4 No modelo da locação social, a propriedade do imóvel é do poder público, que aluga as unidades habitacionais a preços muito abaixo dos de mercado para a população de baixa renda. Para entender melhor a diferença entre esse modelo e o da propriedade privada, recomendo a leitura do artigo “Pela retomada dos programas de locação social”, de Luiz Kohara, Francisco Comaru e Maria Carolina Ferro, disponível em: https://observasp.wordpress.com/2015/04/22/pela–retomada–dos–programas–de–locacao–social/

TREMA!_especulação

instituição deixa de cobrar os aluguéis e, com isso, o processo de ocupação informal e de deterioração da vila se acentua. Em 2006, quando foi desapropriada, moravam na Vila Itororó 251 pessoas. As remoções começaram a ser realizadas em 2011 e, no início de 2013, a vila já não via mais nenhum de seus habitantes. T p­ — 17


GRUPO ESP ensaio fotogrรกfico


PANCA!

GENT RIFIC AARÃO

E

ste ensaio fotográfico foi realizado pelo Espanca! na Rua Aarão Reis, em Belo Horizonte (MG), local da sede do grupo. Estas imagens

pretendem refletir sobre a especulação imobiliária que acontece hoje neste ponto da região central da cidade. Pelo fato de estar localizada numa área que pretende ser “revitalizada” pela prefeitura, parece haver uma política de gentrificação em andamento e o atual momento é de descaso total com a rua, numa atitude de desleixo com os bens públicos, com a limpeza e a segurança. Há um ponto de ônibus cujo abrigo está quebrado há pelo menos cinco anos. Se fosse em outra região da cidade (principalmente na zona Sul), isso dificilmente aconteceria. O MOVE é o novo sistema de transporte por ônibus da cidade que conta com estações modernas, com painéis eletrônicos e GPS, mas na Rua Aarão Reis, a estação é de “madeirite” e arame desencapado, com direito à faixa da prefeitura alardeando o sistema ÓTIMO! Estão gentrificando o espírito do Aarão! E por ironia do destino, este é o nome do arquiteto que planejou a cidade.

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T TREMA!_especulação

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pergunta

TREMA!3/5

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“A terra, se caracterizada como planeta, simboliza a vida; se transformada em território de apropriação política, perde vitalidade e passa a ser objeto de fetiche, lugar para escambo de violências, espaço para jogos de poder... Cada grão de território ocupado por relações excludentes de poder torna-se moeda de alto valor econômico.”

ALEX CORDEIRO I N T E G R A N T E D O B O L O L Ô C I A . C Ê N I C A , E M N ATA L ( R N )

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foto: divulgação

RONALDO foto: divulgação

BUDA &


D

e um lado, bem perto do mar, está Buda Lira, ator do gru-

uma forma de o grupo se manter vivo e ativo. No fundo, o Teatro Ex-

po de teatro Piollin e diretor do Centro Cultural Piollin,

perimental de Alta Floresta (TEAF) sempre entendeu essa junção de

em João Pessoa, na Paraíba. De outro, distante cerca de

mostras, festivais, oficinas, seminários, participação em conselhos

3.400 quilômetros de Buda e bem perto da Floresta Amazôni-

etc. como uma forma de fazer teatro. Para o TEAF, o teatro é tudo

ca, está Ronaldo Adriano, coordenador do Teatro Experimen-

isso, misturado aos trabalhos de montagens, apresentações e todas

tal de Alta Floresta (TEAF), cujo município que leva no nome

as outras coisas necessárias. O grupo nasceu num momento singu-

fica em Mato Grosso, a 820 quilômetros de sua capital, Cuiabá.

lar da cidade (1988), durante o ciclo do ouro, quando ela tinha ape-

As diferenças geográficas que separam ambos não existem da

nas 12 anos de fundação e tudo estava por fazer, inclusive a criação

mesma maneira nas questões políticas e culturais que enfren-

de condições e espaços (físicos e na própria sociedade) para que

tam no dia a dia dos grupos que ajudam a gerir. Na verdade, a

as coisas acontecessem. Com o teatro não foi diferente. Criar um

dimensão espacial aqui é de outra natureza, quando se trata

grupo que não tivesse, em seus objetivos, um leque mais ampliado

de trabalhar com teatro independente no Brasil. Eles nunca

de ações significaria não frutificar, pois o terreno poderia não forne-

estiveram tão próximos. E já faz mais de 20, 30 anos que lu-

cer o adubo necessário. As várias ações desenvolvidas pelo grupo,

tam por espaço – de ação, de visibilidade, de existência. Um

aliadas à insistência e à disposição para apresentar seus espetácu-

espaço que seja, dentro e fora de suas cidades. É sobre isso e

los (na grande maioria das vezes, formado por elenco de crianças,

outros assuntos que Buda e Ronaldo falam aqui, respondendo

adolescentes e jovens), nos mais diferentes locais, foi a estratégia

as mesmas perguntas provocadas por Pedro Vilela aos dois.

usada para sensibilizar e formar público na cidade. Os parceiros, no caso específico daqui, foram empresários, clubes de serviço, escolas e o próprio poder público municipal. De 1990 até 2013, o grupo foi beneficiado pela Lei de Apoio e Incentivo à Cultura local. Eram

Através de diferentes atividades desenvolvidas, o grupo de

valores deduzidos do ISSQN (Imposto Sobre Serviços de Qualquer

vocês acaba por assumir o papel de fomentador de ações para todo

Natureza) que custearam despesas pequenas, como passagens,

um Estado. De onde vem esta necessidade e onde encontram par-

papéis, fotocópias, cenários, costureira etc. Dinheiro que nunca su-

ceiros mobilizadores?

priu as necessidades totais do grupo, o que sempre foi alcançado mediante patrocínios obtidos junto ao comércio e participação em

BUDA LIRA Vem desde a origem. Inicia–se com um grupo de ato-

editais. Aliás, os editais só passaram a figurar como uma forma de

res que busca um espaço físico para realizar estudo e produzir tea-

obtenção de meios para seus trabalhos no final da década de 1990,

tro (1977), mas já se instaura como um forte movimento, fazendo

sendo que os de âmbito nacional (Funarte, MinC e outros) só pas-

acontecer outras manifestações artísticas em seu espaço. Essa força

saram a ser objeto de tentativas em meados da década de 2000.

inaugural vem da personalidade de Luiz Carlos Vasconcelos, ator,

Na atual gestão municipal, o grupo político não tem sensibilidade

diretor e idealizador desse projeto inicial de ocupação de salas de-

para cultura e arte, e a consequência foi colocar o grupo num lugar

sativadas do antigo Convento Santo Antônio, no Centro histórico

de “adversário”, o que prejudica a comunidade como um todo, pois

de João Pessoa (PB), que também contou com a presença de Eve-

o TEAF exerce uma função sociocultural de alguma relevância em

raldo Pontes e a minha. Buscava–se estruturar atividades de teatro,

nível local. Os membros do grupo nunca viveram do teatro e a dis-

shows de música, cursos, cineclube, atividades circenses, caravana

posição pelo trabalho voluntário nos seus afazeres configura uma

pelo interior do Estado, encontros de grupos de teatro do interior,

das principais fontes de manutenção dos trabalhos. De toda for-

formados por crianças e adolescentes; enfim, espaços com pessoas

ma, em meio a tantos aprendizados e adaptações para a existência,

febris, em ebulição constante, próprio do período entre 1977 e 1980,

aprendemos também a não nos importarmos muito com dinheiro.

em que se vivia a fundação do Piollin, batizada de Escola Piollin. Em

Obviamente que entendemos isso como um aspecto negativo em

1980, houve a transferência da sede do grupo e da antiga escola,

nosso fazer artístico, pois a necessidade de mantermos outros tra-

com o início das obras de restauração do convento e da Igreja São

balhos com fins de geração de renda nos impõe dificuldades para

Francisco (século 18), realizadas pelo governo da Paraíba e o pelo

o aprofundamento em pesquisas, circulações e outros trabalhos

Iphan. Foi um processo de muita luta, que contou com o apoio de

essencialmente artísticos. Mas continuamos buscando meios para

artistas e personalidades de diversas regiões do País. Somente de-

lidar com tudo isso.

pois desse embate é que o Piollin foi transferido para o atual espaço: imóveis de um antigo engenho de cana de açúcar, vizinho ao Parque

