TREMA! Revista - Edição da Ficção [05]

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TREMA! revista de teatro de grupo

EDIÇÃO DA ficção ANO 1

#5

ABRIL 2016


foto de olivia bee

qual a ficção da sua vida?

pergunta

TREMA!1/2 Existem dois tipos de ficções: uma mais prosaica, vivida cotidianamente, e outra mais ontológica, por trás de todas as experiências. Eu diria que, das minhas ficções ordinárias, a maior forte delas é aquela vivida quando eu acordo e vejo que a pessoa com quem eu escolhi viver a vida deixou uma faca melada de requeijão em cima do sofá ou continua a criar peixes em balde d’água cheio de calcinhas há semanas. É realmente inacreditável! Das ficções mais ontológicas, para mim a mais incrível é a ficção da vida. Como me disse uma amiga, citando outra amiga, Deus é um puta roteirista.

Bárbara buril j o r n a l i s ta e m e s t r a n d a e m f i l o s o f i a


editorial Fantasia. Criação. Imaginação. Fingimento. Mentira. Verdade. Realidade. Ficção. O tema que é caro à arte é também à vida. Ficção. Eis um conceito tão próximo do seu oposto que pode soar sinônimo. Ficção-realidade. O que está em cena, o que está na vida? O que é palco, o que não é? Somos ouvintes-contadores de histórias desde o berço. Somos seres de linguagem, de narrativa desde os primórdios. Assim processamos a existência, a ponto de arte e vida serem parte de uma mesma realidade – ou de uma mesma ficção. No entanto, as camadas entre “realidade” e “não-realidade” parecem se tornar cada vez mais complexas na contemporaneidade. A entrevista desta edição nos traz uma reflexão sobre esse ponto, por exemplo, pela voz de Àlex Serrano, fundador do coletivo espanhol Agrupacíon Señor Serrano, que esteve no Recife no último Janeiro de Grandes Espetáculos, com o trabalho “House in Asia”, uma peça que é filme e performance ao mesmo tempo. E então perguntamos a ele: — Essa ideia de uma ficção que supera qualquer realidade, ela é muito presente no seu país? Como a população lida com os meios de comunicação? — Não sei te responder – disse Àlex. Poderia dizer que o mundo é um pouco mais complexo agora. O simulacro onde a realidade já não pode ser concebida diante da representação. A realidade há deixado de se representar. Haja vista o que é o Facebook. Ele substituiu a realidade, mostramos nossos passos no dia a dia, mas construindo uma realidade muito perversa. Somos triunfadores, todos temos êxito no Facebook. Uma maneira muito artificial. E este artificial é cada vez maior. O que é ser, então, brasileiro hoje? O que é ser uma travesti em Cuba? Jornalista e professor da Pós-Graduação em Comunicação da UFPE, Thiago Soares nos atira no Malecón de hoje, onde a juventude expõe seus anseios à beira mar. A ilha é o local onde o pesquisador tem buscado perceber relações entre política, resistência e cultura pop, num país em que o sinal de internet só existe para os cubanos a conta-gotas, a conta-pesos ou desviado de um hotel, por meio de um “super” roteador. E então nos fala de Marty, seu personagem, uma travesti que sonha ver Lady Gaga se apresentar em Havana. Marty, Jacy, Joelma. Jacy é a personagem do Grupo Carmin (RN), persona-título do trabalho que virá ao TREMA! Festival de Teatro em abril deste ano, além do tema da nossa Nota de Procedimento + Crítica. Joelma, o diálogo promovido por Valmir Santos em seu texto crítico sobre Jacy, lembrando a personagem da peça do grupo Território Sírius Teatro. TREMA! com três mulheres, transformações de realidade. Eis aqui alguns dos elos promovidos pela revista em sua quinta edição. E dos elos é que se fazem as ficções, e as realidades. Que você possa fazer os seus a partir de agora. Boa leitura!

RECIFE, ABRIL DE 2016

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colaboradores desta edição

THIAGO SOARES

Raul LUNA

IGOR DE ALMEIDA

Professor do Programa de Pós-

Raul Luna é formado em

Professor do Departamento de Teoria

Graduação em Comunicação da

Arquitetura & Urbanismo,

da Arte e Expressão Artística da

UFPE, coordenador do Laboratório

atuando como artista multimídia,

UFPE. Doutor em Artes Cênicas pela

de Análise de Música e Audiovisual

diretor de arte e designer

Universidade de São Paulo (USP).

(Lama) da mesma instituição e autor

desde 2008. Investiga o Preto-

dos livros “A estética do videoclipe”

Branco, Xerox Arte, Remix,

HENRIQUE FONTES

(2014) e “Videoclipe – o elogio da

Distorção Tipográfica, o

Formado em comunicação social

desarmonia” (2004).

abstracionismo e o experimental.

MALA

VOADORA

com mestrado em ciências sociais, pelo Grecom/UFRN. Tem 28 anos de vivência no teatro. Como diretor, tem 12 peças montadas e como dramaturgo, nove textos escritos e montados. É sócio-fundador e atual diretor artístico do Espaço Cultural

MALA VOADORA

Casa da Ribeira em Natal/RN.

“A mala voadora” é o título de um

JOÃO DIAS TURCHI

PEDRO FIUZA

conto de Andersen (não muito alegre)

Escritor e dramaturgo, é mestrando

Formado em Rádio-TV pela UFRN,

cujo protagonista acaba condenado a

no Programa de Artes Cênicas

com especialização em cinema.

contar histórias para viver.

da Universidade de São Paulo,

Fundador da produtora Casa da

É uma companhia de teatro

desenvolve pesquisa ligada a

Praia Filmes, com a qual realizou

fascinada com o artifício – a contra-

dramaturgia e alteridade, e

documentários, web-séries e curtas-

naturalidade que define aquilo que

realizando trabalhos artísticos

metragens. No grupo, pesquisa a

é especificamente humano e que

VALMIR SANTOS

individuais e junto a coletivos

interface do audiovisual e o teatro

pode atingir a condição daquilo a que,

Jornalista, crítico e editor do site

como o Grupo Cinza.

como linguagem híbrida.

artificiosamente, se chama “arte”.

Teatrojornal – Leituras de Cena.

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arte: thiago liberdade

ARTIGO

thiago soares thikos@gmail.com

A

cantora Lady Gaga nunca esteve na ilha de Cuba. Em contra-

tudo, a travestis e transexuais. Lady Gaga é, portanto, o vetor de um

partida, fãs cubanos ostentam a imagem da estrela, princi-

viver político que ressignifica o cotidiano e aponta rotas de fuga e

palmente em camisas – evidenciando uma clara tomada de

colisão de parte da juventude cubana.

posição diante de uma história revolucionária do país e de acirramento com a cultura norte-americana. Ser fã de Lady Gaga em Cuba

*

significa aderir à cultura anglófila, de alguma forma, negar o clichê do “cubano revolucionário”, mas assumir um posicionamento frente a

Amanhece no Malecón, a mureta de pedra que cerca a parte li-

questões de gênero: através da corporificação da cantora pop, fãs

torânea de Havana, capital de Cuba. Encostada numa espécie de

se colocam contra políticas de Estado que cerceiam direitos, sobre-

destacado que serve de mesa para garrafas de rum e refrigerante

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Tropicola (a versão cubana da Coca-cola), Marty, olhos mareados de

(também cerceados pelas políticas de exibição do governo cuba-

tomar cuba libre (parece clichê – e é), me conta sobre como seria

no), álbuns de artistas internacionais (o álbum “Born this way”, de

ver um show de Lady Gaga, ali mesmo, em Havana. Imagine a Pla-

Lady Gaga, que Marty ouve em casa é de um CD baixado por este

za de La Revolución, no imenso descampado, cimento no chão, em

amigo), videoclipes e, claro, novelas brasileiras (que antecipam o

frente ao Memorial José Martí – imaginou? O palco ficaria de frente

que vai acontecer nas tramas em exibição no canal de TV Cubavi-

para a imagem de Che Guevara, aquela que tem o “Hasta la Victo-

sión, por exemplo). Marty não tem DVD em casa (apenas reprodutor

ria, Siempre”. O castelo da Lady Gaga, da turnê “Born this way” (ela

de CD) e por isso assistiu ao show “Born this way”, de Lady Gaga, on-

fala inglês com sotaque castelhano), imenso, ao fundo. O apagar das

line, no Youtube.

luzes. Show gratuito, à noite, porque, segundo ela, cubanos não teOutro gole de cuba libre.

riam como pagar a “fortuna” que seria um espetáculo de Lady Gaga. Mas o show teria que vir completo: cenário, figurinos, maquiagem, a moto em que Lady Gaga monta, até o cavalo da performance da

E o roteador, como chega importado dos Estados Unidos? Na

canção “Government hooker”, a cantora montada nele, um luxo.

mala de algum cubano residente em Miami que vem rever a fa-

mília, Marty me diz. E pode? Poder não pode, mas dá-se um jeito. Mais um gole de cuba libre.

Tem-se um amigo na Aduana, dá-se um “agrado” (algum dinheiro),

faz-se “vista grossa”. Em Cuba, o desejo de sair da ilha por tem-

Tem uma cena em que Lady Gaga canta “Born this way” saindo de

po determinado ou definitivo é uma demanda reprimida desde a

uma espécie de vagina cenográfica, um parto ao vivo, você viu isso,

década de 1960. Pouco mais de meio século de política restritiva

Marty? “Me encanta esta parte”, mãos no coração, tremulância en-

para viajar ou migrar separou os cubanos da possibilidade de ir a

cenada. Vi no Youtube todo o show, me diz. Detalhe: acesso à in-

qualquer outro lugar do mundo. É improvável que um cubano, re-

ternet, em Cuba, é cerceado pelo governo, apenas 3,4% dos lares

cebendo um salário de US$ 20, consiga comprar uma passagem

cubanos possuíam acesso à rede em 2013 e a tarifa paga por uma

aérea, pagar taxas e emigrar. Ou simplesmente viajar. Os morado-

hora de internet em pontos da estatal de telecomunicações cubana

res da ilha vivem o que o escritor Pedro Juan Gutiérrez em sua “Tri-

Etecsa era o equivalente a US$ 2 – num país em que a média sala-

logia suja de havana” 1 chama de uma “síndrome de espera”: por

rial é de US$ 20, uma hora de internet equivale a 10% do salário de

alguém que chegue, por alguém que saia, por alguma nova medida

um profissional cubano. Como Marty acessa o Youtube?, me per-

estatal. Uma utopia?

gunto. A resposta vem num certo tom de segredo: um amigo tem um “super” roteador, ela me conta, importado dos Estados Unidos,

Prometemos ser o último gole de cuba libre.

que capta a internet wifi de um hotel de luxo próximo à casa dele. Ali, este tal amigo baixa programas de TV coreanos (os doramas, ou dramas coreanos, famosíssimos na ilha), filmes norte-americanos

1 GUTIERREZ, P. J. “Trilogia suja de Havana”. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

show do albúm born this way de lady gaga – foto: divulgação

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ARTIGO Marty é travesti e espera que “um dia” consiga ver o show de Lady

forma, podiam ser ouvidas em Cuba através da captação por ante-

Gaga na ilha. Parece uma utopia. Um devir. Tento fugir do clichê que

nas. Da parabólica clandestina, outro amigo gravava fitas VHS com

é aquela travesti diante de mim, o sol nascendo, as ondas batendo

clipes e performances ao vivo das Spice Girls, de Britney Spears e

no Malecón, os primeiros carros modelo Ford 1956 circulando ao

Christina Aguilera. Estar em Havana, capital de Cuba, mas não ne-

longe, emocionada, à espera de Lady Gaga. “Não sei se o governo

gociar com as formas culturais que demarcam o “ser cubano”, pare-

autorizaria um show dela”, diz Marty.

cia nortear a vivência do Simón que, aos poucos, se tornava Marty.

