Enfoque Bairro Farrapos 4

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ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS

PORTO ALEGRE / RS AGOSTO / SETEMBRO DE 2019

EDIÇÃO

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ALLONSO SANTOS

DRAMA QUE SE REPETE FAMÍLIAS SOFREM COM AMEAÇA RECORRENTE

BATALHA PARA O SUSTENTO Superação diária paga contas dos trabalhadores. Páginas 6 e 7

BRUNA SCHLISTING

JOSIANNE MOSER

PETRA KARENINA

PÁGINAS 3, 4 e 5

ESFORÇO SOLIDÁRIO

Moradores revelam zelo e preocupação com familiares. Página 8

ARTE PELAS RUAS

Carlos e José fazem poesia e música para aliviar o dia a dia. Página 9


2. Opinião

ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS | PORTO ALEGRE (RS) | AGOSTO / SETEMBRO DE 2019

Imagem em Destaque BRUNA SCHLISTING

José Manoel Teixeira, 77 anos, aprendeu a tocar viola com seu irmão Pedro. Mas o que ele gosta mesmo é de cantar. “Sinto a presença de Deus quando canto”

RECADO DA REDAÇÃO

A realidade grita aos olhos Alunos de Jornalismo da Unisinos, voltamos ao Bairro Farrapos, comunidade que nos recebe para ouvi-la e dar-lhe voz. Na nossa quarta visita, que é a primeira desta turma 2019/2 da disciplina de Jornalismo Comunitário e Cidadão, presenciamos, em 17 de agosto, uma triste situação dos moradores da Vila Liberdade: o enfrentamento, repetido, das consequências de um incêndio. Para nós, futuros jornalistas, é importante e difícil acompanhar esses momentos, mas sabemos que estamos, de alguma forma, ajudando nessa recuperação, inclusive ao revelar pontos positivos presentes no bairro, como os talentos, a garra e a solidariedade de seus moradores, situações que gritam aos olhos de quem passa por lá e tem a oportunidade de trocar vivências com jovens, adultos e os mais experientes da comunidade. Agradecemos pela maneira com que somos recebidos: sempre dispostos e com muita paciência em dividir suas histórias com quem ainda está aprendendo a contá-las. Obrigado por nos deixarem conhecer, a cada visita, um pouco mais de vocês. JOSI SKIERESINSKI Editora-chefe

ENTRE EM CONTATO

DATAS DE CIRCULAÇÃO

Débora Lapa Gadret (Coordenadora do Curso de Jornalismo) (51) 3590 1122, ramal 3415 / dgadret@unisinos.br Luiz Antônio Nikão Duarte (professor responsável) luizfd@unisinos.br

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14 de setembro

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12 de outubro

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2 de novembro

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Bairro Farrapos é um jornal experimental dirigido à comunidade do Bairro Farrapos, em Porto Alegre (RS). Com tiragem de mil exemplares, são publicadas três edições a cada semestre e distribuídas gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre.

CONTEÚDO Disciplinas: Jornalismo Comunitário e Cidadão e Fotojornalismo Orientação: Luiz Antônio Nikão Duarte (texto) e Flávio Dutra (fotografia) Edição geral (chefia): Josi Skieresinski Edição de fotografia: Luiza Heinzelmann Soares Reportagem e edição: Alessandro Sasso, Carol Steques, Carolina Santos, Denilson Flores, Felippe Jobim, Fernanda Romão, Guilherme Machado, Josi Skieresinski, Juan Gomez, Lelo Valduga, Luiza Heinzelmann Soares e Paulo H. Albano. Fotografias: Alana Schneider, Allonso Santos, Bruna Schlisting, Guilherme Gonçalves, Jessica Montanha, Josianne Moser, Julia Tomazi, Lucas Braga F., Maria Eduarda Stolting e Petra Karenina. ARTE Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia

IMPRESSÃO Realização: Gráfica UMA Tiragem: 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: Pedro Gilberto Gomes. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Alsones Balestrin. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretor da Unidade de Graduação: Sérgio Eduardo Mariucci. Gerente dos Cursos de Graduação: Tiago Lopes. Coordenadora do Curso de Jornalismo: Debora Lapa Gadret.


Drama .3

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Vidas cruzadas por uma ameaça constante Um incêndio na Vila Liberdade revela a história de duas famílias: uma busca reerguer sua casa, a outra dá assistência para aqueles que perderam tudo

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m incêndio atingiu quatro casas de madeira que ficam próximas à Arena do Grêmio, na Vila Liberdade, Zona Norte de Porto Alegre, na manhã de sábado, 17 de agosto. Dentre as casas destruídas está a de Dalvânia Aparecida Nunes, mãe da Andreza e da Elen. Três mulheres arrasadas pelo fogo. A poucos metros dali, as irmãs Claudia e Jessica Bueno dão assistência às crianças da comunidade no meio do drama das famílias que tiveram suas casas perdidas. Eram 6h30 quando as chamas iniciaram: “Eu acordei e já estava pegando fogo, não sei como aconteceu”, conta Dalvânia, cansada e sem sono. Ela procura pela filha mais velha, Andreza Correa Machado, de 25 anos, que havia saído para buscar pregos. A casa não foi totalmente destruída, mas as paredes da frente já não poderiam protegê-las do inverno. Um provável curto circuito foi suficiente para transformar quatro residências em brasa, um drama antigo na Vila Liberdade. Em 2013, outro incêndio já havia deixado 90 casas destruídas e 190 famílias desalojadas. Foi em 27 de janeiro, na mesma noite em que as chamas tomaram conta da Boate Kiss, em Santa Maria, causando 242 mortes. Desde então, as famílias esperam pela finalização de um conjunto habitacional, cuja construção foi iniciada pela prefeitura, mas interrompida por uma ocupação. Para Dalvânia, aquele foi seu primeiro incêndio. Ela mora ali há dois anos. Sua rotina é cuidar das crianças e fazer algumas faxinas para complementar a renda. Atualmente, está desempregada, assim como a filha Andreza Correa, que busca uma oportunidade há cinco anos. Ambas contam com o benefício do programa bolsa família, que ajuda em gastos básicos, como comprar fraldas para Henri, de três meses, filho de Andreza. No incêndio recente, só tiveram tempo de tirar as crianças e salvar os documentos: “Ficamos olhando o fogo pegar” relata Andreza.