Vocês possuem uma experiência marcante no que diz res-

Arruda Câmara — a “Bica”, em João Pessoa. Hoje, esse trabalho já

peito à ocupação de espaços inoperantes. Poderiam descrever o

percorre outros caminhos e conta, felizmente, com novos agentes

quanto isto mudou a trajetória da pesquisa e impactou a cidade

processando os impulsos e os canais necessários para manter e re-

onde estão inseridos?

vigorar o(s) projetos(s), como as ações culturais articuladas com as ações educativas para crianças, adolescentes e jovens, e moradores

BUDA De fato, pode–se afirmar que a ocupação de salas abandona-

de bairros populares, próximos à sede da organização.

das de um antigo convento foi um ato inusitado em João Pessoa, principalmente quando isso aconteceu, no primeiro trimestre de

RONALDO ADRIANO No nosso caso, as próprias condições e a reali-

1977. Mas, antes, o núcleo pré–Piollin já havia alugado um salão no

dade local acabaram por impor estes fazeres. Desenvolver outras

Centro da cidade e nele buscava–se estudar, fazer treinamentos.

ações para além das montagens e circulações era, e continua sendo,

Com a nova ocupação e a mudança radical de rumos, evidente que

TREMA!_especulação

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ENTREVISTA se abriram novos horizontes nas áreas de pesquisa e produção do

po continuava a lutar para tornar

teatro, inclusive mais ligadas a artistas de outras linguagens. Com

realidade um desejo de 1990, que

esse gesto, os espaços do Piollin passaram a abrigar shows, exibi-

era a construção de um centro

ção de filmes, cursos, tornando–se um ponto convergente da cha-

cultural com um teatro. Em 2009,

mada produção cultural alternativa da cidade e de outras regiões

finalmente o prédio ficou pronto

do País. Nesse período, o grupo começou também a produzir os

e a prefeitura, que pagava aluguel

chamados experimentos teatrais, como intervenções, performan-

do Teatro Oficina, rapidamente

ces em diferentes núcleos urbanos da cidade e em situações inu-

encerrou o contrato. No enten-

sitadas – desde concertos sinfônicos a instalações humanas em

dimento da gestão, o prédio do

outdoor. Nessa mesma época, o Piollin aproxima–se ainda da lin-

centro cultural estando pronto

guagem circense, por conta da proximidade de Luiz Carlos com o

bastaria, mas ficamos um ano

circo e o seu palhaço Xuxu.

sem teatro, pois faltava a construção de caixa cênica, poltronas

RONALDO Como disse anteriormente, esta foi uma condição para a

e equipamentos. Mais uma vez

existência do grupo. Na nossa trajetória, fizemos uso dos mais dife-

o TEAF propôs parceria com o

rentes locais para apresentações e ensaios. Inicialmente, era muito

poder público e cedeu todos os seus equipamentos cenotécnicos e

comum o grupo se apresentar em salões de igreja e pátios escolares,

cadeiras, e improvisou a panaria do palco. O Teatro do Centro Cultu-

onde sempre improvisou palcos com mesas e bancos. Mas houve

ral funcionou durante vários anos graças a esta parceria. Em 2013, o

um fato marcante em 1990, quando o Lions Club estava em cons-

TEAF saiu do espaço e retirou todo o seu equipamento por força de

trução e o então presidente, um empresário muito importante na

motivações políticas. O espaço do teatro continua sem equipamen-

história do grupo, alterou o projeto da obra e construiu um palco. O

tos, sem cadeiras e sem que o TEAF se apresente no local – só vol-

grupo conseguiu patrocínios no comércio local e colocou pernas, ro-

taremos a nos apresentar lá quando trocarem a gestão da Secretaria

tunda e cortina, criando um palco à italiana. O palco do Lions Club foi

de Cultura e Juventude. O teatro virou local para festas de 15 anos,

o teatro da cidade. É um lugar que eu e vários ex–membros do TEAF

encontros evangélicos, “Galinha Pintadinha”, “Frozen” etc. Apesar das

temos muito carinho, pois foi o palco de estreia de vários de nós. No

muitas dificuldades, as gestões municipais anteriores sempre foram

final da década de 1990, a prefeitura cedeu um espaço na Secretaria

parceiras do TEAF e, em 2010, o município doou um terreno para a

de Cultura e Turismo, um antigo galpão de uma loja de motores e

sede grupo. Desde então, estamos em obras. Embora falte acaba-

tralhas para garimpo. Neste local, o grupo não só cedeu seus equi-

mento, o local já é o principal espaço de cultura na cidade. O que era

pamentos, mas também ajudou a construir o palco – sempre im-

para ser a sede do grupo virou o Espaço Cultural TEAF.

"vau da sarapalha", grupo piollin (pb) – foto: adalberto lima

“Desde a realização dos experimentos teatrais – aliás, antes –, o gesto de ocupação (“invasão”) de um espaço físico para (re)fundar o grupo esteve inteiramente ligado à contemporaneidade.” Buda Lira

provisado à italiana. O fim deste espaço gerou um tensionamento político entre o grupo e a administração municipal. Dois secretários decidiram usar o espaço para outro fim e tomamos conhecimento ao ver imagens, na TV local, de nossos equipamentos de luz e tecidos sendo amontoados num canto. Ao mesmo tempo, o palco construído em mutirão virava entulho. O resultado foi uma pressão pública que culminou num raro acontecimento. Depois de alguns meses, a prefeitura atendeu o grupo e locou um novo espaço. Desta vez, exclusivo para teatro. Havia um antigo boliche sendo desocupado por uma igreja evangélica e nem esperamos o pastor sair. Enquanto ele e mais alguns fiéis retiravam seus pertences, nós discutíamos onde ficaria a técnica, o palco etc. Foi uma cena muito engraçada, sob olhares não muito amistosos do próprio pastor. Reconstruímos o teatro e demos o nome de Teatro Oficina. O local virou o centro cultural da cidade por vários anos e lá aconteceram mostras, festivais de cinema, reuniões, seminários e até eventos religiosos. Em paralelo, o grup­ — 30 "a santa joana dos matadouros", teatro experimental de alta floresta (mt) – foto: vanessa bispo


Dentro das proposições

RONALDO Por sermos de uma cidade pequena, o nosso olhar nunca

artísticas que os interessam, o

foi totalmente para o urbano, como vemos em grandes centros.

quanto as questões contempo-

Olhamos para a cidade, mas é um olhar que perpassa pelo proces-

râneas e da própria cidade in-

so de colonização, pelo processo de exploração do garimpo, da

fluenciam suas criações?

madeira, pelo plantio de pastos e a transformação da floresta em grandes pastagens e, mais recentemente, pelos impactos da cons-

BUDA

Acredito que não há

trução de várias usinas hidrelétricas no Rio Teles Pires.

como fugir das questões que

Atualmente, estamos nos preparando para iniciar um processo no

estão, de algum modo, entra-

qual vamos abordar o conflito entre os primeiros colonos com os

nhadas nas pessoas que for-

garimpeiros e todas as implicações socioculturais resultantes dis-

mam o grupo e formulam as

so. Também partimos de nossas próprias histórias pessoais, pois

proposições estéticas. O grau

todos os membros do grupo têm relações familiares com uma

de apropriação dessas ques-

coisa ou outra. Nossos pais ou vieram para a agricultura ou vieram

tões pode variar, pois temos

para o garimpo.

uma composição heterogênea, como em boa parte dos coletivos artísticos. Desde a realização

O que estar inserido fora das rotas dos ditos eixos culturais

dos experimentos teatrais — aliás, antes —, o gesto de ocupação

influencia no gerenciamento e no planejamento de suas ações? Vo-

(“invasão”) de um espaço físico para (re)fundar o grupo esteve

cês ainda conseguem perceber barreiras?

inteiramente ligado à contemporaneidade. No caso do “Vau da Sarapalha” (1992, ano de estreia), acredito que o tratamento cê-

BUDA Posso responder do meu ponto de vista. Nesse momento, o

nico dado a esse trabalho responde naturalmente a essa ques-

grupo está em Belo Horizonte reapresentando o “Vau da Sarapa-

tão de lidar com a contemporaneidade. Nos trabalhos seguintes,

lha”, depois de seis anos fora do repertório. Mas devo falar de dois

“A gaivota (alguns rascunhos)” (2006) e “A Pá” (direção de Ha-

momentos. O primeiro, na fase inaugural da Escola Piollin, o foco

roldo Rego, de 2013), novamente o grupo se depara com temas

principal era fazer acontecer as coisas em João Pessoa, capital do

caros à contemporaneidade, inclusive de forma totalmente es-

Estado, eixo cultural importante, em conexão com as outras peque-

pontânea, pois não estava previsto no nosso roteiro, não havia

nas e médias cidades do Estado. É tanto que foram produzidos seis

uma busca coletiva por esse ou aquele tema. Ainda que indivi-

encontros de grupos de teatro do interior, formados por crianças e

dualmente, ou em duplas, os temas fervilhassem nas cabeças de

adolescentes. É bom lembrar que numa cidade como João Pessoa

seus integrantes.

