TREMA! Revista - Edição da Facção [01]

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EDIÇÃO DA facção

ANO 1

#1 JUNHO 2015

TREMA! revista de teatro de grupo


grupo é facção ?


pergunta

TREMA!1/6 “Claro que sim! Em tempos de individualismo exacerbado, pensar coletivamente é um ato de resistência, de subversão, alteridades e, acima de tudo, um ato de amor!!!” NEI CIRQUEIRA AT O R , D I R E T O R E P R O F E S S O R D E T E AT R O

pergunta

TREMA!2/6 "Acredito que existem facções que dividem um mesmo grupo, que exista um ideal coletivo, mas que subdivisões (micro-organismos) estejam ali presentes. Grupo seria a formação (explícita ou não) de pequenas facções, pois somos todos diferentes e parciais, sendo a homogeneidade, que se idealiza para um grupo, impossível de ser concretizada." IVSON MENEZES J O R N A L I S TA


colaboradores desta edição ERRO GRUPO O ERRO nasceu em 2001, em Florianópolis (SC), a partir do objetivo de seus integrantes de experimentar a arte como intervenção no cotidiano

EDUARDO MOREIRA

PAULO MARCONDES

das pessoas e sua interdisciplinaridade

Ator e diretor de teatro, sendo um dos

Letrista de música, sociólogo e

de conceitos e áreas de linguagem.

fundadores do Galpão (MG). Atuou

professor do Programa de Pós-

em todas as montagens do grupo

Graduação em Sociologia da UFPE,

e em filmes brasileiros. Dirigiu "Um

onde desenvolve pesquisa em

Molière imaginário", do Galpão, além

sociologia da arte.

de outros espetáculos.

GUILHERME LUIGI Designer graduado pela UFPE com mestrado em design de produto na ELISAVA, em Barcelona, desenvolve

FRED NASCIMENTO

SILVERO PEREIRA

MARCONDES LIMA

sua carreira profissional com foco

Professor de artes cênicas,

Ator cearense, diretor e produtor de

Mestre em teatro pela UFBA e

na área cultural. Participou da 10ª

encenador, músico e pesquisador da

teatro. Graduado em artes cênicas

professor do curso de licenciatura em

Bienal da ADG recebendo destaque

performance e suas contaminações.

pelo Instituto Federal de Educação e

teatro da UFPE. É integrante do Mão

com a identidade visual do Centro

Dirige o Totem desde sua fundação,

Tecnologia do Ceará – IFCE. Fundador

Molenga Teatro de Bonecos (PE) e do

de Artesanato de Pernambuco

em 1988. É mestre em artes cênicas

do Coletivo Artístico As Travestidas,

Coletivo Angu de Teatro (PE). Atua

e integrou a Exposição com seu

pela UFRN, especialista na mesma

onde desenvolve sua pesquisa

como encenador, cenógrafo, figurinista

trabalho de mestrado: “El millor

área pela UFPE e graduado em

sobre teatro como instrumento de

e maquiador, em teatro, dança e ópera,

disseny de l'any” em Barcelona (2011).

educação artística – licenciatura

transformação social e a poética

além de fazer incursões em audiovisual

Conheça mais sobre os trabalhos em:

plena em artes cênicas, pela UFPE.

performática do ator-transformista.

e cinema como diretor de arte.

guilhermeluigi.com

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IMPRIMIR O QUE VOCÊ TEM DE MELHOR, É O NOSSO COMPROMISSO. Av. Norte Miguel Arraes de Alencar, 3311 Rosarinho | Recife | PE | 52041-080 Fone: (81) 3366.9000 |www.brascolor.com



EDITORIAL Teatro se faz junto. Como num movimento político. Este é o espírito que conduz nossa leitura pelas páginas a seguir. Ideal norteador de atuação dos diferentes grupos e coletivos do Brasil, a verve colaborativa surge aqui como um propósito, a partir da criação de uma plataforma cultural, nascida festival em 2012. Agora, “o” TREMA! passa a ser “a” TREMA!, irradiando-se para outras ideias e atividades, entre as quais a publicação desta revista, que se destina a ser palco de discussões contemporâneas sobre cultura, arte, política, como já faz o teatro de grupo, nosso maior elo, em seus trabalhos e contribuições mundo afora. Por isso, a TREMA! Revista chega para ser uma publicação temática. A cada dois meses, suas páginas sairão às ruas em busca de olhares interessados em assuntos-chaves do nosso viver atual e teatral, como “facção”, “violência”, “especulação”, “esquecimento”, “corpo” e “ficção”. Até abril de 2016, serão estes os temas que guiarão as primeiras edições do projeto, apoiado pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura). Eles dizem respeito a questões que instigam as ações da plataforma, sem nos servir de amarras. São, na verdade, pontos de partida capazes de nos provocar reflexões e debates em frentes variadas de informação – desde ensaios até notas sobre o processo de criação de uma peça. Nesta edição inaugural, trazemos o conceito de facção por meio de artigo, entrevista, crítica, perfil, imagens e relatos sobre o fazer cênico, em diferentes histórias e perspectivas, sobretudo vindas de "dentro. No perfil, por exemplo, o Grupo Totem, do Recife, nos apresenta sua multitrajetória entre a performance, o teatro e a dança. Na entrevista, por sua vez, temos a fala de dois representantes de grupos de teatro com estrada trilhada e consolidada no País: Clowns de Shakespeare (RN), na voz de Fernando Yamamoto, e Ói Nóis Aqui Travêiz (RS), na figura de Tânia Farias. Na seção de Nota de Procedimento, seguida por uma crítica, trazemos bastidores e impressões em torno do espetáculo “BR-Trans”, destaque da última edição do TREMA! Festival de Teatro de Grupo do Recife, em 2015. Primeiro, pela narrativa do ator, diretor e dramaturgo cearense Silvero Pereira; segundo, pelo olhar do professor, pesquisador, cenógrafo e diretor Marcondes Lima, autor de uma análise à altura do mesmo trabalho, que versa sobre como é viver na pele de uma travesti no Brasil. Facção aqui não assume, portanto, um único sentido, mas uma polifonia de significados. É a nossa palavra para pensar a noção que rege a revista e a sua relação com colaboradores e leitores: a ideia de grupo, de bando, de agremiação. O que quer dizer hoje em dia atuar em coletivo? E em Pernambuco? Quais os desafios e a importância de um fazer teatral grupal? Arte é política? Como? Com intuito de gerar uma ebulição de respostas a questões como estas, nosso propósito é estimular uma rede do Recife para outros lugares, buscando fortalecer a produção artística, pernambucana e brasileira. Por fim, nosso intuito é mostrar que viver só é possível junto. Boa leitura! Até a próxima edição em agosto, sobre violência.

RECIFE, JUNHO DE 2015

p­ — 6


A P T

R T & O L I C

E Í A

uma dimensão relativa PAULO MARCONDES FERREIRA SOARES paulomfsoares@gmail.com

"follow your dreams", grafite de banksy - foto: wayne marshall

TREMA!_facção

p­ — 07


ARTIGO

A

dimensão arte e política é bem complexa e a tratarei aqui de um modo

mona lisa, "l.h.o.o.q." – marcel duchamp

mais analítico e um tanto abstrato. Assim, procurarei traçar alguns pontos que ensejam uma reflexão sobre essa questão, particularmente no que

se referem às configurações atuais das manifestações artísticas em coletivos, no uso de redes e modalidades alternativas, e, em certos casos, de afrontamento aos meios e circuitos instituídos do mundo artístico. A orientação imediata que procurei dar à maneira de pensar a relação arte e política no presente deve seguir, em todo caso, uma postura que privilegia um entendimento de que, ao falar de novas modalidades do fazer artístico, somos prontamente levados a reconhecer processos aí envolvidos que tanto dizem respeito a algo já manifesto nas artes da vanguarda histórica e do contemporâneo, como a legados de um passado recente; quanto a elementos e situações que se apresentam como próprios de nossa época, em suas formas artísticas. Um e outro processo devem ser traduzidos como expressões de políticas da arte.

E L O I N D I S S O C I ÁV E L Espaços de manifestação da arte são espaços legitimados no âmbito das próprias práticas artísticas. Assim, são como campos de forças em disputas, que é o que configura a dimensão política da arte – seu elo indissociável. Este seria identificado em muitas das ações que, de tempos em tempos, na história da arte, desde os fins do século 19, tenderam a deslegitimar as suas formas mais consagradas – a exemplo das inovações tecnológicas ocorridas naquele século e que logrou estabelecer uma ruptura ou uma descontinuidade com “modelos clássicos de visão” e, consequentemente, gerar um amplo processo de “reorganização do conhecimento e das práticas sociais”, modificadoras das “capacidades produtivas, cognitivas e desejantes do sujeito humano”. 1 O debate sobre o que é político na arte, sobre seu caráter pedagógico e sobre a missão do artista e do intelectual comprometidos com as causas e as transformações políticas da sociedade e de seu tempo é, sem dúvida, um dos mais profícuos desde o advento do capitalismo. Nele, não apenas o poder, mas a produção e o mercado passaram a ser um ponto nevrálgico do fazer artístico. Por exemplo, muitas são as releituras paródicas da obra “Mona Lisa”, de Leonardo Da Vinci. São ready-mades constituídas de materiais e técnicas próprias de seu tempo, era da alta reprodutibilidade: fotografia, gráficos, silkscreens e grafites. Num sentido muito geral, pode-se ressalvar que o dizer político na arte não fica restrito a um tipo de reivindicação de um caminho de participação social que a transforme em mero instrumento de condução de mensagens de conteúdo político. Essa seria, por certo, a forma mais redutora, instrumental e empobrecedora do uso da arte, em seus diversos modos de expressão. Pode-se afirmar que, em arte, não se deve ver ou interpretar um conteúdo ou referente mimetizado sem que se tenha em consideração questões de linguagem. Quero com isso dizer que o filtro por onde se apreende o conteúdo artístico é pela sua indissociabilidade com a forma – portanto, não pelo que é dito, mas como é dito. A forma não é expressão dada, acabada: a forma não se materializa sem determinadas propriedades específicas da linguagem; entre elas, podemos aludir relacionalmente a campos de referencialidades, tais como: o cotidiano, a política, o mercado de consumo, bem como questões de sexualidade e gênero, corpo e representações, cor e etnicidade; relativizando-se, assim, qualquer ideia sobre o que são fatores estéticos ou extraestéticos aí envolvidos. Pensar arte implica o reconhecimento da necessidade da pesquisa com a linguagem, sua experimentação; enfim, suas formas inventivas do dizer.

1 CRARY, 2012, p. 13. CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

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"mona lisa" - banksy


"mamary lisa – alfred gescheidt

Essa é uma das preocupações de Walter Benjamin, quando, em seu ensaio “O autor como produtor” 2 , procura tecer considerações acerca do controle do artista sobre sua produção. Em seu argumento, procura designar o conceito de técnica, entre outras coisas, como ponto de partida dialético de superação para o que considera um infecundo contraste entre forma e conteúdo. Para ele, a qualidade artística de uma obra é a sua “tendência política correta”. Não significando essa qualidade a obediência aos cânones da instituição-arte, mas a sua função exercida no interior das relações artísticas de produção de uma época, ou seja, sua política de arte no interior dessas relações. Nesse sentido, Benjamin percebe que não é suficiente a qualidade artística se o artista perde o controle da obra enquanto produtor. Com referência aos movimentos artísticos mais significativos da Alemanha de sua época (destaque para Ativismo e Nova Objetividade), indica que, apesar do poder que esses movimentos tinham para pensarem seu trabalho e sua técnica artística de um ponto de vista revolucionário, findaram por não ultrapassar o hiato existente entre esse trabalho e sua relação com os meios de sua produção. Cito uma passagem na qual o autor diz o seguinte: a tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contrarrevolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor. 3

Pode-se dizer, por fim, que uma questão emblemática posta em pauta na observação de Benjamin é o problema da indissociabilidade entre a linguagem artística e as condições sociais de sua produção. Esse é um elo substantivo que deve ser tomado em consideração se quisermos escapar do encantamento ingênuo sobre os alcances políticos da arte relativos a projetos de transformação. Quaisquer manifestações que articulem arte e cotidiano – e seu processo político e social – devem fazê-lo mediado pela linguagem e por uma metalinguagem capaz de responder aos termos atuais de um espaço expandido da arte, manifesto por uma sinergia de linguagens e pela quebra de fronteiras e/ou dicotomias entre arte e não-arte. Há que se reconhecer que seja o que for que se denomine como artístico, por alguma convenção, requer a sua percepção como linguagem e o contexto em que ela se processa. Pensar o engajamento da arte hoje implica ter em consideração que os processos nela envolvidos e por ela vivenciados resultam da dinâmica de seu diálogo com as transformações do meio: político, econômico, tecnológico e ambiental, configurados em âmbitos local e global; mas, também, por questões étnico-raciais, de gênero e sexualidade, dentre outras instâncias arroladas na luta por identidade e reconhecimento no interior dos novos movimentos sociais. Uma visão restrita que não leve em consideração a interação dialética desses processos, presa a um pressuposto particularista de unidades culturais postas em níveis específicos do local, do nacional, da classe etc., corre o risco de dar forma unitária a uma

2 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas vol. I. São Paulo: Brasiliense, 1987. "mona lisa" - andy warhol

TREMA!_facção

3 Idem, p. 125 e 126.

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ARTIGO sociedade historicamente dividida. Disso, podem resultar dispo-

mento de uma espécie de ativismo político e estético. Esta ca-

sitivos ideológicos mais condizentes com processos ideologica-

racterística mostra-se capaz de dar forma a novas modalidades

mente hegemônicos na sociedade desigual, do que dela contes-

de ação, cujo propósito é o de apresentar modelos alternativos

tador, como julga ser.

de experiências coletivas e subjetivas face ao modelo de eco-

4

No momento atual, há de se ter em mente que, com relação

nomia capitalista global existente. Evidentemente, só é possí-

às novas tecnologias e ao processo de globalização, a arte passou

vel um entendimento do significado de ativismo artístico se ti-

a operar em sistemas de rede, com a incorporação, por exemplo,

vermos em mente um sentido expandido de arte e de política.

de novas mídias, dentre as quais a internet, que possibilitou um

Algo distinto de seus espaços mais instituídos; particularmente,

amplo poder de acessibilidade a produtos estético-artísticos e de

se o considerarmos num jogo de tensão cujo foco de ação se dá

informação, bem como à sua produção e circulação. Veja-se o que

como estratégias de confronto aos problemas mais prementes

diz o cartunista/chargista Carlos Latuff, conhecido pelo seu traba-

da vida cotidiana na contemporaneidade, sejam eles de âmbito

lho em prol da causa palestina, a respeito de sua atuação junto aos

micro ou macropolítico.

manifestantes da chamada “Primavera árabe”:

Assim, é possível reconhecer como experiências ativistas práticas de coletivos e outras formas conjuntas de mobilização,

Esse trabalho que eu tenho realizado na internet não tem uma característica

estejam elas mais diretamente comprometidas com a política ou

editorial, tem uma característica até mais militante. Eu tenho feito isso não

com a arte, tanto em suas lutas por reconhecimento e participa-

para ser publicado em jornal. Acontece da imprensa publicar, mas essa não é

ção, quanto em novas tentativas de reconfigurações do estético.

a meta, a meta são os manifestantes. Fazer arte que possa ser utilizada pelos

Elas pautam-se por um diálogo processual com a práxis da vida,

manifestantes. Como eles utilizam o celular, o twitter, o coquetel molotov, a

fundado na concepção de uma indissociabilidade arte-vida.

