UNIVERSALIDADES ALIADAS POR MEDICAMENTOS ESSENCIAIS. Boletim da UAEM Brasil: Investir em pesquisa pública é desenvolver o Brasil. Belo Horizonte, 2019, 23p.
EDITORIAL A ciência desempenha papel fundamental na história da humanidade. Graças a ela, superamos epidemias, fomos à lua, conectamos o mundo, ampliamos nosso olhar sobre nós mesmos e sobre a vida. O desenvolvimento científico e tecnológico é essencial para garantir a soberania de um país. É, ainda, essencial para garantir o direito à saúde de uma população. No Brasil, quem produz ciência é a universidade pública. E é a pesquisa pública que busca atender ao interesse público, incluindo aí as necessidades em saúde de uma população. Já o mercado visa atender a interesses privados. Nesse sentido, causa enorme preocupação o projeto em curso no Brasil de sucateamento e privatização das políticas de educação superior e ciência, tecnologia e inovação. Em 2019, ano em que uma das iniciativas mais importantes de apoio à pesquisa em saúde no Brasil, o Programa Pesquisa para o SUS (PPSUS), comemora 15 anos com mais de 3700 pesquisas financiadas em mais de 291 instituições do país, o governo federal tem promovido cortes financeiros e mudanças normativas que ameaçam a sustentabilidade e a autonomia das universidades federais e da ciência brasileira. Diante deste contexto, a UAEM Brasil, confiante no papel fundamental das universidades e instituições públicas de pesquisa na superação da crise mundial de acesso a medicamentos, une-se às vozes que bradam pela resistência a esses retrocessos. Um de nossos quatro projetos em curso em 2019 atua na valorização e no incentivo à inovação biomédica democrática, direcionada às necessidades da população brasileira, e a defesa do financiamento público de pesquisa. Busca, sobretudo, levar ao conhecimento da sociedade brasileira a importância das universidades públicas no desenvolvimento soberano e democrático do nosso país. E é com muito orgulho e vontade de somar que, como produto do projeto Investir em pesquisa pública é desenvolver o Brasil, lançamos a primeira edição do Boletim da UAEM Brasil em 2019. O Boletim tem três objetivos principais: contribuir para o debate público acerca da educação, ciência, desenvolvimento e democracia; fomentar a discussão na sociedade sobre a realidade atual das universidades, no âmbito do ensino, pesquisa e extensão, e as mudanças que estão em curso pelo governo federal; e, sobretudo, defender a pesquisa e a educação pública, gratuita e de qualidade como um dos pilares da democracia e da igualdade, especialmente no âmbito da saúde e do acesso a medicamentos. Para cumprir com os objetivos propostos, iniciamos o Boletim com um texto manifesto Por que o ataque às universidades é um ataque à democracia brasileira, escrito pela coordenadora do projeto Mariana Bicalho. Mariana convida a todos a compreender os ataques ideológicos e econômicos que recaem sobre as
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universidades brasileiras atualmente, especialmente as universidades públicas, e como esses ataques afrontam um projeto político, econômico e social mais justo e mais democrático para todos os brasileiros. Em seguida, apresentamos uma excelente entrevista com nosso crush da vez: Reinaldo Guimarães. Reinaldo é uma das maiores referências nacionais sobre Ciência, Tecnologia e Inovação, em especial no âmbito da saúde. Em suas respostas, o vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) aponta a importância dos insumos científicos e tecnológicos para a saúde humana e a sustentabilidade do SUS, ressalta a importância da democratização do saber científico e convoca a todos os estudantes ativistas a resistirem às oscilações políticas e econômicas. Não vamos contrariar nosso crush, não é mesmo? Logo depois, Marcela Amaral, integrante do capítulo de Belo Horizonte da UAEM Brasil, apresenta alguns destaques das universidades brasileiras com relação à inovação em saúde e ressalta a importância de parcerias entre as universidades e programas governamentais, como o Programa de Pesquisa para o SUS (PPSUS), que contribuiu decisivamente para o acesso à saúde da população brasileira. Em parceria com o projeto Acesso e resistência a antimicrobianos, também da UAEM Brasil, Rafael Almeida, Isak Batista e Barbara Carvalho nos contemplam com uma excelente reflexão sobre a importância da pesquisa pública para o enfrentamento à resistência antimicrobiana. Para eles, não há dúvidas sobre a importância do investimento público para o desenvolvimento de medicamentos inovadores. Um outro caso claro de necessidade de investimento público em pesquisa é trazido pelos membros do capítulo da UAEM Fortaleza Antônio Delerino, Brenna Gadelha, Gabrielle Rocha, Nayla Andrade e Thainá Andrade: as doenças negligenciadas. Eles detalham o panorama epidemiológico das DTN no Brasil e evidenciam a importância de ampliar o conhecimento crítico, científico e histórico sobre tais doenças como caminho para diminuir as desigualdades regionais e proporcionar um Brasil mais democrático e igualitário. Em seguida, Matheus F., membro do projeto Investir em pesquisa pública é desenvolver o Brasil, por meio de uma análise de conjuntura norte-americana e brasileira no caso das insulinas, apresenta uma excelente reflexão sobre a importância dos laboratórios públicos para resguardar a soberania e o desenvolvimento dos países, e, sobretudo, para uma política de assistência farmacêutica mais eficaz e barata. Por fim, matamos um pouco a saudade da nossa ex-membro Luiza Pinheiro. No nosso quadro Diz que é verdade, que tem saudade, Luiza explica como a UAEM foi importante na sua formação pessoal e profissional, e deixa o recado: todo esforço dedicado na organização é recompensado em dobro! Esperamos que este boletim contribua nas discussões sobre saúde, educação, ciência e tecnologia, isto é, nas discussões sobre o projeto de país que nós – estudantes, ativistas, pesquisadores, professores, funcionários, trabalhadores – queremos. Apresentamos nestas páginas argumentos, fatos, visões de mundo, posições científicas e políticas, que acreditamos serem essenciais para garantir o direito à saúde no Brasil e para construir uma sociedade mais justa e mais democrática. Convidamos todas (os) à leitura e, sobretudo, a desmontar os muros que impedem a abertura a novos conhecimentos. A via democrática é a da troca, da aprendizagem constante com o outro. Seguimos juntos! Mariana Ferreira Bicalho - Coordenadora do Projeto Investir em pesquisa pública é desenvolver o Brasil Luciana de Melo Nunes Lopes - Diretora Executiva da UAEM Brasil
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POR QUE O ATAQUE ÀS UNIVERSIDADES É UM ATAQUE À DEMOCRACIA BRASILEIRA
Desde que Jair Bolsonaro assumiu seu mandato de presidente do Brasil, em janeiro de 2019, são crescentes os ataques às universidades brasileiras, especialmente às universidades públicas.
outras palavras, anseio evidenciar como os ataques às universidades se configuram como um processo de estrangulamento da soberania nacional.
Os ataques recaem, principalmente, sobre dois eixos centrais: ideológico e econômico. De um lado, o eixo ideológico é responsável por cultuar o obscurantismo e reverenciar teorias conspiratórias - ocultando deliberadamente fatos e conhecimentos consolidados -, bem como por perseguir a autonomia universitária e a liberdade de pensamento de professores e pesquisadores. Trata-se, em síntese, de um ataque à ciência moderna e à subjetividade humana como fundamento normativo para a organização da sociedade e, consequentemente, o retorno de discursos de legitimidade baseados em orientação dogmática, teológica e não científica.
As universidades, nas sociedades modernas, são reconhecidas como instrumento de desenvolvimento humano, social e econômico. Isso porque, além do conhecimento técnico, que possibilita aos indivíduos o exercício de seus ofícios profissionais, as universidades são espaços de inovação, conhecimento e solução de problemas, levando em consideração as necessidades reais da comunidade. Por não ter fim econômico, as universidades públicas investem seu capital humano em pesquisas, financiamentos e projetos que visam solucionar os dilemas reais da sociedade, para além das demandas de mercado. O ataque à autonomia universitária é, portanto, um ataque ao bem comum.
