Enfoque Bairro Farrapos 5

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ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS

PORTO ALEGRE / RS SETEMBRO / OUTUBRO DE 2019

EDIÇÃO

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PETRA KARENINA

UM DIA DE CADA VEZ MARIA EDUARDA STOLTING

JOSIANNE MOSER

JULIA TOMAZI

LUTA CONSTANTE CONTRA A COMPULSÃO COMPLETA 10 ANOS NA COMUNIDADE PÁGINA 9

QUEM AMA CUIDA Moradores se dedicam aos animais. Página 2

SONHOS DE INFÂNCIA As inspirações das crianças para o futuro. Página 3

FÉ SOLIDÁRIA

Mãe Cinda de Iansã ajuda moradores em seu terreiro. Página 4


2. Opinião / Comunidade

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O amor pelos animais Jorge Luiz vive na companhia de Bob, seu vira-lata favorito, e seus outros 23 cachorros companheiros

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nimais de estimação circulam pelas esquinas, ruas, becos e vielas do Bairro Farrapos, brincando com as crianças, correndo atrás de suas bicicletas, no colo de seus donos ou nos pés dos moradores da comunidade. “O Jorge é quem cuida da maioria desses cachorros”, informa uma moradora, apontando para uma casa, na qual o portão tem um acesso próprio para os animais. “Às vezes eu fico sem comer para poder comprar a ração deles”, diz Jorge Luiz, de 66 anos, que abriga 23 cachorros. “Eles são herança da minha esposa Inês Lima, que juntava os cachorros na rua e trazia para casa, desde a década de 1990”. Viúvo há quatro anos, desde então ele continua a tradição de sua mulher: cuidar dos animais abandonados.

Jorge conta que um de seus cachorros, de tão velhinho ficou cego e mal consegue caminhar na rua. Outra cadela que também é cega de um olho. Parte de seus animais tem algum tipo de doença e Jorge cuida deles com amor e atenção. Ele pediu ajuda à Prefeitura e a outros órgãos públicos, sem sucesso. “Esse governo não dá. Eles só dão bola para os ricos. Eu me viro cuidando deles, trabalho no bar o dia inteiro para poder alimentá-los. Eles são os meus companheiros”. Jorge explica que uma vizinha iria ajudá-lo castrando as cadelas. “Bob, Bob, vem cá!”, chama Jorge. Logo aparece um cão preto e branco abanando o rabo feliz ao ver o seu dono. “O Bob é o meu preferido, ele está sempre comigo, nasceu aqui há dez anos”, lembra, fazendo carinho em seu grande amigo. Ele explica que os bichinhos são os seus escudeiros, protegendo-o e cuidando de sua casa. “Dias atrás, os cachorros quase pegaram os dedos do cara que

RECADO DA REDAÇÃO

Um outro olhar sobre a vida Sempre ouvimos que um bom jornalista é curioso. Realmente, investigar e ir atrás das histórias é essencial. Porém, muitas vezes as histórias estão bem na nossa frente e não as percebemos, basta olhar com maior atenção àquelas vidas que estão sempre presentes mas raramente em destaque. Na 5ª edição do Jornal Enfoque Bairro Farrapos, produzido pelos alunos da cadeira de Jornalismo Comunitário e Cidadão da Unisinos Porto Alegre, os futuros jornalistas buscaram evidenciar a vida que ninguém vê, trazendo histórias de superação, batalhas e muitas vitórias. Além de mostrar os pequenos detalhes da comunidade, como a sua infraestrutura, a falta de saneamento e as dificuldades encontradas pelos moradores, a história de 10 anos do Narcóticos Anônimos do bairro, que já ajudou mais de 500 pessoas, a visão das crianças sobre o futuro e muito mais. Agradecemos a comunidade por cada vez mais nos dar espaço para contarmos as suas histórias. Obrigada e até a próxima! CAROL STEQUES Editora-chefe

Isabel Cristina zela por Careca e Galizé, seus animais de estimação confere a água. Eles cuidam muito da casa, principalmente o Bob. Eu saio tranquilo, eles cuidam de tudo”.