(ou Recife, Fortaleza etc.), existem também os seus próprios eixos:

“Parece–me que o cuidar do local foi uma das coisas mais assertivas da história do TEAF. Os fundadores do grupo acertaram na mosca, cuidaram de preparar o terreno para o enraizamento.” Ronaldo Adriano

Espaço Cultural, Theatro Santa Roza etc. Nesse contexto, o Piollin já apostava (e ainda aposta) no trabalho educativo, focado na formação do público infanto–juvenil oriundo de setores populares. Em relação aos “ditos eixos”, de regiões como o Sudeste, acabou que o “Vau da Sarapalha” entrou naturalmente no circuito nacional e internacional, embora esses eixos não tivessem nenhuma influência nos planos das duas organizações – Piollin Grupo de Teatro e o Centro Cultural Piollin. Esse trabalho contribuiu também para a abertura de espaços aos atores e às atrizes paraibanas na chamada “retomada do cinema brasileiro”. É importante registrar uma iniciativa do antigo Ministério da Educação e Cultura, a partir de 1978, com a realização do Projeto Mambebão, em que os espetáculos de diferentes regiões do País se apresentavam no Rio, em São Paulo, Brasília, Vitória, Porto Alegre, Curitiba. Hoje, já se tem experiências como a do Palco Giratório, aproximando não somente eixos, mas eixões e eixinhos. É bom citar o circuito cultural da Caixa e dos Correios, em TREMA!_especulação

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trabalho educativo do piollin – foto: divulgação

se falando de instituições com uma boa infraestrutura. Sem contar

Os dois grupos são sinônimos de resistência. A que vocês

— e é bom que se conte — o movimento Fora do Eixo.

devem isso de chegar a tanto tempo de manutenção de atividades?

RONALDO Durante muito tempo, o grupo mantinha–se antenado às

BUDA Acredito que o trabalho educativo é fundamental.

coisas dos grandes centros apenas acompanhando os movimentos

nejamento e ação colaborativa são palavras–chave. No caso

federativos de teatro (Confenata, Femat – Federação Mato–Gros-

do Piollin, não há como pensar no tempo de manutenção de

sense de Teatro). Mas apenas as questões da Femat eram mais for-

um conjunto de atividades complexas, que vão além da inicia-

tes e presentes na vida do grupo. O teatro que fazíamos era pra ser

tiva de criação de espetáculos, sem educação, planejamento

“gasto” na cidade mesmo. Alguns podem olhar pra nossa história e

e trabalho colaborativo. Temos e tivemos que lidar com a res-

dizer: “Qual a grande pesquisa do grupo?” ou “Fazem um teatro pou-

tauração, a recuperação e a manutenção de estrutura física,

co ousado, tradicional.” Isso não nos incomoda. Durante muito tem-

incluindo a sustentação de uma programação sociocultural

po, nos dedicamos ao local. Talvez as grandes distâncias (pra se ter

que vai de locação de espaços para aniversários, casamentos,

uma ideia, estamos distantes 820 km da capital do Estado, Cuiabá), a

a muitos shows de música, dança, teatro, etc. Passos impor-

fragilidade das políticas públicas e a inexistência de cursos de teatro

tantes foram dados nos últimos 15 anos, mas ainda se tem

(até hoje não temos, no Estado, um curso de graduação) tenham nos

muito, mas muito mesmo o que fazer. E como disse, há de se

induzido a concentrar poucas energias para nos inserirmos ou bus-

buscar parceiros, inventar formas de trocas de serviços e pro-

carmos mais referências nos ditos eixos. Por um lado isso foi bom,

dutos, para que o Piollin seja, de fato, um lugar necessário para

pois o grupo foi descobrindo e construindo meios e tecnologias para

a cidade e o Estado da Paraíba.

Pla-

o seu fazer. É claro que dentre os membros do grupo havia buscas e interesses. Alguns até saíram da cidade e buscaram o teatro em

RONALDO Parece–me que o cuidar do local foi uma das coisas mais

outros lugares. Mas existem coisas que, pra nós, eram comuns e es-

assertivas da história do TEAF. Os fundadores do grupo acertaram

tavam no nosso ordinário. Mais recentemente, o TEAF começou a se

na mosca, cuidaram de preparar o terreno para o enraizamento.

voltar para fronteiras além Cuiabá e sentimos que isso se dá de forma

Hoje estamos na hora de adubar a terra para que os galhos cres-

natural e tranquila, pois vamos nos dando conta de que o caminho

çam e continuem sustentados por raízes fortes. Entrar no novo

e os meios de nos mantermos em pé são parecidos com muitos ou-

processo de montagem que almejamos é uma aposta neste sen-

tros grupos. As barreiras existem, são muitas. Não temos condições

tido. O grupo é reconhecido como utilidade pública em nível mu-

financeiras para circular, é difícil ver espetáculos, participar de cursos;

nicipal e estadual desde os seus primeiros anos de existência, e

enfim, o acesso às referências não são fáceis. Enquanto grupos de

esse é um princípio levado muito a sério. Buscamos sempre pro-

grandes centros (não apenas do tal eixo) veem espetáculos nacio-

porcionar ao público coisas boas, que achamos importantes para

nais e internacionais no Sesc, por exemplo, nós ficamos sabendo de

todos nós, humanos. O TEAF nunca quis ser sinônimo de resistên-

notícias. Claro que conseguimos imaginar as inúmeras dificuldades

cia ou referência, o grupo sempre quis fazer teatro. O bom seria

dos grupos dos grandes centros, mas ainda assim pegar três ônibus

que ninguém devesse resistir pra ser. Mas nos orgulha muito saber

para ver Clowns de Shakespeare, Ói nóis aqui traveis, Lume, Teatro du

que um grupo de teatro, formado por crianças e adolescentes, e

Soleil, Odin, Magiluth e tantos outros grupos geniais que existem por

alguns adultos sonhadores, fundado numa cidade com menos de

aí é bem mais fácil do que enfrentar 15 horas de ônibus, enfrentar o

dez anos de emancipação, à época, e num cenário de corrida pelo

custo amazônico, conseguir liberação nos trabalhos etc. Uma forma

ouro e extração de madeira, tinha tudo pra não dar certo e deu

encontrada pelo TEAF para minimizar isso foi a criação do Festival

certo. Não podemos e nem queremos qualificar esse “deu cer-

de Teatro da Amazônia Mato–Grossense, pois é uma necessidade do

to”, mas continuar existindo durante 27 anos, sem nenhum ano

grupo e da própria cidade conhecer e ver espetáculos com outras

de interrupção nos trabalhos, é uma felicidade. Felicidade para os

linguagens, estéticas, aprimoramento técnico, pesquisas.

atuais e os antigos membros do TEAF. T

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pergunta

TREMA!4/5 “A resposta seria positiva se possível fosse lotear e barganhar sentimentos sem preço – desdobramentos sensíveis daquilo que se vivencia num chão afetivo. O pé de manga no quintal; o banho de mangueira ou de cacimba atrás de casa; o churrasco ao som do brega domingueiro; dezessete filhos, nascidos e criados, e correndo na lama e subindo nas árvores. ‘Nós valemos mais’, era o que gritavam os muros e as casas, ecoando as vozes dos antigos e zelosos moradores. Camaragibe não resistiu. Em nome de uma Radial da Copa, foram derrubados os muros, as casas e os próprios habitantes. Há Estelitas por toda a Região Metropolitana do Recife.”