Do outro lado, o ataque econômico é responsável pelo contingenciamento financeiro que atinge 42% do já precário orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Ao mesmo tempo, o Ministério da Educação foi vítima do maior corte orçamentário e 30% do repasse federal, destinado às despesas de custeio e investimentos às universidades e institutos federais, já foi contingenciado. Os cortes financeiros alcançaram milhares de bolsas de mestrado e doutorado por todo país e, ainda, colocaram em risco o funcionamento das instituições e dos laboratórios de pesquisa. O quadro se agrava com a Emenda Constitucional 95/2016, que limita os gastos com educação pública. Neste pequeno ensaio, pretendo demonstrar como os ataques, tanto no eixo ideológico, como no eixo financeiro, são uma agressão direta à soberania nacional e à possibilidade de autodeterminação da sociedade brasileira. Em
Além disso, as universidades são espaços críticos e plurais de pensamento, onde é possível a confrontação de teorias, pensamentos e visões de mundo. A pluralidade de pensamento é essencial para democracia, principalmente em sociedades complexas e desiguais, como a brasileira. Apenas com pluralidade de pensamento, nos âmbitos econômico, político e cultural, é possível uma construção ética, mais justa e igualitária entre todos os atores da sociedade. Dessa forma, o ataque às universidades é um ataque à liberdade de todos e de cada um. No que diz respeito ao contingenciamento financeiro, a soberania nacional está ameaçada pelo retrocesso no conhecimento tecnológico e pela ausência de desenvolvimento industrial. Atualmente, as relações econômicas e políticas que permeiam a geopolítica mundial separam os países entre aqueles que produzem conhecimento tecnológico e aqueles que importam
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conhecimento tecnológico. O conhecimento tecnológico, por sua vez, só é possível a partir do desenvolvimento de pesquisas científicas e de pesquisadores qualificados.
inteligência construída nas universidades é destinada ao desenvolvimento econômico, político e social de potências científicas e industriais estrangeiras.
No caso do Brasil, mais de 90% das pesquisas são realizadas dentro das universidades, majoritariamente nas universidades públicas. Assim sendo, não há desenvolvimento científico no Brasil sem investimento público nas universidades. Portanto, o ataque às universidades públicas brasileiras, é um ataque à possibilidade de desenvolvimento soberano do país e de autodeterminação econômica e social. Trata-se, em outras palavras, da possibilidade de deixar de importar para produzir conhecimento tecnológico e, dessa maneira, fortalecer a soberania nacional e ter maiores possibilidades de desenvolvimento econômico e de distribuição de renda.
Diante do exposto, podemos induzir que os ataques às universidades, especialmente às universidades públicas, é um ataque à soberania nacional. Trata-se, sobretudo, de um novo processo de colonização que visa estrangular de uma vez por todas, no âmbito econômico, tecnológico e de investigação científica, um Brasil que, nos últimos anos, havia dado sinais de desenvolvimento soberano e democrático. Um país que expandiu as universidades federais e os programas de mestrado e doutorado e que, através das políticas afirmativas, fez com que as universidades federais se tornassem espaços mais justos e plurais – mais de 70% dos alunos das universidades federais são alunos de baixa renda. Logo, trata-se de um processo de liquidação dos avanços e dos direitos que a sociedade brasileira já havia conquistado.
A “fuga de cérebros” também é consequência do desmonte das universidades. Primeiramente, cumpre advertir que o desemprego assola o Brasil e, em especial, os pós-graduandos. Estima-se que 25% dos mestres e doutores estão desempregados. Com o contingenciamento de gastos na ciência e tecnologia, esses números tendem a crescer, uma vez que as universidades absorvem a maioria desses profissionais, tanto no âmbito da docência, quanto no âmbito da pesquisa. Em segundo lugar, importante ressaltar que o Brasil passa por um intenso processo de desindustrialização, o que faz com que esses profissionais qualificados também não sejam absorvidos pelo mercado industrial interno. Notase, de um lado, o desmonte das universidades e, do outro, o definhamento da produção com valor agregado no Brasil. Esse cenário faz com que a inteligência que foi construída dentro das universidades públicas brasileiras busque oportunidade em outros países. Assim, a fuga de cérebros impossibilita que os indivíduos qualificados permaneçam nas universidades e nas indústrias brasileiras e, consequentemente, a
Portanto, defender as universidades hoje é defender um projeto político, econômico e social mais justo e mais democrático para todos. Se o governo federal escolheu as universidades como seu principal alvo de ataque, nós, alunos, pesquisadores, funcionários, cidadãos, escolhemos as universidades como nosso principal alvo de defesa. A educação, ciência e tecnologia é a pauta que unifica os brasileiros para um projeto de sociedade justa e democrática para todos e cada um. Referências: ANDIFES. V Pesquisa do Perfil Socioeconômico dos Estudantes de Graduação das Universidades Federais. http://www.andifes.org.br/v-pesquisaperfil-socioeconomico-dos-estudantes-degraduacao-das-universidades-federais/ ANPG. A greve geral também é pelo futuro do Brasil e dos pós-graduandos.
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http://www.anpg.org.br/13/06/2019/a-grevegeral-tambem-e-pelo-futuro-do-brasil-e-dos-posgraduandos/ BRASIL. Emenda Constitucional n.º95, de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituica o/Emendas/Emc/emc95.htm. EXAME. MEC é alvo do maior corte no Orçamento; Vice-Presidência foi poupada. https://exame.abril.com.br/economia/maiorcorte-no-orcamento-atingiu-a-educacao-vicepresidencia-foi-poupada/ FOLHA DE SÃO PAULO. Corte orçamentário de 42% em ciência e tecnologia preocupa entidades. https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2019/04/ corte-orcamentario-de-42-em-ciencia-etecnologia-preocupa-entidades.shtml. G1. Universidades afirmam que corte de 30% do MEC para despesas não obrigatórias pode comprometer ensino. https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/05/ 03/universidades-afirmam-que-corte-de30percent-do-mec-pode-comprometerensino.ghtml.
Manifestações pela Educação, Rio de Janeiro, 2019
Autora: Mariana Ferreira Bicalho – Coordenadora do projeto Investir em pesquisa pública é desenvolver o Brasil da UAEM Brasil. Mestre em Teoria do Direito e pós-graduanda em Administração Pública pela PUC Minas. Diretora da Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG) e coordenadora geral da Associação de Pós-graduandos da PUC Minas (APG PUC Minas). Coordenadora Geral do Observatório Jurídico do Terceiro Setor e Direitos Humanos. Advogada.
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CRUSH DA VEZ
Reinaldo Guimarães no 8º Simpósio de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica, no Rio de Janeiro, em dezembro de 2018. Créditos: Conselho Nacional de Saúde.
O nosso crush da vez é Reinaldo Guimarães - uma das maiores referências nacionais quando o assunto é Ciência, Tecnologia e Inovação, especialmente no âmbito da saúde. Formado em medicina, Reinaldo é hoje vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, a ABRASCO. Sua experiência é vasta, tendo sido, entre outros, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, vicepresidente da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (ABIFINA), vice-presidente de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e conselheiro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Para a UAEM Brasil, é uma honra poder contar com sua participação em nosso Boletim. Confira, abaixo, as respostas do Reinaldo às perguntas que fizemos: 1) Em sua opinião, qual a importância do investimento público em Ciência e Tecnologia para a consolidação do SUS nos moldes constitucionais? Atualmente, a saúde humana é um dos campos de reflexão e ação que mais depende de insumos científicos e tecnológicos para avançar. Em todo o mundo e também entre nós. Esses insumos estendem-se desde a compreensão dos determinantes individuais e coletivos, biológicos, ambientais e sociais do processo saúdedoença até as contribuições para melhorar o funcionamento dos sistemas de saúde. São também essenciais para o desenvolvimento das tecnologias para o cuidado à saúde (medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos diagnósticos), bem como na avaliação da eficácia, efetividade e custo-efetividade dos mesmos.