5

Kalashnikov, eles também usam a charge.

Um exemplo de arte ativista pode ser identificado no trabalho do artista de rua Yescka, do coletivo Assembleia Artistas

Os trabalhos do artista veiculam imagens sobre o imperialismo,

Revolucionários, de Oaxaca (México). É dele a frase que diz: “A rua

em suas formas de dominação global e regional, mas, também,

é a mais bela galeria que eu posso ter...” 6. O artista criou cartazes

sobre o consumismo, a dominação religiosa, o machismo, a ho-

em que procura relacionar dois episódios de massacre a estu-

mofobia, a política partidária. Como exemplo emblemático disso,

dantes mexicanos: o primeiro em 1968, no bairro de Tlaltelcolco,

note-se a intervenção feita pelo artista em uma famosa fotografia

na Cidade do México, e o outro, em 2014, em Ayotzinapa, Cida-

da Guerra do Vietnam, tirada em 1º de fevereiro de 1968, pelo foto-

de de Iguala, envolvendo 43 estudantes que iriam participar de

jornalista Eddie Adams, que lhe rendeu o Pulitzer de 1969."

um protesto por reformas e mais verbas para a educação. Outros exemplos de sua arte guerrilheira ou de ativismo participativo seguem com “Última ceia mexicana” e “The Rebels”. Diferentemente de certa tendência anterior, na qual o debate político da arte quase sempre se ordenava na forma de um dualismo denunciativo da existência da luta de classes, o engajamento artístico na atualidade, quando escapa provisoriamente às injunções do mercado, não apenas indica novas frentes de reivindicação (gênero, sexualidade, raça e meio ambiente), como aponta, igualmente, que o quadro geral da estrutura capitalista, sob o influxo da globalização, só fez ampliar as formas de desigualdade sociais, políticas e econômicas para um nível planetário. Assim, o cruzamento político e estético vigente em certo

"the coca cola series" - carlos latuff

engajamento na contemporaneidade manifesta-se na forma de arte pública, de coletivos, de redes de compartilhamento, utilizando-se, quase sempre, de instrumentos de mídia radical

S E N T I D O E X PA N D I D O

ou tática, a partir dos quais se opta por formas alternativas de procedimentos ético-estéticos em contraposição à arte e à mí-

As novas possibilidades geradas pelos sistemas de rede se

dia comerciais. Isso sem que se abra mão das possibilidades in-

apresentam como particularmente relevante quando se têm

ventivas de expressão das linguagens artísticas, inclusive com

em pauta as lutas por reconhecimento travadas pelos atuais

a ampliação das condições de acesso aos novos “medias”, em

movimentos sociais, ao ensejarem, em suas bandeiras, o cruza-

termos de produção e circulação de produtos artístico-culturais e de informação.

4 ZILIO, Carlos et al. Artes plásticas e literatura. O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. 5 Em entrevista concedida ao jornalista Sérgio Aguiar para o programa “Globo News em Pauta”, em 30 de agosto de 2011. Disponível em: www.youtube.com/ watch?v=7ij4x7Dbvqo

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Em tendências mais gerais desses tipos de manifestações, parece predominar uma estética crítico-paródica de expressão

6 Disponível em: http://guerilla-art.mx.


frontline do occupy wall street - foto: divulgação

anti-imperialista e antiglobalização, consonante com as novas

ocupação, seja de áreas urbanas, seja de espaços que se confi-

formas de luta por reconhecimento, sobretudo das minorias.

guram como símbolos do capital e da desigualdade social glo-

Estão aí ações de intervenções urbanas, como ocupações de

bal. São ações por grupos sociais em prol de um maior contro-

espaços e outras modalidades manifestas presencialmente,

le sobre os tipos de política e de planejamento que se quer ver

mas ainda articuladas em redes; ações de intervenções unicamente processadas em redes, como forma de mobilizar protestos; ações afirmativas de “subculturas” locais e regionais e do pós-colonial, como reconhecimento político

implementados e, particularmente, na luta por garantias de uma maior participação cidadã com respeito aos rumos a serem definidos em favor da igualdade de condições, de poder e de escolhas; enfim, de justiça social. São

e estético do outro etnicamente.

ações cujas características mais gerais dispensam

Contudo, não se pode julgar esses novos arran-

qualquer liderança ou protagonismo específico,

jos como mera expressão de uma nova modalidade

mas resultam em forte impacto político e so-

de realismo, visto que não se trata especificamente

cial, dado o grande espectro de reivindicações

apenas da criação direta de formas de representa-

e de veiculação de mensagens.

ção, mas, em certo sentido, de outro caminho, que é o

Em termos do espaço urbano, algo nessas ações pode tanto gozar de uma interpenetra-

menos em algumas tendências, de uma radical quebra

ção com o seu entorno, quanto pode se en-

de fronteiras entre experiência artística e experiência de vida, já tentada alhures. Aqui, as artes são manifestas em modalidades e em tipos de apropriações que não só não distinguem mais suportes, objetos, circuitos, linguagens,

"guerillaartmx" - yescka

recrudescimento da experimentação na arte atual. Ao

contrar em isolamento. É possível considerar, portanto, que intervenções artísticas podem se traduzir como manifestações de sinergia com ações de transfiguração nesses espaços,

como procuram igualmente um estado de coisas que não

sejam elas de fundo empresarial, seguindo in-

delimite, mas afirme um sentido performativo da vida.

teresses claramente mercadológicos e priva-

Isto pode ser visto em manifestações de coletivos em

tistas; sejam em modos mais espontâneos de

arte, residências e modalidades afins.

movimentos que passam a ressignificar essas

Outro exemplo desse processo pode ser identificado em ações de intervenções artísticas no espaço urba-

áreas em bases transformadoras de novos espaços de convivência, de âmbito coletivo – daí,

no, considerando-se que esse espaço implica um fluxo

podem surgir novos projetos de ocupação des-

incessante e de significado plural. Fluxo que se dá em

ses espaços como espaço público. No primeiro

movimentos de direções múltiplas. Nesse sentido, as

caso, o isolamento se mantém na forma de espaço

ações de grupos artísticos operam nesses espaços em

privado; no segundo, ele tende a se romper, tornando-

movimento e a partir de toda sorte de elementos aí ma-

se áreas comuns de participação cidadã, o que possibilita a

nifestos, sob a dinâmica daquilo a que me referi como

transfiguração desses espaços através de interações criativas e

campo de forças em disputas – em espaços tensionados pela configuração e transfiguração do que eles têm de

de permanente transformação. Fica-nos o já referido alerta benjaminiano da necessidade,

próprio e também de não lugares, de arcaico e de moderno, e

por certo utópica, de uma configuração da unidade autor-pro-

do que nos revela como vibrante e vivo, e como amorfo e morto.

dutor; condição, talvez, para o que se possa identificar como fun-

Isso pode ser mais diretamente relacionado às ações de TREMA!_facção

damento para o artista-ativista hoje. T p­ — 11


ERRO GRUPO


hasard - divulgação


Hasard H

ASARD é um jogo aberto onde todos podem participar. Todos fazem parte do HASARD. O HASARD tem quatro finais e nós perdemos em todos eles. Em um dos finais, nós perdemos o público.

Em outro, perdemos nossas cartas. Em outro, falamos sobre as nossas perdas e em outro, nós perdemos as nossas roupas. Convidamos todos para perdermos todos juntos. As propagandas atentam contra o nosso pudor. A publicidade atenta contra o nosso pudor em não consumirmos. O comércio atenta contra o nosso direito de não consumir, contra o nosso direito de não jogar o jogo proposto pelo capitalismo. O mercado corrói o nosso direito de não apostarmos nessa roda financeira. Apostamos muito mais do que as nossas roupas nesse mercado voraz, onde as únicas relações humanas que importam são as de compra e venda. Apostamos as nossas vidas em um mercado no qual a perda atinge muitos e os ganhos são de poucos. Cabe a nós mudarmos o jogo e perderemos novamente nos finais de HASARD. Temos quatro maneiras diferentes de perder e continuaremos perdendo como perdemos nessas seis apresentações. Nossos esforços serão concentrados para mantermos o nosso direito de perder publicamente em nosso local de trabalho: as ruas. Pela liberdade de expressão. Não estamos encenando uma perda prazerosa, estamos fazendo essa perda real que vivemos. A perda da crise. O nu não é o problema do HASARD, o nu é um respiro no meio de tantas mazelas. Os principais problemas no HASARD são os jogos de azar que compõem as cenas, as baratas que saem dos bueiros abertos durante a peça, as cenas que representam a opressão aos direitos do cidadão, os alarmes intermitentes que alertam o perigo, a circulação desenfreada de papéis em todas as cenas da peça, a manipulação dos cidadãos através dos meios de comunicação, o controle exercido pelas formas de manutenção do poder, a ilusão do entretenimento etc. Ou seja, o nu é a derrota, é a perda, é como a dívida que as pessoas contraem e ficam escravas das parcelas e dos juros. A economia atual provoca a morte de nossa liberdade, através do oferecimento de créditos, das apostas em investimentos e da presença exacerbada do consumo em nossas vidas. O comércio domina a cidade, vemos isso nas ruas, a cada passo que damos. O HASARD tenta revelar isso, todos os finais de HASARD são sobre essa dominação do mercado em nossas vidas, em nosso cotidiano. Não existe uma ordem para os atores do HASARD tirarem todas as suas roupas em um dos finais da peça. Os finais valorizam a decisão do público e as próprias vontades dos atores no momento, no próprio instante do final. É um jogo e todo jogo é imprevisível. Cada um está livre para perder.

p­ — 14

DESTERRO, 19 DE AGOSTO DE 2012.


"hasard" - foto: divulgação

TREMA!_facção

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DE QUE PÚBLICO É O ESPAÇO PÚBLICO?

"geografia inútil..." - foto: leco rezende

Nós do ERRO Grupo nos posicionamos radicalmente contra a taxa co-

Grupo, informando que o ERRO Grupo estaria realizando uma sé-

brada aos artistas de rua para obterem autorização de uso do espaço

rie de atividades culturais no Centro da cidade, como o grupo

público pelas suas manifestações.

sempre fez nestes 14 anos que trabalhamos nas ruas. Ao prefei-

A tática de controle do espaço público, que alega ter a neces-

to Cesar Souza Junior; ao superintendente da Floram, Volnei Ivo

sidade de “ser informada com antecedência”, a fim de “organizar”

Carlin; à superintendente do Iphan SC, Liliane Janine Nizzola; ao

o espaço, é falha e estupidamente contraditória ao Artigo 5º, XVI,

secretário do Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano Arqº,

da Constituição da República Federativa do Brasil, que garante a

Dalmo Vieira Filho; ao secretário de Cultura e presidente da Fun-

liberdade de expressão a todos os cidadãos.

dação Cultural de Florianópolis, Franklin Cascaes Luiz Ekke Mou-

Nós do ERRO Grupo não compactuamos com a privatização do espaço público, a higienização das áreas urbanas e o controle sobre as manifestações, culturais e políticas, de livre expressão.

karzel; ao superintendente do Ipuf, Dacio Medeiros; e ao coronel do 4º Batalhão da Polícia Militar de Florianópolis. Não concordamos com o pagamento da taxa e com a regulamentação de espaços específicos para a livre expressão cultural. O governo deveria gerenciar, de maneira gratuita, as atividades culturais no espaço urbano, sem limitar espaços apropriados, e a cobrança de qualquer taxa que fere a Constituição Federal.

O valor da taxa é simbólico? Exatamente, pois simboliza que o espaço público não é público.

Sendo assim, respaldados pelo Artigo 5º da Constituição Federal,

Sabemos que muitos dos espaços públicos da cidade estão sendo,

cientes de que a prática da Prefeitura Municipal de Florianópolis

e foram, vendidos arbitrariamente.