KAROL PACHECO J O R N A L I S TA N O R E C I F E E MORADORA DE CAMARAGIBE

casa destruídas para a copa 2014 - foto: karol pacheco

TREMA!_especulação

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PERFIL MATEUS ARAÚJO ma.mateus.jc@gmail.com

D

e um lado, um rio verde ainda teima em resplandecer as belezas guardadas nos belíssimos casarios

à margem das suas águas. Do outro, casarios, de acinzentadas e desbotadas cores, teimam em resistir a uma constante e dura guerra da especulação imobiliária – fantasma cada vez mais real, que assombra o Recife. A Rua da Aurora, no bairro da Boa Vista, Centro da capital pernambucana, tem dessas dicotomias. Se um dia foi poesia de Manuel Bandeira, hoje é sinônimo da modernidade irracional, que devasta belezas e coloca em risco a memória e o patrimônio material da cidade cantada por Chico Science como a Manguetown. É neste coração poético e caótico do Recife contemporâneo que fincou raiz O Poste Soluções Luminosas. Debruçado em uma contínua pesquisa acerca da africanidade e de seus elementos na construção da estética teatral, o grupo faz do prédio antigo de número 529 da Aurora um refúgio para uma criação independente e reflexiva. “São produções artísticas calcadas no resgate antropológico aliado ao teatro físico, à ancestralidade e à religião de matriz africana”, explica o diretor Samuel Santos, integrante e fundador do grupo junto às atrizes Naná Sodré e Agrinez Melo. Há seis anos, O Poste traça um paralelo entre os rituais das religiões de matriz africana e os processos dos encenadores Michael Chekhov, Eugenio Barba e Jerzy Grotowski. O que Samuel define como um trabalho cuja matriz africana serve de “base de uma ancestralidade corporal e vocal”. O resultado é

"a receita" – foto: pri câmara

uma linguagem de criação que tem foco na estética cênica do teatro focado na

Na procura, os artistas se depararam com

tivos, como “paletes”, que são utilizados

expressividade corporal.

inúmeras especulações, estruturas inade-

nas paredes e em forma de acentos com

No espaço alugado, com capacidade

quadas e resistência de alguns proprie-

acolchoamento, criando um ambiente

para receber um público de, em média,

tários com relação ao destino dos locais

aconchegante e próprio para uma boa

40 pessoas, o grupo chegou para criar

depois de alugados. Mas enfim acharam.

acústica”, descreve Samuel.

sua sede há um ano. O casario transfor-

“O espaço é de caráter alternativo, sem

Formado, a princípio, como um

mou–se em local para ensaios, cursos, es-

palco fixo – um dos pontos caraterísti-

grupo de iluminação cênica (eis aqui a

petáculos, temporadas, workshops e até

cos do ambiente, pois coloca o artista e

explicação para o nome do coletivo),

apresentações musicais. No início, o gru-

o espectador no mesmo plano. É todo re-

O Poste surgiu em 2004 e, durante a

po quis se estabelecer no Bairro do Recife.

vestido com madeira e materiais alterna-

sua trajetória, assessorou tecnicamen-

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O POSTE A Aurora e um lugar para chamar de nosso

TREMA!_especulação

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"cordel do amor sem fim" – foto: thais lima

te companhias e grupos pernambucanos, desenvolveu ativi-

o Recife que agora lutam por um lugar ao sol nessa disputa por

dades em vários espetáculos e ministrou cursos. Em 2009, o

espaço com empreiteiras e construtoras.

coletivo deixou de lado a luz para assinar a criação de mon-

Ali bem próximo ao Espaço O Poste, um terreno de 3.197m2

tagens — até hoje, já são dez, incluindo “Ombela” e “Cordel do

vai abrigar a construção de um prédio de luxo cujo metro qua-

amor sem fim”. “Nos dedicamos ao treinamento, ao desenvol-

drado custa R$ 6,2 mil, com 36 andares – sendo três apartamen-

vimento, à pesquisa, à formação e à apresentação do grupo O

tos por andar. Outro condomínio de dois edifícios, já todo vendi-

Poste. Porque se um grupo, enquanto pensamento e formação,

do, está sendo finalizado na Aurora. As torres de 47 andares têm

não organizar a sua própria casa, não caminha como tem que

cada metro quadrado valendo R$ 7 mil.

ser. E, com pensamento, propicia também a outros grupos e

“É necessária uma avaliação em relação a esses impactos e

produções uma alternativa de espaço”, explica Samuel. Para

vai depender muito também da realidade de cada patrimônio.

ele, o grupo é um ato de resistência e de construção de um

É uma incógnita. Pode: aumentar o trânsito de pessoas na Rua

olhar mais desbravador — sendo um local paras as artes, onde

da Aurora, e aumentar o público nos espaços; pode aumentar o

vários públicos frequentam.

valor dos imóveis; pode haver incentivos para se criar locais de escoamento para o público desses condomínios, embora sabendo que mais de 90% dos moradores desses edifícios de luxo não

EM CASA

frequentam as produções locais”, avalia Samuel Santos. O diretor é estratégico. Para ele, é preciso desbravar, con-

Na Rua da Aurora, O Poste se soma a outros espaços culturais

quistar esse novo público que chega para morar nos apartamen-

criados para acolher a produção artística recifense, como o Tea-

tos, por exemplo. “Esses moradores podem e devem contribuir,

tro Arraial Ariano Suassuna (gerido pelo Governo do Estado) e

se conectar a estes espaços, pois neles, além dos espetáculos, há

o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (da Prefeitura do

a formação. Como curso de dança, teatro, música para crianças,

Recife). E basta atravessar a Ponte Princesa Isabel, que liga a Boa

adultos e terceira idade. Isso ajudará muito o desenvolvimento

Vista ao bairro de Santo Antônio, para chegarmos ao imponente

sensorial e cognitivo da criança, do adolescente e também do

Teatro de Santa Isabel. Equipamentos culturais importantes para

adulto”, pontua. “E essa coisa de desbravar, insistir, de resiliência

p­ — 36


está nas bases da arte e do artista de teatro, das artes cênicas em geral. É histórico.”

S E M E S PA Ç O Resiliência, palavra tão bem usada por Samuel Santos para se referir à adaptação d’O Poste à realidade social do Recife, em muito tem a ver com a postura do grupo frente às dificuldades que encontra na política cultural da cidade. Se são precários os teatros públicos recifenses (dos seis mantidos pela gestão municipal, por exemplo, apenas dois funcionam em bom estado e outros dois estão fechados para reforma sem previsão de reabertura), O Poste faz–se espaço alternativo para as suas próprias demandas e as de outros artistas. Provas disso são as recentes parcerias com a terceira edição do TREMA! Festival e a montagem do monólogo “O açougueiro”, projeto independente do ator Alexandre Guimarães, que, além de criar o trabalho n’O Poste, fez sua primeira temporada por lá. Já olhando O Poste sob o viés histórico e sociológico do Recife, o coletivo é uma continuação da resistência artística que teima em manter suas raízes no afetivo Centro da capital e ressignificá–lo. Abandonado pelas administrações públicas municipais, o bairro da Boa Vista e seus vizinhos São José e Santo Antônio padecem com os maus–tratos crônicos e a falta de investimentos eficazes de políticas que melhorem a qualidade de vida de quem habita a cidade e de quem a visita: o Centro é inseguro, sujo e esquecido. Nesta guerrilha, O Poste parece ter achado seu caminho de sobrevivência através da organização e da articulação. “A dificuldade maior é de não ter nenhum suporte do poder público. Não há um olhar ou uma política que contemple os

"ombela" – foto: thais lima

espaços alternativos de pequeno porte”. Em São Paulo, por exemplo, a ação do prefeito Fernando Haddad (PT) de criar uma lei que isenta os grupos de teatro de pagarem IPTU de suas sedes “colabora com a manutenção dos custos”, segundo Samuel. “Se essa lei for criada ou executada aqui, teremos um aumento significativo na criação de outros espaços, mas também na continuidade”, garante. Para se manter, o espaço depende exclusivamente do que o grupo produz. “Da bilheteria dos nossos espetáculos, das oficinas que realizamos, dos editais que aprovamos, das vendas dos nossos espetáculos. Vivemos exclusivamente do teatro”, conta o diretor. “Quando um projeto nosso não é aprovado, quando um espetáculo do grupo não é convidado para participar de um festival, como o recente Festival de Inverno de Garanhuns, isso causa um dano danado. O dinheiro não entra e temos dificuldades para pagar o espaço e tirar o nosso sustento. Mas vamos sobrevivendo criativamente.” O próximo projeto do espaço d'O Poste será a criação da Biblioteca Luminosa, aberta à consulta e aos estudos, com o objetivo de criar um curso de formação de teatro físico, além de uma campanha chamada Sócio Iluminado, com a proposta de criação de um quadro de sócios que colaborarão financeiramente com o grupo, ajudando a manter a sede e a viabilizar as criações do coletivo. T TREMA!_especulação

"o açougueiro" – foto: thais lima

p­ — 37


A MULHER Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos PEDRO VILELA vilelaproducao@gmail.com

A — Bom dia. Tenho uma reunião marcada. B — Queira esperar um momento, por favor. (A senta–se, enquanto isto B realiza uma ligação.)