Eu a conheci numa boate gay chamada Cabaret Las Vegas, no

Divagar, querer ir além. Cuba parece ser a metáfora do isolamento:

bairro de Vedado, ali nas proximidades do Malecón. Conversamos,

uma ilha, um governo sui generis, um lugar – como alardeiam

fiquei de dar um perfume para ela, trocamos informações sobre

as campanhas turísticas – “parado no tempo”.

Lady Gaga. Contei que tinha visto a turnê “Born this way”, em São

A geração de Marty, em seus vinte e

Paulo, ao vivo. Marty tem 26 anos. Nasceu com o nome de Simón

poucos anos, estava longe de um

Sanchez em 1989, em Piñar del Rio, a cerca de duas horas de Havana.

certo ideal revolucionário. De um

O final da década de 1980 pode ser apontado como epicentro do

projeto unificador. Da grande

início da crise econômica cubana, após a queda do bloco soviéti-

narrativa sobre Cuba. Nas

co, base de relações políticas e econômicas da ilha depois de 1959 2.

brechas do cotidiano,

Marty não viveu o “apogeu revolucionário” da ilha , os ideais de Che

Marty falava inglês

Guevara, os longos discursos de Fidel Castro pareciam distantes de

e dava entrevistas

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seu cotidiano. A família encarou a crise alimentar em 1995, quan-

imaginárias para

do bens alimentícios faltavam às mesas. Viu crescer a prostituição

programas de

como “complemento de renda” – para mulheres, homens, traves-

celebridades.

tis e transexuais. O cotidiano parecia afastar Marty das linhas mes-

Seu grupo de

tras do socialismo cubano, apontando dissidências sobre um certo

amigos e amigas

“projeto comum” para os viventes da ilha.

até gostavam de

Os postulados de Che Guevara eram aprendidos na escola, em

Che Guevara, de

livros, em dias de solenidades cívicas, mas nas brechas do cotidiano,

Fidel (“a gente

o garoto Simón vislumbrava desejos de se maquiar, dançar, cantar.

sabe que ele não

A masculinidade excessiva do projeto revolucionário cubano, o mi-

é homofóbico”) e,

litarismo, a glorificação da farda, o verde, o quepe, o rosto em riste,

de alguma forma,

pareciam rasuras no projeto afetivo de país para Simón. Algo dis-

compreendiam

tanciava Simón de Cuba. Algo aproximava Simón de Marty. Vieram

a perseguição

os amigos gays adolescentes, as festas, o compartilhamento dos

aos homos-

gostos comuns, a adesão à cultura pop, sobretudo através da mú-

sexuais

sica. O Simón que se distanciava de Cuba também parecia negar as

pelo Estado

formas culturais “tradicionais”: a rumba, a salsa, o merengue soavam

cubano na

ser o engendramento de um país revolucionário que glorificava seu passado – e sua tradição. Contra aquilo que fosse a síntese da relação entre Cuba e seu passado, Simón começou a se interessar pelas cantoras de língua inglesa. Ouvir músicas em castelhano parecia ser o estorvo da conexão com o presente. Um amigo mostrou as Spice Girls, um videoclipe em que aparecia a bandeira da Inglaterra, músicas como “Wannabe” e “2 become 1”. Marty lembra que gravava fitas cassete das rádios de Key West, na Flórida, que, de alguma

2 HAVRANEK, 1998; HEREDIA, 2000. In: HAVRANEK, A. “Cuba na atualidade: o impasse e o silêncio”. In: HEREDIA, F. M. “Sociedad, transición y socialismo en Cuba”. La Habana: Heliog, 2000. In COGGIOLA, O. (org). Revolução cubana: Histórias e problemas atuais. São Paulo: Xamã, p.155-167. 3 BOBES, 2001; GOTT, 2006. In: BOBES, V. C. “Las mujeres cubanas ante el período especial: ajustes y cambios”. Debate feminista. Ciudad de México, v.12, nº 23, p. 67-96, 2001. | In: GOTT, R. “Cuba, uma nova história”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2006.

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década de 1960 (“Se o mundo não aceitava, aqui também não”).

de diferenças: 1. quem tem dinheiro e quem não tem; 2. quem tem

A grande ídola para Marty e seus amigos era Mariela Castro, a

o poder de “convidar”; 3. quem domina a retórica do encontro; 4.

sexóloga e filha do presidente Raúl Castro, uma das figuras em-

quem protagonizará o desfecho. O lanche-café-da-manhã pós-ba-

blemáticas da luta contra a homofobia em Cuba.

lada parecia ser uma metáfora dos acordos tácitos entre estrangeiros e locais; voltando um pouco mais no tempo, entre espanhóis e

*

cubanos; desbravadores e descobertos; metropolitanos e colonos 4.

*

Depois da cuba libre (“da coragem”, imagino o Gonzaguinha de “Começaria tudo outra vez”), bate a fome. Convido Marty para comer algo e ela é direta: “você sabe que aqui em Cuba se

C U LT U R A P O P

você convida, você paga. E eu escolho o que vou comer – e vai ser o mais

A Lady Gaga que nunca foi a Cuba, mas habita a travesti Marty, fa-

caro”, me diz, altiva e impositiva,

zendo-a reconhecer lugares de existência, de luta e resistência dian-

com um “traquejo” que –

te do governo e das instituições nos parece uma forma oportuna

reconheço ser – irônico.

de pensar a Cultura Pop como uma tentativa de compreensão das

Talvez nesta forma

performances que encenam modos de viver, habitar, afetar e estar

de Marty se dirigir a

no mundo. A Cultura Pop estabeleceria formas de fruição e consu-

mim deliberada-

mo que permeiam um certo senso de comunidade, pertencimento

mente aberta e

ou compartilhamento de afetos e afinidades que situam indivíduos

direta esteja a fa-

dentro de um sentido transnacional e globalizante 5.

bulação da relação

Pensar Lady Gaga em Cuba (na travesti Marty mas nos inú-

dos cubanos com

meros fãs da artista que vivem na ilha caribenha), mas também

os estrangeiros-

inúmeros outros artefatos da Cultura Pop, dos filmes-livros “Cre-

turistas. O convite,

púsculo”, “Harry Potter”, “Cinquenta tons de cinza”, passando pelo

que poderia ser

cinema de Hollywood, pelo rock inglês dos Beatles, do Queen ou

visto como algo

por toda a tradição anglófila que existe na música pop, nas his-

“pro-forma”, uma

tórias em quadrinhos, nos seriados televisivos: a cultura cubana

retórica de “edu-

é a relação de toda a tradição, erguida pelas políticas de Estado,

cação” e “bons

pelas lógicas de uma “cubanidade” atreladas a ideias de tradição,

costumes”,

de negritude e de resistência, com os produtos do popular-midiá-

assume a sua

tico, da Cultura Pop, baixados sorrateiramente através de internet

factualidade a

“pirateada”. Viver em Cuba, ser jovem em Havana, significa buscar

partir

formas de adquirir os últimos lançamentos da Cultura Pop, escondê-los ou ostentá-los. As questões geracionais são, portanto, fundamentais para se pensar o distanciamento de uma ideia de Nação cubana pós-Fidel Castro. Como pensar a política na singularidade dos sujeitos, nos espaços privados, nas formas de pertencer por sobreposição: pertencer e pertencer. Duplamente. Sobrepondo. Ser cubano para uma certa ideia de Cuba-Nação e ser cubano para o seu grupo.

4 TAYLOR, 2013. In: TAYLOR, D. “O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas”. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013. 5 SHUKER, 1994; BENNET, 2000; REGEV, 2013. In: BENNETT, A. “Popular music and youth culture: music, identity and place”. Londres: Macmillan, 2000. | In: REGEV, M. “Pop-rock music: Aesthetic cosmopolitism in late modernity”. Cambridge: Polity, 2013. | In: SHUKER, R. “Understanding popular music”. New York: Routledge, 1994.

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ARTIGO

malecón – foto: thiago soares

São performances distintas, que não se anulam, pelo contrário, evidenciam as complexidades da existência. Os sujeitos dentro do contexto da Cultura Pop interpretam, negociam, se apropriam de artefatos e textos culturais, ressignificando suas experiências, descortinando possibilidades de estar no mundo, de entrar e sair de uma certa ideia de modernidade, conectando-se a premissas mais amplas ligadas a devires cosmopolitas, a pertencimentos e agenciamentos que se fazem entre ser local e ser global não como instâncias opostas – e binárias, portanto – mas naquilo que se faz por adição, concomitância, simultaneidade.

* Já perto de nos despedirmos, Marty me diz: “Se Stefani se transformou em Lady Gaga, Simón pode ser Marty”. E, logo, me vem o debate sobre cidadania em torno do nome social de travestis. Neste sentido, Marty parecia fabular sobre Lady Gaga e eu, na condição de espectador, estou diante dos debates de gênero das travestis. “[Elas] vivem e personificam um jogo do gênero – seja verbal, corporal ou das relações – que é artificial e manipulado, criado e reinventado” 6 . Por isso a ideia de inconstância, de não-ontologia, por isso, a ideia de perigo e sedução, o desconhecido e o ficcional em torno das travestis. Em algum ponto entre o feminino e o masculino reside, móvel, em constante deslizar, aquilo que sustenta o gênero, que o reitera e o reaciona. Como combinado, eu pago a conta de Marty, ela me pede produtos de higiene pessoal, passo no hotel, dou hidratante, xampu, desodorante, perfume. Quando vê um hidratante da marca Victoria’s Secret, coloca a mão no peito, simula tremulância. “Você está realizando meu sonho”. Mas, logo, sorrateira, me interpela: “não, meu sonho é ter um perfume da Lady Gaga, aquele com líquido preto”. Sorrimos. Dou um abraço em Marty. Pareço estar num final de filme, em que amigos se separam, nunca mais se verão, é agora, é tarde, adeus. E talvez seja.