GALOS, GALINHAS E PINTINHOS

Do outro lado da comunidade há um restaurante com a placa “vendemos frango”. Para surpresa de quem

Casa de Jorge também é o abrigo de mais de duas dezenas de cães

passa por ali, na frente do local encontra-se a casa de Isabel Cristina, de 48 anos, e de seus bichinhos: os galos Careca e Galizé e o pintinho Piupiu, os quais ela não vende “de jeito nenhum” Desde que morava em outro lugar, Isabel sempre adorou animais, e explica que sempre os criou com muito cuidado. Já

ENTRE EM CONTATO

o vizinho Márcio Silva, de 41 anos, vende parte de seus frangos, mas conta que também tem os seus animais favoritos e que os guarda com muito amor. “Eu crio galo e galinha desde guri, e separo quais eu quero e quais tenho que tirar”. CAROL STEQUES MARIA EDUARDA STOLTING

DATAS DE CIRCULAÇÃO

Débora Lapa Gadret (Coordenadora do Curso de Jornalismo) (51) 3590 1122, ramal 3415 / dgadret@unisinos.br Luiz Antônio Nikão Duarte (professor responsável) luizfd@unisinos.br

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14 de setembro

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19 de outubro

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Novembro

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Bairro Farrapos é um jornal experimental dirigido à comunidade do Bairro Farrapos, em Porto Alegre (RS). Com tiragem de mil exemplares, são publicadas três edições a cada semestre e distribuídas gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre.

CONTEÚDO Disciplinas: Jornalismo Comunitário e Cidadão e Fotojornalismo Orientação: Luiz Antônio Nikão Duarte (texto) e Flávio Dutra (fotografia) Edição geral (chefia): Carol Steques Edição de fotografia: Carolina Santos Reportagem e edição: Alessandro Sasso, Carol Steques, Carolina Santos, Denilson Flores, Felippe Jobim, Fernanda Romão, Guilherme Machado, Josi Skieresinski, Juan Gomez, Lelo Valduga, Luiza Heinzelmann Soares e Paulo H. Albano. Fotografias: Alana Schneider, Allonso Santos, Bruna Schlisting, Guilherme Gonçalves, Jessica Montanha, Josianne Moser, Julia Tomazi, Lucas Braga F., Maria Eduarda Stolting e Petra Karenina. ARTE Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia

IMPRESSÃO Realização: Gráfica UMA Tiragem: 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: Pedro Gilberto Gomes. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Alsones Balestrin. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretor da Unidade de Graduação: Sérgio Eduardo Mariucci. Gerente dos Cursos de Graduação: Tiago Lopes. Coordenadora do Curso de Jornalismo: Debora Lapa Gadret.


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O que você quer ser quando crescer? Enquanto se divertem e estudam, crianças mostram o que querem para o futuro

O

s pequenos moradores do Bairro Farrapos respondem à pergunta que todos ouviram um dia: o que você quer ser quando crescer? Entre as variadas respostas, é possível perceber algo comum no imaginário das crianças e adolescentes brasileiros: a admiração por pessoas famosas dos

meios esportivo e artístico e o carinho e o cuidado pelos animais. Também é fácil notar a recorrente admiração por policiais e professores, talvez pela sensação de segurança e sabedoria que esses profissionais passam aos menores. Sem deixar de fazer o que é coisa de criança, estudar e brincar, elas também mostram que têm sonhos para o futuro. PAULO H. ALBANO JOSIANNE MOSER

Cauã, 7 anos – Fã do atacante do Grêmio e da Seleção Brasileira Éverton Cebolinha, o garoto, que sonha em ser jogador de futebol, posa orgulhoso com seu par de chuteiras. Ele conta que aguarda ansioso o dia que terá a oportunidade de assistir a uma partida de futebol do tricolor gaúcho, seu clube do coração, na Arena.

Abner, 9 anos – Sonha em ser policial. Corajoso, o menino relata com entusiasmo que não terá medo de se expor aos riscos da profissão. Segundo ele, a vontade surgiu após conhecer o jogo fenômeno de popularidade Free Fire, o qual passa horas por dia jogando no celular da mãe.

Miriã, 10 anos – Espectadora do programa MasterChef, a garota sonha em ser uma cozinheira de mão cheia. Ela conta que a mãe não permite o uso do fogão e de outros utensílios da cozinha sem a supervisão de um adulto. O motivo é compreensível: a preocupação com a segurança da filha. O prato favorito de Miriã é strogonoff com batata frita. No dia anterior à reportagem, a jovem cozinheira caiu de um galho da árvore que fica em sua rua e precisou levar dez pontos na cabeça. E nem isso tira o sorriso do rosto da simpática criança.

Cauã, 5 anos – O menino interrompeu os morros de areia que levantava com a irmã mais velha, Tamires, para contar que pretende ser cantor daqui a alguns anos. Ele é fã do funkeiro paulista MC Pedrinho, que começou a carreira com apenas 12 anos de idade.

Juliana, 13 anos – A extrovertida pré-adolescente, que ama atuar e sonha em seguir carreira no meio artístico, admira a sua xará, a premiada atriz Juliana Paes. Ela conta que sua primeira participação em uma peça - quando interpretou o papel de uma estudante impopular - foi um pouco frustrante, pois tinha poucas falas. Atualmente, Juliana faz aulas de teatro no Sesc e ensaia para participar da peça “Princesas Diferentes”.