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Portanto, o nosso Sistema Único de Saúde depende muito de tudo isso para cumprir sua missão de cuidar da saúde de todos os brasileiros, como manda a Constituição Federal de 1988. Modernamente aqui no Brasil, a primeira iniciativa institucional no sentido de discutir o papel da ciência e da tecnologia no SUS e o papel do Ministério da Saúde em fomentar esse papel deu-se em 1994 quando aconteceu a Primeira Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde, promovida pelo Conselho Nacional de Saúde com a participação dos ministérios da Saúde, de Ciência e Tecnologia e da Educação. Entre outras resoluções, a conferência estabeleceu as atividades de ciência e tecnologia como componentes da política nacional de saúde e determinou a criação, no Ministério da Saúde, de uma Secretaria de Ciência e Tecnologia. Por razões políticas, esta última providência só foi tomada em 2003 e, passados mais de 15 anos pode-se dizer que isso vem contribuindo positivamente para a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico em saúde voltados para a consolidação do SUS. Podemos citar o programa Pesquisa para o SUS (PPSUS), a Política de Desenvolvimento Produtivo voltada ao desenvolvimento e produção locais de medicamentos estratégicos para o SUS, a criação da Comissão Nacional de Avaliação de Tecnologias em Saúde (CONITEC) e os avanços na própria Política de Assistência Farmacêutica do SUS. Essas políticas e projetos foram integralmente financiados pelo próprio ministério e pelo CNPq, FINEP, CAPES e fundações estaduais de apoio à pesquisa. Investimentos públicos, portanto. Como se vê, eles têm sido realmente essenciais. 2) Em momentos de fortalecimento de fake news e da anticiência, como podemos democratizar o acesso ao conhecimento científico e aproximar ciência e comunidade? Em qualquer tempo, e não apenas agora nesses tempos de fake-news, deve ser um objetivo político permanente dos governos democratizar o acesso ao conhecimento científico e tecnológico à toda a população. Penso, entretanto, que essa é uma tarefa de mão-dupla, cabendo também à população a iniciativa de organizar-se e pressionar o poder público pela abertura de cada vez mais amplos canais para a disseminação do conhecimento de base científica e tecnológica. Ao lado dos órgãos públicos, a experiência mostra que é decisiva a participação de organizações não-governamentais, entre as quais destacam-se as associações representativas dos pesquisadores, no campo da saúde e mesmo fora dela. Na área da saúde, podemos citar a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), da qual sou atualmente vice-presidente, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), entre muitas outras. 3) Que conselho você gostaria de deixar aos estudantes ativistas que buscam compor a resistência ao desmonte das políticas de educação, saúde e ciência e tecnologia no Brasil? Não sei se é um conselho, talvez seja mais uma palavra-de-ordem. RESISTAM! É verdade que essas políticas vêm sofrendo oscilações há décadas, com períodos de melhora e piora, quase sempre acompanhando as oscilações da economia do país como um todo. Mas há algumas razões pelas quais as políticas atuais do governo federal nesses campos, onde a frustração do apoio financeiro indispensável às suas atividades é a face mais visível, não seja comparável às oscilações anteriores. Em primeiro lugar pela sua potencial projeção temporal em função da Emenda Constitucional 95 (Lei do Teto de Gastos), que limita os gastos governamentais de um exercício ao gasto do ano anterior corrigido exclusivamente pela inflação; em segundo lugar, pelo rumo da política econômica ora em curso, com sua inclinação absoluta ao setor financeiro e seu viés desnacionalizante e castrador de direitos dos trabalhadores; e em terceiro lugar, a meu juízo a razão mais importante, pelos potenciais impactos permanentes na arquitetura institucional e na massa crítica de pesquisa construídas nas últimas sete décadas. Quanto a isso, a face mais visível ocorre nas
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universidades e institutos de pesquisa. Movido por estímulos ideológicos, mas não apenas, o governo federal cada vez mais intervém na arquitetura institucional dessas instituições. Ao lado de seu viés ideológico, essas intervenções abrem também caminho para processos de mudança no perfil da educação superior, estimulando a entrada nesse mercado de grandes empresas internacionais no campo da educação. O alvo principal desse processo intervencionista vem sendo as universidades federais, onde é produzida boa parte do conhecimento científico no país. E, além do encilhamento orçamentário-financeiro decorrente do ajuste fiscal, as intervenções incluem ingerências políticas em uma instituição que tem a sua autonomia administrativa e política garantida por dispositivo constitucional. O não reconhecimento da autonomia das consultas à comunidade acadêmica por voto direto e dos conselhos superiores de instituições de ensino e pesquisa com vistas a escolha de seus dirigentes são exemplos eloquentes dessa destruição institucional.
Manifestações pela Educação, Belo Horizonte, 2019
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PESQUISA PÚBLICA E INOVAÇÃO EM SAÚDE: DESTAQUES DAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS
Manifestações pela Educação, Fortaleza, 2019
No atual contexto político, muito vem se falando nos investimentos em universidades públicas e suas pesquisas. Como sabemos, o início do ano foi marcado por grandes mobilizações da sociedade civil devido aos anúncios de “contingenciamento” de investimento público em ciência e educação por parte do governo federal.
públicas respondem por mais de 95% da produção científica no Brasil. Conforme Mariluce Moura, em artigo no Ciência na Rua, a redemocratização do país foi elemento essencial para o crescimento de pesquisas científicas do Brasil, levando o país a uma ascensão do PIB devido ao desenvolvimento científico e tecnológico. Diz a mesma:
Apesar do Brasil estar sendo governado por pessoas que não acreditam na importância das pesquisas desenvolvidas dentro das universidades brasileiras, dados concretos apontam o contrário do que estas pensam.
“ A expansão notável, fruto de algumas políticas muito bem estruturadas que estão a merecer outros comentários no Ciência na rua, foi baseada na capacidade de produzir ciência das universidades públicas brasileiras, com a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ou seja, duas grandes universidades estaduais paulistas, mais
Segundo relatório encomendado pela CAPES sobre o período de 2011 - 2016, as universidades
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algumas grandes universidades federais, como a do Rio de Janeiro (UFRJ), a de Minas Gerais (UFMG) e a do Rio Grande do Sul (UFRGS), na liderança desse processo. Mais de 95% dessa produção científica do Brasil nas bases internacionais deve-se, assim, à capacidade de pesquisa de suas universidades públicas.”
auxiliam na ampliação do acesso à saúde da população brasileira. Em relação à inovação em saúde, realizada pesquisa de projetos apoiados pelo PPSUS, destacamos três realizados em universidades federais relacionados a tecnologias em saúde. São eles:
De acordo com o Jornal de todos os Brasis: “Das 50 instituições que mais publicaram trabalhos científicos no Brasil nos últimos cinco anos, 44 são universidades (43 públicas e 1 particular) e 5 são institutos de pesquisa ligados ao governo federal (Embrapa, Fiocruz, CBPF, Inpa e Inpe). A USP é a maior “fábrica de ciência” brasileira, com participação em mais de 20% das pesquisas publicadas no País” Importante destacar que esse grande salto de desenvolvimento científico dentro das universidades brasileiras deve-se ao suporte dado pelo PPSUS (Programa de Pesquisa para o SUS). O referido programa tem como objetivo desenvolver a pesquisa em saúde nas Unidades Federativas do Brasil, promovendo o desenvolvimento científico e tecnológico e visando atender às peculiaridades e especificidades de cada UF brasileira e contribuir para a redução das desigualdades regionais. Ou seja, fortalecer o SUS para a garantia do direito à saúde da população brasileira. Segundo o Ministério da Saúde os objetivos do PPSUS são: “Financiar pesquisas em temas prioritários para a saúde da população brasileira; promover a aproximação dos sistemas de saúde, ciência e tecnologia locais; reduzir as desigualdades regionais na ciência, tecnologia e inovação em saúde e; promover a equidade.” Nota-se, portanto, a grande importância do desenvolvimento de pesquisas dentro das universidades brasileiras que em muitas das vezes são realizadas apoiadas por programas governamentais, como o PPSUS, uma vez que
•Nanotecnologia no desenvolvimento de vacinas para o tratamento de doenças respiratórias Pesquisadora: Elis Fontes. Biomédica, Doutoranda em Biotecnologia pela UFBA, teve bolsa de pesquisa para realização dos seus estudos. “Em seu mestrado estudou com nanopartículas lipídicas sólidas, caracterizando essas partículas e encapsulando um tipo de fármaco, atuando na melhoria desse medicamento para que ele atingisse o órgão alvo e, também, aperfeiçoando a adesão dos pacientes ao tratamento. Já em seu doutorado, realizou estudos nanotecnologia no desenvolvimento de vacinas para o tratamento de doenças respiratórias, possibilitando que a eficácia do tratamento tenha uma durabilidade maior e que se necessite de menos doses para chegar ao efeito esperado nos pacientes.” •Potencial terapêutico da Associação de células tronco e fármacos na hipertensão arterial pulmonar: Coordenador: José Hamilton Nascimento, pesquisador da UFRJ.