6 BENEDETTI, 2002, p. 149. In: BENEDETTI, M. R. “A calçada das máscaras”. In: GOLIN, C. e WEILER, L. G. Homossexualidade, cultura e política. Sulina: Porto Alegre. p. 140-152, 2002.

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MALA VOADORA p or tu gal

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ENTREVISTA

Agrupación Señor Serrano "house in asia" – foto: nacho gómez

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S

ediado em Barcelona, a Agrupación Señor Serrano é um dos coletivos mais atuantes da Espanha. Ganhadores do Leão de Prata pela trajetória e inovação teatral na última Bienal de Veneza, o

grupo esteve no Recife na programação do festival Janeiro de Grandes Espetáculos de 2016. Trouxe o espetáculo “House in Asia” e Àlex Serrano, fundador da companhia, aproveitou e bateu um papo com Pedro Vilela sobre o projeto artístico do grupo. Confira a seguir.

Em 2016, a Agrupación Señor Serrano completa 10 anos de existência. Como vocês analisam este período e quais os principais reordenamentos de trajetória vividos pelo coletivo?

Àlex Serrano A cia. nasceu em 2006, mas podemos dizer que há dois grandes períodos: um que vai de 2006 a 2010/2011 e outro que vai desta data até a atualidade. No primeiro, utilizamos um tipo de teatro mais performático, trabalhando com atores, mas nunca em busca de construções de personagens e, sim, manipuladores ou performadores assumindo suas identidades e mesclando dança, texto, teatro visual e sempre tentando encontrar conceitos ou temas puros, como a culpa, a tristeza, a revolução, para desenvolvermos a obra em equipe. Em 2009/2010, as coisas se invertem verticalmente. Sucede que nos damos conta que esgotamos esta forma de trabalhar, que não tinha mais nenhum sentido para nós seguirmos trabalhando com atores, pois era um modelo que tínhamos provado e não nos divertia mais. Por um lado, isso coincide com o período da crise econômica espanhola. Todas as redes, todos os teatros, todos os festivais da Espanha desaparecem e em todos aqueles que já tínhamos atuado já não podíamos voltar a atuar. Portanto, todo o mercado espanhol desaparece e nos vemos forçados a sair, buscar um teatro mais internacional. Com essas coincidências, nos demos conta que seria preciso redesenhar totalmente nossa maneira de fazer teatro. A partir de agora, já não nos diferenciamos entre equipe criativa e atores, uma vez que a própria equipe (atores, diretores, cenógrafos) se converte em atores e, portanto, deixo de dirigir, para dirigir e também atuar. Como precisávamos criar espetáculos para girar internacionalmente, nos demos conta de que o texto é um problema. E que já não poderíamos falar em espanhol ou em catalão, que é a nossa língua, p­ — 23


"house in asia" – foto: nacho gómez

porque isto não nos permi-

ção e direção artística, e logo temos como um satélite de

pre estamos usando, nos

“Eu, quando vejo um bom filme ou leio um bom livro, aprendo mais do que quando vejo uma obra de teatro. A mim me aborrece muito uma obra de teatro”

permite criar uma lingua-

Àlex Serrano

não são acionistas dela. Isso

te viajar, exportar. E também nos demos conta de que a câmera de vídeo, que sem-

gem ou abordar os temas de

demais pessoas que colaboram intensamente nos projetos. Elas formam a cia., mas basicamente por uma ques-

uma maneira que o público já conhece, por meios audiovisuais,

tão: eu me dedico 12 horas de trabalho por dia em prol da cia.

e através do qual, portanto, nos comunicamos mais facilmente.

Mas é uma ideia de colaboradores muito fiéis que, dependendo

Poderíamos dizer que, a partir de 2010, já não fazemos teatro e,

do projeto, entram ou saem, porque também gostamos de tra-

sim, cinema, um filme em tempo real. E há três obras, que são:

balhar com especialistas. Por exemplo, em “Katastrophe”, uti-

“Katastrophe”, “Brickman Brando Bubble Boom” e o “House in

lizamos pedras de dominó e, com isso, tivemos a necessidade

Asia”. Elas seriam parte desse grupo, junto com a que estamos

da ajuda de um assessor químico e, portanto, contratamos um

produzindo agora que se chamará “Birdie”. Elas seriam cinema.

assessor. Na nova peça, por exemplo, precisamos de um histo-

Essas obras já não partem tanto de conceitos como as anterio-

riador e um geólogo. Se ficássemos em um núcleo duro, fica-

res e, sim, da própria realidade contemporânea.

ríamos forçados a fazer apenas trabalhos que todos do grupo sabem fazer, ou seja, sendo pequenos nos permite mover em

Vocês trabalham com um núcleo fixo de pessoas e os

diferentes direções.

demais são colaboradores? Por que esta formatação? Isto faz parte de alguma estratégia de sobrevivência?

Os integrantes do grupo possuem que tipo de formação? Teatro ou Cinema?

Serrano Basicamente por uma ideia de um contexto nos dando a forma. Nos demos conta de que precisamos ser muito peque-

Serrano Estudei desenho industrial, comunicação audiovisual, tra-

nos para sermos muito ágeis, para nos movermos rapidamente.

balhei em publicidade 10 anos e depois vim ao teatro. Pau (Palacios)

Temos um núcleo duro de três pessoas, produção, comunica-

é sociólogo e teve carreira política (risos). E Alberto é engenheiro

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"house in asia" – foto: nacho gómez

de telecomunicações. Ou seja,

do que na Espanha. Fomos

tro, para fazer um teatro dife-

“Na realidade final, há de se colocar uma capa, senão reflete, fica como se quiséssemos dar uma lição ao público e isto é muito estranho”

rente. Nossas referências nun-

Àlex Serrano

somos pessoas que viemos de âmbitos muito diferentes e nos juntamos para fazer tea-

a seis cidades. Para nós, é genial. Este é o terceiro país onde mais atuamos, junto com os Estados Unidos e a China, nos últimos anos.

ca são teatrais, quase sempre são do mundo audiovisual, ou da música, ou da literatura.

De onde surge a necessidade do tensionamento de ficções? Vemos também diferentes apontamentos de linguagem

Como se relacionam com outros diretores que investi-

nos seus trabalhos, como lidam com isso?

gam este campo no qual trabalham? Conhecem, por exemplo, a obra da brasileira Christiane Jatahy?

Serrano Tem muito a ver com este meu aborrecimento com o teatro. Teatro é mentira, uma convenção. Porque eu, como es-

Serrano

Sim, conheço perfeitamente. No festival Cena Con-

pectador, dialogo com o artista, mas numa convenção muito ar-

temporânea (realizado em Brasília), no ano passado, me per-

tificial. Por exemplo, eu sou Ana Karenina e estou em Moscou,

guntaram se eu queria realizar um projeto com a Christiane

Rússia.... Isso é uma mentira! O mais honesto para mim é mostrar

Jatahy.... Disse que sim, por que não? Creio que Jatahy não se

esta mentira. Não tentar simular que sou a Ana Karenina, mas

nutre do teatro, se nutre de outra linguagem. Da linguagem au-

dizer: “Ei, não sou Ana Karenina! Na verdade, sou Àlex Serrano e

diovisual. Eu, quando vejo um bom filme ou leio um bom livro,

sou Ana Karenina”. Mostrar a mentira. Mostrar o grau de ficção.

aprendo mais do que quando vejo uma obra de teatro. A mim

“House in Asia”, por exemplo, lida com a realidade, mas exploran-

me aborrece muito uma obra de teatro.

do diferentes níveis de ficção. Eu sou este, mais este, mais este. E, na realidade, serve para questionar a própria realidade: qual

Como tem sido a experiência no Brasil?

a realidade? O que se sucedeu nesta casa? Não temos ideia. O que se sucedeu não foi relatado oficialmente. E se houvesse, seria

Serrano

Nos três últimos anos, temos atuado mais no Brasil

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apenas a história contada sob um ponto de vista.... Mas nem isto p­ — 25


"brickman brando bubble boom" – foto: alfred mauve

aconteceu... O único relato que temos é um livro e um filme. E, portanto, nos damos conta de que a realidade deste caso só foi mostrada através da ficção. Há um dado muito significativo que é: sempre que se fala do que se sucedeu nesta casa, os meios internacionais, a imprensa, usam fotografias do filme, ou seja, a ficção substituiu totalmente a realidade. Nos demos conta de que, nos noticiários, sempre aparece uma parte do filme e não uma fotografia do lugar original. Essa ideia de uma ficção que supera qualquer realidade, ela é muito presente no seu país? Como a população lida com os meios de comunicação? p­ — 26


Serrano Não sei te responder. Poderia dizer que o mundo é um pouco mais complexo agora. O simulacro onde a realidade já não pode ser concebida diante da representação. A realidade há deixado de se representar. Haja vista o que é o Facebook. Ele substituiu a realidade, mostramos nossos passos no dia a dia, mas construindo uma realidade muito perversa. Somos triunfadores, todos temos êxito no Facebook. Uma maneira muito artificial. E este artificial é cada vez maior. Na nova obra que estão a conceber, haverá o aprofundamento de uma nova camada. A busca de uma quarta camada. Qual seria? TREMA!_ficção

p­ — 27


ENTREVISTA

"paisaje de desolación", foto de inspiração para o novo trabalho do grupo – foto: josé palazón

Serrano

Somos acostumados a lidar com universos fechados.

trear em julho (deste ano), em Barcelona, e está sendo muito

“House in Asia” é um universo fechado. Tudo o que acontece na

difícil criar. Partimos de uma imagem de “um campo na Espa-

cena está ali. Atuamos com as câmeras, com as maquetes, com os

nha com duas senhoras jogando golfe e, em cima, negros que

objetos. A quarta escala seria o que se sucede fora utilizando-se

estão tentando cruzar a baía, que são imigrantes africanos e a

smartphones, internet. Poderia “inter-actuar” com a realidade,

polícia. Está sendo muito difícil, porque sempre tentamos falar

criando uma dramaturgia que se nutre dela. Fizemos um teste na

da realidade sem falar da realidade... Falamos de Bin Laden sem

Bienal de Veneza, em agosto passado, que foi um primeiro ensaio

mencionar Bin Laden... Falamos de terrorismo, mas falando do

simples com maquetes e objetos, explicando ao público uma his-

combate entre índios. Mas esta imagem é tão forte, tão real,

tória de uma pessoa que viaja do Niger (África) até os Países Baixos

tão dura que está nos custando muito a deixar de lado. E o que

na Europa e, em um determinado momento, ativamos o Google

cremos seguramente é que não queremos falar dela. Não fala-

Maps e o espectador via os lugares específicos com o aplicativo.

remos evidentemente deste drama. Há um campo de golfe rico

Podíamos explicar, em tempo real, a viagem de um lado a outro

e imigrantes pobres que querem entrar. Certamente, o espe-

dessa pessoa. Ou fomos a uma página do Facebook onde havia

táculo será um analise disso. Uma análise geográfica, politica,

traficantes de pessoas que ofereciam serviços para cruzar o mar. A

compositiva semiótica, mas sem falar nunca do drama do que

quarta dimensão para nós seria deixar de estar aqui para irmos lá

está sucedendo ali.

fora. Ir a outro mundo que nos alimenta, que está vivo. Pela proporção que a companhia tem adquirido, tornaA ironia é muito presente na obra de vocês? Qual o porquê

se mais difícil criar?

desta marca?