Kauã, 9 anos – O menino que gosta de brincar de pega-pega e polícia e ladrão faz uma declaração que surpreende duplamente, pela inocência da infância e pelo senso de realidade: quer ser policial para proteger a família, caso um ladrão entre em sua casa.

Lorranna, 14 anos – A garota, que já quis ser advogada durante a infância e mais tarde fez curso de modelo, atualmente quer ingressar na carreira militar do Exército brasileiro.

Cristopher, 9 anos – Inspirado pelo primo que ingressou no quartel, o menino é mais uma criança do Bairro Farrapos que admira os agentes da segurança pública e sonha em ser policial.

Naelli, 10 anos – Ela tem a resposta na ponta da língua: vê-te-ri-ná-ria. A menina, que gosta de andar de bicicleta, tem três cães e três gatos. Naelli ainda cuida dos bichos de rua do bairro, dando comida e água sempre que enxerga um animal abandonado.

Wesley Gabriel (9), Cauã (7) e Yago (5 anos) – O trio inseparável de amigos tem sonhos diferentes: Wesley quer ser desenhista. Ele treina pintando os personagens de Dragon Ball Z e Simpsons, seus animes favoritos. Cauã tomou gosto por cuidar dos animais após ganhar um cachorro da avó. Já o caçula Yago admira os professores que cuidam dele todos os dias na escolinha.


4. Fé

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A crença como fonte do altruísmo Mãe de santo busca fazer o bem livre de julgamentos

do seguidamente. Ele vem sempre tarde da noite para ninguém saber”, revela Mãe Cinda. O que fica evidente é que, de certa forma, a ignorância cria barreiras para a convivência em harmonia. “No fim das contas, somos julgados por muita coisa, mas recebemos gente de todo tipo porque só queremos fazer o bem”, afirma a dona do terreiro. Umbanda, Quimbanda e Candomblé são as religiões afro-brasileiras em que a ex-agente administrativa da prefeitura é especializada. “Poderia estar com uma condição financeira bem mais confortável hoje em dia, mas larguei tudo para me dedicar ao que acredito ter nascido para fazer”, afirma. O contato com a religiosidade vem desde que nasceu, já que sua avó passou para sua mãe os ensinamentos que ela absorveu com naturalidade. Na área de serviço de sua residência, à esquerda, existe a porta de entrada para a parte interna da casa. Porém, é uma pequena porta à direita que chama mais atenção. Ao abri-la, a mãe de santo descreve o que tem dentro. “Aqui fica a exuzada”, explica, exibindo uma quantidade enorme de figuras religiosas variadas. Uma delas recebe destaque: “Esse é o caboclo que minha falecida mãe me deu. Ele tem mais de 60 anos já”, relembra. Sobre o aprendizado recebido de sua família, ela ressalta a maneira de se relacionar com as pessoas. “Até presos eu ajudo. Não vou mudar ninguém, mas posso ajudar a ser uma pessoa um pouco melhor. Acrescentar alguma coisa boa na vida dela”, ela afirma. “Se alguém sentar com a Cinda e falar com ela por dez minutos, já vai ser possível que a pessoa ouça algo significativo sobre a vida dela”, completa o marido. As únicas pessoas que não são recebidas no local são as que possuem interesses inadequados ao tipo de trabalho religioso realizado. “Às vezes, políticos pedem para reunirmos todos nossos filhos em uma noite. Eles querem essa oportunidade de vir aqui falar um monte de porcaria para as pessoas por puro interesse”, relata o marido. Para esse tipo de atitude, a consequência para ele é clara: “Todos pagam o preço pelo mal que fazem”.