B — (no telefone) É do gabinete? (...) Tô ligando pra informar que os ingressos guardados da apresentação estarão disponíveis apenas até o meio–dia.... Vamos largar do serviço mais cedo, irão fazer um serviço

B — É mesmo? Que loucura... Bem que na semana passada teve um povo aqui cobrando uns negócios...

C — Não menina... Esse povo tava cobrando outra coisa... Porque tu sabe, né? Chegou imprensa aqui no prédio da prefeitura começa aquele alvoroço... Esse pessoal tava aí pra cobrar um edital que aprovaram em março e até agora não receberam nenhum dinheiro. E olha que alguns já fizeram o projeto com o próprio bolso.

no ar–condicionado da sala.

B — Ah... foi mesmo! A peça dos frangos...

C — Que ingressos? Não estamos sabendo de nada.

C — Han?

B — Os ingressos, menina... Daquela mulher que dança. Trouxeram

B — A peça dos frangos... Das bichas que dançavam... Vixe maria...

uns 300 pra distribuir aqui.... A Prefeitura tá dando dinheiro... não viu, não? Deu até na Globo!

C — E é pra quando?

C — Oia... E te prepara... porque tem outro povo que aprovou outro edital em agosto e também não recebeu nada ainda.... Sem falar no povo com cachê atrasado...

B — Pra sexta. Vai ter uma apresentação pro pessoal mais pobre... das

B — Ah, menina... mas esse povo é muito besta, então... Fica fazendo

escolas... e mandaram ingresso pra cá também...

as coisas sem receberem... Acreditando nestas conversas de edital... A

C — Entendi... É que nesta sexta eu já tinha agendado para ver uma

mulher que dança mesmo... Esta dos convites, é riquíssima! Não fica dependendo de dinheiro de prefeitura, não... É dinheiro de combustí-

peça de um amigo... Uma história massa que acontece dentro da

vel... Vem aqui pega uma graninha, coloca o nomezinho no cartaz, dá

casa dele mesmo.

ingresso a gente, agradece e bye bye...

B — Dentro da casa? Como assim? Que novidade é esta?

C — É... mas no resto do ano é as bichas que ficam né?

C — Ah... Tá tendo muito teatro assim agora por aqui. Ou o povo

B — Ficam porque querem né, mulher? Tu acha que eu, que gosto de

faz assim, ou não faz mais né... Teu gabinete anda fechando todos

cultura, vou estar indo pra casa desse povo pra assistir alguma coisa?

os espaços... Lembra do teatro da praça? Aquele que tá mais de

A mulher que dança hoje vai se apresentar é naquele teatro grande...

cinco anos fechado... Tem outro lá perto da praia que tá na mesma

Aquele que não tem refletor nenhum... que quando o povo quer se

situação dele...

apresentar tem que alugar tudo...

p­ — 38


QUE DANÇA ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

C — Pelo menos nisto ele se parece com os outros teatros, né? Este

deste precisa da parceria da prefeitura e esta parceria não pode ser

fato de não ter refletor...

apenas de liberação de pautas. Já não basta vocês terem cancelado o

B — Ah menina... tu também... acha tudo ruim... nada presta... não

festival que realizavam no ano passado...

sabe o que é bom. Os ingressos estão aqui se quiser vir pegar... Se não

Secretária — (pausa longa) É como disse meu filho, não temos

for querer, pelo menos avisa, porque eu dou pra menina da limpeza...

recursos...

C — Tudo bem... Deixa pra lá... Pode liberar os ingressos, não vai rolar ir.

A — E estes recursos que sua secretaria está repassando para a mu-

B — Ok! Beijos! E vê se melhora, mulher... (Ao desligar o telefone, sai para verificar se a Secretária está livre. Apesar

lher que dança? De onde vem?

Secretária — (pausa longa) Que recursos?

de não sair ninguém da sala, o que demonstra que não existia ninguém a

A — Estes, que foram publicados no Diário Oficial... Estes que estão

ocupar o templo da grã–chefe da cultura local, pede a entrada de B)

distribuindo ingressos lá fora...

B — Pode entrar, ela está livre.

(A secretária realiza uma pausa ainda maior do que as outras)

(A entra na sala, ainda envergonhado da conversa presenciada, abre uma

Secretária — (pausa longa) Enfim, é isto. Infelizmente as coisas

pasta e apresenta seu projeto)

são assim, né?

A — Então é isto... gostaríamos de realizar a terceira edição deste pro-

(Neste momento A abre sua bolsa, retira uma metralhadora AK 47, capaz

jeto. Como falei à senhora, são espetáculos de diferentes partes do

de realizar 600 tiros por minutos).

País, este ano contaremos com um grupo internacional, oferecidos a preços populares, além de atividades formativas. O que também nos

Secretária — (desta vez responde prontamente) O que é isto, meu

diferencia é que, durante o restante do ano, estaremos fomentando

filho? O que você pensa que está fazendo?

ações para a cidade...

Secretária — (pausa longa) Olhe, meu filho... Acho este projeto

A — Estou especulando sobre o quanto vale a minha arte e toda essa escrotice que vocês andam a fazer.

lindo, mas você sabe como está a situação... Estamos sem recursos para absolutamente nada... Mas se você quiser, eu consigo liberar os

(Com a metralha, dispara contra a parede da Secretaria a seguinte frase: “A

custos das pautas...

arte existe para que a verdade não nos destrua.” E sai. Sai livre. Nenhum poli-

A — Secretária, me desculpe, mas a senhora sabe que um projeto TREMA!_especulação

cial o detém. Parece até que nenhum tiro foi ouvido. A partir daquele dia, o rapaz nunca mais aprovará nenhum edital e isto basta para a cultura local). T p­ — 39


NOTAS DE PROCEDIMENTO

ABNEGAÇÃO II o começo do fim: raízes

ALEXANDRE DAL FARRA adalfarra@gmail.com

N

o início de 2014, o Tablado de Arruar recebeu um convite para

Juntamente com esse texto (que eu tinha escrito há algum tem-

participar da Virada Cultural no Sesc Belenzinho (SP), dentro

po antes, de forma solta, sem nenhuma razão clara para isso), me

de algumas atividades que estavam programadas ali. Pensá-

perseguia uma ideia de criar cenas em que a voz dos atores não saísse deles, mas, sim, de caixas de som. Tratava–se, em linhas

algo que tinha escrito, e que tinha mostrado para a minha mulher,

gerais, de um olhar sobre a voz do ator, sobre a palavra como algo

mas ela não tinha nem conseguido ler direito, porque disse que era

postiço, que não decorre do ator, mas que lhe é proposta de fora,

muito desagradável (desagradável demais). Eu tinha um pouco de

criando uma camada explicitamente artificial e, pensava eu, ao

vergonha daquilo, ao mesmo tempo em que algo ali me interessava

mesmo tempo “real” (o que não significa — e talvez seja mesmo

muito. Senti essa mesma dubiedade na atitude dela.

o inverso — de ser “realista”).

"abnegação ii, o começo do fim" – foto: annelize tozetto/clix

vamos sobre o que fazer nesse dia. Naquela época, me lembrei de

p­ — 40


HOMEM – Sabe a sua amiga? MULHER – Qual? HOMEM – A única. MULHER – Não sei direito. HOMEM – Fiz sexo com ela. MULHER – Isso é muito ruim. HOMEM – É. É ruim. MULHER – Eu fico triste com isso. HOMEM – É. Você fica. MULHER – Quero um pouco de cocaína. HOMEM – Sim.

AMIGA – O que você disse? MULHER – Você era a minha única amiga. AMIGA – Eu sou uma vadia sem caráter. MULHER – É, uma destruidora de lares. HOMEM – Calma, calma. Ela não fez nada. A culpa foi minha.

MULHER – Não fez nada! Essa vadia acabou Os dois cheiram duas carreiras.

com a minha vida.

AMIGA – Eu só fiz o que ele queria. HOMEM – Está melhor? MULHER – Sim. Bem melhor. HOMEM – A nossa relação é uma coisa que

Elas começam a puxar os cabelos uma da outra.