Matheus
“O presente estudo se faz principalmente pela importância clínica da hipertensão arterial pulmonar, cujos índices de morbidade e mortalidade, aliados às limitações das terapias atuais, demandam mais estudos fisiopatológicos e buscas de terapias alternativas de menor custo e maior eficiência. Justifica-se também pelas evidências de que a terapia celular com transplante e/ou mobilização de células tronco
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poderia ser eficaz na redução da pressão arterial pulmonar e recuperação da densidade vascular, função endotelial, e consequente repercussões hemodinâmicas em indivíduos portadores de hipertensão arterial pulmonar. Tais resultados esperados, se confirmados, conferem ao presente estudo uma grande relevância tanto na área básica de pesquisa em hipertensão pulmonar, como pela eventual possibilidade de aplicação clínica direta em pacientes hipertensos pulmonares.” •Desenvolvimento de uma vacina eficaz e segura contra o vírus Zika Coordenador: Pedro Fernando da Costa Vasconcelos, pesquisador do Instituto Evandro Chagas. “A vacina contra zika desenvolvida apresentou resultado positivo nos testes em camundongos e macacos. A aplicação de uma única dose da vacina preveniu a transmissão da doença nos animais e, durante a gestação, o contágio de seus filhotes. É um dos mais avançados estudos para a oferta de uma futura vacina contra a doença para proteger mulheres e crianças da microcefalia e outras alterações neurológicas causadas pelo vírus. Os testes pré-clínicos foram realizados simultaneamente no Instituto Nacional de Saúde
(NIH), Universidade do Texas e Universidade Washington, dos Estados Unidos, todos parceiros da pesquisa. Os testes obtiveram sucesso em seu objetivo, que é impedir que o vírus zika cause microcefalia e outras alterações do sistema nervoso central tanto nos camundongos quanto nos macacos.” Referências: http://www.abc.org.br/2019/04/15/universidade s-publicas-respondem-por-mais-de-95-daproducao-cientifica-do-brasil/ https://jornalggn.com.br/educacao/o-que-sao-epara-que-servem-as-universidades-publicas-depesquisa/ http://www.saude.gov.br/trabalho-educacao-equalificacao/gestao-da-educacao/677assuntos/ciencia-e-tecnologia-e-complexoindustrial/40487-ppsus @universidadeproduz http://pesquisasaude.saude.gov.br/pesquisaView .xhtml?id=6234 http://pesquisasaude.saude.gov.br/pesquisaView .xhtml?id=11652
Autora: Marcela Caires Amaral. Advogada. Membro do projeto Investir em pesquisa pública é desenvolver o Brasil da UAEM Brasil.
Marcha pela Ciência, Belo Horizonte, 2019
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ERA PÓS ANTIBIÓTICOS? A IMPORTÂNCIA DA PESQUISA PÚBLICA PARA O ENFRENTAMENTO À RESISTÊNCIA ANTIMICROBIANA
A descoberta dos antibióticos trouxe inúmeros avanços para a medicina. Desde a disponibilização dos primeiros antibióticos (penicilina, sulfonamidas e estreptomicina), inúmeras epidemias de doenças infecciosas foram controladas, tais como brucelose e pneumonia¹. Atualmente, os antibióticos nos permitem realizar procedimentos cirúrgicos invasivos, tais como transplantes de órgãos e cirurgias cardíacas, são utilizados para prevenir infecções em pacientes submetidos a tratamento quimioterápico, e em pacientes com doenças crônicas, como diabetes e insuficiência renal 2,3. Na contramão desses avanços, na última década houve um aumento significativo do número de cepas bacterianas resistentes aos antibióticos por todo o mundo. Esse rápido crescimento compromete a eficácia dos antibióticos, que são utilizados na medicina para salvar milhões de vidas. Somente na União Europeia, 37 mil indivíduos morrem a cada ano em decorrência de infecções resistentes adquiridas em ambientes hospitalar 4. Mas afinal, o que é a resistência aos antimicrobianos? A Organização Mundial da Saúde (OMS) define resistência a antimicrobianos (AMR, da sigla em inglês para antimicrobial resistance) como a capacidade dos microrganismos (bactérias, fungos, vírus e parasitas) de se alterarem quando expostos a antimicrobianos (antibióticos, antifúngicos, antiparasitários e antivirais) e de resistir a esses medicamentos, tornando–os ineficazes. O termo resistência a antimicrobianos é amplo, pois se refere a todos os microrganismos, enquanto a resistência bacteriana a antibióticos diz respeito somente aos organismos do reino monera. Apesar de possuírem significados diferentes, o termo AMR é utilizado como jargão
para representar a resistência bacteriana a antibióticos 5. A resistência bacteriana é um processo natural de resposta adaptativa. Ela ocorre em consequência da plasticidade genética bacteriana que permite modificação em resposta a ameaças ambientais, tais como, as moléculas de antibióticos3. No entanto, acredita-se que a utilização de antibióticos pelos seres humanos, para as mais diversas finalidades, tenha promovido um ambiente de pressão seletiva que aumentou o número da população e a diversidade de cepas bacterianas resistentes a antibióticos 6. Se por um lado o uso irracional de antibióticos promove pressão seletiva e consequentemente aumenta a incidência da resistência a antibióticos; de outro, salvo exceções, são poucos os antibióticos que foram desenvolvidos ao longo das últimas quatro décadas. Segundo o relatório da OMS de 2017, a maioria dos antibióticos desenvolvidos nesse período não são classes terapêuticas inovadoras, dado que apenas nove dos trinta e três antibióticos desenvolvidos eram inovadores. Ademais, para doenças negligenciadas como a tuberculose multirresistente (TB-MDR), somente duas classes terapêuticas inovadoras de antibióticos foram desenvolvidas nos últimos quarenta anos 7. Se esta conjuntura não mudar, estima-se que bactérias resistentes poderão causar 10 milhões de mortes por ano até 2050. Este é um cenário preocupante, pois sem o desenvolvimento de novos medicamentos podemos chegar em uma era pós antibióticos, na qual haverá poucas opções terapêuticas para tratar doenças infecciosas, como a tuberculose (TB) 8: Embora a incidência global de TB venha diminuindo ao longo dos anos, essa doença ainda
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se mantém como uma das 10 principais causas de morte no planeta e a principal causa de morte por doença infecciosa. No Brasil, a TB é considerada uma doença endêmica, e, apesar da alta carga, ainda é uma doença negligenciada, isso porque atinge principalmente a população mais carente dos países periféricos e, portanto, seu tratamento não oferece retorno financeiro significativo para a indústria farmacêutica 9.
demonstraram uma diferença significativa entre o número de medicamentos novos registrados para doenças crônicas não transmissíveis e doenças transmissíveis. Entre os anos de 2003 a 2013, dos 159 medicamentos registrados no Brasil, 88.1% eram para DCNT, tais como antineoplásicos, e 11.3% para doenças infecciosas, sendo que entre os anti-infecciosos, só foram incorporados dois antibióticos durante este período 11.
O tratamento padrão atual para TB é demorado (pelo menos 6 meses) e pode causar efeitos adversos significativos, o que causa uma alta taxa de abandono entre os pacientes e resulta no aumento da resistência bacteriana. No Brasil e no mundo, a incidência de tuberculose resistente (TBDR) e TB-MDR vem aumentando e se tornando um problema cada vez mais grave de saúde pública, pois os tratamentos alternativos não são tão eficazes contra o bacilo causador da doença 10.
Há modelos antibióticos?