Serrano

Bom, as dificuldades são várias. A imigração é um

Serrano Gostamos de rir de tudo. Não temos como levar à sé-

tema difícil. E segundo, somos uma companhia muito pequena,

rio nós mesmos. As próprias obras sempre fazem referência a

estamos trabalhando muito. Recebemos poucas subvenções

outros universos e comumente cortamos a obra em golpe para

pública, então todo o dinheiro vem da circulação, isso significa

dizer ao público que fiquem tranquilos.... Não está acontecendo

que precisamos estar muito tempo girando e pouco criando.

nada demais aqui, a realidade está em outros lugares!

Mas, principalmente, porque é um tema muito difícil e não se pode falar da realidade. Eu creio que falamos sempre das capas,

A nova obra o que esperam?

dos simulacros. Na realidade final, há de se colocar uma capa, senão reflete, fica como se quiséssemos dar uma lição ao públi-

Serrano p­ — 28

Sobre “Birdie”... Está sendo muito duro... Vamos es-

co e isto é muito estranho.


28.04

J acy Grupo Carmin (RN)

03.05

Teatro Hermilo borba filho – 20h

GRÃOs DA IMAGEM: Vaga Carne Grace Passô (MG) Teatro Hermilo borba filho – 20h

07.05

So b re din o s auro s , gali n h a s e drag õ e s

L a n çame n to T R E MA ! R evi s ta # 6

Primeira Campainha (MG)

Teatro Hermilo borba filho

Cia. Fiandeiros (PE)

Teatro Arraial Ariano Suassuna – 19h30

a partir das 19h

Teatro Hermilo borba filho – 16h

Q uem tem medo de trave s ti Coletivo As Travestidas (CE)

04.05

Teatro Santa Isabel – 21h

30.04

P E DAGOGIA DA L IBE RTA ÇÃ O

06.05

Coletivo Grão Comum (PE)

teatro Apolo – 20h

29.04

Pa ( ide I a )

Is s o é para dor Primeira Campainha (MG) Teatro Arraial Ariano Suassuna – 19h30

R etomada Grupo Totem (PE) Teatro Hermilo borba filho – 20h

05.05

08.05

V e n to F orte para á gua e s a b ão

V e n to F orte para á gua e s a b ão Cia. Fiandeiros (PE) Teatro Hermilo borba filho – 16h

Soledad, A terra é fogo s ob nos s os pé s Cria do Palco (PE) Teatro Hermilo borba filho – 20h

F E S TA : Ca bar é das T rave s tida s Coletivo As Travestidas (CE) Roda cultural – a partir das 23h

01.05

Is s o é para dor Primeira Campainha (MG) Teatro Arraial Ariano Suassuna – 19h30

w w w.e v e n t ic k . c o m . b r /t r e m a f e s t iva ld e t e atr o #F ICÇÃ O L E ITUR A VISUAL Raul Luna TREMA!_ficção

p­ — 29




PERFIL

Companhia

Teatro de Seraphim gênese e reflexividade

p­ — 32


IGOR d e A L M EI D A igordealmeida.silva@gmail.com

A

Companhia Teatro de Seraphim (CTS) surge em março de 1990, com a estreia do espetáculo “Heliogábalo & eu”, de João Silvério Trevisan, direção de George Moura, na Sala Alfredo de Oliveira, no Teatro Valdemar de Oliveira, no Recife. Um mês depois, o grupo

estreia outra obra de Trevisan: “Em nome do desejo”, com direção de Antonio Cadengue,

no Cineteatro José Carlos Cavalcanti Borges. Esse espetáculo é, inicialmente, criado como montagem didática dos alunos do Curso Básico à Formação do Ator, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Devido ao sucesso de público e crítica, ele é incorporado ao repertório da recém-criada companhia no mês seguinte à sua estreia. A gestação desse coletivo de criação dá-se ainda nos anos 1980, quando da atuação de Cadengue como professor e coordenador do Curso de Formação do Ator (CFA), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), entre 1985 e 1988. Muitos dos fundadores e integrantes formam-se ou colaboram com as montagens didáticas desta escola, que se torna referência na cidade do Recife no que tange à formação do ator e à experimentação cênica. O que chama atenção nos dois primeiros espetáculos do grupo é que, de certa forma, ambos dão continuidade ao trabalho, como professor, do seu diretor artístico Antonio Cadengue junto ao Curso de Formação do Ator da UFPE e a outras instituições de ensino do Recife, como o Curso Básico à Formação do Ator da Fundaj. Em vez de dirigir o espetáculo de estreia da CTS, Cadengue confia essa tarefa a um diretor estreante, seu ex-aluno no CFA. Além disso, “Em nome do desejo”, segundo espetáculo da companhia, é, em sua origem, também uma encenação de final de curso, uma prova pública. Desde o início de suas atividades, a Companhia Teatro de Seraphim atua na cena recifense como uma companhia-escola.

"em nome do desejo", 1992. companhia teatro de seraphim. atores: jailson martinho e lúcia machado. foto: yêda bezerra de melo

TREMA!_ficção

p­ — 33


"a lira dos vinte anos", 1991. companhia teatro de seraphim. fabio lira, cira ramos, hyeda romão, paulo de pontes, hilton azevedo. e ao fundo marcus vinícius. foto: adelmo lapa

Seus sócios-fundadores são Antonio Cadengue, Marcos Vinícius de

montagens de “O jardim das cerejeiras” e “A lira dos 20 anos”.

Pinho e Souza, Lúcia Machado Barbosa, Manuel Carlos de Araújo, Ani-

São espetáculos de aprendizagem que evidenciam a busca pela

bal Santiago Silva e Augusto Farias Tiburtius. Depois dos dois espetá-

autoformação e pelo aprimoramento dos atores que compõem

culos de estreia, a CTS empreende uma série de realizações. Entre elas,

a CTS naquele momento.

destacam-se: “O jardim das cerejeiras”, de Anton Tchékhov, direção de Antonio Cadengue, em 1990; “A lira dos 20 anos”, de Paulo César Coutinho, direção de Antonio Cadengue, em 1991; “O palhaço nu”, de

CA RACTE RÍSTICA S

Alcione Araújo, direção de Lúcia Machado, em 1991; “O concílio do amor”, de Oscar Panizza, direção de George Moura, em 1982.

Outro aspecto do trabalho da companhia é o compromisso em

Nos anos seguintes, o grupo ainda realiza os espetácu-

discutir os problemas presentes na sociedade brasileira. Em sua

los “Senhora dos afogados”, de Nelson Rodrigues, em 1993; “Os

trajetória, a CTS debruça-se nas seguintes temáticas: os rigores

biombos”, de Jean Genet, em 1995; “O alienista”, adaptação da

da religiosidade católica em oposição à sexualidade (e, particu-

novela de Machado de Assis, em 1996; “Autos cabralinos”, reu-

larmente, à homossexualidade, na peça “Em nome do desejo”); a

nião das obras “Auto do frade” e “Morte e vida Severina”, de João

repressão política nos anos de chumbo (“A lira dos 20 anos”, em

Cabral de Melo Neto, em 1996; o infantil “Menino minotauro”, de

um viés político e existencial, ao mesmo tempo); a loucura den-

Luiz Felipe Botelho, em 1996; “Noite escura”, de Paulo Vieira, em

tro da normatividade excludente da sociedade (“O alienista” e

1997; “Lima Barreto, ao terceiro dia”, de Luís Alberto de Abreu, em

“Lima Barreto, ao terceiro dia”); o sofrimento individual e coletivo

1997; “Sobrados e mocambos”, de Hermilo Borba Filho, em 1998;

do nordestino (“Autos cabralinos”); a família patriarcal brasileira,

“Churchi blues”, de João Silvério Trevisan, em 2001; “Meia-sola”,

em suas diversas configurações, dos arquétipos aos padrões de

de Benedito Rodrigues Pinto, em 2002; “Querida mamãe”, de

vida burgueses (“Senhora dos afogados”, “Sobrados e mocambos”,

Maria Adelaide Amaral, em 2003; “A filha do teatro”, de Luís Au-

“Meia-sola” e “Querida mamãe”); e as identidades-máscaras do

gusto Reis, em 2007; “As confrarias”, de Jorge Andrade, em 2013,

Brasil (“Sobrados e mocambos” e “Churchi blues”), objetivando,

e “Doroteia”, de Nelson Rodrigues, em 2014. Todas essas monta-

assim, “ampliar a compreensão do universo – real e metafórico –

gens sob a direção de Cadengue.

do homem brasileiro” 1.

Ainda nos primeiros espetáculos do grupo, percebe-se a

Mas, para além de todos estes aspectos que nos auxiliam a

busca de formação e aperfeiçoamento dos atores, assim como

compreender o trabalho da Companhia Teatro de Seraphim, po-

a constituição de uma linguagem cênica própria. Certas escolhas dramatúrgicas devem-se não só às qualidades estéticas de cada texto, mas também às possibilidades de aprimoramento do trabalho de interpretação e de encenação. Este é o caso das p­ — 34

1 CADENGUE, Antonio. Caminho de volta à cena. In: COMPANHIA TEATRO DE SERAPHIM. Sobrados e mocambos. Direção Antonio Cadengue. Recife, Teatro Barreto Júnior, 1998. Programa.