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manhã passa rápido e é preciso aproveitar o tempo para deixar tudo pronto. Ao fim da tarde, os primeiros filhos de Mãe Cinda de Iansã chegam para serem atendidos por ela em seu terreiro. O atendimento voluntário acontece dentro de sua própria casa, toda decorada de branco e vermelho, cores de seu orixá. Ao contrário de outras casas religiosas, na da mãe de santo de 52 anos, não é pedido nada em troca para receber as pessoas. “Quando alguém vem aqui, é porque precisa de ajuda. Se está sem emprego, por exemplo, como é que eu vou cobrar para dar ajuda? ”. Cinda demonstra consciência e clareza sobre seu papel em todas as falas. “Eu faço o bem sem olhar a quem”. A casa, que fica na Rua Nilo da Silva de Freitas, no Bairro Farrapos, abriga além de Cinda, dois netos e seu marido Carlos Nazareno Moreira, de 60 anos. Ele trabalha como assistente de expedição e é o responsável financeiro da família. Quanto à relação da religião com o dinheiro, ele é claro: “As pessoas que entram nas casas religiosas erradas acabam sendo vítimas”. Com base na vivência ao lado de Cinda, fica evidente a preocupação com a capitalização da fé. “Não são todos que nascem com o dom para trabalhar com religião. É só ligar a televisão que se pode ver as pessoas sendo enganadas o todo tempo”. No Bairro Farrapos é possível notar a religiosidade em diversas ruas. Igrejas evangélicas e católicas podem ser vistas a qualquer instante por quem transita pelo local. Os terreiros também existem em grande número, porém não possuem fachadas como das outras casas religiosas, fazendo com que dê uma falsa impressão de menor quantidade. A relação entre as diversas crenças nem sempre é tranquila. “Têm pessoas de outras religiões que dizem que nós somos do demônio”, afirma Cinda. Os conflitos e preconceitos entre os diferentes tipos de crença geram fatos curiosos. “Acontece de evangélicos e testemunhas de Jeová, por exemplo, serem atendidos pela gente”, conta Moreira. Nesses casos, o pedido de sigilo é condição obrigatória para que aconteçam. “Tem um pastor da igreja que eu aten-

Mãe Cinda de Iansã recebe os moradores do Farrapos no interior de sua casa. O atendimento religioso é voluntário e plural

ALESSANDRO SASSO JULIA TOMAZI


Gente .5

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Naquela rua mora Francisca Aposentada vive no Bairro Farrapos há mais de 40 anos, lugar onde até hoje constrói memórias com sua família e vizinhos

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rancisca da Silva Vargas mora bem em frente à Arena do Grêmio, na Avenida Padre Leopoldo Beltrano, em uma casa que se espreme entre a lancheria do Zé, seu genro, e a residência do neto, Roger. Quem tiver um olhar atento, pode observar essa mulher de cabelos brancos, sentada na sua cadeira de fio, cheia de almofadas, enquanto acompanha o ir e vir na comunidade. Francisca gosta do movimento, odeia o silêncio. “O silêncio é só para quem morre”, diz ela, com convicção. Francisca da Silva Vargas tem 85 anos, mora no Bairro Farrapos há 40. Quando a Arena do Grêmio foi inaugurada, em 8 de dezembro de 2012, ela já estava lá com o marido e os filhos. Juntos, cuidavam da terra destinada à Companhia de Habitação do Estado do Rio Grande do Sul (Cohab/RS). Também tinham um tambo de leite (estábulo onde se ordenham as vacas) e construíram sua história quando o gigante azul ainda era um campo de

Centro de Tradições Gaúchas (CTG). “Minha mãe já sofreu muito para criar a gente”, conta o filho José Vargas, que carrega o mesmo nome do pai. José é autônomo, morava no bairro Santo André antes de se mudar para a casa da mãe. Alguns meses atrás Francisca ficou doente, estava meio ruim da gripe e o filho veio cuidar dela. “Eu disse: olha, meu filho, mais valem dois juntos do que um sozinho. Venha morar comigo, porque eu não vou morar junto com ninguém. Não gosto lá da Santo André mesmo. Vou sair daqui quando eu morrer, aí eu vou embora”, contou Francisca, que ama seu lar e não o deixa de jeito nenhum. Para ela, morar em frente à Arena do Grêmio é um prazer: “Lá no cemitério não tem barulho, mas eu não quero morar num lugar que não tem barulho, deixa eu morar aqui no movimento”, conta Francisca, que não deixa de participar da balbúrdia em dia de jogo. Para quem está do lado de fora da Arena, a festa acontece nos bares e quando alguém já está meio de pileque, a matriarca da família Vargas corre para levar um cafezinho sem açúcar. Ela cuida de todo mundo, principalmente, dos jovens inexperientes.

“Eles pensam que tudo é um mar de rosas e que está tudo correndo bem, mas a vida não é assim. A gente tem que entender que na vida tem momentos bons e ruins”, diz Francisca. Para o genro José Luís do Amaral, que dá nome ao próprio estabelecimento, Zé Lanches, a sogra atrai clientes. “Além de ser uma pessoa bastante doada, ela é conversadeira”, conta o ex-caminhoneiro. No bar vem gente de todos os cantos, de Gramado à Argentina. Apesar de ser uma rua tomada de bares, cada um tem seu cliente, explica José Luís.