MULHER – Então por que você fez sexo com

HOMEM – Vocês vão se machucar. AMIGA – Espera, espera. Vamos parar com

a minha única amiga?

isso.

HOMEM – Eu sei, eu sei, eu sei. Talvez tenha

MULHER – Eu vou te matar. AMIGA – Vamos conversar um pouco.

eu prezo muito.

sido uma forma inconsciente de confirmar

MULHER – Agora nós vamos ter que te matar. HOMEM – Melhor não. MULHER – Deixa a gente te matar. HOMEM – Não. AMIGA – Vou tentar distraí–lo. Vai até ele e aponta o seu pescoço.

o meu amor.

MULHER – Você se sentiu culpado? HOMEM – Sim. MULHER – Isso é um sinal do nosso vínculo. HOMEM – Sim. MULHER – Como estamos de dinheiro? HOMEM – Não temos mais. MULHER – Vamos transar. HOMEM – Tá.

Param de puxar os cabelos.

AMIGA – Não lembro. Mas a gente se conhece. MULHER – Sim. AMIGA – Ele veio na minha casa, entrou e

com o garfo quente e deram choques no

Eles começam a transar. Toca a campainha.

começou a me agarrar.

coisas aconteciam mesmo! Como é?

Eles continuam. Toca de novo. Eles continuam.

HOMEM – Chega um cara e enfia um troço

AMIGA – Oi. Desculpa, eu estou interrom-

MULHER – E você fez o quê? AMIGA – Nada. MULHER – E aí? AMIGA – Aí eu falei para ele parar. Só que ele

pendo. A porta estava aberta.

estava com uma faca. E não quis parar. Aí

AMIGA – Nossa, é horrível mesmo. HOMEM – Um troço com uma ponta, tipo um

ele puxou a minha calcinha, rasgou ela, e

cone, que vai ficando mais largo na base, e

Ela dá dois passos para trás e continua ali.

meteu em mim como se fosse com a faca.

os caras ficam enfiando aquilo com toda

Eles transam.

MULHER – E foi só essa vez? AMIGA – Não, teve outras. MULHER – E por que você não me disse? AMIGA – Porque depois ele sempre coloca-

força até te rasgar o teu cu.

va a faca no meu pescoço de leve, aproxi-

grita muito. Aí você não se controla mais, e

Barulho da porta abrindo. Entra a amiga.

MULHER – ...tudo bem, nós já vamos aí... HOMEM – É. Espera um pouco. AMIGA – Tá.

AMIGA – Eu não tinha reparado nessa cicaAMIGA – Quando eu te conheci, você já es-

triz. Como ela surgiu?

tava com ele...

HOMEM – Em uma seção de tortura. AMIGA – Que horror. Te torturaram? HOMEM – Modo de dizer. Me queimaram

MULHER – Espera. Quando a gente se conheceu, mesmo?

pau. E enfiaram coisas no meu cu.

AMIGA – É horrível. Eu não sabia que essas

dessa largura no teu cu, você tenta impedir e ele te prende e enfia à força até rasgar.

AMIGA – Deve doer muito, né? HOMEM – Muito. Mas eles colocam uns panos na tua boca e te chutam a cara se você

mava a cara de mim e dizia: “Se você falar

eles te chutam. Dão com a ponta da bota

A amiga fica parada e espera. Os dois param

para alguém, eu corto a sua língua”.

na tua boca, aqui assim.

de transar.

MULHER – Nossa, foi horrível isso que ele fez. HOMEM – É. Foi muito ruim. Mas eu tive que

MULHER – Pronto. Como você está? AMIGA – Bem. MULHER – Fiquei sabendo que você me traiu

fazer.

AMIGA – Meu Deus!... MULHER – Parem de falar sobre isso. HOMEM – Ela não gosta. MULHER – Acho nojento. [...]  1

com ele. Você é uma vadia sem caráter.

MULHER – Por quê? HOMEM – Eu gosto. AMIGA – Foi uma das piores experiências

AMIGA – Quem te disse isso? HOMEM – Eu contei tudo. Não dava mais

que eu já tive.

para viver assim.

Mulher pensa.

TREMA!_especulação

1 Trecho de cena da peça “Abnegação II – o começo do fim”.

p­ — 41


NOTAS DE PROCEDIMENTO Essa cena foi retomada e adaptada para a Virada Cultural — a partir da tal ideia de separar voz e corpo. Gravamos as falas e os atores utilizavam headsets (fones de ouvido) desligados e moviam as bocas de forma não muito perfeitamente sincronizada, mas também não totalmente errada, de forma que ficava ambíguo se o texto vinha das bocas deles ou não, gerando um tipo peculiar de estranhamento, que se referia ao emissor do texto — só ao longo da cena nos dávamos conta de que era gravado. A música de abertura do jogo Candy Crush fazia fundo à cena, que era reapresentada em looping enquanto os atores adotavam posições, em princípio, reais, possíveis, porém estáticas, em torno de um cenário constituído por uma cama e um criado-mudo, no meio do pátio de entrada do Sesc, a céu aberto. Quando o texto se reiniciava, eles novamente moviam os lábios como se o dissessem, independentemente da posição em que estivessem, de maneira que a situação do texto se sobrepunha à situação sugerida pela posição dos corpos no cenário. Creio que ali estavam contidas, embora de forma talvez esquemática, algumas das questões que estruturaram posteriormente a criação de “Abnegação II”. Sendo que, de fato, a própria cena em questão permaneceu no espetáculo — que faz parte de uma das “camadas” da peça, constituída justamente por cenas com linguagem semelhante a essa, com personagens muito pouco desenvolvidos enquanto individualidades e diálogos marcados por certa perversidade, no assunto e na forma (procedimento que denominei, em outro texto, como uma tentativa de lidar com o que incomoda a partir das próprias ferramentas do incômodo 2 ). A desconexão entre texto e corpo se mantém na peça, sobretudo na camada mencionada, não de forma literal (por meio do uso da gravação), mas, sim, por meio de uma interpretação marcada por certa “artificialidade” proposital do que é dito, de forma que, em todo o tempo de ensaio, tratou–se justamente de encontrar,

cenas de "abnegação ii, o começo do fim" – foto: jennifer glass

junto aos atores, “maneiras de não justificar o que estava sendo dito”. Ou seja, se a interpretação realista mais tradicional está co-

simples, precisa vam dizer o texto de forma que ele, embora os

mumente bastante marcada pelo esforço por incluir as ações e os

afetasse, não fosse justificado pelas personagens e aparecesse,

atos de fala da personagem em uma cadeia causal, em que nada

assim, na sua violência, sem o intermédio das personagens, com

fique sem explicação nenhuma, mas tudo de alguma forma se jus-

suas razões, seus traumas e idiossincrasias (o que diminuiria a sua

tifique, seja por questões psicológicas, seja sociais, aqui tratava–se

capacidade de escândalo).

justamente de manter esse dado inexplicável na fala, que dá no-

Outro aspecto que também aparecia na cena apresentada

tícia constantemente de que se trata de atores lidando com pala-

na Virada Cultural, embora de maneira menos clara, era a música

vras, com uma camada textual relativamente autônoma, e não de

de fundo, a valsa repetitiva e algo misteriosa da abertura do jogo

personagens cuja psicologia e interesses justificam as falas. Dessa

Candy Crush 3. Para além de se tratar de uma música amplamen-

forma, a violência e a arbitrariedade colocadas pelo texto se des-

te reconhecível — e de maneira bastante estranha, porque ela

tacavam e eram como que jogadas diretamente no colo do públi-

remete a todo um universo próprio que é o desse tipo de jogo,

co, sem a mediação de uma personagem que explicaria tudo isso

algo narcotizado e obsessivo —; para além disso, pois, creio que

e forneceria os caminhos para que o choque e o espanto gerados

o efeito da música ali se referia a algo mais profundo, que tem a

fossem mediados; como que domesticados.

ver com a própria proposta da cena (em certa medida, creio que

Esse trabalho exaustivo com os atores pareceu um desdo-

esse “efeito” permanece no espetáculo), e todas as cenas que

bramento daquele sistema experimentado inicialmente, em que

compõem essa camada da peça são, antes de tudo, “questões”,

a separação era física e concreta (o texto gravado, os atores du-

“perguntas”. Não se trata de uma cena afirmativa e direta, embora

blando). Agora, os atores precisavam, de certa forma, fazer as ve-

possa parecer, mas, sim, de algo de suspenso e como que solto

zes do emissor separado (as caixas de som), ao mesmo tempo

no ar (como a música sugere), gerando, para além de si, não uma

em que se dublavam a si mesmos; ou, colocando de forma mais

série de afirmativas sobre o mundo ou sobre o que quer que seja;