"a filha do teatro", 2007. companhia teatro de seraphim. atriz: marilena breda. foto: hans von mantteuffel

de-se ainda destacar uma caraterística fundamental em sua poé-

gar-se em suas produções posteriores, além de se disseminar no

tica teatral: a metateatralidade. Observando, retrospectivamente,

imaginário do público. Esta imagem-máscara corporifica-se em

a trajetória do grupo, constata-se o apreço pela evidenciação do

cena por intermédio da figura do anjo: seja ele um anjo serafim,

teatro como teatro. Direta ou indiretamente, em muitos espetá-

flamejante de paixão e devaneios místicos na peça “Em nome do

culos ou textos de programas, as concepções estéticas e os efei-

desejo” (1990/1992); seja ele o Arcanjo Gabriel, síntese da discus-

tos pretendidos parecem incidir sobre o próprio teatro, como se

são entre o ser e o nada presente em “Os biombos” (1995); seja

este fosse seu filtro para compreender a realidade e o ser humano,

ele o Anjo Louco, cuja aparição revela o lado irracional e soturno

necessitando, a todo custo, não escapar da literalidade do palco,

do cientificismo discutido em “O alienista” (1996); seja ele o Anjo

preservando seus vestígios, sua memória.

Torto de “Noite escura”, que explora a dualística entre amor e de-

Além de refletir (na dupla acepção de reflexão e espelha-

voção, erotismo e sacralidade; seja ele o Anjo Negro de Mapple-

mento) a produtividade da obra teatral no seu próprio ato criativo,

thorpe, síntese barroca e intertextual das Minas Gerais de Aleijadi-

a metateatralidade narra as circunstâncias, os contextos e os fins

nho e do Brasil contemporâneo (assim como da obra do famoso

da criação cênica. Em suma: o seu nascimento. Trata-se de uma

fotógrafo norte-americano), presente em “As confrarias” (2013).

metaficção que potencializa ainda mais a força do teatro por meio

Com a montagem de “A filha do teatro”, de Luís Augusto Reis,

de imagens e máscaras, cuja função é “desrealizar” o real e colocá

Antonio Cadengue volta a tratar da gênese de seu grupo. Nesta

-lo em questão, tendo como metáfora o próprio teatro. Segundo

peça, três atrizes-anfitriãs recebem o público para apresentar um

a fórmula barroca, “o mundo como representação”. A ficção aqui

novo autor, por intermédio do seu jogo teatral. Uma celebração

tem a função de refletir o real, tal como um espelho cindido, crian-

em que, sutilmente, se comemora também os 20 anos da estreia

do frestas, duplos, distorções, produzindo, portanto, uma mímesis

do espetáculo “O balcão”, montagem do Curso de Formação do

da diferença.

Ator da UFPE, que é o gérmen da Companhia Teatro de Seraphim.

Como signo de sua poética metateatral, a Companhia Teatro

O encenador retoma obsessivamente os mitos de origem

de Seraphim discute, desde os primórdios, sua gênese. Os seus

da CTS, recriando-os e atualizando-os em novas experiências que

quatro primeiros espetáculos – “Heliogábalo & eu”, “Em nome do

guardam em si mesmas suas similaridades. A metateatralidade

desejo”, “O jardim das cerejeiras” e “A lira dos 20 anos” –, reunidos

situa-se entre a memória e a invenção. Aliás, são justamente os

em 1992, no projeto cultural Seraphins Revisões, refletem a his-

seus elementos mnemônicos, autobiográficos e literais que lhe

tória do teatro, em alguns de seus marcos (Artaud, Stanislávski,

conferem também um viés performativo. Entre a teatralidade e

Tchékhov etc.), assim como abordam, de modo indireto, o nasci-

a performatividade, memória e ficção, a metateatralidade parece

mento do próprio grupo.

trafegar a depender das peculiaridades de cada poética teatral, so-

A construção de uma identidade artística pressupõe a criação de uma imagem potente o suficiente para refletir-se e propaTREMA!_ficção

bretudo quando estas tomam sua autorreflexividade e a realidade do palco em si mesma como ponto de partida e chegada. p­ — 35


ARTIGO

O TEXTO DO OUTRO

endereço de autos processuais. Em um e outro documento, é a partir de determinadas escolhas que alguém se torna um protagonista da própria história.

DESCRIÇÃO DE PERSONAGEM J O Ã O D IAS T u r c h i jdturchi@gmail.com

Meu nome é Sandra O que você faz?

E

Não sei direito, preciso descobrir ainda screver é uma tentativa. Um projeto de tentativas. E de erros. É

Me conta um pouco sobre o seu dia então.

um exercício de acúmulo, não de esquecimento, acúmulo de to-

Olha, eu tenho um problema, eu só consigo me lembrar do dia anterior,

das as frases que fizeram ou não sentido, das personagens, das

só cabe um dia na minha cabeça.

figuras que não chegaram a se constituir como personagens, das bi-

E o que você fez ontem?

ografias, das paisagens vivas e mortas, das apropriações indevidas, dos

Ontem eu tava andando aqui nessa rua e vi você e pensei em te pedir

roubos intelectuais, dos gestos e dos silêncios. Mas é também uma

uma ajuda.

escolha do que deve ou não ser gravado, para sempre ou quase para

E por que esperou?

sempre, ou por alguns segundos que seja, do que merece existir por

Acho que tem a ver com o que aconteceu comigo anteontem, mas aí eu

um pouco a mais do que apenas em voz alta, no momento em que

já não me lembro.

acontece. Escrever é essa tentativa inútil de registrar a experiência.

E amanhã, você sabe o que vai fazer?

E, por isso, cabe num documento diferente do cotidiano, num fluxo

Tô esperando a gente chegar na parte da ajuda jurídica, vou decorar

próprio que cada texto cria para si e depois se completa pela voz do

tudo o que você me disser e vou tentar terminar amanhã, porque aí no

leitor, pelo ritmo de quem lê, ouve e vê, com os próprios sons e cores

dia seguinte eu talvez não me lembre mais.

que reconhece, mas que ali gravados exigem um contato entre pon-

Mas não é bom esquecer os problemas?

tos e vírgulas e hesitações que não podem ser apenas de quem rece-

Bom até que é, o que complica é que só eu esqueço eles, eles não esque-

be, mas também não são somente de quem as organizou. Qualquer

cem de mim.

registro é um texto, envolve escolhas e recepções, a criação de um fluxo extra cotidiano. E se o texto, assim como as artes, assim como a

Dialogar com o que está fora do texto, sem, no entanto, negar ou ocultar

criação, toda ela, tem sua própria cadência, como articulá-la com o rit-

minha posição, é uma inquietação que perpassa minhas várias tentati-

mo do que simplesmente existe sem a preocupação em se perpetuar?

vas de escrita a partir de situações reais. São experiências que buscam

Como fazer um registro que seja capaz de, ainda que em outro ritmo,

encontrar uma voz que fique entre a autoria e a alteridade, que criem

capturar a impermanência do que acontece sem projetos ou propos-

um espaço aberto o suficiente para ser atravessado por experiências

tas ou molduras?

além do texto, de modo a ser modificado por elas, se aproximando a um caderno de campo sem deixar de ser, no entanto, uma dramaturgia

Tentativa n° 4:

e, portanto, trazer camadas poéticas ao que busco retratar.

Homem segura uma placa em que se lê “consultoria jurídica gratuita”. Ves-

Uma condição fundamental para estruturar essa ação (que cha-

te terno. Anda pelo centro de São Paulo. Aguarda que pessoas parem para

mei de “Consulta”) é que eu fosse capaz de estabelecer uma relação

falar com ele.

de reciprocidade com esse outro desconhecido 1 : para não me utilizar da história unilateralmente, eu deveria também retribuir, de alguma

Segurando uma placa “consultoria jurídica gratuita”, ocupei diferentes

forma, àquela abertura que me era dada. Sendo essa uma condição

locais do centro da cidade de São Paulo, de julho a setembro de 2015.

ética e artística inegociável, fiquei um pouco receoso de não ser capaz

A proposta era simples: eu aguardaria que pessoas parassem para fa-

de auxiliar devidamente os transeuntes que falariam comigo, crian-

lar comigo. Ao ser abordado, explicava a ação, oferecia ajuda jurídica,

do uma relação desequilibrada. Para minha surpresa, a informação

admitindo minha relação já distante com o direito, faculdade que

de que aquele texto comporia uma dramaturgia futura, ao invés de

cursei anos atrás, e indicava o meu interesse em transformar aquele

intimidá-los, aproximava a maioria deles ainda mais da ação. Foi co-

problema jurídico em um texto para teatro. Para entrar no assunto,

mum, por exemplo, que a questão jurídica fosse colocada em segundo

fazia perguntas que ajudavam a transformar a questão jurídica em

plano. Muitos nem possuíam um problema a ser resolvido, queriam

dramaturgia: “Em que tempo se passaria essa peça? ”, “quem são as personagens do seu problema? ”, “se você tivesse que fazer uma peça sobre sua questão, como você começaria? ”. As histórias sempre partem de algum lugar. O que talvez marque a experiência aqui retratada é o grau de intencionalidade que se pretende dar a essa relação pela captura da experiência do outro, um outro real, com problemas urgentes e que, escrito a partir da própria ficção que criou sobre si mesmo, vira um personagem das falas e escutas registradas. Vira também um personagem com nome, RG, CPF e p­ — 36

1 Penso reciprocidade aqui a partir do conceito de dádiva, entendida como a maneira que alguns autores da antropologia compreenderam sociedades em que a forma pela qual se dão as relações não são através da mercadoria e de agentes individuais separados das relações, mas através das relações entre pessoas e coisas consideradas pessoas que são trocadas como se fossem humanas. Isto cria um vínculo entre as pessoas que são, elas próprias, feixes de relações, o que consolida a socialidade a partir da obrigação de dar, receber e retribuir – Mauss (MAUSS, Marcel, 1925. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003) e Strathern (STRATHERN, Marilyn, 1988. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Editora Unicamp, 2006).


conversar e o convite para transformar a própria vida em teatro era

cio, você calado me olhando com esse caderno na mão, e então eu vou

recebido com animação. Diversas pessoas, inclusive, se voluntariaram

começar a minha própria peça, é isso que você quer que eu faça, certo?

para serem atores dessa peça que eu faria, dispostos a interpretar a si

Isso já é a peça, não é mais o início, mas é também aquilo que existia

mesmos ou alguém que tivesse falado comigo anteriormente.

antes dela, porque não fica claro quando é pra eu responder e se o que eu

Como outro objetivo da performance era criar uma proximidade

estou dizendo agora faz parte do texto que você vai escrever depois, tal-

entre duas pessoas completamente desconhecidas, eu oferecia infor-

vez você não esteja me entendendo, eu mesmo às vezes não me entendo

mações pessoais sobre mim e aguardava que, caso meu interlocutor

muito bem, mas o que eu quero dizer é que quando você me pergunta

se sentisse também à vontade, fizesse o mesmo, chegando até algum

quando a peça começa, eu acho que na verdade ela sempre existiu; se eu

limite imposto por uma das partes. Por esse motivo, troquei telefo-

falo sobre coisas que já aconteceram, a peça também está acontecendo,

ne com várias pessoas, fui adicionado no Facebook e ainda recebo

como uma realidade paralela a essa do seu texto e te ver escrevendo me

e-mails que variam de dúvidas jurídicas a perguntas sobre quando irá

dá uma sensação muito estranha de existir duas vezes, na verdade três,

estrear a peça e se ainda há tempo de entrar como atriz/ator.

agora enquanto falo, agora enquanto você escreve e durante as coisas que aconteceram no passado. É difícil dizer quando as coisas começam, muito mais fácil é perceber quando elas acabam. Tipo agora.