Incêndio na Vila Liberdade atingiu seis casas e deixou quatro delas completamente destruídas. Andreza Correa, mãe do Henri Mickael, três anos, teve seu lar parcialmente queimado. A filha Nicolle Eduarda e o sobrinho Gregory Nunes ficaram sob os cuidados da família Bueno, que administra a Associação Mário Quintana

Perto dali, a escola Pé de Pilão abriu suas portas e abrigou crianças da comunidade afetadas pelo incêndio. Os netos de Dalvânia, Gregory Nunes, de quatro anos e Nicolle Eduarda, de cinco, estavam lá para tomar um café da manhã improvisado. Claudia Bueno e a irmã Jéssica Bueno foram responsáveis pelo serviço. “Momentos como este são muito tristes para nós, porque não é a primeira vez. Então, são momentos de dor, principal-

mente para as crianças, pois são imagens que elas não esquecem”, conta Claudia, que é conselheira tutelar suplente da comunidade. A Pé de Pilão é um equipamento beneficente comunitário que atua como uma escola de educação infantil. Gregory e Nicolle ainda estão na creche João Paulo II, mas no dia em que perderam o lar, seu único abrigo foi a escola. Com a ajuda de algumas igrejas, foi possível oferecer alimento, roupas e um banho às

crianças. Claudia fez campanhas pontuais nas redes sociais, para arrecadar doações: “A gente sempre sabe que o primeiro dia é paliativo, a gente faz de tudo para minimizar a dor da perda. Nos outros dias vamos contar com o apoio da prefeitura. Acredito que de alguma forma eles vão mobilizar uma moradia para essas pessoas”, conta. Há seis anos, os moradores da Vila Liberdade estão em casas emergenciais e esperam a construção do condomínio que sofreu uma ocupação. Já se passou tanto tempo que suas casas perderam as paredes originais e deram lugar a tábuas deslocadas que tapam buracos como uma colcha de retalhos. “Eles já não moram em locais bons, vivem em casas feitas de plástico e a gente sabe que uma hora outra iria acontecer isso”, diz a presidente da Associação Mário Quintana, Jessica Bueno. Jessica e Claudia são irmãs e atendem mais de cinco comunidades. Uma herança familiar: quando Jéssica tinha sete anos, o pai era presidente da Associação. Seu afastamento fez com que ela assumisse o cargo: “Está no sangue”. A Pé de Pilão foi fruto da luta da Associação por uma escola de educação infantil. Uma segunda conquista foi o posto de saúde, que fica ao lado das casas incendiadas. Jessica aprendeu com o pai a lutar por seus objetivos e busca levar esta mensagem a outras famílias da comunidade, como a de Dalvânia, cuja única filha empregada é Elen Nunes, que trabalha no Mc Donalds, enquanto a irmã, Andreza, cuida das crianças. Andreza já sonhou com uma vida melhor, mas estudar é caro e o dinheiro que ganha ela investe nos filhos. O incêndio levou algumas esperanças: “É pegar umas madeiras daqui e outras dali e levantar, porque não temos como sair daqui, a gente vai para onde? Não tem como ficar na rua com as crianças”, diz Andreza. A blusa branca de Dalvânia se destaca em meio às cinzas. Para ela, é como perder o chão. Já Jessica acredita que a perda é capaz de lhe dar forças para lutar e perceber que nem tudo está perdido. Segundo ela, é preciso lutar até o final. GUILHERME MACHADO ALLONSO SANTOS


4. Drama

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O renascer das cinzas Famílias que perderam suas casas para o fogo em 2013 passam novamente pela mesma tragédia e ajudam a comunidade a se reerguer

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ma madrugada quente em meio ao inverno congelante da capital gaúcha. São 6h, com o sol aparecendo e moldando o novo amanhecer. O dia, que poderia ter sido lindo, está marcado por fogo e cinzas, desde quando os moradores da Vila Liberdade ouviram gritos de que muitas casas estavam incendiadas.“Este é um sentimento que a gente não quer para os outros, é horrível”, exclama Fabiana, de 38 anos, ao se deparar com a cena de diversas residências queimadas na madrugada do dia 17 de agosto. Em 2013, um grande incêndio também atingiu a Vila Liberdade que,na época,ficava à margem da BR 290, também conhecida como freeway - deixando três centenas de famílias desabrigadas. Os atingidos pelo fogo foram transferidos para a atual localização, ao lado da Arena do Grêmio. Fabiana e sua família, que sempre moraram na vila, perderam a maioria de seus pertences em 2013 e conseguiram se reerguer através de doações, auxílio de associações e a ajuda da própria comunidade. No mais recente incêndio, sua família não foi atingida, porém, segundo ela, a sensação de passar por isso de novo é apavorante. “Minha mãe mora aqui, ao lado. Quando os vizinhos gritaram que estava tendo fogo, eu vim correndo, trêmula e apavorada, para verificar a minha mãe e ajudar quem precisa”. Fabiana conta que no primeiro incêndio, a sua mãe,Vera Regina, de 57 anos, ficou em estado de choque,paralisada dentro de casa. Teve que tirá-la, junto de seus filhos e de seu ex-marido. Já nesta segunda vez, além de se preocupar com a família e com os seus pertences, ela pegou as crianças e correu para a casa da mãe. Na comunidade, os moradores se ajudam e acolhem uns aos outros. Uma das famílias atingidas pelo fogo só conseguiu resgatar as crianças e os documentos. Como o incêndio havia sido na madrugada de sexta para sábado, as famílias tiveram que dormir e se realocar em outros lugares, aguardando até a segunda-feira pelo auxílio do Centros de Referência de Assistência Social (CRAS ).Com isso,muitos ficaram nas casas dos vizinhos. Durante a conversa, em meio a risadas, Ederson da Silva