Por que atualmente desenvolvem-se poucos antibióticos? O modelo de investimento privado na pesquisa e desenvolvimento (P&D) de medicamentos é baseado no lucro que as vendas dos medicamentos proporcionarão às indústrias farmacêuticas. Posto isso, medicamentos para doenças que não propiciam grandes lucros não são alvo de P&D. Como é o caso das doenças infecciosas resistentes aos antimicrobianos 8. A venda de antibióticos é menos rentável para a indústria farmacêutica do que a venda de medicamentos para tratamento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Por exemplo, o lucro líquido da venda de oncológicos é três vezes maior do que de antibióticos 7. Em consequência disso, são poucos os antibióticos que estão sendo desenvolvidos e incorporados no mercado. Um estudo brasileiro analisou o volume de medicamentos novos registrados na Agência Brasileira de Vigilância Sanitária (Anvisa) durante o período de 2003 a 2013. Os resultados do trabalho
alternativos
para
P&D
de
Apesar da demanda sanitária, fica evidente o pouco interesse da indústria farmacêutica na pesquisa e desenvolvimento de fármacos para as doenças infeciosas. Com isso, é extremamente importante a participação do investimento público na área de ciência e tecnologia para ampliar o desenvolvimento de medicamentos inovadores necessários ao quadro sanitário do Brasil e do mundo. Partindo da análise apresentada anteriormente sobre o desinteresse das instituições privadas de pesquisa, é fundamental que as instituições públicas mantenham um compromisso com a saúde pública e suas demandas, tendo como foco também problemas emergenciais em desenvolvimento, como é o caso da AMR. A contradição brasileira: Recentemente, três instituições brasileiras publicaram um plano de enfrentamento à AMR. Em 2017, a ANVISA 12, publicou seu plano, fundamentado no conceito Saúde Única que pressupõe a relação entre a saúde humana, animal e o meio ambiente e a integração entre diferentes áreas do conhecimento 13. Posteriormente, em 2018, o Ministério da Saúde e o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) publicaram suas estratégias de enfrentamento baseado no mesmo princípio. Os três planos consideram a P&D de antibióticos como um dos
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eixos fundamentais no combate à resistência a antimicrobianos 14,15. No entanto, nos últimos anos o Estado brasileiro vem tomando decisões que contradizem o seu projeto de investir na pesquisa e desenvolvimento de novos antibióticos - entre elas a EC 95/2016 e os contingenciamentos anunciados pelo atual governo. Considerando a ameaça que a AMR representa à saúde pública e a inércia da indústria farmacêutica em investir na P&D de antibióticos, é essencial que o Estado brasileiro invista na pesquisa de novos medicamentos. Desta forma, é imprescindível reverter as políticas de austeridade implementadas e fomentar a P&D de novas moléculas de antimicrobianos, assegurando assim a existência de antibióticos efetivos no futuro. Referências Bibliográficas 1- ACHILLADELIS, B. The dynamics of technological innovation: The sector of antibacterial medicines. Research Policy, v. 22, n. 4, p. 279–308, 1993 2-VENTOLA, C. L. The antibiotic resistance crisis: part 1: causes and threats. Pharmacy and Therapeutics, v. 40, n. 4, p. 277, 2015 3- MUNITA, J. M.; ARIAS C.A.Mechanisms of Antibiotic Resistance. In: Virulence Mechanisms of Bacterial Pathogens, Fifth Edition. American Society of Microbiology, 2016. p. 481–511. 4- European Centre for Disease Prevention and Control. Antimicrobial Resistance and Health Care associated infection programme. Disponível em: https://ecdc.europa.eu/en Acesso em setembro de 2018. 5- WORLD HEALTH ORGANIZATION. Antimicrobial Resistance fact sheets- What is antimicrobial resistance? Disponível em: https://www.who.int/features/qa/75/en/ [Acesso em setembro de 2017]. 6- SHEA, K. M. et al. Nontherapeutic use of antimicrobial agents in animal agriculture: implications for pediatrics. Pediatrics, v. 114, n. 3, p. 862-868, 2004.
7- United Nations- The Interagency Coordination Group on Antimicrobial Resistance. Antimicrobial resistance: invest and innovation and research, and boost R&D access. 8-United Nations. Report of the United Nations Secretary-General’s High Level Panel on Access to Medicines. Geneva, Switzerland: 2016. 9- BRASIL, Ministério da Saúde. Brasil Livre da Tuberculose: evolução dos cenários epidemiológicos e operacionais da doença. Boletim Epidemiológico, v. 50, 2019. 10- BRASIL, Ministério da Saúde. Manual de Recomendações para o controle da tuberculose no Brasil. 2. ed. 2019. 11 – BOTELHO, Stephanie Ferreira; MARTINS, Maria Auxiliadora Parreiras; REIS, Adriano Max Moreira. Análise de medicamentos novos registrados no Brasil na perspectiva do Sistema Único de Saúde e da carga de doenças. Ciência & Saúde Coletiva, v.23, p. 215-228, 2018. 12-Agência Brasileira de Vigilância Sanitária. Plano Nacional para a Prevenção e o Controle da Resistência Microbiana nos Serviços de Saúde. Brasília, DF, 2017. 13- BOQVIST, S; SÖDERQVIST, K; VÅGSHOLM, I. Food safety challenges and One Health within Europe. Acta Veterinaria Scandinavica, v. 60, n. 1, p. 1, 2018. 14- Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento. Plano de Ação Nacional de Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos no âmbito da agropecuária. Brasília, DF,2018. 15- Ministério da Saúde. Plano de ação nacional de prevenção e controle da resistência aos antimicrobianos no âmbito da Saúde Única. Brasília,DF, 2018.
Autores: Rafael Almeida, Isak Batista e Barbara Carvalho – Membros do projeto Acesso e resistência a antimicrobianos da UAEM Brasil.
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AS DOENÇAS NEGLIGENCIADAS ENQUANTO CASO CONCRETO DA NECESSIDADE DE INVESTIMENTO PÚBLICO NA PESQUISA EM SAÚDE
As Doenças Tropicais Negligenciadas (DTN) são definidas como um grupo diversificado de doenças infecciosas concentradas, sobretudo, em países periféricos de clima tropical e subtropical, tais como Índia, Brasil, Paraguai, Uruguai, Chile, México, regiões e comunidades de países da África, Ásia, Oceania e Oriente Médio. Estima-se que as DTN acometam 1 bilhão de pessoas e que aproximadamente 2 bilhões de pessoas estão sob o risco de desenvolver uma ou mais DTN, tendo como elemento comum a todas essas doenças o cenário de pobreza da população afetada, com considerável precariedade socioeconômica (WHO, 2018). Sua ocorrência vem estabelecendo cenários de desigualdades no mundo ao longo dos anos, intensificando a miséria, fragilidade nas condições de saúde, qualidade de vida reduzida, preconceito e estigmatização da população afetada (FIOCRUZ, 2017). De acordo com o primeiro relatório da OMS sobre DTN, denominado “Avanços para superar o impacto global de doenças tropicais negligenciadas” (OMS, 2010), em 2010, havia 17 DTNs, sendo elas: Dengue, Hidrofobia (raiva), Tracoma, Úlcera de Buruli, Treponematoses endêmicas, Hanseníase, Doença de Chagas, Tripanossomíase humana africana (doença do sono), Leishmaniose, Cisticercose, Dracunculíase, Equinococose, Infecções alimentares por trematódeos, Filariose linfática, Oncocercose, Esquistossomose e Hemintíases transmitidas pelo solo. Atualmente, a OMS também já considera como DTN: Envenenamento por mordida de cobra, Chikungunya, Micetoma, Cromoblastomicose e outras micoses profundas, além de Escabiose e outras ectoparasitoses, totalizando, atualmente, 21 doenças e grupos de DTN (WHO, 2017).