é inconstitucional e assumindo nossa posição política perante

Hoje, 26/3/2015, minutos antes de iniciarmos a apresenta-

esta situação, optamos por não mais solicitar autorizações, atra-

ção de "Geografia Inútil...", fomos abordados por duas fiscais da

vés do Pró-cidadão, aos órgãos responsáveis, para a realização

prefeitura, acompanhadas de dois guardas municipais, nos obri-

de nossas apresentações no espaço público, atividades de nos-

gando a cancelar a apresentação no Largo da Alfândega. O ERRO

so trabalho que se desenvolve nas ruas, por não concordarmos

não acatou a sugestão de mudança de espaço e, assim, uma fiscal

com as taxas cobradas e o controle rígido de espaços específi-

retirou a energia de nossos equipamentos de som, CENSURANDO

cos para a livre expressão artística pela PMF, e nos comunicamos

a livre expressão artística na cidade. Uma censura à arte pública.

diretamente com as secretarias responsáveis protocolando, em

Até quando acataremos as decisões que somente favorecem

diversos órgãos municipais, um documento redigido pelo ERRO TREMA!_facção

aos megaeventos e castram o artista em seu trabalho ordinário? p­ — 17


"geografia inĂştil..." - foto larissa nowak



GRUPO, FACÇÃO, COMPANHIA os desafios de uma arte coletiva EDUARDO MOREIRA eduardodaluzmoreira@gmail.com

"romeu e julieta" - foto: glenio campregher

p­ — 20


C

ompletando 32 anos de trabalho teatral ininterrupto, com 23

soam cheios de ingenuidade e rompantes de coragem juvenil, com

montagens que celebraram encontros com artistas das mais

sentido de elaboração artística um tanto tosca. Mas, ainda assim,

diferentes origens e pensamentos teatrais, o Galpão conti-

já estavam ali presentes alguns princípios que foram, e continuam

nua a se debater continuamente sobre a questão da organização

sendo, balizadores da nossa prática durante essa longa jornada.

do trabalho coletivo. Como fazer com que as individualidades se

Que princípios seriam esses? Antes de mais nada, a ideia de um

façam reconhecidas e satisfeitas numa estrutura de grupo? Como

coletivo que se organizasse para além de uma mera montagem e

articular um pensamento coletivo com os interesses individuais?

buscasse um projeto de organização teatral de longo prazo. Tudo

Num mundo cada vez mais pressionado pelos anseios de realiza-

isso com o intuito de desenvolver um teatro calcado na busca de

ção e reconhecimento pessoal, como manter projetos coletivos?

uma linguagem, sendo essencialmente experimental. O sentido

A equação nunca foi simples e os desafios são permanentes. Cada

desse “experimental” no nosso teatro sempre foi entendido como

novo projeto delineia uma nova articulação em que interesses,

a busca por experiências que nos renovassem e, acima de tudo,

vontades e desejos se reagrupam e se rearranjam, numa espécie

nos ensinassem como artistas e seres humanos.

de eterno retorno, no qual somos sempre obrigados a repensar a questão do teatro de grupo. Voltemos um pouco no tempo. O começo da nossa formação

MÚSICA EM CENA

se dá num momento de grande efervescência política, em que um embrião de sociedade civil começa a se organizar e a reivindicar a

A introdução e o desenvolvimento da música em cena é um exem-

volta de um estado democrático que a minha geração (nascida no

plo bem claro desse tipo de caminho que um movimento tea-

início dos anos 60) não conhecia. O movimento teatral, na vanguar-

tral, calcado na ideia de grupo, tem muito mais possibilidade de

da cultural até 1968, havia sido brutalmente perseguido e censura-

construir e solidificar. Em 1988, quando começamos a fazer nossas

do, o que gerou uma dispersão

primeiras viagens internacio-

e um isolamento brutal, no qual

nais, entramos em contato com

cada um procurava sobreviver

grupos como o Yuyachkani, do

como fosse possível. Depois de

Peru, que usavam, com grande

uma década de fortes índices de

maestria, a música em seus es-

expansão econômica, a crise se

petáculos, especialmente os de

instala e os militares começam

rua. Assistindo a seus espetácu-

a tremer em sua hegemonia au-

los, podíamos sentir a força da

toritária. Sindicatos e entidades

música ao vivo, como elemento

de classe voltam a se aglutinar e

de empatia e de comunicação

a reivindicar o direito de organi-

com o público. A experiência

zação e o retorno das regras de-

teve um poderoso impacto e,

mocráticas. Bandeiras como a da

quando retornamos da viagem,

anistia, do retorno dos exilados e

fizemos um pacto: começaría-

das eleições livres ocupam espaços. No início, ainda são tímidas

mos a estudar coletivamente wanda fernandes e eduardo moreira em "romeu e julieta" - foto: magda santiago

e cheias de receio, mas, pouco a

uma teoria musical básica e cada um, individualmente, escolheria

pouco, vão tomando fôlego e saindo dos espaços restritos dessas

um instrumento musical e faria aulas particulares. O objetivo do

entidades para ocupar o rebuliço das ruas.

projeto não era um próximo espetáculo, mas, sim, uma perspectiva

Esse desenho de luta política foi determinante na nossa

de médio prazo. E assim aconteceu. Esse ciclo de trabalho que co-

formação como grupo teatral. Quase todos os integrantes que

meçou em 1988 só veio dar resultados mais palpáveis quatro anos

fundaram o Galpão eram oriundos de movimentos artísticos que

depois, quando, na estreia de “Romeu e Julieta”, constituímos uma

se formaram e atuavam essencialmente junto às universidades.

pequena banda que executava as músicas ao vivo, em cena.

Além desse elemento de organização política, outro pilar para

Além disso, num contexto onde o teatro de Belo Horizonte

nos constituirmos como coletivo foi o fato de termos estabele-

se organizava de maneira semiprofissional, no qual a maioria dos

cido um encontro com dois diretores da companhia alemã Teatro

grupos vivia de forma amadorística, em que os atores faziam tea-

Livre de Munique. Ali se estabeleceu um processo de formação

tro e se sustentavam a partir de outras profissões, tínhamos claro

fundamental para que conseguíssemos falar uma mesma língua

que a nossa perspectiva era de viver só do teatro – ainda que nos

teatral comum. Curiosamente, são esses mesmos alemães que

equilibrássemos de maneira precária e dependêssemos essen-

vão nos aproximar de uma linguagem de teatro de rua. Depois de

cialmente das benesses familiares. Para isso, era preciso que nos

uma oficina de um mês no Festival de Inverno da UFMG, nas ruas

entregássemos a um tipo de teatro que rompesse com seus limi-

da cidade de Diamantina, e de dois meses e meio de ensaios para

tes e fosse ao encontro dos mais diversos espaços e possibilida-

a montagem do espetáculo “A alma boa de Setsuan”, de Brecht,

des. Era necessário ocupar todos os espaços disponíveis e fazer o

aquele grupo de atores conseguia articular um modus operandi

teatro acontecer onde fosse possível. Não é à toa que o teatro de

teatral que era reconhecido e praticado por todos.

rua acabou por se constituir uma alternativa extraordinária de so-

Olhando com os olhos de hoje, esses primeiros passos me TREMA!_facção

brevivência. Se o acesso aos poucos espaços teatrais disponíveis p­ — 21


sindicatos, organizações de moradores, empresas etc. O início se estabelece como um coletivo compacto no qual todos se igualam e fazem de tudo ao mesmo tempo, sem grandes diferenciações de aptidões e talentos. Uma espécie de fábula rasa em que todos são iguais e têm os mesmos atributos, sem distinções. Logo a realidade vai nos aplicar as primeiras rasteiras. Os chamados “anos heroicos” da nossa formação, que se arrastam por uma longa década, vão apontar para o fiasco de um modelo inconsciente de “direção coletiva”:

"a rua da amargura" - foto: gustavo campos

era muito restrito, nós tínhamos a opção de vender espetáculos para prefeituras,

diretores e artistas convidados. Um coletivo de atores sem um diretor fixo. Outra experiência fundamental é a necessidade premente que o grupo inaugura, desde a sua mais remota fundação, de estar sempre em circulação, estabelecendo trocas com artistas e com o público em geral. A partir de viagens e encontros com grupos de teatro por todo o Brasil, e pelo mundo, os integrantes do Galpão passam a perceber a importância da função social que precisa ter a nossa atividade com o teatro. O encontro com grupos mais longevos e estruturados, especialmente na Europa e na América Latina, são fundamentais para o grupo adquirir sua própria sede e começar a desenvolver projetos voltados para a comunidade. Nesse sentido, a experiência de uma turnê por 12 cidades da Itália, em 1989, foi fundamental. Ali fomos recebidos por 12 grupos ligados ao movimento do “teatro antropológico” de Eugenio Barba, que, além de terem sedes

"um molière imaginário" - foto: miguel aun/gustavo campos

uma estrutura pouco usual de um grupo de atores que trabalham com diferentes

com oferecimento de cursos e bibliotecas abertas à comunidade, desenvolviam

M Ú LT I P L O S Vem daí o embrião para iniciativas que vão brotar e ser desenvolvidas ao longo da segunda fase dessa história de mais de 30 anos. Esse período começa mais ou menos em 1992, com a estreia de “Romeu e Julieta” e de outros espetáculos, como “A rua da amargura”, “Um Molière imaginário” e “Um trem chamado desejo”, que consolidam uma trajetória de sucesso e de reconhecimento do trabalho do Galpão por parte de uma plateia mais ampla e de uma mídia mais expressiva. A estrutura do grupo se fortalece e possibilita empreendimentos como a orga-

"till, a saga de um herói torto" - foto: guto muniz

festivais internacionais anuais em suas cidades.

nização do festival internacional de teatro, que posteriormente vai dar origem ao FIT BH e à fundação do Galpão Cine Horto, em 1998. Ambas as iniciativas consolidam a ideia de um teatro essencialmente voltado para uma estreita relação a difícil equação de circular permanentemente e de criar uma base de atuação em Belo Horizonte. Uma espécie de esquizofrenia entre estar sempre na estrada e construir uma casa se estabelece e cria muitos conflitos internos. A fase seguinte traz a característica em que, cada vez mais, os projetos individuais despontam e o anseio coletivo precisa dialogar com uma diversidade ainda maior de ofertas e alternativas pessoais. O grupo, que dá seus primeiros passos como um coletivo coeso, com uma cara única, se diversifica, ganha novos contornos. Artistas na faixa dos 50 anos, ávidos por uma assinatura autoral, imprimem, cada vez mais, a necessidade de um projeto coletivo que dê vazão aos anseios pessoais. A estrutu-

"gigantes da montanha" - foto: guto muniz

com a comunidade. É o momento também no qual o Galpão se vê às voltas com

ra do Cine Horto permite a alguns a possibilidade de viver outras experiências não viabilizadas ou contempladas pelos projetos escolhidos pelo grupo. Convites para parte do nosso cotidiano. Ainda que a conciliação seja muitas vezes complicada e crie certos atritos, o coletivo entende que tais experiências são importantes e que a estrutura do grupo precisa se flexibilizar para absorvê-las. Cada vez mais o perfil de um grupo heterogêneo se impõe como um coletivo de atores que não só se encontram e criam com artistas convidados dos mais diferentes matizes, mas também o fazem individualmente, pois precisam viver outras experiências fora do grupo. p­ — 22

"de tempos somos" - foto: guto muniz

outras formas de expressão, como o cinema e a televisão, também passam a fazer


"tio vânia" - foto: guto muniz

A própria narrativa da história do Galpão se torna multifacetada.

anos, o que significa dizer para depois de nós mesmos. A questão de

Frequentemente, o coletivo discute e se divide em relação à con-

um possível legado que queiramos deixar se faz presente também e

veniência de uma prática tão diversificada. Por um lado, encontros

nos é imposta de forma bem arriscada e escorregadia.

e experiências tão variadas nos possibilitam o desenvolvimento

Cada vez mais, assistimos ao fenômeno dos grupos se entre-

de um espírito aprendiz e mutante, que precisa sempre se adap-

gando a experiências de trocas, fusões, intercâmbios. Tais experi-

tar a novos princípios e normas, impedindo, assim, a consolidação

mentos são transformadores e fazem com que seus limites e suas

de determinados hábitos e procedimentos viciados. Por outro lado,

identidades se tornem permeáveis e sujeitos a novas influências e

menos otimista, tal característica nos impede um aprofundamento

transformações. Creio que essa é uma tendência do mundo con-

maior em linhas e procedimentos artísticos com os quais tivemos

temporâneo. As fronteiras se desmancham, as raças e os gêneros

contato e dos quais não conseguimos nos apropriar devidamente. A

se misturam, se multiplicam e, por mais conservadores que muitas

velha polêmica entre a especialização e a diversidade.

vezes os homens e as sociedades queiram se impor, tudo que é só-

E aí tocamos num ponto fundamental dessa atividade, es-

lido se desmancha no ar. As transformações se colocam de forma

pecialmente desse teatro que convencionamos chamar de teatro

cada vez mais rápida e avassaladora. É preciso que nos ajustemos

de grupo: a sua capacidade de se reinventar, ao mesmo tempo em

a elas e isso significa ser capaz de ser mutante, abrir-se a novos

que se mantém unido por um tempo tão longo. Recentemente,

aprendizados sem perder a essência; ir em busca de novos cami-

numa oficina com a atriz e diretora Miwa Yanagizawa sobre a es-

nhos que ao mesmo tempo dialoguem com a tradição, nos trans-

cuta no teatro, a pergunta mais pungente que nos fazíamos era:

formem e nos atirem ao risco e ao desconhecido.