Nova tragédia deixa seus rastros no Bairro Farrapos e mobiliza a comunidade

- mais conhecido como Sodré - conta como saíram do antigo local com carroças para transportar seus pertences às novas casas e contar histórias dos namorados de Fabiana. Fabiana, mãe de cinco filhos, conta que antigamente trabalhava em uma lavanderia na Avenida Nonoai, tendo que tomar dois ônibus para chegar ao local. Hoje, ela está desempregada e conta com os serviços de “bico” e reciclagem que o marido faz e também com o auxílio bolsa-família. Porém, segundo ela, com o novo governo está cada vez mais difícil arrumar o auxílio. “Meu filho de 14 anos não quer ir para a aula, dificultando o recebimento do programa bolsa-família. Se as crianças soubessem como é viver na rua elas dariam

real valor para a família”. No meio da conversa, uma vizinha da família chegou ao lado de Fabiana e ofereceu ajuda com a lavagem das roupas, caso necessário. Assim que a vizinha saiu Fabiana contou que a comunidade é muito unida com todos sempre se ajudando. Quando a família ganha doações, por exemplo, sempre que podem eles dividem.

UM GRITO POR AJUDA

“Nós somos pobres. Se não formos nós mesmos,ninguém faz pela gente”, declara Vera Regina, com um ar humilde em seu olhar, ao fazer nebulização com o seu “aparelho” improvisado: uma garrafinha de água.Vera tem diabetes, pressão e colesterol altos e asma. Da última vez em que ela

adoeceu, a família ligou diversas vezes para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e não obteve resposta. Contatou o posto de saúde da região, que também ligou para o SAMU e ele não aparecia. Fabiana conta que, pelos diversos trotes feitos, o serviço não acreditou quando ligaram para falar de Vera. Após muitas tentativas o atendimento chegou e a levou para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Lá, foi constatado que ela poderia sofrer um infarto se não cuidasse direito de sua saúde. São pequenos detalhes, como o fato de o atendimento se disponibilizar e ir prontamente ajudar a população, que acabam fazendo toda a diferença na saúde das pessoas. Neste caso, a demora acabou causando mais problemas

para Vera. Seu neto Eduardo, de 22 anos, vivia sozinho do outro lado da vila, porém, com os problemas de saúde da avó, passou a morar com ela para ajudá-la nos remédios e no dia a dia. “Ela é bem comportada e toma os remédios direitinho”. No quarto de Vera há uma planilha pendurada dentro de um saquinho plástico com os horários de cada remédio e a dose certa. Como nem todos remédios ela consegue com o posto de saúde, acaba tendo que comprá-los, o que custa caro. Apesar de tantas dificuldades, Vera preserva um sorriso no rosto e costuma contar histórias com um ar de esperança. CAROL STEQUES MARIA EDUARDA STOLTING


Drama .5

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Solidariedade se renova em momentos de crise Vítimas do fogo, pela segunda vez, se socorrem como podem

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m incêndio ocorreu no Bairro Farrapos em Porto Alegre no último dia 17 de Agosto. Segundo relato dos moradores, o fogo teria começado em uma das casas localizadas na Vila liberdade. A expansão das chamas se deu devido à pequena distância entre as casas, que não chegam a ter um metro entre elas. Especula-se que o acidente tenha sido causado por alguém que estava alcoolizado e fumando dentro de casa. Seis famílias foram atingidas pelo fogo, que chegou à rede elétrica. O acidente só não foi maior pela agilidade do Corpo de Bombeiros, diferentemente do ocorrido em 2013, quando mais de 300 famílias foram atingidas. Na época, além do atraso dos bombeiros, os caminhões estavam sem água para reduzir os danos, pois, no mesmo dia havia acontecido o incidente na Boate Kiss, em Santa Maria, e toda a atenção estava voltada para a terrível tragédia. Em situações como essas, os moradores auxiliam-se da maneira que podem. Rou-

Cenário do incêndio que atingiu seis casas e mobilizou moradores da Vila Liberdade pas, materiais para arrumar algumas casas que foram queimadas parcialmente, eletrodomésticos usados: toda doação é bem-vinda, já que as pessoas atingidas perderam tudo. Estima-se que em 2018 o número de habitantes de Porto Alegre era de 1.479.101 pessoas. Cerca de 17 mil deles vivem no Bairro Farrapos, na Zona Norte. O bairro constitui uma comunidade bem diversificada com residências construídas em alvenaria e outras de materiais como compensados de madeiras, toldos e lonas.

Márcia e Thainá, que ainda sofrem as consequências do incêndio anterior, quase tiveram a casa atingida novamente

As casas com materiais mais frágeis são resultado do primeiro incêndio, que ocorreu em 27 de janeiro de 2013 e foram realocadas para esse novo espaço. Nos úlitmos seis anos, seus moradores vivem um dia após o outro e enfrentam as adversidades dessa situação. O incêndio repetido no dia 17 de agosto de 2019, embora menor que o de 2013, voltou a desabrigar seis dessas famílias, que sobreviveram apenas com as roupas que estavam vestindo. JOSI SKIERESINSKI JESSICA MONTANHA

Helena e Andriele doaram eletrodomésticos e ajudam a comunidade como podem

As líderes que apóiam a comunidade Sábado, 17 de agosto, sete horas. Claci Cecato, secretária da Associação dos Moradores da Vila Liberdade, recebe uma ligação. Não imagina que o triste acontecimento de seis anos antes ocorria novamente: um incêndio ao raiar do dia atingiu seis casas e desalojou famílias. Os bombeiros chegaram rápido, impediram as chamas de se propagarem para as demais moradias e, após apagar o fogo, realizaram o rescaldo. Das casas afetadas, quatro foram totalmente destruídas. Ao chegar ao local, Claci identificou os moradores atingidos e fez o levantamento para que a assistência pudesse ajudá-los. Ao contatar os apoios governamentais (Prefeitura de Porto Alegre, Defesa Civil,