UM PASSO ATRÁS NO TEMPO

“Quando a gente chegou começou a dar alguns probleminhas”, conta Francisca, sobre sua história no Bairro Farrapos. “Matavam gente que nem bicho, mas aqui na nossa rua não. Matavam aqui atrás, naquela praça que tem ali. Meu Deus, era um cemitério aquela praça de tanta gente que morria”. Ainda assim, nunca teve desavença com vizinho nem com ninguém, pois sua fé em Deus sempre a ajudou. “Nem o mal te sucederá e nem praga alguma chegará na tua casa”, cita Francisca, repetin-

do Salmos 91:10-12. Quando uma vizinha buscou ajuda para fugir do bairro, Francisca não hesitou em ajudar. “Queriam botar fogo na casa dela. Sua família. Não eram estranhos. Brigaram todos e queriam botar fogo na casa, então ela veio aqui me pedir socorro”, conta. A filha Janete Vargas, que morava em outro bairro, trocou de casa com a vizinha de Francisca e passou a morar onde hoje fica o Zé Lanches. Francisca é amiga de todo mundo e revela a saudade do marido, José Luís Vargas, pai dos seus filhos, que morreu faz 28 anos. José teve um câncer no pulmão, era fumante e bebia bastante. Morreu aos 65 anos. “Não era tempo de ele morrer, pois eu ainda estou aqui”, diz ela, com bom humor. Em seu olhar vive uma mulher apaixonada, cuja maior virtude é perdoar. “Às vezes, ele chegava bêbado, começava a quebrar tudo e querer arrancar as portas. Aquilo incomodava”, conta, com receio. Ainda assim, o que nunca a incomodou foi cuidar de quem amava. Mesmo quando moraram em casas separadas, Francisca lavava as roupas do marido e lhe preparava o almoço. “Ele tinha mulher em todo o canto, mas eu não esta-

va nem aí. O marido é meu e ele não pode casar de novo”, lembra, em tom de ironia. Para Francisca, viver e amar são dois sentimentos que não se desgrudam, e deveriam ser cultivados por todas as criaturas, em combinação com um terceiro: perdoar.

A FORÇA DE FRANCISCA

José, Dorival, Dorli, Maria, Janete, Ana, Raquel, Léia, Rosângela, Claudete e Janguinha: todos filhos de Francisca. Alguns já não estão mais vivos e permanecem na memória da mãe e dos irmãos. Ana teve meningite, enquanto Janguinha morreu aos três anos. Já Claudete tinha 15 anos quando uma veia da perna estourou, o que também causou sua morte. “Quando ela faleceu eu tinha uns dez anos”, conta José Luís, que só pensava em brincar e rezar para não ir à escola. Quando questionada sobre sua capacidade de lembrar o nome de todos os filhos, Francisca responde: “Eu tenho dez (filhos), três homens e sete mulheres. Imagina se não vou saber o nome dos meus filhos!” GUILHERME MACHADO ALLONSO SANTOS


6. Infraestrutura

ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS | PORTO ALE

Uma pracinha be

Independentemente da idade, todos gostam de aproveitar os e

Distribuição pelo bairro

Famílias do bairro pedem melhorias para as praças da comunidade que são os únicos espaços de lazer

C

omo nas demais áreas da cidade, quem vive no Bairro Farrapos gosta de usar seu tempo de lazer para aproveitar, se divertir ao ar livre com os filhos, amigos e vizinhos. Ao todo, Porto Alegre tem 667 praças urbanizadas, ocupando uma área total de quase cinco milhões de metros quadrados, e nove parques urbanos administrados pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam). No Bairro Farrapos, a Prefeitura informa a existência de 35 praças – apenas 33 delas localizadas pelo Enfoque, como se pode ver no mapa Muitas não passam de pequenos terrenos com grama,

areia e alguns bancos. Outras, nem bancos têm. Vilson dos Santos, de 45 anos, que mora no bairro desde os 15, aproveita os finais de semana para curtir com os filhos Pedro Henrique, de seis anos, e Eduardo, de 15. “Acho que é importante sair um pouco de dentro de casa, eles ficam fechados, têm que ir um pouco para a natureza. Eu os levo mais ali pro Humaitá (Parque Mascarenhas de Moraes), que é maior, tem mais brinquedos. Aqui tem muitas quadras. Acho que estão pouco cuidadas, deveriam ter mais possibilidades, mais brinquedos. Tu fazes exercícios e não tem um bebedor, se qualquer