“Como poderíamos nos surpreender uns aos outros?”. Zerar os há-

O fato é que não existem fórmulas nem saídas fáceis. Estamos

bitos, as conveniências, as expectativas e criar uma relação e um

sempre no meio do redemoinho e é preciso matar um leão por dia.

jogo conduzidos pelo frescor do momento, do “aqui e agora”, as

Nesse exato momento em que escrevo esse texto, estou na cida-

instâncias essenciais do fazer teatral.

de mineira de Araxá. Além de uma série de apresentações, estamos

É quando entramos no que acredito ser todo o grande de-

começando um intercâmbio de reciclagem com dois grupos locais.

safio de um grupo de teatro: romper com a rede de proteção das

O projeto é fazer duas cenas curtas com a participação de dois gru-

relações excessivamente convencionadas e viciadas – estabele-

pos da cidade. As cenas integrarão uma edição do Festival de Cenas

cidas com bastante frequência – e experimentar procedimentos

Curtas em Araxá, com a participação desses dois representantes da

de risco que nos coloquem num lugar de novidade e de estranhe-

cidade junto aos vencedores da edição do Cine Horto em BH.

za. O desafio não é simples e não basta detectá-lo. É preciso estar

O grupo que visitamos hoje foi o Fratelo, oriundo de uma

atento e forte. Como a natureza humana busca sempre a lei do

ação de jovens junto à igreja católica. Ele começou suas atividades

menor esforço, o hábito tende sempre a prevalecer. Por isso, é pre-

fazendo uma representação anual da Paixão de Cristo na cidade.

ciso encontrar surpresas, criar outros caminhos, novas alternativas,

Hoje, já dispõe de uma sede e oferece um curso livre de artes cêni-

subverter o previsível, encontrar o desafio. Colocar-se num outro

cas para jovens. Faz das oficinas uma rotina de sua prática teatral.

lugar. É claro que os caminhos são múltiplos e, todos eles, possí-

Já montou alguns espetáculos, mas não conseguiria manter a sede

veis. No caso específico do Galpão, essa busca pelo inusitado sem-

e os componentes do grupo se não contassem com uma sólida

pre se deu na procura pelo heterogêneo, na diversidade, mesmo

ajuda de uma estrutura familiar. Talvez o grupo supere suas difi-

correndo o risco de termos abandonado percursos que pareciam

culdades e consiga fincar raízes teatrais na cidade. Eles nos dizem

promissores e acabaram ficando pouco explorados.

que começaram a fazer teatro por terem assistido ao trabalho do

Assim como o grupo se vê fustigado pela dicotomia entre cor-

Galpão. Algo me diz que pode ser uma boa aposta. Nada garante

rer pelo mundo, botando o pé na estrada, ou fincar raízes numa casa,

que esteja certo. Mas não temos mesmo outra alternativa senão

também se encontra sempre às voltas com o dilema entre abrir-se

seguir apostando nessa rede viva de interesses, conflitos e paixões

e fechar-se. Tal dicotomia se agrava ainda mais quando pensamos

que constitui a essência primeira dessa arte absolutamente cole-

numa perspectiva de permanência do Galpão para daqui a 20, 30

tiva que é o teatro. T

TREMA!_facção

#FACÇÃO LEITURA VISUAL Guilherme Luigi




TREMA! plataforma

MARIANA RUSU PEDRO VILELA marirusu@gmail.com vilelaproducao@gmail.com

Q

uando o Movimento Redemoinho foi criado em 2004, na cidade de Belo Horizonte, para ser um espaço

de criação, compartilhamento e pesquisa teatral realizado pelo Galpão Cine Horto, grupos de vários estados do País apontavam o desejo patente por trocas e encontros, além da tomada de posição em torno de políticas públicas para o teatro. No entanto, após cinco encontros em diferentes partes do território nacional, o movimento suspendeu suas atividades em 2009, na cidade de Salvador, com um misto de dor, pela incapacidade de alinhar politicamente as necessidades deste país tão plural, e ao mesmo tempo com a possibilidade de desdobramentos e intervenções de ordens artísticas através de grupos que se (re)conheceram a partir dos encontros. Naquele momento a questão urgia: como criar este fluxo, esta rede que congregasse diferentes fazeres teatrais? Quais ferramentas seriam necessárias? Quais agentes deveriam entrar em ação? Importantes experiências de compartilhamentos foram realizadas nos anos posteriores, como os encontros do Próximo Ato (reunindo grupos por regiões) e o Programa Rumos, sendo os dois produzidos pelo Itaú Cultural. Além disso, alternativas onde os próprios grupos foram agentes idealizadores e executores. Durante dois anos seguidos (2012 e 2013), uma rede de colaboradores, em coprodução com o Grupo Magiluth (PE), resolveu encarar o difícil desafio de ser um desses agentes desenvolvedores de ferramentas nas quais se potencializam ações relacionadas ao teatro no Brasil. Estava criado, então, o TREMA! Festival de Teatro de Grupo do Recife. Após o êxito nestas duas edições, decidimos transformar o TREMA! numa plataforma de pensamento em torno do

trema! festival 2013 - foto: renata pires

p­ — 26

teatro de grupo, mais precisamente da-


cipal) como agente fomentador nestas três edições, o que nos leva ainda mais a acreditarmos na importância da construDestaca-se, nesta edição, a parceria com

ção de novos paradigmas e relações que

o Programa Rumos Itaú Cultural, que, em

escancarem a necessidade de diálogo

sua fase de difusão, financiou a oficina

entre arte e sociedade. Precisamos re-

queles que desenvolvem pesquisa con-

“Narrativas urbanas na terra sem lei”, rea-

fletir politicamente sobre os papéis dos

tinuada de linguagem. Por compreender

lizada pelo Núcleo Argonauta (SP) e Cia

diferentes agentes envolvidos. Atenção!

as necessidades que esta função exigia, o

Senhas (PR), além de disponibilizar a exi-

Podemos e seremos uma facção articula-

TREMA! ganha autonomia, não possuindo

bição do documentário “Evoé! – Retrato

da contra esta “ordem” predominante de

mais nenhuma relação com o Grupo Ma-

de um Antropófago”, inédito em solo re-

descaso com a cultura, de desrespeito a

giluth, sendo capitaneado por Pedro Vilela

cifense até então. Nesta primeira edição,

algo que faz parte da nossa Constituição.

e Mariana Rusu, em parceria com Thiago

a TREMA! Plataforma foi composta por

Liberdade e o colaborador Thiago Lira. O

importantes colaboradores: a jornalista

objetivo, portanto, foi o de expandir suas

Dora Amorim (comunicação institucio-

margens, proporcionando à plataforma

nal), o designer gráfico Guilherme Luigi

outras linhas de ação, tais como ocupa-

(material gráfico), além da equipe que

Dando continuidade aos objetivos da

ções de centros culturais, publicações, ati-

integra a plataforma atualmente.

plataforma, chegamos à área de publi-

vidades formativas e coproduções.

AINDA MAIS DESEJOS

Em sua segunda edição, o TREMA!

cações com o lançamento desta TREMA!

O desejo permanecia e ainda perma-

Festival realizou importante parceria

Revista de Teatro de Grupo. Amparados

nece. Estreitar as distâncias geográficas

com o Feteag – Festival de Teatro do

nos modelos desenvolvidos por diferen-

entre os grupos, ampliando o acesso da

Agreste, compartilhando um pensamen-

tes grupos do País, objetivamos agregar

sociedade a estas práticas. Potencializar

to curatorial e os custos de execução, o

reflexões em torno do binômio arte e

artisticamente e gerencialmente a pes-

que possibilitou a ampliação do festival.

política, reunindo importantes pensa-

quisa continuada de coletivos que recriam

A ideia de rede se ampliava não apenas

dores, com conteúdo plural e de acesso

constantemente o imaginário de nosso

entre os próprios grupos, mas também

ao público em geral. Posteriormente, ain-

país. Acreditamos no desejo. Acreditamos

entre outros eventos do estado. Esti-

da desejamos expandir a bibliografia do

no encontro através da arte. Que o teatro

veram no Recife os grupos Lume Teatro

tema com a publicação de livros e con-

seja como a peste sonhada por Artaud, se

(SP), Cia Hiato (SP), Espanca (MG), A Outra

teúdos digitais.

alastrando em epidemia.

Companhia (BA), Teatro Inominável (RJ),

Acreditamos também na potência

além de apresentações dos pernambu-

de procedimentos formativos em teatro,

canos da Cênicas Companhia de Reper-

realizando núcleos de pesquisas e ofici-

tório, do Loucos e Oprimidos da Maciel e

nas com profissionais referendados no

O F E S T I VA L

do Magiluth, entre 15 e 20 de outubro. As

cenário nacional. Desejamos exercitar o

O TREMA! Festival surge como possibili-

duas primeiras edições tiveram apoio do

olhar constantemente para ações que

dade de ampliação da rede de circulação

Sesc Pernambuco, parceiro fundamental

sejam pertinentes ao nosso momento

de grupos teatrais no Brasil, somado ao

para a realização.

artístico e histórico.

desejo de trazer ao Recife espetáculos de

O hiato ocasionado pela não reali-

Estamos ávidos pelo encontro, pela

comprovadas trajetórias que, por diferen-

zação no ano de 2014 foi quebrado com

troca, pelo compartilhamento – do Oiapo-

tes razões do mercado, não passaram pela

a potente edição de 2015, trazendo re-

que ao Chuí. Navegamos no mar de desejos

capital pernambucana.

formulações importantes: a internacio-

para o nosso teatro. O caminho é árduo. É de transformação. Estamos aqui para isto.

A edição inaugural, no ano de 2012,

nalização do festival, a definição por um

teve seu prisma curatorial amparado

novo período de realização (abril) e a as-

pela escolha de grupos que possuíam

sinatura da plataforma como única rea-

circulações nacionais financiadas a serem

lizadora. Este ano, apresentaram-se no

realizadas. A configuração política do País

Recife os grupos Mala Voadora (Portugal),

naquele momento acabou por atrasar e

Coletivo Mazdita (Argentina/Brasil), As

divulgar, no mesmo período, o resultado

Travestidas (Ceará) e os pernambucanos

de dois grandes editais (Prêmio Funarte

do Poste: Soluções Luminosas e Magilu-

Myriam Muniz e Procultura). Assim, con-

th. Com recorte de trabalhos instigantes,

gregamos no Recife, entre 8 e 14 de ou-

o festival homenageou o Movimento

tubro, os mineiros do Teatro Invertido e

Ocupe Estelita, além de refletir sobre a

4los5 - Teatro do Comum; e os paulistas

necessidade de ocupação e resistência

do Teatro Kunyn (SP), que também rea-

do próprio teatro na cidade do Recife.

lizaram uma oficina gratuita, conjunta-

Importante destacar a ausência do

mente com o pernambucano Magiluth.

poder público (federal, estadual e muni-

TREMA!_facção

MUDA A LÍNGUA, MUDA O TEXTO, MUDA A CENA. TREMA! p­ — 27


PERFIL

GRUPO FRED NASCIMENTO fredntotem@hotmail.com

O

Grupo Totem desenvolve, desde 1988, um trabalho de pesquisa/investigação cênica permanente. Investindo na construção de uma poética própria, foca em sistemas abertos de cocriação corporal/plástica/sonora, que aglutina técnicas do teatro e da dança, o que

propicia a criação de corpos híbridos em diálogo ainda com as artes visuais e a música, coordenados por um pensamento de performance. A opção por trabalhar outra relação de hierarquia e criação dentro do grupo resultou numa horizontalização, onde todos são coautores de uma cena múltipla, polifônica, construída de maneira rizomática. Por sua postura em relação ao modus operandi da produção teatral, o grupo tem consciência de que sua arte é um confronto direto com a autoridade em si. Isso insere o grupo como membro da facção da resistência, que segue sobrevivendo frente às pressões financeiras e políticas. Durante esse tempo, o grupo nunca se deixou disciplinar e nunca fez nenhum tipo de concessão. Tampouco abriu mão de seus princípios, a fim de ocupar espaços, pois tem um propósito e uma ideia clara de construção da sua poética, cuja luta não se pauta apenas pela construção de uma linguagem, mas também pela afirmação da diferença; uma luta política pela construção do novo, pela construção da vida, pela criação de novos sentidos e novos valores. Nesse sentido, o Totem é uma “máquina de guerra” (Gilles Deleuze e Félix Guattari) 1, geradora de fluxos e conexões, com potência criadora e produtiva de resistência e enfrentamento em relação a uma sociedade de controle estético/artístico, que regula os fluxos e torna os acessos restritos. Sua produção abrange mais de 50 trabalhos, divididos em três principais vertentes. A primeira é o teatro performático ritualístico, híbrido de teatro/dança regido por um pensamento de performance. A segunda abrange as performances híbridas de menor duração, criadas para espaços alternativos. E a terceira, as performances/intervenções urbanas.

T E AT R O R I T U A L Na área teatral, o Totem se insere no campo do teatro de grupo, pois mantém um núcleo atuante há muitos anos, com características próprias e uma linguagem bem particular, que não se limita a um determinado território ou fronteira. Seu produto cênico não é resultante de um texto dramático e, sim, de várias textualidades imbricadas. Seus princípios são descendentes das ideias de Antonin Artaud; da proposta filosófica original de Oswald de Andrade, a antropofagia cultural; de alguns pontos do pensamento de Nietzsche; da dança-teatro de Pina Bausch; da psicologia analítica de Carl Gustav Jung; entre outros. Tudo isso com aportes na filosofia, na sociologia, na antropologia e na interculturalidade. Desde os primeiros trabalhos, o experimental, a pesquisa, o foco no corpo, a performance, a ritualização do instante presente, a não utilização do texto dramático, a não linearidade, a quebra de hierarquia entre as linguagens artísticas e a cena como presença já se

1 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1, 2, 3, 4, 5. São Paulo: Editora 34, 1995.

p­ — 28


TOTEM

taína veríssimo na performance "renascentia escaralate" - foto: fred nascimento

faziam presentes. No Totem, o foco no corpo é essencial: um corpo

“Ita” se metamorfoseou ao longo dos anos até se transformar em

cênico híbrido que é construído constantemente, simbioticamente,

“Ita in process”, com cena de pintura corporal xâmanica instauran-

integralmente; do qual se exige mais vigor, intensidade, entrega e

do um metarritual dentro do ritual. Em 1993, o grupo começou a

potência cênica.

desenvolver uma pesquisa sobre mitos e arquétipos ligados ao Sa-

Citamos aqui alguns dos seus trabalhos e produções. A começar

grado Feminino, divindades relacionadas à figura da grande mãe. Foi

por “Teia”, a primeira performance do grupo, construída a partir de

construída uma dramaturgia de fragmentos poéticos e assim surgiu

fragmentos poéticos de Ferreira Gullar, Caetano Veloso e Oswald de

“Mulheres”, o primeiro espetáculo da trilogia do Sagrado Feminino.