FASC, CRAS), Claci recebeu respostas pouco animadoras. Todos os órgãos responderam que não havia auxílio imediato. O aluguel social foi oferecido como opção, pois não há material disponível para a construção de novas casas nem mesmo para as chamadas casas ecológicas. A líder comunitária, que atua nessa função desde 2008, desanimou. Após tanta luta, o acidente se repetira e a falta de ajuda também. Sandra, moradora há 20 anos de um bairro que se transformou depois de um grave incêndio e da construção da Arena do Grêmio, olha para o que sobrou dos lares incendiados com apreensão. A líder comunitária, que voltou a estudar para melhor

Claci e Sandra se empenham por melhor qualidade de vida para os vizinhos do Bairro Farrapos entender seu entorno e suas consequências, afirma que era questão de tempo para o incidente ocorrer novamente. As promessas de ajuda nunca

cumpridas e nenhum retorno das solicitações da comunidade fizeram da pedagoga e diretora da creche Educação Infantil Vitória, Sandra Ferrei-

ra, uma pessoa persistente. Há 12 anos como líder comunitária, não desiste do bairro que vê, dia a dia, mais desamparado. Há alguns anos, a força da comunidade residia em 29 associações de moradores que se reuniam toda semana e reivindicavam por melhorias. Eram unidos. Com o passar do tempo, as solicitações se tornaram cada vez mais distantes de serem atendidas. Políticas externas e interesses públicos começaram a desestabilizar as associações. A união aos poucos se dissolveu. Sandra recorda com saudade dessa época, um período que se acreditava que o bairro teria um futuro melhor. FERNANDA ROMÃO JÉSSICA MONTANHA


6. Profissão

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Trabalhar para viver Comércio ganha força nos arredores da Arena do Grêmio

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distância entre Porto Alegre e a cidade de São Sebastião do Caí é de 70 quilômetros. É esse o trajeto que Anderson Dornelles, de 41 anos, percorre todos os dias para poder trabalhar. Sem oportunidades de emprego na área da construção civil, decidiu optar pelo comércio ambulante no Bairro Farrapos. “Surgiu essa possibilidade na minha vida, pela falta de emprego no que eu realmente me sentia bem trabalhando. Mas posso dizer que sou feliz no que faço, me descobri nesta função”, diz. Batata doce, mandioca, laranja e bergamota são os produtos que costuma vender pela região. “A melhor bergamota que existe é a do Caí”, garante. Dornelles ressalta que costuma trabalhar todo o dia sem parar, com o objetivo de lucrar cada vez mais. “Não dá para ficar parado, mas o único momento que tento me afastar um pouco é em dias de jogos. É muita confusão, acaba atrapalhando no nosso serviço”. Assim como Dornelles, Rubens Costiti precisa se locomover por bons quilômetros para chegar ao bairro Farrapos a trabalho. Morador de Gravataí e pai de seis filhos, ele destaca que todo o sacrifício vale a pena para poder sustentar a sua família. “Costumo vir sempre aqui e fico todo o dia transitando pela região, das 9 até umas 18 horas, dependendo do dia. Na verdade não venho para cá pensando na hora em que vou terminar de trabalhar. Meu objetivo aqui é sempre conseguir vender algum produto para não voltar para casa de mãos abanando”, conta. Aos 53 anos, Costiti, além de vender as suas panelas e lençóis, gosta de se relacionar com as pessoas que compram os seus produtos. “Fico orgulhoso que a maioria valoriza muito o meu trabalho, vê que sou trabalhador e que gosto de estar sempre colaborando e fazendo bem o meu serviço. Uma vez uma família me convidou até para almoçar, tomar um café. Isso é muito gratificante”, declara. Apesar de histórias como essa, Costiti lamenta que existam também alguns casos diferentes de pessoas que não respeitaram o seu trabalho por não aceitarem pessoas de fora da região no seu ambiente.

Bairro Farrapos. Aos 64 anos, ele trabalha em várias funções na Lancheria da Dora, localizada na frente da Arena do Grêmio. Lino destaca que gosta de acordar cedo para trabalhar e conseguir se sustentar. “Em dias de jogos ou eventos, principalmente, os serviços começam cedo. Inicialmente faço um galeto para o pessoal que vem almoçar na lancheria. Depois, mais para perto do horário da

partida, ajudo como guardador de carro e também cuido da utilização dos banheiros químicos que são colocados ao redor do local”, explica. Lino faz questão de mostrar o quanto é agradecido pelas oportunidades que lhe são dadas no local onde trabalha. “Sempre fui muito bem recebido aqui, durante a semana também consigo vários trabalhos como pedreiro, lavando, pintando e

realizando qualquer tarefa que seja necessário”, relata. Morador do bairro Farrapos, especificamente na Rua Frederico Mentz, Lino lamenta que o momento mais complicado do seu dia seja a hora de ir para sua residência. “Dá aquela dor no coração, ir para casa. Qualquer chuva que tem aqui na região, alaga tudo, é horrível. Muitas vezes não consigo nem comer, não tem como

Anderson percorre 70 quilômetros todos os dias para poder trabalhar no Bairro Farrapos

O “FAZ TUDO”

Carlos Alberto Lino é conhecido como o “faz tudo” do

Rubens Costiti mora em Gravataí e trabalha na região para poder sustentar seus seis filhos

entrar. Já emagreci 20 quilos por causa disso”, conta.