DESCRIÇÃO DE tempo Em “Consulta”, procuro aliar uma dimensão prática (ajuda jurídica) a Você tá anotando tudo? Porque nem tudo é importante viu? Tem coisas

outra poética (o texto resultante): tanto a dramaturgia quanto o di-

que eu acho que nem são de verdade, eu tô errando as datas, minha

reito são campos que se estruturam através da palavra escrita. Em

esposa mesmo falou que depois que nosso filho nasceu daquele jeito eu

ambos os casos, é a história contada por alguém que será transforma-

perdi a noção do tempo e falo sobre ontem e ano passado e cinco anos

da em documento. Importa menos a veracidade dos fatos do que a

antes como se tivesse tudo acontecido numa época parecida, é porque

capacidade de convencimento do documento resultante. Existe, na

eu acho que as datas ficaram todas meio parecidas depois que nosso

ficção e na justiça, uma relação de alteridade entre quem escreve e

filho nasceu daquele jeito, parece que desde que ele surgiu, tudo virou

quem vive, entre quem conta e quem transforma a narrativa em texto.

um grande dia seguinte que ainda não acabou.

É impossível que a relação não seja, de alguma forma, desequilibrada, por uma posição de poder do advogado e dramaturgo, conhecedo-

“Devemos falar com alguém e não sobre alguém” (POLLESCH,

res da ação de um ponto de vista mais amplo e controlador do quem

2011) 2. Imagino que questões éticas e metodológicas devam ser

efetivamente existiu nela. Ao me colocar como um agente capaz de

enfrentadas por praticamente qualquer um que decida se relacio-

alterar determinada realidade, sem, no entanto, me restringir a uma

nar com uma situação alheia a si. Certamente, todo antropólogo

ação benevolente ou negar minha autoria sobre ela, procuro eviden-

sente o peso de ser um outro no campo em que ingressa. O que

ciar os complicadores da posição que ocupo mais do que ocultá-los,

pode também ser dito sobre o trabalho de documentaristas ou

já que são exatamente essas questões mal-resolvidas na relação com

outros artistas que se colocam em terras estrangeiras. Mesmo en-

um outro que me interessam nesse trabalho.

quanto atuava como advogado popular, durante meus anos na fa-

Essa experiência se situa dentro de um projeto de outras tenta-

culdade de direito, protegido por certa distância que a profissão e o

tivas de diálogo com o real. Prossigo realizando a “Consulta” neste ano,

terno me conferiam, defender questões que eu nunca havia vivido

ainda sem saber se haverá algum desdobramento para os textos escritos

e, portanto, eram desconhecidas para mim enquanto experiência

a partir dela. Talvez eles se transformem em uma dramaturgia a ser en-

(como abuso sexual e falta de moradia), me obrigavam a ter certas

cenada. Ou, quem sabe, os textos sejam, em si, o ponto final da ação, in-

cautelas no modo como me relacionar a essas situações.

vertendo a ordem que a dramaturgia usualmente assume no teatro: ao

Ao deslocar esse desconforto de ser um outro, ou melhor, de

invés de antes da cena, nesse caso a dramaturgia surgiria depois de uma

ser o outro, para a dramaturgia, experimento maneiras de falar com

cena que já aconteceu. O texto seria, assim, uma cristalização de teatrali-

alguém (e não sobre alguém) dramaturgicamente, criando procedi-

dades situadas além do teatro, através de uma rubricagem do real.

mentos performativos que possam servir a este fim, entendendo os

Várias questões me acompanham nessa trajetória. Como es-

limites e as potências dessas tentativas. Gosto de chamar essa ação de

crever sobre alguém que existe? Ou melhor, por que escrever sobre

rubricagem: o registro textual de um acontecimento a partir do traba-

alguém que existe se a existência vai ser sempre maior do que o texto

lho de campo/observação do dramaturgo.

escrito a partir dela? E, depois, como lidar com as questões reais e urgentes com as quais essas pessoas estão envoltas? E, por último, para que serve o teatro nisso tudo?

DESCRIÇÃO DE PRÓLOGO

Nunca serei um outro. O outro. Escrever é lidar com a impossibilidade de acessar por completo uma realidade, a experiência será sem-

A peça ainda não começou, mas eu espero que ela comece em breve. Você

pre maior que o texto sobre ela. É impossível capturar inteiramente o

espera que eu espere e nós dois juntos esperamos em silêncio que alguma

que não permanece, aquilo que só acontece em voz alta não pode ser

resposta, talvez um som que não seja nosso, inicie os outros diálogos. A

escrito. Mas escrever é existir por extenso, no papel, na tela do compu-

peça ainda não começou como deveria, mas já existe nesse nosso silên-

tador, nos pixels de telões formados por algoritmos que eu não saberia compreender se não fossem transformados para a minha língua. Pros meus modos de representação. Escrever é manter vivo o incômodo

2 POLLESCH, René. O amor é mais frio que o capital. Lisboa: Livros Cotovia, 2011.

TREMA!_ficção

de não conseguir responder a tudo o que acontece. p­ — 37


arte de vítor bezerra. daniel torres e mathieu duvignaud

NOTAS DE PROCEDIMENTO

o acaso, a ficção e os fatos HE N RI Q UE F O N TES henriquefontes75@gmail.com

p­ — 38


C opacabana , 2 9 de fevereiro de 2 0 1 6 .

T

erminamos ontem nosso primeiro fim de semana de

vida de Jacy e dos fatos históricos das décadas que Jacy atra-

temporada da peça “Jacy” aqui no Rio de Janeiro. Ainda

vessou. Ao recriar cartas e diários de Jacy, relatando suas des-

temos, nas próximas três semanas, 12 apresentações no

venturas (reais) e frustrações (imaginadas), em plena ditadura

Sesc Copacabana. Um fato inédito para o Grupo Carmin que, em

militar no Rio de Janeiro, estaríamos invertendo a verdade em

nove anos de existência, o máximo de tempo que conseguiu

que estas cartas e diários foram baseados? Ou será que esta-

ficar em cartaz foi por duas semanas, em Nata/RN. Neste ano

ríamos escrevendo uma história possível?

de 2016, já temos mais 33 apresentações agendadas. Quem iria

Escolhemos acreditar nesta história possível. No entanto,

imaginar que uma frasqueira encontrada no lixo pudesse nos

esta escolha não nos apareceu de imediato. Foram quase dois

levar tão longe? Mas deixa eu contar essa história do começo.

anos reescrevendo cenas, experimentando formas mortas, nos

Era a primeira semana de março de 2010 e eu tinha ido

frustrando com a criação de personagens que não davam con-

tomar café na casa dos meus pais, no bairro do Tirol, em Natal.

ta do material da frasqueira, até que nos demos conta de que

Na saída, quando eu dobrei a esquina da Av. Prudente de Morais

os objetos da frasqueira eram os vestígios mais relevantes de

– uma das mais movimentadas da cidade –, me deparei com

todo aquele processo.

uma espécie de instalação contemporânea: um colchão enro-

Então, através de uma investigação quase policial, os ob-

lado com o estrado da cama pousado sobre um amontoado de

jetos nos levaram a Sara (nome fictício da mulher que cuidou

madeira que parecia os restos de um armário. Ao redor, dezenas

de Jacy durante os últimos 20 anos de sua vida), que relatou a

de papéis voavam em meio ao fluxo constante de carros. Eu não

vida de Jacy nos fazendo atravessar as oligarquias do interior

disse que parecia uma obra de arte? No meio daquela “instala-

do Rio Grande do Norte, a invasão norte-americana na Segun-

ção”, eu vi uma linda frasqueira antiga. Dessas de maquiagem.

da Guerra Mundial em Natal, o epicentro do golpe militar no

Ela estava em perfeito estado. Dei-me conta de que haviam

Rio de Janeiro e o testemunho ocular do crescimento desen-

esvaziado um apartamento ali perto e aquilo tudo agora virara

freado de uma cidade provinciana. Tudo isso para culminar

lixo. Não tive dúvidas, peguei a frasqueira para mim.

numa frasqueira abandonada no lixo da Av. Prudente de Mo-

Bom, quem já viu “Jacy”, a nossa peça, vai notar que co-

rais, em Natal.

meçamos a narrar a história mais ou menos assim. Muitos pen-

Percebemos que nessa trajetória, e em todos os seus ves-

sam que fantasiamos, adicionamos elementos imagéticos para

tígios, havia muito mais “ficção” do que a vida real poderia dar

melhorar a descrição do achado, mas aqui posso lhes jurar que

conta. Uma síntese quase perfeita de nove décadas que foram

a cena que acabo de descrever aconteceu e é a mais pura ver-

analisadas por vários ângulos até compor a narrativa da obra

dade. Será? Quem garante que este último parágrafo não é fic-

que frequentemente é atualizada, como documento vivo.

ção? Uma vez que acabei de escrevê-lo, ele já virou obra escri-

“Jacy” pode ser encarada por muitos como ficção, por ra-

ta, narrada, não está mais no tempo real dos fatos. Mas então

zões já levantadas aqui anteriormente, mas suas evidências,

assim desconfiaríamos de toda História a que temos acesso?

seus fatos históricos, seus fragmentos desbotados dentro da

Desde a descoberta do Brasil às Grandes Guerras? Da constru-

frasqueira nos revelam verdades sobre a nossa maneira de li-

ção de Brasília ao relato de como nossos pais se conheceram?

dar com a velhice, com o dito “progresso” e com a hegemonia

Não seria tudo narrativa? Descrição filtrada? Ficção?

política de uma família que se reveza no poder há pelo menos

Pode ser, mas como ouvi ontem Janaína Leite (atriz de “Festa de separação” e “Conversas com meu pai”) questionar,

cinco décadas no Rio Grande do Norte. E estes fatos não podemos chamar de mentira.

durante um encontro de Teatro Documentário por ocasião

Assim, posso reafirmar daqui de onde escrevo este texto,

desta nossa temporada aqui no RJ: “Dizer que é ficção seria

em um hotel a três quarteirões de onde morou Jacy, em Co-

o mesmo que dizer que é mentira? Podemos realmente dizer

pacabana, que a peça “Jacy” é uma obra 100% mergulhada na

que a ficção seria o oposto da verdade?”.

realidade, composta por documentos originais e imaginação

A ficção para nós do Grupo Carmin, em especial na mon-

embasada nos fatos, sem usar subterfúgios mentirosos, mas

tagem da peça “Jacy”, não se traduz como mentira. Para nós, ela

que será sempre apresentada com a advertência que a atriz

é o recurso formal usado, quando necessário, para unir fatos,

Quitéria Kelly faz no início da peça: “O que vocês estão prestes

cenas e construir pontos de virada na dramaturgia. No espetá-

a ver não é a verdade. Esta é uma obra de ficção que só revela o

culo, optamos por fazer um documento múltiplo que, de ma-

que pode revelar. Os nomes foram trocados, mas a vida – esta

neira cronológica, trata da montagem da peça, da história de

vida – é de verdade”.