Andrade, em 1989. Depois, veio “Trajetória”, que, através de cenas de

Um dos mais ritualísticos dos trabalhos do Totem é “Anima”

teatro e dança, fala sobre a história da humanidade – estreou ao lado

(2000), o segundo trabalho que trás o Sagrado Feminino como

das performances “Farrapo humano” e “Eterno retorno”, na Mostra

leitmotiv. Sua dramaturgia foi criada a partir de textos poéticos de

Latus, que reuniu o Totem e as bandas Solos, Duos e Trios, e Organum.

variados autores e autoras. A busca das personas, por parte dos ato-

Em 1991, o Totem criou “Ita”, um trabalho que se volta para a

res/atrizes-performers, se deu via mitologia pessoal e inconsciente

busca da origem, a ancestralidade e o devir animal. A pesquisa pas-

coletivo. Não se trata de levantar o mito que se adequa a um texto

sou pela teoria do surgimento do universo e a teoria da evolução.

dramatúrgico e, sim, de fazer esse mito emergir do ator/atriz-per-

TREMA!_facção

p­ — 29


PERFIL former e, a partir daí, trazer isso para o corpo, a linguagem da cena,

ano, os povos indígenas e sua cultura foram a chave para “Atraves-

o texto performativo.

sando o tempo”, uma encenação simbólica da invasão, do massacre

“Caosmopolita” (2005), junto com “Ita”, é outro marco na tra-

e da usurpação das terras indígenas. Trata-se de um grito poético

jetória do grupo, pelo trabalho corporal, pela temática, por sua es-

que dá voz aos que perderam a terra, a vida e os seus mitos e ritos

trutura. Um espetáculo no qual o grupo traduz a cidade com sua

pela força brutal da colonização político-religiosa-social. Ainda em

urbanidade, suas loucuras, suas contradições. O trabalho se situa nas

2004, o Totem participou do SPA das Artes, com a performance/in-

fronteiras entre o teatro performático, o teatro físico e o teatro dan-

tervenção “Reentrância – o nicho”. Uma ressignificação dos nichos

ça, utilizando uma linguagem não sequencial, com superposições e

dos templos, nos quais são colocadas imagens sagradas, o trabalho

narrativa não linear.

procurou discutir a sacralização e a dessacralização. A interface do Totem com as artes visuais continuou com “Duplo faca destino” (2005) – baseada na série de pinturas e gravuras

M Ú LT I P L O , R E S I S T E N T E

“A história do homem e da faca”, do artista plástico Rinaldo Silva – e “Por falar em descobrimento”, criada a partir de pinturas do artista

Suape Today – Totem em Manifesto, de 1993, é um exemplo nessa tra-

plástico Flávio Gadelha. As artes visuais, aliás, são partes inerentes

jetória que ilustra a capacidade do coletivo de aglutinar grupos e ar-

e estruturais da poética do grupo, cuja cenografia se aproxima do

tistas em torno de ideias e ações conjuntas, dimensionando o Totem

campo da instalação. Esse procedimento se deu desde os primei-

como uma “máquina de guerra”, para lembrar novamente Deleuze e

ros trabalhos, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. O uso

Guattari. O Suape foi movimento cultural de protesto, realizado na

de projeções, por exemplo, é recorrente e está presente na maioria

Praia de Suape, no Cabo de Santo Agostinho (PE), do qual participaram

das encenações, de “Ita” e “Ita in process” até “Nem tente”, trabalho

dezenas de artistas e grupos. Na ocasião, o Totem montou a perfor-

mais recente do Totem.

mance “Suape today”. No mesmo ano, a convite do projeto Quartas

Essa produção de performance/interferência conta ainda com

Livres, o grupo formatou a mostra Totem em Concerto, reunindo os

outros trabalhos, como “Cinco performances em um ato”, “O nicho”,

trabalhos “Ita”, “Signosimbolosícones” e “Mulheres”, além de um show

“Mantoparangolé” e “Totem relicário”. Além disso, as performances/

de música instrumental. Outra produção importante na história do

intervenções realizadas em parceria com o artista Daniel Santiago,

Totem foi o Tao do Zen, evento multimídia com o grupo e convidados,

como “Palmas na Rua da Palma”, “Core-O-grafia-H”, “Seis cenários à

incluindo performances cênicas, shows, poesia e exposição.

procura de um personagem de Pirandello” e “Poesia para a estratos-

1996 foi o ano do centenário de Antonin Artaud. O grupo

fera”, criada a partir do poema “Chopp”, do poeta Carlos Pena Filho.

decidiu homenageá-lo e assim nasceu “100 Artaud! Metamorfo-

Por fim, o Totem participou como convidado de Santigo na perfor-

seado em Ele, Artaud!”, com dramaturgia composta por fragmen-

mance “O enterro da última quimera”, junto ao grupo Oroboro.

tos de textos e uma encenação que se pautava pela tríade teatro-

Outra ação de guerrilha cultural foi “Anarkland”, evento de

dança-ritual, de princípio intercultural. Ao comemorar seus dez

multilinguagens em tributo a Raul Seixas, produzido pelo Totem, em

anos, em 1998, o Totem reacendeu o evento Totem em Concerto

agosto de 2006. Uma exposição de artes visuais, recitais poéticos e

e durante quatro semanas “Ele, Artaud!” foi performada, sempre

performances de artistas da dança, do teatro e da música fizeram

com um grupo ou um artista convidado. No final dos anos 1990, o

parte da ação, incluindo o grupo anfitrião, com as performances

Totem já havia atravessado mais de uma década de trabalho con-

“Nuit”, “Corpoema” e “Buraco de rato”. O mesmo ano foi encerrado

tínuo, mantendo-se fiel aos seus princípios. Sabemos o quanto foi

com uma mostra de teatro de grupo, a Front – Fronteiras Teatrais,

difícil, constatamos o quanto as estruturas hierarquizadas de po-

um panorama de espetáculos de fronteira, de pesquisa, no qual par-

der se refletem dentro das estruturas dos órgãos de cultura e quais

ticiparam, além do Totem, os grupos Magiluth, Gambiarra, Dzugur,

são suas preferências estéticas.

Teatrocidade Bando, entre outros. Enquanto existiu, o Espaço Totem

Ano 2000, fim do milênio. Este foi o momento do Totemismo Hoje, evento multimídia que contou com as performances “Ele,

foi movimentado por festas, shows, oficinas, mas depois de quase dois anos, o grupo fechou sua sede no fim de 2007.

Artaud!”, “Signosimbolosícones”, “Anima”, “Ita” e shows de bandas de rock. A partir do curso “Teatro performático totêmico”, em 2003, foram criadas performances autobiográficas que se expandiram a

L I T E R AT U R A L I V R E

partir da ligação das subjetividades das atrizes-performers às lutas contra a discriminação da mulher. Assim nasceu “Cinco performan-

A relação do Totem com o poeta Charles Bukowski, por sua vez, é

ces em um ato”, realizada no SPA das Artes, envolvendo instalação

um capítulo à parte nessa história. Em 2005, quando o grupo abriu o

e instauração de corpos em estados alterados, autopoiesis, textos

Espaço Totem no Pátio de São Pedro, no Recife, iniciou-se uma fase

autobiográficos e imbricamento entre tempo real e mítico. “Cinco

de muitas produções e criações. Foi nesse período que começou

performances em um ato” fechou a trilogia do Sagrado Feminino.

a pesquisa sobre a obra de Bukowski. Trabalhando na perspectiva

A partir de convite do Sesc Pernambuco para participar do

pós-dramática, com poemas e textos fragmentados, e discursan-

Palco Giratório em 2004, realizamos uma performance/intervenção

do sobre arte, dor, solidão, amor, vida e morte, o grupo foi criando

tendo a fome em todas as suas dimensões como tema central. Ins-

fluxos, tecendo teias simbólicas, sem esquecer o humor mordaz, a

pirado em dois artistas plásticos brasileiros, Artur Bispo do Rosário

ironia e o niilismo, tão comuns na obra do Velho Buk. A primeira per-

e Hélio Oiticica, o grupo criou “Mantoparangolé”, que só se com-

formance dessa série foi “Como uma lua alta sobre a impossibilida-

pleta ao ser impregnado de signos vindos do público. No mesmo

de”, seguida por mais oito e dois espetáculos performáticos – “Sob

p­ — 30


um céu de concreto” (2009) e o próprio “Nem tente” (2013). Este último, aliás, é fruto da consolidação das experiências das performances anteriores e da intensa pesquisa em torno do universo de Bukowski. O espetáculo foi construído a partir de recortes de poemas que questionam o sistema social predominante, por tolher e manipular o ser humano, e mostra a luta do indivíduo contra o sistema. A encenação estabelece uma rede simbólica de relações em contínua pulsação, entre impedimentos e obstinações. O fato de o Totem não construir seus trabalhos partindo de textos dramáticos deu ao grupo certa mobilidade e liberdade em relação à construção e à criação de roteiros. Os trabalhos nos quais o texto pronunciado foi incluído sempre foram fragmentos de textos – o Totem os chama de “textos móveis”. O grupo criou uma dramaturgia processual que toma o poema, ou não, como “pré-texto” para a construção das suas performances. Mas é preciso voltar ao Velho Buk. A partir de 2009, o grupo produziu uma série de performances. A primeira foi “Ao Sul de lugar nenhum”. Em seguida, realizou o projeto O Velho Buk Foi pra Pasárgada, congregando cinema, performance e debates. Durante três semanas, foram apresentadas as performances “Bluebird”, “Estranha desordem no coração da noite” e “O amor é um cão dos diabos”.

PEDAGOGIA DA PERFORMANCE A intercessão entre o teatro performático e a arte-educação se estreitou na trajetória do Totem a partir de 1995, com Ita – Proje-

"ita" na eca-usp, congresso da anpap - foto: claudia rangel (1996)

to Pedagógico, a primeira experiência de adaptação para as artes cênicas da Proposta Triangular de Ensino de Arte, lançada no Brasil por Ana Mae Barbosa. A atividade passou por diversas escolas da rede estadual de ensino, nas quais foram realizadas apresentações seguidas de releituras de “Ita”. Em 2008, o Totem realizou o curso “A arte da performance e o corpo”, no Centro de Formação em Artes Visuais (CFAV), no Recife. A ação gerou uma mostra de performances/intervenções no Centro do Recife – “Praia na Rua da Praia”, de Inaê Veríssimo; “Tá na cara”, de Catarina Brandão; “Bolhas Vista”, de Carla Rodrigues, e “Do varal ao viril”, de Paula Fernanda Fonseca. Em 2011, o grupo abriu o Espaço Totem na Avenida Cruz Cabugá, no Recife, e a partir daí, realizou novas ações. Nos seus laboratórios e oficinas, trabalha com princípios da pedagogia da performance, explorados por Torrens 2 e Ciotti 3 , funcionando como uma escola informal de teatro e performance. Em 2013, o grupo criou a oficina “Corpo ritual”, a fim de compartilhar sua pesquisa continuada de linguagem, de campo mítico, de criação de personas, da busca do corpo como o sujeito e o objeto da arte; o corpo performático, através do qual ocorrem as emergências, os fluxos. Um corpo criador à procura da retomada de contato com elementos cosmológicos que busca materializar a metafísica através da performance, este ritual contemporâneo. O Totem, então, trabalhou com cinco fotógrafos convidados e a oficina teve como meta final a construção de fotoperformances. T

2 TORRENS, Valentin. Pedagogia de la performance – programas de cursos y talleres. Diputacion provincial de Huesca. España: Edición de Valentin Torrens, 2007. 3 CIOTTI, Naira. O professor-performer. Natal: EDUFRN, 2014.

TREMA!_facção

lau veríssimo em "nem tente" - foto: fernando figueirôa (2014.)

p­ — 31


ENTREVISTA tânia alves em "medeia vozes" - foto: divulgação

TÂNIA

e

FERNANDO

fernando yamamoto - foto: ramón vasconcelos

p­ — 32


C

1977. A forma como se organiza a nossa sociedade não é natural ou om décadas de atuação, o grupo Clowns de Shakespea-

humanizada. A ideia de organização construída no grupo é a auto-

re (RN) e a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Travêiz (RS) se

gestão, onde todos são responsáveis pelo trabalho, em todas as suas

configuram como grandes referências no cenário teatral

dimensões; a responsabilidade é compartilhada. Claro que isso não

brasileiro. Através do Programa Rumos Teatro, estes dois grupos

funciona sempre com a harmonia e o equilíbrio desejado. Mas, em

desenvolveram o projeto Conexão Música na Cena, entre 2011 e

vários momentos, sim e isso nos faz seguir desejando construir esta

2012, a partir de um traço comum nas suas pesquisas: a criação

outra possibilidade de relação entre nós, baseada na camaradagem

musical. Nesta edição da TREMA!_facção, propomos um novo

e na solidariedade mútua. E pode parecer tudo uma grande boba-

diálogo entre estes dois “Rios Grandes”, refletindo sobre diferen-

gem, mas isso perturba a ordem e a questiona como única forma de

tes temas que regem o fazer artístico e político. Representados

viver em sociedade. A tomada da rua é outra maneira de perturba-

por Fernando Yamamoto (Clowns) e Tânia Farias (Ói Nóis Aqui

ção da ordem, ainda mais em nossos dias em que os espaços públi-

Traveiz) , e entrevistados via web e de forma separada, por Pe-

cos estão sendo privatizados e os lutadores sociais, marginalizados.

dro Vilela, comungam aqui questões, apontando práticas, visões,

O teatro de rua se inscreve como uma arte de subversão.

realidades e conjunturas.