DA GARAGEM PARA A ARENA

O estádio do Grêmio serviu de incentivo para muitas pessoas criarem os seus comércios pela região do bairro Farrapos. É o caso da família Lacerda, proprietária do Bar do Antônio. O local foi criado na garagem da sua residência e tem tido muito movimento com o passar dos anos. Para Amanda Lacerda, 23 anos, além do lucro, o comércio administrado pela família traz também como objetivo incentivar uma boa relação entre as pessoas e fazer com que possam todos compartilhar os momentos marcantes que o futebol proporciona. “Existem muitas pessoas, crianças principalmente, que não têm condições de ir a um jogo de futebol e não possuem televisão nas suas casas, aqui na região. Nos gratifica poder recebê-los aqui e ver a felicidade de todos ao assistir uma partida e sentir o clima dos arredores do estádio”, comenta. Estudante de Contábeis, Amanda destaca que, quando tem um grande evento no estádio, as pessoas costumam chegar de manhã cedo no bar. “É interessante que muitos acabam nem entrando nos jogos e ficam aqui para assistir às partidas, bebendo e conversando com os demais”. A menos de uma quadra do Bar do Antônio, encontra-se a Lan House do Léco, Lancheria e Serviços Gráficos. Alex dos Santos, proprietário, mora há 25 anos no local e se orgulha ao ver o quanto o seu comércio cresceu com o tempo.“Inicialmente isso aqui era apenas um quadrado dois por dois, agora está esse lugar grande. Fui construindo tudo com o tempo, aos poucos, sempre pensando no melhor. Trabalhar para mim mesmo foi a melhor decisão que tomei na minha vida”, comenta. Santos destaca que tudo começou com uma locadora de videogames. Após atingir um lucro esperado, conseguiu comprar alguns computadores para criar a Lan House. Nesse mesmo período, a Arena começou a ser construída. “Foi aí que o negócio cresceu. Os trabalhadores que construíam o estádio vinham sempre aqui utilizar o WiFi e computadores para falar com suas famílias, já que moravam em outros estados”, conta. JUAN GOMEZ PETRA KARENINA


Profissão .7

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Lanchonete de geração para geração Local é conhecido por receber ídolos gremistas e membros da imprensa nacional

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decoração com azul, preto e branco é muito presente na Lancheria da Dora, tanto no seu interior quanto no exterior. As mesas, na entrada do ambiente, já esperam os torcedores que logo chegarão ao local para fazer o famoso “aquece” antes da partida. Operando há mais de 25 anos, o bar leva adiante o nome da avó de Diego Xavier, que antes mesmo da construção da Arena vendia frango assado durante os fins de semana e feriados no local. O espaço que é, na verdade, uma garagem adaptada

para virar uma lanchonete, possui um cenário temático para gremistas, com placas provocativas ao rival, fotos com ídolos do clube, objetos originais do antigo Estádio Olímpico e pôsteres dos títulos do tricolor. Tudo isso cria uma atmosfera favorável aos torcedores, tanto do tricolor quanto de outros clubes, que frequentam o ambiente. “Alguns torcedores de outros clubes também vêm aqui, principalmente do Palmeiras, Atlético-MG, Flamengo, entre outros” destaca o comerciante. A lancheria funciona todos os dias, e é notável a diferença positiva de público quando acontecem eventos na Arena, como jogos ou shows. Durante a semana

o bar funciona para o Bairro Farrapos e motoristas de caminhão que passam pela Avenida Paulo Leopoldo Beltrano. Diego escolhe usar preços mais acessíveis para este público. A medida se dá devido à crise, pois o poder econômico das pessoas acaba diminuindo, e por isso precisa se adaptar à situação. Um bom momento do bar foi durante a Copa América, que vendeu mais do que o normal, principalmente para uruguaios. Diego diz que os torcedores consumiam muito e não se preocupavam em gastar, diferente da torcida brasileira. “Eu até torci para eles irem mais longe na competição para eu vender mais”, brinca o comerciante.

Diego exibe, com orgulho, o seu patrimônio com a temática do clube do coração que o ajuda no negócio da família

O local também é usado para encontros de personalidades importantes da história gremista e já foi aproveitado pela imprensa nacional. O ex-zagueiro Hugo de León e o vice-presidente de futebol do Grêmio, Cláudio Oderich, são nomes que já frequentaram o bar. O dirigente inclusive aluga o segundo andar da lanchonete para se reunir com amigos antes das partidas. Chama a atenção o fato de ser necessário usar uma pulseira especial para acessar o local quando essas reuniões acontecem. Durante a Copa América, a lanchonete recebeu os canais Fox Sports e ESPN para que os jornalistas realizassem as transmissões

das partidas que aconteceram em Porto Alegre graças à bela vista que podemos ter do estádio na varanda do segundo e terceiro andares. Isso foi registrado e o comerciante mostra com orgulho as imagens dos profissionais durante as gravações. A Lancheria da Dora guarda a história dos avós de Diego, presta uma homenagem ao clube que, indiretamente, o ajuda com as contas e possui um importante valor para todos os apreciadores do futebol que frequentam a Arena do Grêmio. É um importante ponto de encontro dos torcedores antes de entrar no estádio. FELIPPE JOBIM GUILHERME GONÇALVES


8. Solidariedade

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Mãos à obra: esforço e empenho Famílias constroem suas próprias casas em busca de moradias mais dignas

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egligência da prefeitura no cumprimento de políticas públicas de habitação. Goteiras em dias de chuva. Medo dos recorrentes incêndios que vêm ocorrendo na região nos últimos anos. Desejo de viver com mais conforto e dignidade. Esses são alguns dos fatores que levam moradores do bairro Vila Farrapos, em Porto Alegre, a colocar a mão na massa para reformar e construir moradias para si mesmo e seus familiares. A equipe do Enfoque conversou com algumas destas pessoas na manhã do dia 17 de agosto para tentar compreender melhor esse fato. Na Rua 698 acesso C, um homem trabalhando sozinho na calçada desperta curiosidade. Ele vira cimento e reboca as paredes de uma casa. Antelmo, de 31 anos, está reformando a casa da cunhada Mônica, que cria sozinha os dois filhos, Ana Clara e Cristian Samuel. A casa antiga de madeira tinha vazamentos em dias chuvosos, além da preocupação com a fragilidade da moradia em caso de um possível incêndio. Já em fase final da obra, detalhes como o acabamento de pisos e janelas chamam a atenção, dando a entender para quem olha que Antelmo já teria feito diversas obras como aquela. Engano. Ele assegura que essa é a primeira obra que está fazendo e que aprendeu tudo o que sabe sobre construção assistindo a vídeos na internet. Antelmo, que mora com a esposa Jamaica e os dois filhos, é vizinho da cunhada Mônica e da sogra Simone, que tem 46 anos e é diarista. Simone mostrou à nossa equipe que o incêndio que aconteceu naquela manhã não atingiu seu lar graças à casa de material da vizinha, que barrou o fogo. Segundo ela, o objetivo da família é reforçar as casas de madeira com alvenaria para evitar novos sustos. A renda extra para comprar cimento e tijolos é obtida através do esforço de todos os parentes trabalhando fora de casa, além do recebimento do auxílio bolsa família. Simone reitera que a busca de uma resolução para a precariedade das casas de madeira enfileiradas em sua rua é uma responsabilidade da prefeitura da capital gaúcha, que