Marcha pela Ciência, Belo Horizonte, 2019
Panorama epidemiológico das DTN no Brasil O Brasil é um dos países que apresenta o maior número de casos DTN em todo o mundo, contendo a maior carga da América Latina. São elencadas como as principais DTN no contexto de morbimortalidade em todo o território nacional: esquistossomose, doença de Chagas, hanseníase, leishmaniose visceral e leishmaniose tegumentar. As DTN se concentram, sobretudo, nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil, cujos estados apresentam indicadores sociais, econômicos e de saúde consideravelmente mais frágeis. No Brasil, entre 2003 e 2012, houve uma média de 101.293 pessoas identificadas com esquistossomose mansoni através de inquéritos
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coproscópicos. O Nordeste e o Sudeste do país aparecem como as regiões com as maiores prevalências da doença (BRASIL, 2004). A transmissão da doença se dá durante as atividades agrícolas, domésticas, recreativas, entre outras atividades que estejam associadas à água contaminada (WHO, 2018). No Brasil, houve uma média de 200 casos confirmados por ano da doença de Chagas em quase todos os estados brasileiros entre 2007 e 2016. Do total, cerca de 95% dos casos concentraram-se na região Norte, onde 85% das ocorrências deu-se no estado do Pará. Quanto às principais formas de transmissão observadas no país, 69% foram por transmissão oral e 9% pelo vetor (BRASIL, 2017). Em relação à hanseníase, uma DTN endêmica em muitas regiões de vários países, o Brasil se destaca na região das Américas. Aqui, de acordo com dados da OMS (2017), em 2015 foram reportados 176.176 novos casos de hanseníase, 213.899 em 2014 e 215.656 em 2013. A leishmaniose tegumentar americana (LTA) doença predominantemente urbana e periurbana - alcança todas as regiões brasileiras. Entre 1995 e 2014, houve uma média anual de 25.763 novos casos registrados. Em 2003, evidenciou-se a expansão da doença em território nacional, com registro de casos autóctones em todos os estados brasileiros (BRASIL, 2010). Já a leishmaniose visceral (LV), também conhecida como “calazar”, é um entrave para a saúde pública em diversos países. Em 2014, 90% dos casos novos reportados à OMS concentraram-se em seis países: Brasil, Etiópia, Índia, Somália, Sudão do Sul e Sudão (WHO, 2016b). No Brasil, a LV se expande para as áreas urbanas de médio e grande porte. Entre 2004 e 2014, a média anual no país foi de 3.156 casos (BRASIL, 2014).
A importância da pesquisa sobre DTN As estratégias da Agenda de Saúde Global com Doenças Tropicais Negligenciadas têm apresentado avanços significativos, porém permanecem grandes desafios a serem enfrentados, como questões geopolíticas, econômicas, desenvolvimento social e investimentos que impactam no cenário das DTN. São necessários incentivos com maior potência metodológica e teórica, a fim de reforçar debates com as vertentes biomédicas e políticas para que a população vulnerável a essas enfermidades ganhe protagonismo e qualidade de vida. É fundamental ampliar o conhecimento crítico, científico e histórico, sendo de suma importância pesquisas na área (OLIVEIRA, 2018). Faltam informações e transparência sobre as estratégias para controle dessas doenças, sendo a distribuição de medicamentos a principal estratégia que tem sido utilizada. Ela ganhou destaque em 2006, quando o Congresso Americano determinou o investimento anual de 15 milhões de dólares para quimioprofilaxia das 7 doenças negligenciadas mais prevalentes, afirmando que elas podem ser combatidas por meio do tratamento em massa das comunidades acometidas (VASCONCELOS; KOVALESKI; JUNIOR, 2016). Os programas de intervenção em DTN foram sendo propostos à medida que elas se colocaram como um impedimento ao desenvolvimento econômico. A partir disso, entende-se que a heterogeneidade desses programas e iniciativas foi um efeito desse processo (VASCONCELOS; KOVALESKI; JUNIOR, 2016). Apesar de, atualmente, afetarem mais de 1 bilhão de pessoas no mundo, os investimentos em pesquisas, produção de medicamentos e controle das DTN permanecem ínfimos. Ainda que as doenças tropicais e a tuberculose sejam responsáveis por cerca de 11,4% da carga global de doença, apenas
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21 (1,3%) dos 1.556 novos medicamentos registrados entre 1975 e 2004 (VALVERDE, 2012) foram voltados para elas. Mesmo que as medidas preventivas e o tratamento sejam razoavelmente conhecidos, não são disponíveis igualmente nas áreas mais pobres do mundo. Contudo, estudo recente sobre o financiamento mundial de inovação para doenças negligenciadas (G-Finder2) revelou que menos de 5% do financiamento foi investido no grupo das doenças extremamente negligenciadas: doença do sono, leishmaniose visceral e doença de Chagas. Mesmo diante do alarmante cenário atual das DTN, o foco de P&D das indústrias farmacêuticas permanece voltado para o lucro, com consequente priorização de medicamentos para doenças crônicas e globais, uma vez que os países mais acometidos com DTN têm menor renda. Publicações apontam que o Brasil é um dos países mais empenhados em produzir e investir em intervenções para as DTN. Segundo o Ministério da Saúde, em 2008, os países e blocos que mais investiram em pesquisas de doenças negligenciadas foram os EUA, com US$ 1,2 bilhão (70%) seguidos pela União Europeia, Inglaterra, Holanda e Irlanda, respectivamente. O Brasil, em sexto lugar, investiu US$ 21,9 milhões (1,24%). Contudo, de acordo com alguns relatórios sobre o período de 2016 e 2017, houve diminuição no financiamento público para pesquisas relacionadas às DTN no Brasil como resultado da Emenda Constitucional 95/2016, que causou cortes no orçamento público, incluindo nas agências financiadoras, a exemplo do Banco Nacional do Desenvolvimento Social (BNDES), que apresentou diminuição de R$ 15 milhões no investimento; e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que sofreu redução de R$ 14 milhões. Esses cortes afetaram a pesquisa em praticamente todas as doenças negligenciadas consideradas prioritárias pelo Ministério da Saúde no Brasil: o investimento
em pesquisas sobre malária e leishmaniose caiu 15% e 63%, respectivamente; para tuberculose, o corte foi de 45% e de 74% para a doença de Chagas. Duas patologias tiveram aumento no investimento em pesquisa, sendo elas a dengue (41%) e a esquistossomose, que teve passou de R$ 500 mil em 2016 para R$ 2,8 milhões em 2017 (460%) (MORI, 2019). A produção de conhecimento nessa área segue tensionada devido ao escasso investimento. Cabe destacar que, além da pesquisa biomédicas, investigações como aquelas realizadas pelo Grupo de Pesquisa em Doenças Tropicais e Negligenciadas da Universidade Federal do Ceará são extremamente importantes para embasar políticas públicas para prevenção e controle dessas doenças. Pesquisas nessa área são, ainda, potenciais canais para capacitação de profissionais e inserção das pessoas acometidas pelas DTN na sociedade, favorecendo o enfrentamento de estigmas. As doenças negligenciadas impactam fortemente na situação de saúde de uma região e perpetuam a pobreza, porém ainda têm destaque insuficiente nas agendas nacionais e internacionais. No âmbito dos medicamentos, devido, em muito, à pressão da sociedade civil, algumas iniciativas têm sido propostas para alterar esse cenário. Uma delas é a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas - Drugs for Neglected Diseases Initiative (DNDi) -, que pesquisas e desenvolve novos tratamentos para as doenças mais negligenciadas através de um sistema alternativo de Pesquisa e Desenvolvimento não focado no lucro. Diante do desinteresse do Mercado nas pessoas e doenças negligenciadas, é imprescindível que os governos façam parte da busca por soluções para enfrentar as DTN. No Brasil, um país marcado por desigualdades e que prevê a garantia constitucional do direito à saúde, a necessidade
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desse compromisso estatal com a pauta das DTN fica ainda mais evidente. Nesse sentido, na contramão do que vem acontecendo em nosso país, é preciso ampliar os investimentos em pesquisa pública. Ao mesmo tempo em que há pessoas acometidas pelas DTN sofrendo pela falta de acesso à saúde e pela falta de alternativas
terapêuticas para solução de seus problemas de saúde, há estudantes perdendo bolsas de estudo em DTN devido aos cortes orçamentários impostos pelo atual governo federal. Diante disso, convocamos toda a sociedade a defender a pesquisa pública e lutar conosco pelo enfrentamento das DTN.
Referências:
afetam milhões de pessoas no mundo e no Brasil. 2019. OLIVEIRA, Roberta Gondim de. Sentidos das Doenças Negligenciadas na agenda da Saúde Global: o lugar de populações e territórios. Ciência & Saúde Coletiva, [s.l.], v. 23, n. 7, p.2291-2302, jul. 2018. FapUNIFESP (SciELO). UNITING TO COMBAT NEGLECTED TROPICAL DISEASES. Liderança e coLaboração dos países na área das doenças tropicais negLigenciadasLondres, 2012. WHO. Neglected diseases in Brazil. WHO. Epidemiology and burden of disease. WHO, 2017a. WHO. GLOBAL PLAN TO COMBACT NEGLECTED TROPICAL DISEASES 2008-2015. WHO. INTEGRATING NEGLECTED TROPICAL DISEASES INTO GLOBAL HEALTH AND DEVELOPMENT. WHO; OPAS. AVANÇOS PARA SUPERAR O IMPACTO GLOBAL DE DOENÇAS TROPICAIS NEGLIGENCIADAS. [s.l: s.n.]. WHO; OPAS. Plano de ação para a eliminação de doenças infecciosas negligenciadas e ações póseliminação 2016-2022. p. 35, 2016.