FERNANDO A ordem que combatemos é boa parte de tudo que estamos vendo acontecer no País e no mundo hoje. No entanto, Teatro colaborativo e teatro coletivo... Falem-nos um

acho que não temos conseguido perturbar muito. A lógica vigente

pouco sobre as experiências desenvolvidas pelos grupos nos pro-

venera a exclusão, a individualidade, a intolerância, o ódio e é isso

cessos de criação e o porquê dessas escolhas (ao que parece, os

que estamos vendo acontecer em todas as esferas da sociedade.

dois grupos possuem práticas diferentes).

Uma prática artística que tem a relação, o compartilhamento e a coletivização como bases é um espaço fundamental para estabe-

TÂNIA FARIAS O Ói Nóis trabalha com a criação coletiva e a conse-

lecer esse desequilíbrio, cada um em nossa pequena ilha de desor-

quente direção coletiva. Nós nos exercitamos como atores ence-

dem. Acredito que o teatro de grupo seja esse espaço. Nosso tea-

nadores, portanto os trabalhos não têm um único diretor e, sim,

tro é artesanal, trabalha com a escala humana e, assim, jamais irá

vários. Este processo privilegia muito o trabalho autoral do ator.

atingir multidões, em escala industrial. No entanto, creio que com

Cada ator/pesquisador está no processo criativo como um criador

esse trabalho de formiguinha, um a um, proporcionando peque-

do mesmo. Isso se aplica a tudo o que compõe a criação cênica,

nas revoluções, poderemos ir transformando o mundo num lugar

desde os figurinos até a dramaturgia, passando pela cenografia,

menos injusto e cheio de defeitos. É muito romântico e utópico,

iluminação, tudo enfim.

mas sem isso não vejo razão para fazer teatro.

FERNANDO YAMAMOTO Acredito que essa questão colaborativo/co-

ram para percebermos que essa divisão é falsa, insuficiente. Por um

“Acredito que essa questão colaborativo/ coletivo hoje não cabe mais. Estes mais de 20 anos que nos separam do surgimento da ideia de processo colaborativo serviram para percebermos que essa divisão é falsa, insuficiente.”

lado, temos uma enorme banalização do termo, praticamente todo

Fernando Yamamoto

letivo hoje não cabe mais. Entendo a importância que foi, naqueles idos dos 1990, riscar o chão e determinar essa diferença. No entanto, estes mais de 20 anos que nos separam do surgimento da ideia de processo colaborativo – primeiro, na Escola Livre de Santo André, depois difundido por grupos como o Vertigem e o Latão – servi-

grupo diz que faz processo colaborativo! Por outro, se aprofundarmos um pouco o olhar, vamos ver que cada experiência de grupo apresenta idiossincrasias a esse respeito, que duas opções são pouco, não dão conta. No nosso caso, a figura do diretor e de outros

O Clowns e a Tribo estão inseridos na história do teatro

profissionais com especialidades bem definidas sempre foi a tônica,

brasileiro, sendo exemplos de longevidade. Ao longo dessa traje-

por mais que as decisões e escolhas sejam sempre compartilhadas

tória, como percebem o cenário brasileiro para as artes cênicas e o

coletivamente e que o grupo se coloque como espaço de formação

que os motiva a dar continuidade a seus projetos artísticos?

desses especialistas. Me entendo como um diretor que provoca, absorve e sintetiza as diversas vozes do coletivo, inclusive a minha

TÂNIA O Ói Nóis Aqui Traveiz quando surge, o faz ainda no período

própria. Sem essa polifonia, acho que não faria sentido fazer teatro.

ditatorial. Acredito que isso tem muito a ver com a postura do Ói Nóis até hoje. Sempre buscou o teatro como um veículo de trans-

Em uma das definições que encontramos no dicionário, a

formação social e, para isso, os atuadores tiveram um pretexto

palavra facção significa uma reunião daqueles que causam per-

ideológico para se reunir. Nem por isso a Tribo abandonou a pes-

turbação à “ordem” pública. Qual seria a “ordem” contra a qual

quisa estética, mas, ao contrário, procurou levá-la às últimas con-

nossos grupos combatem/perturbam?

sequências. Ainda temos muito o que fazer, muito a transformar, a começar por transformar cada um de nós. Ainda há muito a fazer...

TÂNIA O Ói Nóis tem andado na contramão desde a sua criação, em TREMA!_facção

Isso nos motiva. p­ — 33


ENTREVISTA

"hamlet máquina" - foto: claudio etges (1999)

"ananke, a luta pela vida" - arquivo da tribo (1980)

FERNANDO Em primeiro lugar, sem nenhuma sombra de dúvida, o que ficou de mais marcante foi o afeto. Esse elemento fundante do nosso teatro que é o encontro. Conhecer de dentro mais um parceiro é sempre uma experiência que levamos para sempre, que nos faz melhores pessoas, artistas e grupo. Além disso, apesar da nossa troca ter sido provocada pela música, acho que as semelhanças e diferenças entre as formas de criação foram o que mais me chamaram atenção. É muito bonito ver a fibra com que o Ói Nóis defende a criação coletiva como filosofia de vida. Toda essa relação nos serviu como espelho, seja pra rever algumas crenças, seja pra reforçar outras. "medeia vozes" - foto: pedro isaías

Em uma hipótese de que vocês pudessem se dirigir, qual texto vocês iriam

FERNANDO Persistir é a nossa sina, nossa

de compartilhar pesquisas através do Pro-

condição. Nascemos trabalhando sob

grama Rumos Itaú Cultural. O que ficou da

uma perspectiva de precariedade, sem-

prática do outro no trabalho de vocês?

pre na contramão, e a continuidade é

propor um ao outro (grupo), e o por quê?

TÂNIA Difícil pergunta... Mas acho que gostaria de compartilhar com eles “Hamlet

a única forma que encontramos capaz

TÂNIA Tenho convicção de que fica algo,

machine”, de Heiner Müller. Sabemos to-

de possibilitar a sobrevivência. Esses

sim. Não sei identificar o que exatamente

dos da relação do Clowns com Shakes-

22 anos do Clowns são marcados mui-

e acredito que o que fica não é por esse

peare e Müller parte da obra de Hamlet

to mais pelas crises e insistências em

motivo pouco significativo, ao contrário,

para questionar o papel do intelectual e

manter o trabalho, apesar de tudo, do

é algo que está com a gente e perma-

do artista. Acredito que seria um lindo e

que pelas conquistas e pelos êxitos. Já

necerá para sempre. Algo no campo da

também duro percurso descobrir o por-

vi centenas dessas pequenas revoluções

contaminação, da afetação, do AFETO.

quê este grupo montaria este Hamlet. Te-

que citei na resposta anterior aconte-

Em diferentes momentos, nos pegamos

nho convicção de que poderia levá-los a

cerem durante a minha trajetória e elas

repetindo coisas ditas por eles, as brin-

descobertas incríveis sobre eles mesmos.

nos fazem seguir.

cadeiras e, claro, aprendemos muito.

Eu gosto muito de Heiner Müller e com-

Aprendemos sobre a sua forma de ver o

partilharia algo significativo para mim

teatro e sobre a vida mesmo.

com os meus amigos.

Os grupos tiveram a oportunidade p­ — 34


“O Ói Nóis tem andado na contramão desde a sua criação, em 1977. A forma como se organiza a nossa sociedade não é natural ou humanizada. A ideia de organização construída no grupo é a autogestão, onde todos são responsáveis pelo trabalho, em todas as suas dimensões.” Tânia Farias "ricardo iii" - foto: pablo pinheiro

FERNANDO Acho que se eu propusesse um texto para a Tribo, me expulsariam da Terreira no primeiro dia (risos)!!! Brincadeiras à parte, não me interessaria tentar impor uma forma de trabalho tão distinta – e talvez até agressiva – a eles, porque acredito que isso mataria a possibilidade de troca e aprendizado para mim. Diante do caminho que se apresentasse vivo, para nos debruçarmos numa pesquisa, acho que aí, sim, poderia trazer umas duas ou três obras do Shakespeare, minha permanente obsessão, para que pudesse ser desconstruído e “antropofagizado” neste processo. Acho que “Júlio César”, “Titus Andronicus” ou qualquer um dos chamados dramas históricos do bardo cairiam muito bem como ponto de partida para uma pesquisa com a visceralidade e a potência política do Ói

"dois amores y um bicho" - foto: rafael telles

Nóis. Quem sabe um dia? leve em conta a especificidade de nos-

inseridos são os nossos trabalhos, mas a

Companheiros de movimentos

sa atividade. O teatro de grupo no Brasil

sociedade não tem sequer ideia dessa di-

políticos, como podemos construir um

tem garantido a pesquisa continuada em

mensão. Acredito que aí temos um cam-

novo paradigma para o teatro nacional?

teatro. Precisamos de uma política que

po de diálogo com a população e o poder

dê conta de um trabalho que acontece

público possível. Por outro lado, urge nos

o tempo todo, em todas as partes deste

reinventarmos internamente. Esse mo-

país de dimensões continentais.

delo sindical, estudantil, de organização,

TÂNIA

Acredito que este seja um mo-

mento em que temos o compromisso histórico de fazer valer a luta de tantos

não nos serve. Defendo que precisamos

companheiros que estiveram nesta ca-

FERNANDO

Impossível saber essa res-

entender melhor quem somos, como

minhada antes de nós. Temos que am-

posta. O certo é que estamos em pleno

funcionamos e como podemos encon-

pliar a articulação e, uma vez organi-

processo de construção desse novo mo-

trar nas nossas próprias formas de orga-

zados, cobrar o papel de cada uma das

mento. Acho que temos algumas pistas

nização e criação, dentro dos grupos, a

instâncias (municipal, estadual e federal)

que já apontam. A primeira é fortalecer-

resposta de um novo modelo de estrutu-

a sua responsabilidade para a criação e

mos essa ideia do caráter público do que

ração política. Com as ferramentas “de-

a implementação de uma política efe-

fazemos. Nós sabemos o quão transfor-

les", sempre seremos a última das priori-

tivamente pública para as artes. E que

madores para os espaços que estamos

dades, o mais dispensável, o supérfluo.T

TREMA!_facção

p­ — 35


pergunta

TREMA!3/6


"Considerando 'viver' um ato político, devo dizer que, sim, grupo é facção. O que propõe essa facção enquanto apatia, ordem ou desordem já são outros 500..."

NATHALIA QUEIROZ DESIGNER E ILUSTRADORA


NOTAS DE PROCEDIMENTO

BR-TRANS antropológico, autofágico e esquizofrênico SILVERO PEREIRA silvero_per@hotmail.com

Fortaleza

F

oi em 2002 que iniciei um processo de investigação como ator dentro do universo de travestis e transformistas, tendo como base para uma primeira dramaturgia e encenação

o conto “Dama da noite”, de Caio Fernando Abreu. Essa pesquisa resultou na montagem do solo “Uma flor de dama” e, posteriormente, de outros espetáculos que, como consequência, fundaram o Coletivo Artístico As Travestidas. Entretanto, todos esses processos aconteceram de forma intuitiva e sem muitas pretensões de método e formação estética, ou de atuação. Dez anos depois, no ano de 2012, fui contemplado, por meio da Funarte, no edital Interações Estéticas. O projeto objetivava lançar um olhar sobre os trabalhos realizados n’As Travestidas, a fim de traçar, para o próprio coletivo, uma metodologia no processo criativo do ator e de possíveis poéticas de encenação/dramaturgia para essa temática. O projeto BR-Trans: Cartografia Artístico e Social do Universo Trans no Brasil 1 surgiu com o interesse de fortalecer e ampliar a pesquisa, já realizada no Nordeste pelo As Travestidas, na tentativa de reproduzir os mesmos procedimentos na região Sul do Brasil, em especial na cidade de Porto Alegre (RS). A proposta era traçar, além de ações em arte, uma pesquisa teórica e prática dos dois polos regionais do País, identificando e comparando semelhanças, além de contradições desse universo. Também tinha como interesse a montagem de um espetáculo solo que revisasse processos criativos anteriores, buscando identificar e reproduzir procedimentos nas áreas de dramaturgia, encenação e atuação. Assim, o projeto tinha uma diretriz de pensamento do teatro como instrumento de transformação social e isso se deu a partir de ações, como: - pesquisa de campo/laboratório de vivência com travestis e transformistas de Porto Alegre; - diário de bordo, a ser publicado na internet; - oficina de teatro para atores e transformistas; - workshop “Teatro x transformismo: uma relação mais que possível”; - apresentações teatrais e debates com o público; - montagem de espetáculo a partir das experiências do projeto.