Gilberto trabalha sozinho na construção da casa da cunhada. Ele tem duas reformas para familiares o aguardando

Antelmo constrói sua primeira casa após buscar conhecimento sobre obras na internet conforme ela, não aparece há bastante tempo na região.“Nem correspondência eu recebo aqui. Tenho que ir buscar minhas correspondências na casa da minha irmã, que mora longe, na Rua Frederico Mentz”, relata. Na mesma rua, um homem ostentando um vasto bigode também trabalha em uma obra. Gilberto, de 55 anos, derrubou a frágil casa de madeira em que mora a sua cunhada e os dois

filhos dela. A rapidez do trabalho impressiona, ainda mais considerando se tratar de um homem de meia idade que trabalha sozinho. Em 20 dias, já passou da derrubada da antiga moradia para a fase final do novo lar de alvenaria. Ele conta que já tem mais duas reformas aguardando na fila, uma de outra cunhada e a segunda de um sobrinho. Ao contrário de Antelmo, Gilberto é experiente no ramo de

pedreiro. “Já fiz de tudo um pouco na vida”, afirma. “Vocês viram a notícia que saiu essa semana sobre os inadimplentes dos bairros nobres? Pra vocês verem que na periferia também têm pessoas que são bem informadas”. Everaldo, de 48 anos e residente do bairro há três décadas, se refere aos dados divulgados pela Receita Municipal de Porto Alegre no dia 14 de agosto. O órgão expôs

que quase 9 mil imóveis de alto padrão estão com o pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) atrasado, somando dívida de mais de R$ 100 milhões. Segundo a prefeitura, os proprietários desses imóveis são pessoas físicas e jurídicas com elevada capacidade contributiva, mas que optaram pelo não pagamento do tributo. Everaldo, que trabalha na área de construção civil, reclama que paga os seus impostos em dia, mas não vê o retorno em melhorias para a comunidade. “Os moradores precisam de saneamento básico e fiação de luz de qualidade. Não nos importamos de pagar por esses serviços, nós queremos pagar, mas a prefeitura precisa vir aqui e olhar a nossa situação”, desabafa. Durante a caminhada pelo Bairro Farrapos naquela manhã, foi possível observar diversas pessoas ocupando o sábado de sol em melhorias para os lares da comunidade. É a rotina de quem tenta superar as falhas e omissões do poder público em busca de uma vida mais digna. PAULO H. ALBANO JOSIANNE MOSER


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Anônimos da arte José e Carlos vivem no mesmo bairro e sem se conhecer têm muito em comum: não se dizem artistas, mas nas suas horas vagas se dedicam à música e aos poemas

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casa de Carlos Alberto, de 46 anos, chama a atenção de quem passa, diante das outras do beco onde mora sozinho: logo na porta de entrada há um poema au-

toral, “Que dia é hoje”: “Não quero saber que dia é hoje/ As horas, pouco importa/ Quero perder a noção do tempo /Para que o amor em meu coração/ Seja para sempre”. Com um jeito tímido e gestos simples, explica que sua inspiração é no dia a dia, reparando como as pessoas não se dão o tempo necessário para admirar as coisas simples e como vivemos em uma correria. Carlos se diz “mais ou menos um poeta”. Ele

usa os poemas como um jeito de desestressar e se expressar, pois trabalha em vários “bicos” e chega tarde em casa. José Manoel Teixeira, de 77 anos, é aposentado e pensionista, além de gerar uma renda extra com reciclagem. Mora há 30 anos na Vila Farrapos, é viúvo há 18 anos e mora com suas duas filhas, Silvia e Marcia. Toca dois instrumentos, o acordeon, que aprendeu com um vizinho e a

“viola”, com seu irmão Pedro, o responsável por instigar a música na vida de José. Mas o que ele gosta mesmo é de cantar. Sua relação com a música se dá mais na igreja que freqüenta. “Sinto a presença de Deus quando canto”. De outros gêneros musicais, não gosta muito. O seu sorriso fácil não demonstra o quanto José já trabalhou, desde plantações de fumo até em obras. Conta que encontrou na igreja uma

forma de ter esperança e se afastar de brigas e das bebidas. José não consegue nem pensar em “ficar de várzea”, sendo muito ativo e sempre à procura de algo para fazer. José e Carlos não se conhecem, mas têm em comum a vida simples, levada com arte, para alegrar as pessoas ao seu redor. CAROLINA SANTOS BRUNA SCHLISTING

Existe arte no Bairro Farrapos. Enquanto Carlos Alberto decora sua casa com poesias, José Manoel toca viola ao lado do irmão Pedro

Catarina tenta ver o lado bom da vida Sentada no banco de uma pequena praça, segurando sua muleta e perante a guarda de seus dois cachorros. É assim que Catarina Mazurckevitz, aposentada de 74 anos, toma sol na manhã dos sábados de inverno na Vila Farrapos. Sua mão direita treme sem parar há cinco meses. “É por causa do remédio para pressão que o médico me receitou”. A perna direita não funciona bem. “Uso uma prótese, porque que eu tenho reumatismo”. Devido a essas condições, o direito de ir e vir não é algo simples para ela. Moradora do bairro há mais de 50 anos, atualmente Catarina se sente presa ao local. “Não consigo subir no ônibus, então infelizmente fico só por aqui”. A linha de transporte público B25 é a que passa mais próximo de sua casa, localizada na