TREMA!_ficção

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NOTAS DE PROCEDIMENTO

"jacy" – foto: wlademir alexandre

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a dramaturgia audiovisual em jacy P E D RO F IU Z A pedrofiuza@gmail.com

O desafio do audiovisual em “Jacy” era levar algumas cenas para outro estado de apreciação, diferente do restante da peça e que, lógico, se aproximasse da linguagem cinematográfica, mas que ainda mantivesse uma essência teatral, do contrário seria apenas uma exibição de um vídeo pré-gravado dentro de um espetáculo, o que provavelmente resultaria em duas dramaturgias distintas e em desarmonia, inclusive rebaixando o audiovisual a um mero dispositivo técnico, deslocado e meramente decorativo. Resolvemos, então, que iríamos projetar somente o que estivesse sendo filmado ali, ao vivo, e na hora, com os erros e as epifanias do momento, com a efemeridade do teatro. Isso nos possibilitou uma sincronia muito maior das duas linguagens e conseguimos tornar o cinema esse segundo registro, que embora provido de uma tonalidade clássica, talvez até um tanto melodramática, conferiu justamente o ar de ficção que almejávamos. Nosso desejo era de que as cenas filmadas estivessem acontecendo em outro espaço, com outro cenário, até outra forma de atuar. Por isso, escondemos do público, atrás de um painel, o objeto filmado, mas deixamos visível o dispositivo técnico, a câmera e seu operador, para que não haja dúvidas de que aquela produção também está acontecendo ali, permitindo duas leituras simultâneas: a do produto final projetado na tela e a de sua forma de produção, da manipulação que é necessária para que ela aconteça. Manipulação no sentido de alteração da matéria-prima, da escolha de somente uma parte dela, de deixar o resto de fora, porque não nos interessa. Queremos que o público saiba que estamos deixando coisas de fora, queremos que eles vejam que imagens, ideias e possibilidades foram abandonadas, pois queremos chamar atenção para o processo de manipulação dessa realidade, apontando para a ficcionalização da mesma. Nos outros momentos audiovisuais da peça, procuramos não mais o conceito de uma quebra no espaço, mas uma ampliação visual dos elementos que dialogam com o resto do espetáculo, onde é possível ver nitidamente esse conceito de manipulação materializado, através das mãos do cineasta que aparecem na tela, ajustando, alterando, corrigindo as imagens e logo, o sentido delas. Em outro trecho, o único diálogo dito pelo mesmo cineasta em todo o espetáculo diz: “Ninguém conta história nenhuma sem um pouquinho de edição”, e isso parece ser justamente uma forte característica não só de “Jacy”, mas do gênero teatro documental, onde há não só uma edição da realidade, mas junto dela, uma honestidade em admitir e chamar atenção para essa própria edição. TREMA!_ficção

p­ — 41


crítica

sob os prismas de

Joelma & Jacy Q ue

flec h a

é

aquela

n o

calca n h ar

daquilo ?

— Leminski no “Catatau” —

V A L M IR SA N TOS valsantos@uol.com.br

A

lmas femininas mediadas pela arte do teatro, Joelma e

Jacy é a mulher. Joelma pressupõe ficção e pende ao documen-

Jacy plantaram suas histórias na Bahia e no Rio Grande

tário. Jacy flerta com o documental e tem um pé na ficção.

do Norte. Cirandaram por outras terras, mas foi nas res-

“Jacy”, o espetáculo virginiano, nasceu a 25 de agosto de

pectivas cidades em que foram literalmente criadas, Ipiaú, no

2013, na Casa da Ribeira, no centro potiguar, pelas mãos do Gru-

sul baiano, e Natal, a capital, que cumpriram o eterno retorno.

po Carmin. “Joelma”, o espetáculo libriano, a 28 de setembro do

Joelma é transexual, adjetivo e substantivo de dois gêneros.

mesmo ano, no Instituto Cultural Brasil Alemanha, o ICBA, em

"joelma" – foto: alessandra nohvais

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tes primárias e secundárias. Ambas as vidas são matriciais de

Salvador, do ventre do grupo Território Sírius Teatro. Trançar pontos de afeição e fricção entre as duas obras é

tudo que se vê em cena. Sem que os criadores ambicionem a

o que desejamos neste artigo. Antes, recorremos ao documen-

presunção da objetividade biográfica. Sublima-se simplesmen-

tarista Eduardo Coutinho (1933-2014), para quem só se pode

te a liberdade de reinvenção com a saudável promiscuidade de

subverter o real, no cinema ou alhures, se se aceitar, antes, “todo

linguagens, cabendo ao audiovisual uma derivação comum. Antes de solo teatral, porém, “Joelma” se fez recriar no ci-

o existente, pelo simples fato de existir”:

nema com curta-metragem homônimo, vindo à luz em 2011. A Toda montagem supõe uma narrativa, todo filme sendo uma narrativa

obra do diretor e roteirista Edson Bastos, protagonizada por Fá-

pressupõe um elemento forte de ficção, e isso também acontece na Histó-

bio Vidal, venceu o prêmio do público de melhor curta nacional

ria, o que não quer dizer que a História seja uma ficção e nem que o docu-

no 19º Festival Mix Brasil da Diversidade Sexual, em São Paulo.

mentário seja uma ficção. Eles são um tipo, se quiserem, um tipo diferente

Como a dupla de criadores é a mesma a encabeçar a montagem,

de ficção, e o que eu tento na montagem da estrutura é preservar a verdade

eles, de fato, tiveram que pelejar para obter a confiança de sua

da filmagem, que às vezes pode ser indicada pela informação da situação

personagem.

da filmagem, da data de filmagem, por elementos bem concretos.

1

Coutinho tornou-se referência em sua arte impregnando-a de

J OE L M A

oralidade. É por meio da conversação, de estalos lapidares ou precários que seus filmes vão ao outro como trampolim de as-

Nascida Joel Patrício Novais, Joelma aprendeu a se esgrimir de

sociações e estruturas. O olhar e a escuta endereçados ao outro

abordagens abusivas desde a adolescência, quando não se per-

social, cultural. Nesse sentido, tanto a equipe de “Joelma” como

cebia no corpo do sexo masculino e não demorou a sofrer pre-

a de “Jacy” empreenderam apurada interlocução com suas fon-

conceito e violência dentro de casa ou na rua, até ser expulsa do mesmo teto familiar e humilde na década de 1960. Partiu para

1 OHATA, Milton (org.). “Eduardo Coutinho”. São Paulo: Edições Sesc e Cosac Naify, 2013, p. 26.

São Paulo, onde casou com um mesmo homem por 22 anos. Ele a convenceu a fazer a cirurgia de mudança de sexo na década se-

"jacy", grupo carmin (rn) – foto: nityama macrini

TREMA!_ficção

p­ — 43


crítica guinte. Ela diz ter trabalhado como garçonete na Estação da Luz

instalasse – para assimilar trejeitos, oralidade e, em especial,

e como dançarina na antiga TV Record. Também dublou em sho-

o pensamento espiralado que abarca sincretismos de crença e

ws de boate em que saudava Dolores Duran, Ângela Maria, Lady

convicções no exercício pleno da sexualidade sem prejuízo da

Zu, entre outras vozes inspiradoras. Até retornar à cidade de ori-

frequência às missas da Igreja Matriz, uma das instituições mais

gem, bem-casada e vivendo num sítio de Ipiaú. E então surgiram

influentes da cidade.

novos desafios a superar: ela foi enredada num crime elaborado

O espaço da cena é circundado por objetos, imagens e

pelo roteiro como passional: seu marido matou o homem que

adereços correspondentes ao universo transcendental da figura

abusou dela, tendo o próprio também morrido no conflito.

evocada. Camadas da narradora e da cantora não se descolam

O parágrafo anterior tentou dar conta de um resumo biográfico

no dirigir-se diretamente ao público. A locução do rádio, a ma-

“baseado em fatos reais”, mas também recontado ficcionalmente a

quiagem no camarim, a brincadeira de boneca e a dublagem na

partir do convívio de Bastos e de Vidal com um ser humano tão mul-

pele e no playback de Gal Costa cantando “Tigresa”, do álbum

tifacetado. Esses artistas viviam e ainda vivem em Salvador e reali-

“Caras & bocas”, enquanto a flor vermelha no cabelo armado

zaram pesquisas de campo na cidade-berço dessa história. Joelma

guarda referência à capa do disco “Tropical” – ambos lançados

ergueu em seu quintal aquela que chamou de Igreja das Treze Almas,

nos anos 1970 –, tudo isso se processa com sinergia.