1 Título original do projeto aprovado no Edital MinC/Funarte Interações Estéticas 2012.

Porto Alegre p­ — 38


"br-trans" - foto: toni benvenuti

O PROCESSO CRIATIVO DA DRAMATURGIA

ter a tragédia, transformar o trágico em cômico na tentativa de suportar, superar e seguir vivendo (diz a canção traduzida: “É bem mais difícil dançar quando o demônio

Como dramaturgia, “BR-Trans” se configura uma pesquisa de vi-

está nas suas costas. Então, livre-se dele”).

vências, pesquisa fonográfica, audiovisual e texto fragmentado, autoral, pessoal, físico, coreográfico e documental. Entretanto, todo o processo foi construído sem pretensões teóricas, sendo

SUBVERTENDO OS CLÁSSICOS

concebido por suas próprias necessidades. As músicas do espetáculo, por exemplo, não foram planejadas ou pré-selecionadas, elas

Semelhante ao ocorrido com as canções, alguns trechos de clássicos

foram aparecendo no processo, conforme a sensibilidade dedica-

da dramaturgia também foram inseridos de forma literal ou mo-

da. Ao longo do projeto, eu me sentia como um canal aberto às

dificados, dando, assim, poesia a cenas fortes e comoventes. Como

experiências, a fim de absorver o máximo possível do que estava

exemplos, temos o trecho da Ofélia de Heiner Müller, que entra no

ao meu entorno e de coisas que tivessem a ver com o tema, ou

espetáculo em alusão, ou cacofonia, a Oséias, uma transexual de

que fossem possíveis de transubstanciar para a questão abordada.

Mossoró, no Rio Grande do Norte, que cometeu suicídio por não suportar mais o preconceito. Ou mesmo o trecho de Gertrudes em “Hamlet”, de Shakespeare, onde ela conta a morte de Ofélia e, no es-

A MÚSICA COMO DRAMATURGIA

petáculo, modifiquei para contar o assassinato de travestis em um motel, em Goiânia (GO). Esta é a parte do trecho modificado:

O processo de seleção de músicas para a montagem não ocorreu como construção de trilha sonora para a cena. Era preciso ter

"Uma desgraça segue os passos de outra e tão próxima ela vem. É noite e talvez

a música como composição dramatúrgica, ou seja, sua presença

por isso seja possível acontecer, pois no escuro será mais fácil esquecer. Mataram

era necessária a partir do momento em que estivesse contando

elas! Um tiro na cabeça de cada uma. Lá, numa esquina dessas qualquer onde o

a história, como parte do texto e não como ilustração da cena. As

asfalto deixa de ser cinza iluminado por faróis de carros em caminhos destinos.

canções também contam uma história...

Lá, elas viviam seus sonhos simulacros ou o que sobrou deles. Usavam vermelho na boca e nas bochechas, e os olhos eram marrons, esfumaçados, mas no fundo

“Geni e o zepelin”, de Chico Buarque, entrou no espetáculo, porque, ao

ainda se via luz e sonho. Porque elas apenas buscavam ser..."

investigar a história da travestilidade e da prostituição em Porto Alegre, me deparei com a história da Babi, que queria ser atriz e, em um momento de sua vida,

Também é possível identificar outras referências, como Caio Fer-

conseguiu realizar seu sonho cantando esta canção no Theatro São Pedro, teatro

nando Abreu, Cecília Meirelles, Beckett e a personagem Lady Ma-

municipal da capital gaúcha.

cbeth, de Shakespeare.

“Balada de Gisberta”, de Pedro Abrunhosa (na voz de Maria Bethânia), surgiu, porque li, na internet, sobre um caso brutal de assassinato de uma travesti brasileira em Portugal e, indo mais a fundo no caso, descobri a canção.

OS ELEMENTOS DA CENA: CENÁRIO, FIGURINO, VÍDEO E ILUMINAÇÃO

“Meninas de ponta”, da banda potiguar Rosa de Pedra, foi composta em

O processo de montagem foi realizado no Espaço Cultural do prédio

homenagem a travestis que se prostituem na Praia de Ponta Negra, em Natal (RN).

Utopia e Luta 2 , numa sala que possuía um palco de 2m de profun-

Como conhecia a banda, a música entrou como dramaturgia por conta de sua

didade por 3,5m de largura, fato que me lembrava muito algumas

composição em melodia doce e agressiva ao mesmo tempo, para falar de afeto

quitinetes de travestis que visitei na cidade. Logo, alguns elemen-

e violência.

tos, como biombo feito de janela, bancos como aparadores e pen-

“Shake it out”, Florence + Machine. Essa música chegou na dramaturgia pela necessidade de algo que considero inerente à vida no “universo trans”, que é subver-

TREMA!_facção

2 Assentamento urbano em Porto Alegre.

p­ — 39


NOTAS DE PROCEDIMENTO teadeira, foram sendo inseridos de forma natural na composição

“BR-Trans” estreou em 20 de junho de 2013 para 30 pessoas por

cenográfica, além de revistas, livros e matérias de jornais que me

sessão, na mesma sala em que foi concebido e em meio às manifes-

alimentaram durante a pesquisa e transformaram o cenário numa

tações populares que ocorriam por todo o País, no conhecido mo-

instalação. A ideia é que o espectador tenha a impressão de aden-

vimento “Vem pra Rua” (melhor momento não havia!). Logo depois,

trar nesse espaço e não apenas ter acesso ao poético-criativo, mas

fez sua primeira temporada no Teatro de Arena de Porto Alegre e

também à sua matéria-prima.

seguiu em circulação por festivais. Atualmente, o projeto pretende

O figurino é o desejo de fugir da carcaça, do estereótipo, da ca-

se lançar como filme, com os diretores Tatiana Issa e Rafhael Alvarez

ricatura travestida e, com isso, buscar uma visão mais epidérmica e

(Dzi Croquetes), mas este projeto ainda está na esfera do desejo e na

real desse universo. Uma questão recorrente nas minhas conversas

falta de patrocínio, como quase tudo nessa vida artística!

com as meninas era a vida da ilusão, do simulacro, das composições na vestimenta e na maquiagem para serem enxergadas na sua essência, como se isso fosse necessário para a sociedade perceber sua condição. A poética está em mostrar a condição sem estereotipar e, assim, reconhecer a essência. A iluminação surgiu de uma inquietação artística. Um ano antes da montagem de “BR-Trans”, fiz circulação por várias cidades do interior do Ceará e em poucas existem equipamentos de iluminação, dificultando a execução dos espetáculos. Assim, em conversa com o iluminador Luccas Simas, pedi que toda a composição fosse realizada a partir de materiais que pudéssemos levar conosco e que fosse acessível para qualquer espaço, sem prejudicar a essência do espetáculo. Luccas nos ofereceu a estética de um estúdio fotográfico em composição como a ideia de instalação proposta no cenário. Essa ideia foi incorporada na cena de modo a me fazer operar a luz ao mesmo tempo em que atuo, criando, assim, uma coreografia no espaço que muito valorizou e somou à encenação e à atuação. As intervenções de vídeos foram possíveis por conta de pesquisa realizada na internet e da enorme colaboração do parceiro Ivan Ribeiro (cineasta baiano radicado em São Paulo). Assim como as músicas, os vídeos também deveriam ser inseridos no espetáculo. Primeiramente como dramaturgia, contando as histórias coletadas, para depois serem pensados e aplicados esteticamente.


DIÁRIO

de bordo DEZEMBRO DE 2012

O projeto “BR-Trans” teve como primeira etapa visitar a cidade de Porto Alegre, a fim de vivenciar o universo das travestis e transformistas da cidade por dois meses (de dezembro de 2012 a janeiro de 2013). foto com as travestis no presídio de porto alegre - foto: arquivo

Todas as experiências deveriam ser relatadas em um caderno chamado “Tempestade de ideias”, para posteriormente serem utilizadas como construção da dramaturgia. Todo esse período estava dedicado, integralmente, a estudar e absorver o modo de vida das travestis, transexuais e transformistas gaúchas nas boates, nas ruas de prostituição, no presídio central  3, nas universidades e na forma como a sociedade reagia à presença dessas meninas no cotidiano.

FEVEREIRO DE 2013 Já a segunda etapa aconteceu em fevereiro de 2013, intitulada “Criação da dramaturgia textual”. Nesse momento, foi necessário se distanciar do Rio Grande do Sul, ou seja, retornar para Fortaleza (CE), no intuito de analisar as experiências coletadas e, assim, com o olhar mais técnico, iniciar o primeiro esboço de texto para a montagem do espetáculo  4. show de baby do brasil no carnaval do recife, em 2013 - foto: internet (vt brasil)

MARÇO DE 2013 Com o primeiro esboço de texto concluído, em março de 2013, retorno para a capital gaúcha, a fim de iniciar o processo de montagem do espetáculo como conclusão do projeto. Esta foi uma fase muito especial, pois embora fosse um projeto pensado para investigar os procedimentos do coletivo As Travestidas, eu estava sozinho numa região cuja cultura era completamente diferente da do Ceará e onde eu tinha poucos amigos na arte. Assim, foi iniciado o processo de montagem com três turnos diários de dedicação: manhã, dedicada à criação de cenas; tarde, a aulas de voz/canto e preparação corporal; e noite, a leituras e pesquisas, laboratórios e rascunhos de novas cenas.

ABRIL DE 2013 conhecendo a sede da igualdado rs - foto: arquivo

Longe dos amigos e dos parceiros na arte, consegui levantar muitas cenas e traçar uma linha de atuação consciente. Entretanto, na composição da encenação, me sentia desconfortável e angustiado. Então, em conversas, e por indicações de amigos, foi possível conhecer a diretora e professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, Jezebel de Carli. Ela foi convidada no intuito de orientar o trabalho, porém sua contribuição foi tão necessária que, juntos, chegamos à conclusão de que ela deveria assumir a direção do espetáculo. Jezebel conseguiu me provocar e me tirar da área de conforto na encenação, me possibilitando uma nova percepção da arte e do tema. Sua contribuição foi fundamental numa outra etapa do projeto que intitulo de “Dramaturgia de encenação”. Mas o que difere “dramaturgia textual” de “dramaturgia de encenação” nesse processo? Com a chegada da Jezebel, foi possível resgatar a etapa “tempestade de ideias” e nela identificar uma série de experiências vivenciadas que não haviam entrado na construção do texto e, consequentemente, teriam se perdido na encenação. Um bom exemplo disso é a cena da leitura da carta.

silvero com a diretora jezebel de carli na estreia - foto: luciane pires ferreira

Jezebel resgatou essa imagem para o espetáculo quando me provocou a encontrar uma carta antiga de minha mãe, no intuito de trazermos a fragilidade para cena. Sua contribuição também fortaleceu o projeto, me renovando e me fazendo aprender mais sobre o teatro contemporâneo, a dança, a verdade e o virtuoso na cena. Deste modo, a “dramaturgia textual” servia de condutor, de roteiro para descobertas de uma dramaturgia da cena, ou seja, texto e composições coreográficas, bem como ações físicas. T

3 Porto Alegre é a segunda cidade no País a implantar no sistema carcerário uma ala só para travestis e companheiros (a primeira foi Belo Horizonte). Essa ala tornou-se modelo nacional e vem servindo de incentivo para a criação em outras capitais, como Cuiabá, João Pessoa e Ceará.

cena da leitura de uma carta da mãe - foto: juliano ambrosini

TREMA!_facção

4 Durante a “Criação da dramaturgia textual”, estive no Carnaval do Recife (PE) e assisti ao show de Baby do Brasil. Quando ouvi ela cantar “Masculino feminino”, de Pepeu Gomes, imediatamente anotei, num papel que estava no chão, que esta era uma canção que teria um significado muito grande dentro do espetáculo.

p­ — 41


CRÍTICA

"uma flor de dama" - foto: cristiano costa

SOBRE AQUILO QUE ME Agrado MARCONDES LIMA

lima.marcondes@gmail.com

"Me chamam de Agrado, porque minha vida toda só procurei tornar a vida mais agradável para os outros. Além de agradável, sou muito autêntica. Mirem que corpo! Todo feito na medida! Olhos puxados, 80 mil.

E

ra 1999. Um fim do mundo chegando e, para acelerá-lo, entrava em cartaz, no Brasil, o filme “Tudo sobre minha mãe”, do diretor espanhol Pedro Almodóvar. Corajoso e subversivo, o filme mostrou-se, entre outras coisas, uma bela ho-

menagem ao teatro. Em cena no palco, a travesti Agrado (Antonia San Juan) surge

Nariz, 200; e jogados fora, porque um ano depois, me

para dizer aos espectadores que não haverá “função” naquela noite, que podem

deixaram assim com outra surra. Sei que me dá mui-

pegar o dinheiro de volta ou se divertir com sua história de vida. Para os que ficam,

ta personalidade, mas se eu soubesse disso antes, não

ela fala o texto posto ao lado. Agrado é, para mim, uma das mais lindas persona-

teria tocado nele. Tetas, duas, porque não sou nenhum

gens do cinema, ao lado de sonhadoras e desvairadas como Norma Desmond, de

monstro. Setenta cada, mas elas já estão bem roda-

“O crepúsculo dos deuses”. Lembro mais dela do que das outras personagens do

das. Silicone... nos lábios, testa, maçãs do rosto, quadris

filme. Seu “Soy mui auténtica” virou um bordão usado por mim e meia dúzia de

e bunda. Um litro custa uns 100 mil, então calculem

pessoas queridas e próximas.

vocês, porque eu já perdi as contas. Redução de man-

O ator e diretor cearense Silvero Pereira chega a fazer uma citação literal ao

díbula, 75 mil. Depilação definitiva com laser, porque a

texto de Agrado no início do seu espetáculo “BR-Trans”. Também confessa que o

mulher também vem do macaco, tanto ou mais do que

nome de batismo de seu alterego, Gisele Almodóvar, vem da admiração que nu-

o homem: 60 mil por sessão. Depende da barbuda que

tre pela modelo Bündchen e pelo cineasta Pedro. Desconfio de que ele ama tanto

se é. O normal é de duas a quatro sessões, mas se você

Agrado quanto eu. Sei que ambos temos nos tornado cada vez mais parecidos com

é uma diva tradicional, precisará de mais, é claro. Bem,

aquilo que sonhamos ser. Mesmo com nossas singularidades, fazemos parte de

como estava dizendo, minha senhora, custa muito caro

uma mesma facção de sonhadores.