Quadra 80. Todos os veículos dessa rota possuem aparelhagem de acessibilidade para cadeiras de rodas, mas a ex-empregada doméstica nunca teve uma para usar. “A igreja aqui perto estava doando, mas era estragada. Assim não adianta”, afirma, enquanto passa a mão em “Neguinho”, o menor de seus cachorros. As pessoas mais próximas em sua vida são os vizinhos. Sobre isso, ela conta: “Descobri que estava com problema de pressão por causa do Seu Erto, quando passei mal e ele me levou na UPA de Canoas”. E completa, com convicção: “Ele me leva no Centro todo mês para pegar os remédios. Quando eu me for, vou deixar minha casa pra ele”. A família, que já foi grande, não é algo presente em seu cotidia-

Aposentada toma sol ao lado de “Neguinho” no. “Só tenho uma afilhada, mas diz que não tem tempo para vir aqui”, relata. Nascida em Tucunduva, município gaúcho que pertence a cidade de Bossoroca, Cata-

rina nunca conheceu a mãe, que morreu durante o parto. Quanto ao pai, ela conta sem detalhes que foi assassinado quando ela era jovem. Dentro de sua casa de dois

cômodos, é possível notar a religiosidade em todas as partes, com imagens e objetos, que ela cuida, para Lagui, cachorro de porte médio que vive com ela, não bagunçar nada. Ela leva o catolicismo inclusive em seu nome, já que foi escolhido por seu nascimento ser em 29 de abril, dia de Santa Catarina de Sena. Mas sua relação com a religião também possui partes polêmicas. “O único homem pelo qual eu me apaixonei foi um padre”, revela. Para ela, a coisa mais importante que aprendeu na igreja foi o afeto. “Nunca deixo de ajudar ninguém. Apesar de já terem me feito mal algumas vezes, procuro não guardar ressentimentos”, conclui. ALESSANDRO SASSO JULIA TOMAZI


10. Inclusão

ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS | PORTO ALEGRE (RS) | AGOSTO / SETEMBRO DE 2019

Projeto beneficente ampara crianças e adolescentes Lazer e convívio social, opções proporcionadas pelo futebol

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á sete anos, através da Associação Beneficente Cultural Esportiva e Recreativa do Serviço Social da Indústria (SESI/RS) e da Prefeitura de Porto Alegre, o projeto comunitário “Em cada campo uma escolinha” acolhe todos os sábados pela manhã crianças dos bairros Farrapos, Humaitá e Navegantes para treinos e jogos em campeonatos da cidade. A iniciativa é comandada pelos aposentados Nilo (Jacaré) e Valdomiro Alves, irmãos de 65 e 68 anos, respectivamente, Paulo Renato da Rosa, de 63 anos e pelo conselheiro tutelar Jean Marchi, de 31. O grupo trabalha com garotos em situação de vulnerabilidade social, busca dar uma opção de lazer e mostrar que há atividades que podem ocorrer dentro da comunidade, permitindo o convívio com seus amigos fora de suas casas. Assim, acabam proporcionando que as famílias deixem seus filhos em um local seguro para que possam trabalhar. Para crianças e adolescentes de oito a 15 anos, o projeto acontece na Praça do Sesi, em um dos poucos campos de futebol

Jovens divertem-se nos treinos do União Vila Farrapos que permaneceram na região após o grande desenvolvimento do local. “Tinha mais de 20 campos de futebol, mas hoje são apenas três. Um aqui, um no Humaitá e o outro é o da Vila dos Ferroviários”, conta Paulo Renato. Com 60 alunos cadastrados, todos precisam comprovar que frequentam a escola para treinar e jogar pelo União Vila Farrapos, criado em 2009. Paulo Renato da Rosa já desenvolveu ação semelhante na Vila dos Ferroviários, com o Garratt Futebol Clube. Lá, acompanhou de perto um jovem que

sonhava em ser jogador de futebol: Edenilson Andrade dos Santos, atualmente volante do Sport Club Internacional. Paulo lembra que depois da fama o jogador apareceu uma única vez na comunidade, realizando entrevista para a TV Inter, mas que ainda espera uma visita do atleta. O conselheiro tutelar Jean Marchi lembra que quando tinha nove anos participou do mesmo projeto do aposentado e ao completar 16 anos começou a ajudá-lo. Marchi diz que essa não é a única ação que engloba o

futebol na região, mas que é a mais democrática, pois todas as crianças do bairro podem participar. Alguns alunos do trabalho social disputam descalços os treinos, mas mesmo nessa adversidade sentem-se à vontade e alegres com os amigos e os professores. Os organizadores falam sobre a relação do Grêmio com a comunidade. Todas as segundas-feiras, um professor vinculado ao clube vai até o bairro e leva adolescentes de 14 e 15 anos que não estejam em horário de escola para treinar no Centro de

Treinamento Presidente Luiz Carvalho, local em que sua equipe profissional desenvolve atividades, no projeto chamado de “CT da Gurizada”. Com a construção da Arena, os guris ficaram mais interessados em jogar futebol e se imaginam fazendo muitos gols pela equipe. Para o gremista Josué Dias Sena, de 13 anos, do sexto ano, o projeto é novidade: tinha medo de se machucar, mas hoje participa, pois gosta de jogar futebol e tem muitos amigos com ele no campo. O garoto sonha em ser jogador e diz “que não é bom, mas também não é ruim”. Para Paulo Renato, o menino joga muito e, se bem orientado, pode ter futuro no esporte. Já Phelipe José Alves dos Santos, de 11 anos, do quarto ano, entrou em maio no projeto. Diz que foi levado por amigos que participavam. Fala que o projeto é “tri”, e que começou a treinar por querer jogar no Grêmio. Paulo Renato da Rosa e Jean Marchi, lembram que o Instituto Geração Tricolor (IGT) e o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) também desempenha um trabalho com as comunidades do entorno da Arena. DENILSON FLORES LUCAS BRAGA