2 Trata–se da resposta que escrevi à crítica de Welington Andrade, a convite dele mesmo, para a revista Cult. Disponível aqui: http://revistacult.uol.com.br/ home/2015/08/interlocucao–entre–a–cena–e–a–critica/

3 Para aqueles que não conhecem a música, é possível escutá–la aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Z47cdPNk4qA

p­ — 42


foto: thaís hércules

gerando, na verdade, algumas perguntas, como: do que estamos

feito de Santo André, Celso Daniel. Previsivelmente (isso não foi

falando ali? Ao que isso, que é reconhecível e mesmo, de alguma

mesmo uma surpresa), o assunto em jogo ganhou corpo e tomou

forma, próximo para todos nós, se refere? Por que essa cena nos

a frente do espetáculo, mas tenho certeza de que aquela estrutu-

horroriza mais do que o contato diário que temos com o tipo de

ra de linguagem investigada desde antes está longe de ter se tor-

violência que aparece ali, na televisão, no rádio e na mídia impres-

nado meramente um pano de fundo, perpassando a peça como

sa? Por que nos causa o riso eventualmente (outras cenas dessa

um todo, dando–lhe forma. Dependendo do público que a assiste,

mesma “camada” passam mais pela questão do riso)? No que essa

há a possibilidade de entrar em contato com essa camada mais

cena se refere a nós? Em que medida estamos ali também? O que

sutil e provocativa do espetáculo. Alguns, principalmente aqueles

essas cenas apontam em relação à peça como um todo? Como

mais próximos ao PT, em termos de identificação ideológica ou

elas se compõem com o todo da peça? Penso que estas são, para

sentimental, têm muita dificuldade de se conectar a essa propos-

um olhar e uma sensibilidade abertos, questões patentes na cena,

ta mais subterrânea.

que, no caso do espetáculo, ficam, a meu ver, ainda mais pulsan-

Creio que tal proposta envolva um determinado grau de

tes, e que, no caso daquele primeiro esboço, como que se faziam

performatividade na própria escrita do espetáculo — algo que me

ouvir por meio da valsinha repetitiva e, no caso, algo macabra, que

interessa muitíssimo. Ou seja, trata–se de um texto que não se

nos perguntava constantemente: o que é isso? Do que estamos

coloca perante o público como um todo capaz de dar conta dos

falando? Quem são essas figuras? Acho que algumas das pessoas

seus próprios desdobramentos, inteiramente responsável por

que passaram por aquela cena, no meio da madrugada da Virada

aquilo que ele gera (como é a tendência de uma cena mais tra-

Cultural, ficaram com essas questões na cabeça. E não sei se tive-

dicionalmente narrativa), mas, sim, de um gesto de escrita radical

ram respostas para elas, nem muito menos quais foram as suas

em uma direção que espera pela sua complementação por parte

alternativas de identificação ou “des–identificação” com aquilo.

do público. E mais, quando penso na peça como um todo: que

É interessante notar, assim, retornando aos primórdios da

pressiona e provoca o público a se posicionar frente a ele ou a se

criação, como a peça foi essencialmente o resultado de um pro-

mover a partir da provocação. Assim, penso que a peça, se possí-

cesso que se deu no âmbito da linguagem. Esse processo, depois,

vel, não deveria ser lida como uma tese, mas como uma questão.

se colou a um assunto, vindo de fora: o assassinato do então pre-

E como uma provocação. T

TREMA!_especulação

p­ — 43


CRÍTICA

ABNEGAÇÃO II

— O COMEÇO DO FIM:

a especulação cínica do poder

RUY FILHO ruyfilhosp@yahoo.com.br

"abnegação ii, o começo do fim" – foto: thaís hércules

0

significado de especulação apresenta–se, inicialmente, a movimentos econômicos,

Todavia, o que “Abnegação II” expõe é a exa-

no sentido de transações entre partes, cujos aspectos pressupõem alguma espécie de

cerbação dessa identidade, ao ponto de ser

lucro e diferenciação de valores. Agrega ainda a perspectiva de observação de possi-

compreendida por seus próprios integrantes

bilidades, reflexões, hipóteses. De algum modo, falar sobre especulação pode sustentar no

como verdade absoluta. Reside nisso a arro-

dizer a ambos. Existe, na valoração de qualquer coisa, a diferença implícita entre as partes

gância daquilo que poderia ser pensamento,

comparadas, impondo, um ao outro, condições de superioridade e inferioridade. Aí a relação

mas se configura como arrogância cega e,

imediatamente econômica de tal condição. Também está na diferenciação a subjetividade

em certo sentido, cínica.

daquele que julga e condiciona as diferenças, a partir de hipóteses produzidas e sustentadas

Vladimir Safatle, escrevendo sobre a

sobretudo pelos interesses do próprio julgador. Ao especular, então, assume–se a dimensão

falência da crítica 1, dá–nos boas pistas sobre

de singularidade, importância e imposição sobre algo. Ou alguém. E essa é a principal carac-

a instauração desse sentido cínico no poder.

terística que leva a ação ao equívoco de se tornar também ideológica.

A vida social contemporânea necessita, fren-

Em “Abnegação II — o começo do fim”, segunda parte de uma trilogia iniciada em 2014,

te às transformações capitalistas, de outras

Alexandre Dal Farra cria uma trama ficcional sobre as mudanças ocorridas em um partido de

formas de se legitimar, sendo a ironia de seus

esquerda, ao atingir o poder nacional. A analogia com a estrutura brasileira é imediata. Alguns

próprios pressupostos os instrumentos para

personagens sugerem traços possíveis de personalidades do Partido dos Trabalhadores, ao me-

o que denomina por racionalidade cínica. As-

nos no que se refere ao nosso imaginário limitado sobre eles. Provocando ainda mais a aproxi-

sim, o cinismo nas sociedades pós–ideológi-

mação, o espetáculo aborda, durante a criminalização da estrutura organizacional do partido,

cas legitima também práticas e condutas de

um assassinato nas próprias entranhas. É impossível não pensar no ocorrido com o prefeito

subversões dos princípios normativos, sem

Celso Daniel, cuja morte expôs o cinismo de um poder disposto a tudo para se manter como

gerar desagregação da própria socialização.

presença dominante.

A subjetividade irônica decorrente anuncia

A necessidade de impor a própria presença condiz com o conceito de especulação que abre esse texto. O partido entende–se como algo fundamental ao País e, por isso, conclui me-

a flexibilidade da própria subjetividade, ou seja, a fragilização de identidades fixas.

lhor ao bem–comum. Há nesse entendimento a arrogância da falsa ideologia, visto não ser um partido nunca capaz de traduzir a totalidade das diferenças, apenas uma parcela de representações da sociedade. O paradoxo é que um partido só pode existir a partir de um posicionamento específico, portanto limitado à suas escolhas. p­ — 44

1 SAFATLE, 2008. In: SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. Col.: Estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2008. 216 p.


No espetáculo, a imposição de sustentar o poder especulado como

aqueles que lá estão, o grupo Tablado de Arruar e o próprio Dal Farra

fundamental ao País confronta–se com a identidade daquele que não

que assina a direção junto a Clayton Mariano, fossem meros coadju-

abre mão de sua própria coerência e das origens do partido. Trata–

vantes dos desvelamentos que se serão trazidos.

se, então, de uma batalha entre a coerência ética, a partir dos valores

Não se trata de traduzir ao espectador os acontecimentos, ou in-

normativos como bens essenciais, e a flexibilidade dos argumentos

duzir a leituras possíveis, mas experienciar a política como movimen-

exposto cinicamente frente às transformações dos valores sociais. Su-

to de definição do existir agente, algo impossível aos não partidários

cumbe a rigidez da coerência. Sobrevive a subjetividade volúvel das

praticantes e resolvido na assertividade das escolhas estéticas. Assim,

oportunidades. E, assim, o partido se mantém cada vez mais fixo ao

o texto por vezes duro, violento, ébrio, promíscuo, ignorante, perigoso,

poder que produz e o sustenta.

exagerado e impositivo é também dolorido, apaixonado, romântico,

Explica Safatle , ainda, o poder não teme a crítica que desvela o

coerente e ideológico. Dal Farra consegue produzir uma experiência

mecanismo ideológico por ter aprendido a rir de si mesmo. Portanto,

política, utilizando–se da política como tema, sustentando a política

pós–ideológico. Ainda que permaneça sendo utilizado para legitimar

como estratégia e estetizando a falência e a desnecessidade de qual-

e justificar condutas e valores sociais, o poder se realiza sob a condição

quer fingimento cênico ou moral. Vai mais longe, portanto.