“benditas, sabidas e entendidas e das almas dos vaqueiros e dos reis

Tanto o curta-metragem quanto a peça resultaram habi-

da boiada e do Bom Jesus da Lapa e de Todos os Santos”. Essa mani-

lidosos na dimensão ética de não expor a Joelma da vida como

festação de fé alude, ainda, à lenda de 13 pessoas que teriam ficado

ela é, em suas filigranas, idiossincrasias e alteridades. O espec-

presas num elevador durante incêndio do Edifício Joelma, na região

tador do cinema ou do teatro tem subsídios para chegar às pró-

central de São Paulo, em 1974, e transformadas em espíritos de luz –

prias conclusões no liame do que é invenção e do que é ver-

o que remeteria, por sua vez, ao “Livro de São Cipriano”, recorrente

dade. De como ela sublimou na espiritualidade, por exemplo,

entre seguidores de religiões afro-brasileiras.

toda forma de opressão, ciente de que a solidão pode inspirar

Nos créditos iniciais de “Joelma’”, o curta de ficção se permi-

ou aspirar um estado de vigília existencial, mesmo no contexto

te lançar a voz gravada da mulher controversa em alguns aspec-

da vida a dois. Edson Bastos, Fábio Vidal e equipe foram sutis

tos, ainda devota ao catolicismo, a despeito das transgressões de

sem abdicar das dores e das delícias em habitar o mundo refra-

toda ordem em sua trajetória pessoal. Ouvimos, em sua estrutura

tário em vários aspectos, a começar pelo machismo, sem recuar

de fala deslizante, como a antecipar a fragmentação narrativa na

da determinação de ser feliz, amar e ser amada.

tela, à maneira de um Qorpo-Santo de saias: “Logicamente, há o

Outra perspectiva evidente é a do papel da sociedade, a hi-

momento, eu vou referir, ao dizer algumas palavras, que este fil-

pocrisia de “atores” fundamentais numa cidade interiorana, como

me será, é uma coisa alevantada, um filme alevantado, uma obra

a igreja, a família, a imprensa e a polícia. Em Bastos sendo ipiauien-

pelo meu sofrimento e a minha vida do mundo, que eu passei e

se, o curta e o solo ressignificaram aquela comunidade em suas

tô vivendo, agradecendo a Deus por isso”.

fissuras. Foi emblemático projetar o filme no plenário da Câmara

Pois a partir deste ponto do artigo, deixemos a película um

de Vereadores, a 2 de dezembro de 2011, bem como apresentar a

tanto de lado para pensar a presença cênica de Joelma no solo de

peça no salão da Associação Atlética do Banco do Brasil (AABB), a

Vidal, coautor, deveras permeada pelo imaginário mediado pelo

18 de outubro de 2013. Da plateia, observando a representação/re-

filme. A impregnação cinemática transcorre em algumas cenas,

invenção artística de sua história, Joelma dava mais um salto sobre

como na fusão do passeio de bicicleta captado nas ruas de pa-

obstáculos nas questões de gênero e diversidade. Exercia seu lugar

ralelepípedos de Ipiaú, belamente estendida ao espaço cênico

de direito em meio ao público reunido naquelas noites em que a

quando o atuador adentra pedalando sua magrela. O olhar do

arte e a cidadania se contaminaram pós-modernas.

dramaturgo e codiretor Edson Bastos se deixa conduzir bastante pelo enquadramento da câmara nas ideias da encenação, como no recurso da tela de projeção, as cortinas brancas ao fundo, em

J ACy

algumas passagens. Ou na bem-bolada solução para o final, arrematando síntese teatro-cinema raramente alcançável na ponte

O princípio da urbanidade surge, igualmente, como traço defini-

entre o edifício e a rua, fabulação e realidade.

dor da experiência do Grupo Carmin em “Jacy”. O público acom-

O certo é que “Joelma”, o solo, sustenta o campo autôno-

panha relatos e breves diálogos entrecortados sobre o ir e vir de

mo graças à força performativa de Fábio Vidal, reconhecido pela

uma mulher comum, anônima entra as centenas de milhares de

pesquisa artística continuada refletida com devidas gradações

habitantes de Natal, de onde ela saiu para passar décadas no Rio

em trabalhos como “Seu Bonfim” (2000) e “Sebastião” (2010).

de Janeiro e finalmente retornar ao litoral onde foi criada e se

Sua expressão corporal denota o distanciamento obtido em re-

deu por gente. A dramaturgia redimensiona sua existência, um

lação ao filme – lembrando que, naquele, a mimeses tampouco

arco de 90 anos, e a coloca no patamar extraordinário, ainda que

era uma condição, possibilitando margem de liberdade na in-

póstumo, por conta, risco e sorte dos criadores que a abraçaram.

terpretação e no roteiro em particular.

A atriz Quitéria Kelly, cofundadora do Carmin com Titina Me-

Vidal apropria-se física, poética e musicalmente da figura

deiros, em 2007, e o ator e diretor Henrique Fontes, que já a diri-

e da personalidade da cidadã com quem conviveu o suficien-

gira em outra peça, entabulavam as primeiras conversas, estudos

te, no sentido laboratorial e artístico, e não sem rusgas – Joel-

e dinâmicas com vistas a um novo trabalho. Davam os primeiros

ma sempre riscou o chão, arisca, até que o respeito mútuo se

passos na cogitação de tema, texto, conceitos. Certo dia, andando

p­ — 44


pelas calçadas da cidade, Fontes se deparou com uma frasqueira contrastante em meio aos sacos de lixo que moradores de uma casa organizaram para o caminhão da coleta que passaria dali a pouco. Ele enxergou no objeto vintage reciclagem para uma função mais óbvia: adereço em futura montagem, quem sabe a próxima. Levou o achado para o encontro seguinte com Quitéria. Pois documentos e papéis encontrados no interior da pequena bolsa excitaram a dupla a pesquisar sobre quem teria sido a mulher que legou, indiretamente, uma narrativa empírica, potente e reveladora da condição humana em seus afetos e isolamentos. O resultado foi um intricado quebra-cabeça disposto a partir da investigação em campo. Da papelada, fez-se um mapeamento de contatos como a cuidadora, o taxista, o rapaz do supermercado e assim por diante, interlocutores involuntários da até então incógnita dona da frasqueira. Cada informação fornecida ou negada, principalmente por parte da família influente no cenário político-econômico local, contribuiu para compor uma tangencial plausível aos fatos e à ficção. Os filósofos Pablo Capistrano e Iracema Macedo foram convidados a conceber o texto tomando-se por base esses retalhos. Coube a Capistrano e Fontes consolidar essa dramaturgia à qual incorporaram a relação com o irmão que serviu as forças armadas e trocava cartas com a protagonista quando esta morava no Rio. O entrecho amoroso ficou com o namoro de Jacy com um soldado norte-americano integrado à plataforma naval instalada na cidade durante a Segunda Guerra Mundial. A metamorfose não ocorreu apenas na fisionomia e no espírito dos moradores de uma então pacata Natal, mas na visão de mundo da mulher que não se contentava com o horizonte do mar e ambicionava ir mais longe. Uma vez morando no Rio, agora sob o período da ditadura, ela reencontrou o militar dos EUA que lhe vendera um reencontro romântico, como concedeu o tratamento ficcional. Na verdade, o sujeito voltara ao país em missão: ensinar aos pares brasileiros técnicas de manutenção de regimes autoritários, leia-se: tortura. Essas informações são dispostas em cena com agilidade e sutileza para que o espectador pondere, se verdadeiras ou factuais. No território desse “entre” o jogo é expandido na própria materialidade da cena. Os atores Quitéria Kelly e Henrique Fontes oscilam relato e suas próprias presenças, como se chamassem o espectador de canto, piscasse o que está nas entrelinhas ao transbordar o percurso solitário de Jacy para as relações operadas no subterrâneo do fisiologismo e dos interesses imorais que movem as facções políticas e financeiras no âmbito nordestino e universal. Os tons ora documental, ora publicitário das imagens interagidas por meio de retroprojetor, sob manipulação de Pedro Fiuza, permitiam outras leituras críticas ao material cênico. É desse mix que se compõe uma linha do tempo possível para a vida de Jacy revisitada pelo teatro. Da mesma forma que Joelma o foi por meio do cinema e do teatro. Elas testemunharam um tempo mau que os artistas minimamente conhecedores de seus pedaços ousaram revisitar ao abrir janelas do passado, do presente e do que há por vir em nome da tolerância. Não fizeram pouco. As duas obras aqui sobrevoadas equivalem a documentos vivos que jamais serão apagados da memória "jacy" – foto: costa neto/secult pe - fundarpe

TREMA!_ficção

daqueles que, agora, também fazemos parte delas. p­ — 45


EXPEDIENTE

TREMA! revista de teatro de grupo EDIÇÃO DA violência ANO 1

#5

ABRIL 2016

Uma edição bimestral da Trema! Plataforma de Teatro

COORDENAÇÃO TREMA! Plataforma de Teatro Mariana Rusu e Pedro Vilela

CONSELHO EDITORIAL Mariana Rusu, Olívia Mindêlo, Pedro Vilela e Thiago Liberdade

EDIÇÃO Olívia Mindêlo

CAPA E PROJETO GRÁFICO Thiago Liberdade

PROPONENTE DO PROJETO Thiago Liberdade

COLABORADORES DA EDIÇÃO* Agrupacción Señor Serrano (Àlex Serrano), Artur A. de Ataíde, Barbára Buril, Henrique Fontes, Igor de Almeida, João Dias Turchi, Pedro Fiuza, Mala Voadora (José Capela e Jorge Andrade), Raul Luna, Thiago Soares, Valmir Santos. *As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

PLATAFORMA TREMA! tremarevista@gmail.com tremaplataforma@gmail.com facebook.com/tremaplataforma www.tremaplataforma.com.br +55 (81) 9 9203 0369 | (81) 9 9223 5988

Tiragem: 500 exemplares (por edição) Impresso pela Brascolor ISSN: 2446-886X

Edição da FICÇÃO | Nº #5 | Ano #1 | Recife, Abril de 2015

Realização:

Incentivo:

A TREMA! Revista de Teatro de Grupo é uma publicação com incentivo do FUNCULTURA – Fundo de Incentivo a Cultura de Pernambuco.


pergunta

TREMA!2/2 Por meio de uma sucessão de gestos simples de estilo, do ritmo à gramática, do vocabulário à sua ordem na frase, Fernando Pessoa faz surgir, e às vezes num único verso, a personalidade inteira de figuras que jamais existiram. (No mero exercício do estilo, há já ficção, como no mero olhar do ator.) * No roteiro fictício posto em cena por Hamlet, Claudius viu verdades abjetas que, reais, eram toda a sua verdade. A ficção, toda ela, pode se entremear da verdade crua de alguém que a leia. Fui Claudius, quando li certa página de Kafka; Pessoa talvez tenha sido Claudius, ao ler páginas que ele mesmo assinou, com diferente nome. ** Se metade do que se é não é mais que suposição, e desejo, não diz pouco sobre alguém o que ele diz em tempo subjuntivo (essa manifestação gramatical da necessidade de ficção). *** “A ficção da vida” de alguém, por tudo isso: a fértil arte ficcional de pouco a pouco produzir, com o auxílio de teatro e livro, e de cada palavra, seu real si mesmo. Artur A. de Ataíde DO U TOR EM l i t e r at u r a


ISSN: 2446-886X

1. Ato ou efeito de fingir. = DISSIMULAÇÃO, FINGIMENTO 2. Invenção fabulosa ou engenhosa. 3. Criação de .caráter artístico, baseada na imaginação, mesmo se idealizada a partir de dados reais. 4. Fábula. 5. Interpretação ou relato .subjetivo de um .fato ou de uma .ideia. 6. [Retórica] Suposição do orador para abrilhantar ou reforçar o discurso.


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