ser autêntica! E, nessas coisas, não se deve ser piran-

Males pré-existentes e ainda piores precisaram ser revelados a olhos nus. Por

gueira, porque quanto mais se parece com o que tem

livre e espontânea vontade, ou pela força dos que lutam pelos direitos trans-hu-

sonhado que é, mais autêntica é uma pessoa.”

manos. A desavergonhada homofobia, com tempero brasileiro, foi e é um desses

(Texto de Agrado no filme “Tudo sobre minha mãe”)

males. A cultura queer, mesmo que devagar, vem enterrando suas unhas na pele

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"br-trans" - foto: juliano ambrosini

cotidiana da normatividade. Ver hoje um hétero utilizando entre

mais fundo do que “A dama da noite” espetaculosa de Gilberto Ga-

seus iguais expressões como “babado forte” ou “bofe escândalo” foi

wronski, vista no mesmo festival recifense, em uma de suas edições

obra e graça de muitos, e cada vez mais organizados, grupos que de-

anteriores. Certamente, a nordestina era menos estetizada e, por isso

fendem a diversidade sexual. Um caminho sem volta, por mais que

mesmo, muito mais autêntica, dura, crua e agridoce. Era trazida ao

agridam, esperneiem e rosnem os “bolsonarofelicianos” travestidos

palco por alguém que escolheu transitar sem pudores pelo universo

de ungidas ovelhinhas.

das travestis e transformistas, ousando esfumaçar os limites entre a

No terreno maldito do teatro, a presença queer é ontológica. Mas

realidade e a ficção.

mesmo entre aqueles que são “abertos”, o preconceito existe. Teste-

Naquele momento, muitos não conseguiam ver a profundi-

mulhei isso após ver Silvero Pereira apresentar o espetáculo “Uma flor

dade do mergulho e a seriedade do seu labor artístico, artodiana-

de dama”, adaptação do conto de Caio Fernando Abreu, no antigo

mente fundidos com sua própria vida. Não estavam tão em voga

Teatro Armazém 14, dentro da programação do IX Festival Recife do

as propostas de teatro documental ou biodrama, contudo ele já

Teatro Nacional. Num sábado de 2006, quase à meia-noite, vi entrar

dava passos largos nesse sentido, em uma jornada mais do que pu-

em cena os traços e as garras de sua Gisele Almodóvar. A ausência de

ramente ideológica ou sentimental. Em nada me pareceu inseguro

uma cenografia rica, composta por uma arara com figurinos, uma ca-

sobre aquilo que fazia e defendia como pesquisa de linguagem. Se

deira e uma mesa de plástico, além de outros poucos elementos de

fragilidades existiam na dramaturgia, ou em qualquer aspecto do

cena, dava a medida certa à decadência e ao desamparo trazidos pela

espetáculo, elas eram suplantadas, ao menos para mim, pelo radica-

personagem. Nada de caricaturas. Ali imperava o essencial.

lismo de sua proposta cênica, difícil de agradar a todos. Nem sempre

Em tudo, o espetáculo contrastava com as proporções do

a autenticidade é bem aceita.

que se via, naquela mesma noite, no Teatro Santa Isabel: fausto e

Em cena, ele não apenas expunha com desenvoltura um dis-

glória sobre outra dama da noite, em “Toda nudez será castigada”,

curso político, como também colocava em relevo a arte das trans-

de Nelson Rodrigues, pela Armazém Companhia de Teatro (PR/RJ).

formistas – outra coisa que certamente muita gente de teatro até

Não sou de me chocar com facilidade, mas terminado o espetácu-

hoje não enxerga como arte. A dublagem de “I’ve never been to

lo da dama inglória cearense, fiquei passado ao escutar, não uma

me” (lip sink sobre a voz da cantora Charlene simplesmente irreto-

só vez e não apenas de uma só boca, comentários depreciativos e

cável), a exploração de cada mínimo elemento existente em cena

questionamentos do tipo “Como é que se traz uma coisa tão pobre

e seu timing para passear entre o cômico e o dramático demons-

e primária para um festival desse nível?” Quanto mais escutava as

travam o quanto já estava ali os 100% de sua genialidade criativa.

sandices, mais tinha a certeza de que havia escolhido o Armazém

Efeitos luxuosos extirpados sem dó e uma secura desconcertante

certo para ir naquele fim de noite. Havia vida pulsante e uma nobre

correndo nas veias. Potência poética em gestos simples e pintas

causa ali. Não se tratava de um espetáculo primário e, sim, de uma

poderosas, nada banais, nada inócuas. O boquete simulado com

obra de arte primal.

uma garrafa de cerveja e o gozo em jorro de espuma até hoje me

A coragem e o desnudamento de Silvero me tocaram muito TREMA!_facção

parecem um achado cênico sem igual. p­ — 43


CRÍTICA Cruzei com o espetáculo por mais duas vezes e minhas impressões

dática, epicizados. Mantendo a cena como um lugar de exposição

não mudaram, tampouco ficaram pálidas com a passagem do tempo.

e conservação de memórias pessoais e alheias, em palavras, gestos

Neste ponto, pode-se perguntar se deu “a lôca” em mim já que, até

e mesmo objetos. Intimidades reveladas. Dores e alegrias, mostra-

agora, não falei foi quase nada sobre o espetáculo que deveria estar

das com doses de deboche e nenhuma sombra de coitadismo. As

em foco, o “BR-Trans”. É que um não existiria sem o outro. São trans-

narrativas soam familiares e unívocas, irmanando muitas Agrados,

veios de um mesmo processo. O segundo herda os genes conceituais

todas para lá de almodovarianas.

e fomais do primeiro, mas vai além. Ver e saber sobre o ontem ajuda a

Não se vê mais a aridez cenográfica de “Uma flor de dama”,

melhor ler o hoje. Podem chamar isso de comprometimento ou coe-

mas o cenário continua centrando força naquilo que é essencial. O

rência artística.

mesmo vale para os figurinos na linha glamour zero. Elementos de cena, luminotécnicos e sonoplásticos são manipulados pelo performer. Eles delimitam os quadrantes do espaço de representação, de forma instalacional, com uma maior concentração ao fundo. Nada é decorativo e tudo está a serviço das transformações e trânsitos do artista em cena. Projeções ao fundo, ainda que ilustrativas, ampliam aos olhos do espectador aquilo que o discurso verbal não é capaz de revelar com tanta virulência. Como no caso das imagens de travestis massacradas ou das transmutações de Silvero/Gisele. Transformam-se e servem ao desenvolvimento das ações. Em “BR-Trans”, Silvero está em seu domínio máximo de capacidades: dubla, canta, dança e representa. Um trabalho corpóreo-vocal irretocável. Quase chega a ser acrobático, como no momento em que gira o chão, forçando as rodas da case sobre a qual atua. Uma vigorosa imagem síntese da resiliência de suas iguais. Tão magistral quanto o metafórico descascar de abacaxi de Marcele, personagem que se revela enquanto despe e narra sua sina como um conto de fadas perverso. Ele continua sem papas na língua e não tem medo da fúria que acorda em si e lança sobre o público. Alterna isso com momentos de pura delicadeza e poesia. Boa parte do léxico pós-

arte: thiago liberdade

dramático está na cena. Mas não é isso o que importa e, sim, aquilo que é dito, quando e para quem é dito. Uma obra não poderia ser mais necessária e oportuna quanto essa.

BR-TRANS

O “território do teatro” (empréstimo tomado a Batrice Picom-Valim) realmente é vasto e se sobrepõe ao mapa mundi. Tem

Quase uma década depois, durante o festival TREMA! 2015, fui

lugar para tudo, ou quase – isso depende do lugar de ocupação

apreciar Silvero em “BR-Trans”. Domingueira do dia 12 de abril

das tribos que o habitam. No entanto, fronteiras ainda precisam

que me deu o que pensar sobre a nossa arte e suas funções. Mon-

ser derrubadas. As expressões cênicas das travestis, por exem-

tada no Teatro Hermilo Borba Filho, Gisele Almodóvar recebia o

po, são vistas de soslaio e como algo menor, ou de valor artístico

público com um gracioso sorriso e o balançar das franjas de seu

questionável. Silvero estende sua contribuição para além dos limi-

“red dress”. De cara, me agradou e enxergei ali a mesma deste-

tes de sua cena, na luta por transformar essa realidade.

mida pessoa que tanto admiro. Mais serena e certeira nos golpes,

Em 2008, no entorno de sua “Uma flor de dama”, nasceu o

porque, para quem pratica bem teatro, a evolução é consequência

coletivo cearense As Travestidas. Faz pouco tempo que estrearam

natural. Introduções feitas, a figura se desmontou para que a sua

o espetáculo “Quem tem medo de travesti”, assinado pela dupla

outra face fosse trespassada por várias vozes e histórias. Já não es-

de criadores de “BR-Trans”. Nele, estão Deydianne Piaf, Verónica

tava ali mais uma flor de dama solitária. Ela e ele traziam consigo

Valenttino, Alicia Pietá, Patrícia Dawson, Karolaynne Carton, Yas-

Marcele, Bruna, Babi, Dani, Tyna e uma facção inteira de trans e tra-

min Shirran, a Mulher Barbada e seus duplos. Não tenho dúvidas

vas. Necessárias. Bravias. Também tinham a companhia do músico

de que ampliarão ainda mais esse campo de batalha. Esse grupo/

Rodrigo Apolinário, que lhe prepara uma cama sonora ao vivo.

facção promove um mergulho etnográfico de via dupla entre pal-

Atravessando o País, de Fortaleza a Porto Alegre, o artista

cos, pontos e pistas. Fato que me faz lembrar o trajeto e ideário do

pesquisador se amparou em experiências de partilha do sensível

diretor teatral e cineasta alagoano René Guerra (“O sapato de Aris-

com pessoas postas à margem, flagrantemente silenciadas e de-

teu” e “Quem tem medo de Cris Negão”), também artista-pesqui-

sempoderadas. A atriz e diretora Jezebel de Carli e Silvero conce-

sador da travestilidade e de outras identidades sociais desviantes.

beram, assim, um espetáculo que nos guia pelas tortuosas vias do

Cresce o número daqueles que buscam a subversão de nor-

ser travesti. Tomando a arte como gesto político, vão revelando

mas e a legitimação de valores correndo através de suas BRs-Trans,

fragmentos de figuras e fatos reais, de forma brechtianamente di-

onde muita gente morre. Isso, sim, precisa ter um fim. T

p­ — 44


pergunta

TREMA!4/6 “Como grupos e coletivos vêm se tornando cada vez mais parecidos com partidos políticos, e como os partidos políticos vêm se tornando cada vez mais parecidos com eles mesmos, está certo dizer que só podemos viver mesmo é na potência criativa permanente e nunca no poder. Porque parece que o poder logo nos captura para uma sensação de deslumbramento, isolamento e despotismo, e pelo perigoso ‘um nome a zelar’. Por isso, passo essa mão melada de esperma no rosto de vocês, para que: 1. Se retomem as linhas de experimentação coletiva não apenas da obra coletiva, mas do corpo-coletivo. 2. Criar seja criar a si mesmo. 3. Se crie sempre para o mundo. 4. Toda facção exploda. 5. Mil fações surjam e que todas elas se lambam. 6. Ao se lamberem, haja amor e paixão.”

JOÃO VALE IOGUE

TREMA!_facção

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EXPEDIENTE

pergunta

TREMA!5/6

TREMA! revista de teatro de grupo EDIÇÃO DA facção ANO 1

#1

JUNHO 2015

“Grupo é, sim, facção. Uma edição bimestral da Trema! Plataforma de Teatro

COORDENAÇÃO TREMA! PLATAFORMA DE TEATRO Mariana Rusu e Pedro Vilela

CONSELHO EDITORIAL

Às vezes, fracionada,

Mariana Rusu, Olívia Mindêlo, Pedro Vilela e Thiago Liberdade

EDIÇÃO Olívia Mindêlo

CAPA E PROJETO GRÁFICO

outras fictícia

Thiago Liberdade

PROPONENTE DO PROJETO Thiago Liberdade

COLABORADORES DA EDIÇÃO*

ou farsesca,

Paulo Marcondes, Eduardo Moreira, Marcondes Lima, Silvero Pereira, Guilherme Luigi, Erro Grupo, Fred Nascimento, Fernando Yamamoto, Tânia Farias, Henrique Fontes, Ivson Menezes, Nei Cirqueira, Danilo Cardoso, João Vale e Nathalia Queiroz. *As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

PLATAFORMA TREMA!

mas sempre

tremarevista@gmail.com tremaplataforma@gmail.com facebook.com/tremaplataforma www.tremaplataforma.com.br +55 (81) 9 9203 0369 | (81) 9 9223 5988

factual.” Tiragem: 500 exemplares (por edição) Impresso pela Brascolor ISSN: 2446-886X

Edição da FACÇÃO | Nº #1 | Ano #1 | Recife, junho de 2015

Realização:

Incentivo:

HENRIQUE FONTES AT O R , D I R E T O R E P R O F E S S O R D E T E AT R O

A TREMA! Revista de Teatro de Grupo é uma publicação com incentivo do FUNCULTURA – Fundo de Incentivo a Cultura de Pernambuco.Fundo de Incentivo a Cultura de Pernambuco.


pergunta

TREMA!6/6 “Grupo é grupo. Facção é facção. Tem grupo que não é grupo, como tem facção sem cérebro. Grupo-facção existe e é muito mais do que tudo isso. É um monstro. É um coletivo feito pra ordenar o caos destruindo tudo. É arte da monstruosidade humana. Tão cara, escassa e necessária. É o agora e é pra já. É arma de guerra.”

DANILO CARDOSO PROFESSOR DE HISTÓRIA

TREMA_facção

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ISSN: 2446-886X

1 grupo, divisão. 2 seita. 3 causa. 4 turma. 5 parte. 6 partido. 7 ala, lado, panelinha, banda, bando, campo, comunidade, corrente, clã, cor, grei, parcialidade, panela

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