BRASIL. MINISTERIO DA SAÚDE. Boletim Epidemiológico - Hanseníase, 2018. BRASIL. Doenças negligenciadas: estratégias do Ministério da Saúde, Revista de Saude Publica, 2010a. BRASIL. Manual de Vigilância da Leishmaniose Tegumentar Americana. Brasília: [s.n.]. BRASIL. Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral. Ministerio da Saude, Secretaria de Vigilancia em Saude, v. 1d, p. 120, 2014a. BRASIL. Doenças negligenciadas no Brasil: vulnerabilidade e desafios. SAÚDE BRASIL 2017: Uma análise da situação de saúde e os desafios para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, p. 99–141, 2017a. BRASIL; SAÚDE, S. DE V. EM. Boletim Epidemiológico Esquistossomose, 2016. BRASIL; SAÚDE, S. DE V. EM. Boletim epidemiológico Leishmaniose Visceral, 2017. BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. Determinantes sociais da saúde. Cadernos de Saúde Pública, v. 22, n. 9, p. 1772–1773, 2006. FIOCRUZ. Presidente da Fiocruz destaca populações negligenciadas em conferência na OMS. LETICIA MORI (Ed.). As doenças negligenciadas pela indústria farmacêutica que
Autores: Antônio Delerino, Brenna Gadelha, Gabrielle Rocha, Nayla Rochele Andrade, Thainá Andrade - membros do capítulo de Fortaleza da UAEM Brasil
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A IMPORTÂNCIA DOS LABORATÓRIOS PÚBLICOS PARA O ACESSO A MEDICAMENTOS
Marcha pela Ciência, Belo Horizonte, 2019
As eleições dos EUA, que acontecerão no ano que vem, certamente serão intensas, marcadas por um cenário polarizado, em que a política de Donald Trump e possivelmente a entrada de novos atores progressistas, como Bernie Sanders, surgem como fenômenos ainda em fase de compreensão para a maioria das pessoas. A despeito dessas novidades, essas eleições já anunciam que a saúde estará no centro do debate eleitoral, por conta de um tema que já foi o centro de pelo menos duas comissões no Congresso estadunidense e segue sendo um drama dentro da sociedade do país: o acesso a insulinas. As insulinas são medicamentos de uso contínuo que atendem especialmente pessoas diagnosticadas com diabetes, uma condição de saúde que envolve a dificuldade do organismo em produzir (tipo 1) ou em utilizar (tipo 2) esse hormônio produzido no pâncreas com papel essencial na absorção da glicose no sangue. Por ser de uso contínuo, é comum que represente gastos consideráveis aos usuários e a seus familiares. Em um país baseado em um modelo liberal de proteção social, com pouca cobertura e regulação insuficiente, como os EUA, a situação adquire um caráter especialmente trágico, em que pessoas
morrem por não terem recursos para adquirir esse medicamento essencial, tendo três casos de morte por seu racionamento ganhado a mídia nacional em 2017. A descoberta e a produção de insulinas não são exatamente algo novo na história da humanidade. Atribui-se o feito a dois cientistas canadenses, Frederick Banting and John Macleod, inclusive laureados com o prêmio Nobel, em 1923, pelo feito. Os dois sintetizaram o medicamento após conduzirem pesquisas na Universidade de Toronto – pública – com o apoio do Laboratório Connaught, também público e responsável pela primeira linha produtiva do medicamento. A descoberta lhes pareceu tão importante que venderam sua patente, isto é, o direito de ter a exclusividade temporária de exploração comercial, para a Universidade, pelo preço simbólico de três dólares canadenses. Quase um século depois e algumas novas gerações do medicamento, ainda resta a pergunta: por que tão caro? A produção não seria exatamente a explicação. Em um mercado competitivo, estimase que o custo das insulinas NPH e regular seria entre 78 e 130 dólares por pessoa por ano. A que
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então atribuir os preços estratosféricos? Essa pergunta, que há menos de um mês entrou novamente em pauta no Congresso estadunidense, evoca uma realidade interessante: apenas três empresas controlam mais de 95% do mercado global de insulinas.
possui um conjunto de vinte e um laboratórios farmacêuticos públicos, responsáveis pela produção de 12 bilhões de unidades farmacêuticas por ano, incluindo 145 medicamentos, que representam uma economia significativa no custo de aquisição pelo SUS.
Talvez soe um pouco estranho neste lado sul do globo ouvir falar do drama do acesso às insulinas. Por um lado, seria errado dizer que o problema não existe no Brasil. O simples acompanhamento das diversas associações de pacientes ligadas à diabetes fornece uma boa dimensão dos desafios no país. No entanto, por outro lado, o fato de termos uma política pública de assistência farmacêutica consideravelmente estruturada dentro de um sistema de acesso universal que toma a saúde enquanto direito, coloca o país em uma situação um pouco menos trágica do que a de vários outros países em que o fornecimento de medicamentos é fundamentalmente privado.
Cada uma dessas instituições tem a sua história e sua especialidade. Quem conhece algo dos laboratórios oficiais, como são chamados, geralmente sabe do Instituto de Tecnologia em Fármacos e do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos, mais conhecidos como Farmaguinhos e Biomanguinhos, instituições com reconhecimento internacional, que servem não apenas para produção, mas também como importantes centros de pesquisa. O grupo, no entanto, é maior. É menos conhecido, por exemplo, o fato de que os três braços das forças armadas, exército, marinha e aeronáutica possuam, cada um, seu laboratório público.
Essa situação, contudo, apenas desloca a problemática do preço para outro nível. Por mais que seja um grande avanço tirar das pessoas o ônus de custear seu tratamento, o Estado brasileiro ainda precisa arcar com esse custo, o que se torna especialmente difícil quando os fornecedores são os mesmos praticamente de preços elevados que permitem a tragédia social em outras partes do mundo. Existem algumas alternativas para resolver o problema, por exemplo, regulação de preços. Não por acaso, os preços canadenses – e brasileiros – são bem menores que os praticados nos EUA. No entanto, indo ainda além, por que não produzir os seus próprios medicamentos essenciais?
Ao todo o conjunto de laboratórios públicos brasileiros é composto de nove entidades ligadas a governos estaduais (ex: Fundação para o Remédio Popular – Furp, em São Paulo e Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco S.A. - LAFEPE), três ligadas a universidades federais, duas a universidades estaduais, os três das forças armadas e as instituições federais, além de mais outros em fase de implementação.