Oportunidade de renda familiar Depois que a Arena do Grêmio foi inaugurada no Bairro Farrapos, a vida de muitos moradores da região mudou bastante. É o caso das irmãs Leandra e Eliandra e de sua mãe, Rita. Elas pensaram numa maneira de aumentar um pouco a renda da casa. As três moram numa casa simples em uma das ruas na frente do estádio. Leandra e Eliandra são gêmeas, professoras em uma creche no Humaitá, bairro vizinho. A mãe é dona de casa e o pai, já falecido, deixou uma aposentadoria pequena para a esposa. Segundo Leandra, a família não vivia mal financeiramente, mas estava sempre no limite. “A gente pa-

gava as contas e, na verdade, ainda vivemos pra pagar. Mas tivemos que aproveitar a vinda do estádio do Grêmio pra cá e tentar de alguma maneira aumentar um pouco nossa renda”, diz Leandra. Então, foi aproveitada a entrada da casa, como estacionamento para motos, e mais alguns espaços na rua, para veículos. Em combinação com outros vizinhos que tiveram a mesma ideia, definiram uma área que seria responsabilidade delas e, assim, começaram a cuidar de veículos em jogos e eventos na Arena. Para estacionar as motos, que ficam dentro da casa e na calçada, o preço é de R$ 10. Já

para os veículos, R$ 20. Rita diz que em cada jogo ou evento na Arena a família consegue receber umas 20 motocicletas, e uns sete ou oito carros. Em cada dia de jogo ou evento são cerca de R$ 200 em motos e mais R$ 100 ou R$ 120 em automóveis. Como a média de jogos é de quatro por mês, a família consegue aumentar a renda em R$ 1.200. “Isso nos dá uma ajuda inestimável nas contas, no supermercado e ainda podemos fazer uma pequena poupança para comprar algo para a casa, se preciso for”, ressalta Eliandra. Novos negócios surgem desde a instalação do estádio

LELO VALDUGA ALLONSO SANTOS


Inclusão .11

ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS | PORTO ALEGRE (RS) | AGOSTO / SETEMBRO DE 2019

Muito mais que apenas futebol Relação dos moradores com a Arena gera iniciativas de valorização do esporte

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gosto pelo futebol entre os adolescentes moradores do Bairro Farrapos se faz presente ao andarem pelas ruas com camisetas de times esportivos e ao exibirem suas habilidades com a bola. A Arena do Grêmio alimenta os sonhos. Vestidos com camisetas do Grêmio e bermudas esportivas, os adolescentes Sandro Silva, de 14 anos, e Marco Antônio Carvalho, de 17, são dois aspirantes a atletas profissionais que veem o futebol como uma maneira de se divertir e reunir os amigos para curtir o tempo juntos. Jogadores das posições de lateral esquerda e volante, Sandro e Marco Antônio tiveram a oportunidade de praticar futebol no Centro de Treinamento do Grêmio

há alguns meses. Lá, treinavam com amigos e, quando tinham a chance, conseguiam ver os jogadores do time profissional e tentavam arriscar algumas fotos com os seus ídolos. Porém, o sonho teve de ser interrompido devido a mudanças no horário escolar dos garotos e, assim, o futebol voltou a ser praticado apenas na praça do bairro. Os jovens da região conseguem se manter ativos com ajuda da Fundação Fé e Alegria do Brasil, em atividades que estimulam o desenvolvimento com tecnologia, artesanato, agricultura, cinema e esportivo. De acordo com a coordenadora de Serviço de Convivência da fundação, Sabrina Santos, as crianças participam do programa de Fortalecimento de Víncu-

los, em que desenvolvem atividades focadas na convivência, contribuindo no fortalecimento de vínculos entre os jovens, suas famílias e a comunidade. Este ano, os alunos participaram do Encontro Sul-Americano de Mediadores – Futebol Callejero, evento fundado pelo Movimento de Futebol Callejero, Fundacion Futbol e Desarrollo e Programa Esporte Integral da Unisinos, com apoio do Fundo Interamericano para o Desenvolvimento. O evento reuniu 90 jovens, de 18 a 25 anos, todos vinculados a oito organizações sociais da América do Sul, que fazem parte da organização da modalidade. A iniciativa promove a liderança e a cultura de paz. Os jovens também têm con-

tato com as disciplinas de Direitos Humanos, Esporte e Cidadania, Feminismo e Mediação para a Paz. Sandro e Marco Antônio ficaram muito empolgados com o exercício, pois foi a oportunidade de desfrutarem do futebol com outros times e adolescentes de maneira afável e sem competitividade. Segundo os rapazes, a maioria dos moradores do bairro gosta de jogar bola e supera a rivalidade dos times locais. Para eles, deveria haver mais incentivo para as meninas praticarem o esporte. Os jovens de lá são incentivados desde crianças a praticar o esporte na escola União Vila Farrapos, com o professor e ex-atleta Jean Marchi, no projeto da prefeitura de Porto Alegre “Em cada campo uma

escolinha”. O profissional voluntário ensina crianças dos oito aos 15 anos para se tornarem promessas no futuro do esporte e, de acordo com Jean, os campeonatos internacionais que a Arena recebe motivam a garotada e incentivam a sua evolução esportiva. As turmas praticam futebol nos espaços públicos do próprio bairro – um de futebol de campo e outro de futebol de salão - onde as crianças realizam exercícios de chute a gol, passes entre colegas, jogadas e dribles. Para o ex-atleta, o surgimento do novo estádio do Grêmio dá esperança para o crescimento dos adolescentes dentro do esporte, para que no futuro sigam a carreira. LUIZA HEINZELMANN SOARES ALANA SCHNEIDER


ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS

PORTO ALEGRE (RS) AGOSTO / SETEMBRO DE 2019

EDIÇÃO

4

Ensaio

Comunidades esquecidas JULIA TOMAZI

ALANA SCHNEIDER

Moradores do Bairro Farrapos que vivem próximos da Arena do Grêmio encaram a ausência de políticas públicas e têm de encontrar soluções próprias e solidárias para problemas que se acumulam

PETRA KARENINA

MARIA EDUARDA STOLTING

JOSIANNE MOSER

MARIA EDUARDA STOLTING

JOSIANNE MOSER


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