uma tem, por que aqui não pode ter também?”, questiona, em relação à infraestrutura da Praça Antigo Sesi. Ele relata também a experiência que teve no Parque Marinha do Brasil. “Lá, têm professores voluntários, que ajudam as crianças a praticar diversos esportes, como patins, futebol e bicicleta”. Vilson acredita que é importante manter os jovens ocupados em atividades esportivas. Tiffany Machado e Kaua Mulech, ambos de 14 anos, são amigos e estudantes dos últimos anos do ensino fundamental. Moradores do bairro, frequentam diariamente a praça localizada na Rua Cazuza,

a mais próxima de suas casas. Eles contam que gostam bastante de aproveitar esse espaço com o grupo de amigos. Mas gostariam que houvesse melhorias. “Aqui não têm muitas coisas para as crianças brincar”, comenta Kaua. “Poderia ter mais lixeiras, mais bancos e melhorar a iluminação”, sugere Tiffany. Eles relatam que a praça é segura, com alguma iluminação e que aproveitam bastante por estar mais próxima às suas casas. Gilberto de Castro, de 45 anos, e Alexander Conto, de 42 anos, são amigos e também aproveitam a Praça do Antigo Sesi, na Rua Frederico Mentz. Gilberto conta que

as crianças aproveitam bem as pracinhas, mas tem uma sugestão: “Eu acho que faltam aqui equipamentos pra gente se exercitar”. Já Alex faz seu exercício na própria bicicleta, mas comenta as condições das ruas: “Aqui até que tá tudo tranquilo, mas ali na frente da Arena tá sinistro. Quando chove ali enche de água, bem complicado”, desabafa o morador. Alex também relembra o dia que sofreu um acidente de bicicleta, quando um carro bateu nele por falta de sinalização, também próximo à Arena do Grêmio. JOSI SKIERESINSKI JÉSSICA MONTANHA


Infraestrutura .7

EGRE (RS) | SETEMBRO / OUTUBRO DE 2019

em perto

espaços para se divertir

Abandono público, desprezo privado As famílias que tentam aproveitar o tempo livre nas praças do Bairro Farrapos não contam com os cuidados da Prefeitura e nem com a opção de espaços públicos adotados pela iniciativa privada. Muito pelo contrário. Nas do local, a regra inclui a combinação do lixo acumulado sobre a grama, pichações nas paredes e no mobiliário urbano e mato acumulado. Para Julio Cesar Silveira de Souza, de 40 anos, morador da região desde que nasceu, as praças eram mais cuidadas no seu tempo de criança. Com a modernização, a construção de rampas de skate, a colocação de cercas na área onde as crianças brincam e a instalação de uma quadra de futebol, a limpeza deixou de ser um atributo do ambiente. Ele conta que a Brigada Militar deixa os cavalos nas praças do bairro em dias de

“Zóio “ percorre, pelas manhãs, toda a Avenida Assis Brasil para sustentar sua família

jogos na Arena e os restos de sujeira dos animais ainda são vistos no dia seguinte. O corte da grama e a retirada de lixo são, ocasionalmente, feitos por moradores das redondezas. Quando as pessoas que moram no bairro assumem a limpeza das praças, os papeleiros ajudam os locais a ficarem mais limpos e atrativos. Juliano, também conhecido como “Zóio”, de 48 anos, trabalha a manhã inteira percorrendo toda a Avenida Assis Brasil para sustentar sua família há mais de 20 anos. Para que os mais idosos possam ter a oportunidade de manter sua renda, ele prefere não recolher nada no Bairro Farrapos pois, como ainda tem saúde para fazer trajetos mais longos, escolheu dar a oportunidade para quem não tem a mesma condição. Porém, para que o traba-

lho dos papeleiros seja bem feito, é necessária uma estrutura onde o material seja recolhido, protegendo-o da chuva e dos ventos que podem, eventualmente, atrapalhar o trabalho feito por eles. “Zóio” pede para que a prefeitura construa um galpão com essa finalidade. Como muitos não têm onde armazenar o que tiram das ruas e praças, a venda é feita diariamente, ou a cada 15 dias, quando há um espaço reservado em casa com o propósito de depositar o que foi recolhido. De acordo com o papeleiro, apenas um vereador olha para os moradores do bairro, principalmente para os catadores, já que existe um projeto de lei para retirar veículos de tração humana das ruas até 2020. FELIPPE JOBIM GUILHERME GONÇALVES