Em um tempo como o nosso em que o país, no sentido contrário da maior parte das experiências internacionais exitosas, insiste na fórmula já superada da privatização como solução universal, falar em produção pública de medicamento soa distante e irreal. Porém, mais do que um projeto, essa ideia já é realidade nacional. O país
Essas instituições representam um potencial importantíssimo para o sistema de saúde brasileiro, especialmente considerando a dimensão do SUS. Voltando ao caso das insulinas, o país possui uma história particularmente interessante com esse medicamento. Não há muito tempo, o Brasil foi o quarto maior produtor mundial, sendo inclusive autossuficiente. O feito acontecia em razão da Biobrás S.A., empresa privada criada a partir de pesquisas desenvolvidas em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais. A gigante brasileira das insulinas logrou
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desenvolver um método de produção de insulinas recombinantes patenteado inclusive no escritório de patentes e marcas dos EUA. No entanto, foi vendida para a dinamarquesa Novo Nordisk no ano de 2002. Em 2007, retomou-se o projeto de o país ser um produtor relevante, agora a partir de um laboratório público. O governo brasileiro firmou, por via de Farmanguinhos, uma Parceria para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) com o Laboratório Indar, da Ucrânia, para transferência de tecnologias na produção de insulina humana NPH (ação prolongada) e regular, as duas mais usadas no SUS. Em seguida, promoveu-se a transferência para um outro laboratório público, a Bahiafarma, ligada ao governo da Bahia e candidata a muito em breve se consolidar como a fornecedora do SUS desse importante medicamento, até o Ministério da Saúde revogar unilateralmente a PDP no fim de julho de 2019. Para além do barateamento de custos de aquisição, a produção pública de medicamentos atende a diversas outras necessidades do sistema, a começar pela função científica. A Fiocruz, com seus dois laboratórios, demonstra bem essa dimensão. O mesmo se aplica ao Instituto Butantan, em São Paulo, responsável pelo desenvolvimento da vacina contra a Dengue, com recursos do BNDES. Além disso, a produção pública possui um importante papel no acesso e no abastecimento, não apenas pela redução de preços, mas também por ser capaz de atender a demandas a que a indústria não se interessa, especialmente de Doenças Negligenciadas. Apenas no primeiro quadrimestre de 2019, por exemplo, Farmanguinhos distribuiu 30 milhões de unidades farmacêuticas do composto de tenofovir + lamivudina, importante antirretroviral usado na rede pública. Da mesma forma, em outubro de 2016, a Bahiafarma registrou na ANVISA o primeiro teste rápido para o Zika. No fim do ano de 2018, o Brasil registrou um surto de sífilis,
relacionado ao desabastecimento de penicilina, o primeiro antibiótico a ser descoberto na história da humanidade, mas cuja venda não interessa comercialmente ao setor privado. A questão foi resolvida com o aumento artificial do preço por agrupamento de compras com a OPAS, mas poderia ser resolvida com uma linha de produção pública do medicamento. Mais do que meros fornecedores, os laboratórios públicos representam uma parte do projeto político que originou o Sistema Único de Saúde. Sua existência é um símbolo de desenvolvimento, soberania e fornece ao país a capacidade de constituir uma política de assistência farmacêutica mais eficaz e mais barata. Além disso, essas unidades são importantes centros de inovação, capazes de permitir que o próprio sistema trace suas estratégias de pesquisa e desenvolvimento de acordo com as demandas reais da população. Se é fato que uma política de assistência farmacêutica baseada na universalidade, ainda que cada vez mais ameaçada pela contenção de recursos, retira o Brasil do cenário dramático dos gastos catastróficos em saúde, a produção pública seria um desdobramento natural desse objetivo, reduzindo custos e promovendo inovação em áreas estratégicas. Referências: http://haiweb.org/wpcontent/uploads/2016/04/ACCISS-Pricesreport_FINAL-1.pdf> https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii= S2213-8587%2819%2930111-1 https://agencia.fiocruz.br/diretor-defarmanguinhos-explica-acordo-com-aucr%C3%A2nia https://www.theguardian.com/usnews/2019/jul/28/bernie-sanders-americanscanada-insulin-bus-caravan
Autor: Matheus Z. Falcão – membro dos projetos Investir em pesquisa pública é desenvolver o Brasil e Acesso e resistência a antimicrobianos
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DIZ QUE É VERDADE, QUE TEM SAUDADE
Luiza Pinheiro na Reunião Anual da UAEM Brasil, Belo Horizonte, 2017
É com muita alegria que estreamos a nova seção do Boletim da UAEM Brasil: Diz que é verdade, que tem saudade! Este é um espaço para matarmos a saudade de pessoas que tiveram um papel importante na UAEM Brasil, mas que tomaram outros rumos. Em um Boletim que fala de pesquisa, educação, ciência e tecnologia, não poderíamos deixar de ter como nossa primeira homenageada a Luiza Pinheiro. Confira abaixo nossa entrevista com ela, que contou um pouco de sua trajetória profissional e do impacto da UAEM em sua vida 1) Você pode nos contar um pouco, por favor, sobre sua trajetória profissional e sua trajetória na UAEM? Sou graduada em Farmácia pela UFMG com habilitação em indústria. Sou mestre em Inovação Biofarmacêutica também pela UFMG, e estou concluindo um doutorado no mesmo programa. Neste meio tempo trabalhei em algumas empresas e instituições privadas. Hoje trabalho no Inesc – Instituto de Estudos Socioecômicos, uma ONG de Direitos Humanos, com acesso a medicamentos. Desde a faculdade eu concilio atividades voluntárias à minha rotina, como por exemplo, a empresa júnior do meu curso. A mais recente foi na UAEM, onde fiquei de 2016 a 2018. Passei por várias atividades, como membro do Comitê de Coordenação e o de Governança Global. 2) Qual foi o impacto da UAEM em sua trajetória profissional? A UAEM foi fundamental para que eu consolidasse minha formação na área de inovação, e desse propósito, ao trazer a perspectiva do acesso a medicamentos. Trabalho com inovação desde o estágio de conclusão de curso, e apesar de estudar inovação farmacêutica desde o mestrado, eu só trouxe o viés forte de saúde pública depois de participar da UAEM. Não só aprendi muito, como conheci pessoas que foram cruciais na minha vida acadêmica e profissional, bem
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como participei de eventos que nunca teria oportunidade de outra forma, como a Assembleia Geral da OMS, em Genebra na Suíça. Acredito que hoje só trabalho em uma organização não governamental exatamente com acesso a medicamentos e inovação por conta da UAEM. 3) Em sua opinião, qual a importância da UAEM para a construção da política de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil? Eu acho a participação da UAEM extremamente importante, não só para a construção desta política, mas também para seu monitoramento e avaliação. Os estudantes universitários, seja de graduação ou da pós, têm uma visão e um lugar únicos para agregar ao debate. Ele muitas vezes é feito considerando apenas aspectos econômicos, industriais ou tecnológicos. A parte social é frequentemente citada, mas frequentemente não é colocada de forma central, baseada nos princípios de universalidade, equidade, controle e participação social. Sendo assim, a elaboração e análise desta política deve ser multidisciplinar e diversa, como a UAEM. Tem que envolver profissionais da saúde, do direito, economia, a academia e a população em geral também, que pode e deve ser envolvida. 4) Qual mensagem você gostaria de deixar para os atuais membros da UAEM? Aproveitem muito a oportunidade, mas de forma ativa. Tudo na vida a gente tem que correr atrás, e na UAEM não é diferente. E obtemos retorno à medida que nos dedicamos. Existem muitas oportunidades na UAEM, mas é preciso mais que estar em reuniões virtuais e grupos de Whatsapp. E eu tenho certeza que todo o esforço dedicado é recompensado em dobro. Aproveito também para registrar algo que já dizia quando estava na UAEM e quando saí, e espero que esteja sendo feito. O orçamento da UAEM, quanto ela ganha, de onde arrecada e quanto gasta com cada atividade tem que ser mostrado de forma transparente e pública, pelo menos para seus membros e para o Conselho Consultivo.
Manifestações pela Educação, Rio de Janeiro, 2019
Revisão e edição do Boletim: Luciana M. N. Lopes Capa: Mariana Bicalho
Boletim da UAEM Brasil 2019 – Investir em pesquisa pública é desenvolver o Brasil
A UAEM Brasil A Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais é uma organização global de estudantes universitários de diversos campos - direito, saúde pública, farmácia, medicina, relações internacionais, etc. - que acredita no acesso universal a medicamentos e em um sistema de pesquisa e inovação em saúde mais justo. São três os nossos pilares de atuação: 1) Acesso às tecnologias em saúde - com ênfase em preços justos que garantam a universalidade; 2) Inovação em saúde - que deve ser guiada pelas necessidades em saúde da população e não pela possibilidade de lucro da indústria; e 3) Empoderamento - para que nossos estudantes, suas universidades e a comunidade em que estão inseridos sejam agentes da mudança. No Brasil, a UAEM é uma organização não governamental legalmente registrada desde 2013. Composta por estudantes de diversos campos, a UAEM Brasil tem atuado na ampla conscientização de estudantes, professores, decisores e da sociedade sobre a crise de acesso a medicamentos, as iniquidades a ela relacionadas e no debate sobre maneiras de enfrentá-la. Acreditamos que isso passa pela defesa de um Sistema Único de Saúde (SUS) universal, integral e gratuito, voltado às reais necessidades em saúde da população e ao alcance da equidade; pela garantia de financiamento público para a saúde, para a educação e para a pesquisa e o desenvolvimento de tecnologias em saúde; e por arranjos normativos justos que se contraponham à ganância da indústria farmacêutica.
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