2

de uma ação irônica de diálogo. É preciso impor certo distanciamento

Ao provocar o esvaziamento estético como exposição crua da

ao poder, às organizações, aos processos, às representações aparente-

presença da política em cena, discorre também sobre a condição da

mente naturalizadas na realidade social.

própria estética como artifício de discurso no teatro atual. O exagero

É exatamente esse o dilema do personagem dissonante: a inca-

das encenações, por vezes eloquentes e poéticas, outras vezes desne-

pacidade de se manter distante ao núcleo do poder. Por isso, a con-

cessárias e mercadológicas, pode, sim, trazer ao debate a especulação

sequência criminosa, como saída única ao seu desenraizamento. É

sobre os motivos de se ocupar um palco. Qual o papel de um artista

preciso extinguir sua fisicalidade para extrair sua retórica persistente

frente ao seu presente? Como dialogar com a sua história em pleno

e imóvel. Somente assim, o partido poderá se valer da mobilidade das

movimento de acontecimento? Para Giorgio Agamben 3, sociólogo ita-

transformações para se manter no poder.

liano, só é possível pensar e retratar o contemporâneo após o afasta-

“Abnegação II” trata, então, do movimento de especulação polí-

mento do observador do próprio contemporâneo. Significa impor a

tico que vivemos na esquerda brasileira. Com a diferença de se colocar

si mesmo certo anacronismo, pelo qual a distância permitirá a obser-

como questionamento de sua subjetivação ideológica oportunista e a

vação mais ampla e precisa dos fatos. Dal Farra, por sua vez, propõe

crença na importância dos valores estruturais. Não se faz apenas um

o oposto, o mergulho radical no presente e a exposição imediata do

discurso contrário ao que assistimos nos noticiários. Vai além. Ao iden-

observador.

tificar a caricatura da identidade adaptada, exige a coerência aos valo-

Existe uma diferença óbvia entre ambos. Mas há também uma

res. É, antes, um discurso sobre a dimensão humana possível na polí-

aproximação instigante. Ao se valer da estética como meio de mer-

tica social, e o quanto sua manifestação pode ser, sim, transformadora

gulho, Alexandre recria a realidade como potência de possibilidade e

ao todo. É possível afirmar ser o espetáculo mais digno à esquerda do

não mais como verdade, gerando simultaneamente a aproximação

que a realidade tem revelado sobre a própria esquerda.

e o distanciamento ao presente. Por escolher o esvaziamento como artifício estético, alheio ao excesso e às transformações do capitalismo, e às encenações arbitrárias, a aproximação provoca ainda mais a

EM CENA

representação de um mundo não real, enquanto se distancia em forma de afastamento do poético. É aqui que a condição de ser teatro se

Espetáculos que retratam ideologias não são novidade. Vivemos

configura, então, em sua estrutura mais básica. No promover o des-

décadas no Brasil de trabalhos voltados, sobretudo, aos discursos

locamento poético, ele nos conduz a observar exatamente o que de

políticos. Entretanto, diferentemente, Dal Farra supera a facilidade da

teatral existe em tudo aquilo. Não apenas em cena, o que seria óbvio,

defesa e parte ao ataque, revelando–se uma das vozes mais preciosas

e, sim, na construção do poder que reconhecemos analogamente real.

ao instante na nossa dramaturgia. É preciso resistir aos gritos dos

“Abnegação II — o começo do fim”, tal qual o nome propõe, é

atores por mais de duas horas de cena para se chegar ao ápice do

apenas uma parte do mergulho necessário para o reconhecimento do

argumento nos últimos minutos. Um trabalho eficiente de manipula-

poder em seu movimento cínico de adaptação. Ainda que integrante

ção do espectador sufocado por uma narrativa repleta por discussões

de uma trilogia, e montado em ordem inversa — a terceira parte já

e defesas absurdas. A peça parece se sustentar somente por antago-

encenada abordou as entranhas das negociatas entre integrantes de

nistas. Ao final, o público descobrirá ser ele próprio o protagonista em

um partido político no poder, e a próxima e inédita primeira parte trará

sua condição de silêncio e observador impotente.

a origem e construção de um partido de esquerda —, o espetáculo fala

Ao construir uma cena esvaziada, sem tantos elementos no pal-

por si e independe das outras partes para se valer como discurso. Um

co, com possibilidade de tudo ser somente uma improvisação esté-

trabalho rico de investigação sobre a deformidade humana quando

tica, mera ambientação, o espetáculo amplia a sensação de urgência

exposto ao exercício do poder, de rara competência e importância na

de seu próprio discurso. Especula, portanto, sua importância e valor

cena nacional. Com essa peça, Dal Farra assume definitivamente, com

como presença no circuito teatral. Não aos artistas, entretanto. O

o auxílio do Tablado de Arruar, a condição de ser um dos mais poten-

despojamento impõe certo despojamento ao próprio fazer, como se

tes, necessários e perigosos dramaturgos de sua geração. T

2 SAFATLE, 2008. In: SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. Col.: Estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2008. 216 p.

3 AGAMBEN, 2009. In AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E o outros ensaios. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, 92 p.

TREMA!_especulação

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EXPEDIENTE

TREMA! revista de teatro de grupo EDIÇÃO DA especulação ANO 1

#3

NOVEMBRO 2015

Uma edição bimestral da Trema! Plataforma de Teatro

COORDENAÇÃO TREMA! PLATAFORMA DE TEATRO Mariana Rusu e Pedro Vilela

CONSELHO EDITORIAL Mariana Rusu, Olívia Mindêlo, Pedro Vilela e Thiago Liberdade

EDIÇÃO Olívia Mindêlo

CAPA E PROJETO GRÁFICO Thiago Liberdade

PROPONENTE DO PROJETO Thiago Liberdade

COLABORADORES DA EDIÇÃO* Alex Cordeiro, Alexandre Dal Farra, Buda Lira, Can Mete, Cleiton Barros, Chico Ludermir, Grupo Espanca! (Marcelo Castro, Gustavo Bones e Aline Vila Real), Karol Pacheco, Marcondes Lima, Mariana Pires Santos, Mateus Araújo, Ronaldo Adriano, Ruy Filho e Walter Alves. *As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

PLATAFORMA TREMA! tremarevista@gmail.com tremaplataforma@gmail.com facebook.com/tremaplataforma www.tremaplataforma.com.br +55 (81) 9 9203 0369 | (81) 9 9223 5988

Tiragem: 500 exemplares (por edição) Impresso pela Brascolor ISSN: 2446–886X

Edição da ESPECULAÇÃO | Nº #3 | Ano #1 | Recife, Novembro de 2015

Realização:

Incentivo:

A TREMA! Revista de Teatro de Grupo é uma publicação com incentivo do FUNCULTURA – Fundo de Incentivo a Cultura de Pernambuco.


pergunta

foto: esquema do projeto de jardim vertical feito por patrick blanc (istanbul bienali 2015)

TREMA!5/5

“Nos esquemas do capital, terra se especula ao máximo. Exemplos? As cidades brasileiras, os campos, as avenidas à beira-mar, o latifúndio. A terra possui intervenção plástica, estética para ricos e pobres. Estética para os saciados e de sobrevivência para os famintos.”

WALTER ALVES P SICÓLOGO NO RECIFE


especular1 1 Relativo a espelho. 2 Diz-se de brilho semelhante ao do espelho. 3 Diáfano, transparente. especular2 1 Estudar com atenção e minúcia sob o ponto de vista teórico 2 Meditar, raciocinar 4 Negociar no mercado de capitais ou câmbio com o objetivo de auferir lucros, aproveitando-se de uma situação temporária do mesmo mercado. 5 Jogar na bolsa de valores ou de mercadorias 6 Lançar mão de recursos especiais para iludir alguém em proveito próprio 7 Vigiar

ISSN: 2446–886X

esculturas feitas a partir de pedaços de prédios bombardeados no líbano - "pillars" de marwan rechmaoui (istanbul bienali 2015)

3 Colher informações minuciosas acerca de alguma coisa


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