Comunidade unida contra a falta de escoamento

Alguns moradores precisam, literalmente, usar as próprias mãos para desentupir o esgoto Quando a temporada das chuvas de inverno chega a Porto Alegre, a população do Bairro Farrapos já se prepara para os problemas de escoamento. Além das ruas alagadas, devido aos bueiros entupidos, as famílias ainda têm que se preocupar com o vazamento de esgoto das próprias casas. Sem solução aos diversos telefonemas feitos ao Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), a população recorre à ajuda da própria vizinhança. Essa não é uma situação inédita para os moradores do bairro. Em 2018, a comunidade sofreu com o entupimento da rede de esgoto cloacal, que teve que ser resolvido com a ajuda dos próprios moradores. Um ano se passou e o cenário se repete. Entre os meses de junho e agosto últimos, os moradores do bairro sofreram com chuvas acima da média. Segundo o Instituto MetSul Meteorologia, ocorreram precipitações em grandes volumes e em curto período, o que provoca cheias de rios e inundações. Luiza Maria Veledo diz que o escoamento do esgoto nas calçadas da vizinhança é frequente e sem solução. A falta de manutenção dos canos, serviço que deveria ser feito pelo Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB), que faz a limpeza, reconstrução das bocas-de-lobo e desobstrução de redes pluviais, nunca foi feita, conforme Luiza. Toda vez que o mau cheiro toma as ruas, os vizinhos se unem para tentar achar o que está obstruindo os canos. As mãos dos moradores acabam sendo a principal ferramen-

ta para desentupir os bueiros nas calçadas. Tijolos e resto de objetos são os itens mais encontrados pela população. De acordo com a moradora, o trecho do bairro em que mora acaba virando um “dilúvio”. Angélica, uma das suas oito filhas, explica que uma das casas já está tomada pelo esgoto na rua onde mora. Ela costumava ser bem cuidada, tinha grama, onde muitas crianças brincavam. Hoje, a realidade é outra: a calçada conta com três buracos de esgoto entupidos devido às chuvas do inverno. Toda semana os moradores têm que enfrentar essas obstruções, que tentam desentupir. A falta de manutenção da parte do DMAE e do DEMHAB ocorre porque a região em que o bairro se localiza é considerada área verde, espaço urbano com predomínio de vegetação, como parques, jardins botânicos e cemitérios. Com isso, alguns moradores da vizinhança se propõem a passar de casa em casa para oferecer ajuda para conter o vazamento de esgoto para o meio das ruas. “Chega o final de semana, não dá nem pra descansar, tem que meter a mão nessas nojeiras aí”, afirma Luiza, que há 23 anos habita no bairro. Conta que diversos projetos já foram feitos, mas nenhum deles saiu do papel. De acordo com ela, era para a comunidade ser disposta em prédios de cinco andares e que haveria obras para colocarem canos nas casas, porém nenhum projeto avançou. LUIZA HEINZELMANN SOARES ALANA SCHNEIDER


8. Transporte

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O ir e vir no Bairro Farrapos Ônibus e bicicleta são os meios de transporte utilizados na região

O

s dias vividos pelos moradores do Bairro Farrapos são percorridos de várias formas. A pé, de carro, de bicicleta ou de ônibus. A extensão de 165 hectares do bairro reforça a necessidade de um transporte que alcance a demanda dos habitantes. Depender de transporte público é rotina para Flávio Luis Teixeira, vigilante e morador do bairro. Na parada da Rua Graciano Gamozzato esquina com a Rua Frederico Mentz, ele esperava a linha de ônibus 703, que utiliza para trabalho e lazer. Na opinião de Teixeira, o transporte é bom e supre suas necessidades.

Além da linha utilizada por Flávio, o bairro dispõe de mais duas linhas de transporte público, todas operadas pela empresa Mobilidade em Transportes (MOB). Os habitantes têm à sua disposição as linhas 701 Vila Farrapos/Voluntários, que realiza o trajeto do Terminal Rui Barbosa (centro de Porto Alegre) até a frente da Arena do Grêmio, na Avenida Padre Leopoldo Brentano; a linha 703 Vila Farrapos, que também vai do Terminal Rui Barbosa, mas tem seu fim da linha na Avenida Ernesto Neugebauer /José Pedro Boéssio; e a linha B25 Arroio Feijó/Humaitá, que é circular e liga o bairro com a Estação Anchieta do Trensurb. Um agravante do transporte público nos grandes centros urbanos é a falta de estrutura que muitas vezes resulta em desconforto para

o passageiro. Junior Habkost aguarda locomoção junto com Cintia Santos, na parada em frente à Praça do Sesi. Companheiros há nove anos, eles dependem do transporte público para atender em sua loja de consertos de celular, situada no Camelódromo, no centro de Porto Alegre. Junior reclama dos ônibus lotados e da demora do transporte no sábado, que chega a ser de hora em hora. Na mesma parada, o terceirizado Pablo Torres também espera o ônibus. Ele utiliza o transporte para trabalhar e protesta que há lotação excessiva nos horários de pico. Os longos intervalos de espera da condução também são uma reclamação frequente entre os moradores. Nem só de transporte público o bairro depende. Um meio de deslocamento bastante usado pelos habitantes

Ônibus e bicicleta dividem a preferência dos moradores do bairro Farrapos

O morador Gerson utiliza o ônibus para passear, mas para trabalhar, vai de bicicleta

é a bicicleta. Utilizada para distâncias curtas e, em algumas vezes, para trajetos longos, a bicicleta é uma aliada e uma maneira de economia no orçamento doméstico. Jandira Marques, comerciante, usa a bicicleta para trabalhar, realizar compras no mercado e ir até o centro de Porto Alegre. Ela ressalta a importância da atenção ao trânsito, sempre cuidando da segurança durante os trajetos. O zelador Gerson Almeida também faz uso da bicicleta para o trabalho. A distância da sua casa no Bairro Farrapos até o Bairro Humaitá, onde trabalha, é de sete minutos. Abre um sorriso quando lembra que o dinheiro economizado no transporte ajuda a pagar outras contas. Para o lazer, Almeida usa o transporte público. Numa manhã de um sábado de setembro,

aguardava na parada da Avenida Padre Leopoldo Brentano, em frente à Arena do Grêmio, o ônibus que o levaria ao Parque Harmonia para aproveitar o dia no Acampamento Farroupilha. O divertimento para muitos pode resultar em transtornos para outros, quando se trata de transporte público. Em dias de jogos na Arena do Grêmio, localizada no Bairro Farrapos, os ônibus são impedidos de passar. Devido ao enorme e intenso tráfego de veículos, as linhas são desviadas dos seus itinerários. Jane Fossati relata que fica muito complicado depender de ônibus do bairro nesses dias de futebol. Isso por que as linhas 701 e 703 possuem seus terminais nos arredores da Arena. FERNANDA ROMÃO JESSICA MONTANHA

Pablo Torres reclama que a espera e a lotação prejudicam os moradores

O vigilante Flávio avalia como positivo o transporte que usa regularmente no bairro

Para deslocamentos rápidos ou longos, a bicicleta é essencial para muitos moradores


Saúde .9

ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS | PORTO ALEGRE (RS) | SETEMBRO / OUTUBRO DE 2019

Dez anos de Narcóticos Anônimos na comunidade Conheça os 12 passos

Grupo conta com cerca de 500 pessoas já acolhidas com o Programa 12 passos

N

arcóticos Anônimos é uma sociedade sem fins lucrativos e sem vínculos partidários, de homens e mulheres, criada em 1953 por Jimmy Kinnon, nos Estados Unidos, para reunir e apoiar adictos em recuperação: pessoas que são controladas pelas drogas, independentemente de sua origem, lícita ou não. Para o grupo, não importa a raça, o credo, a orientação sexual, a idade e a situação financeira dos participantes. O indispensável é a forma de ajudar o outro. Ao todo, nesse encontro em uma manhã de um sábado de setembro, nove pessoas estavam na sala: seis adictos, com alguma história de vida para compartilhar e contribuir com a reabilitação do seu semelhante; dois visitantes buscando compreender o trabalho desenvolvido e uma acompanhante, que também se tornou protagonista na luta contra uma doença muito difícil de ser vencida. Nela, o sujeito deve compreender que existe a enfermidade e buscar o caminho sem vícios, seja ele qual for: drogas, remédios, alimentação. A adicção é um problema comportamental e, assim, qualquer excesso pode se tornar uma compulsão. Preocupados com a incidência da doença no bairro, o “Grupo de Mãos Dadas” fundou o Narcóticos Anônimos no dia 24 de setembro de 2009, na Paróquia da Santíssima Trindade, localizada na Rua José Luis Peres Garcia, 5. Um grupo de representantes de serviços gerais (RSG) coordena reuniões abertas aos sábados, das 10h às 12h, para pessoas que se vejam com o problema e queiram mudar sua vida. J.P, assistente administrativo de 40 anos, é um membro RSG. Limpo há doze anos, cinco meses e 20 dias, diz que a importância do N.A para a comunidade é proporcionar recuperação e receber os recém-chegados. Lembra que o adicto é um “escravo” da doença e as drogas são a ponta do iceberg. J.R, de 55 anos, vendedor de consórcios, secretário do “Grupo de Mãos Dadas” abre as reuniões e participa com

1 Admitimos que éramos impotentes perante a nossa adicção, que nossas vidas tinham se tornado incontroláveis. 2 Viemos a acreditar que um Poder maior do que nós poderia devolver-nos à sanidade. 3 Decidimos entregar nossa vontade e nossas vidas aos cuidados de Deus, da maneira como nós O compreendíamos. 4 Fizemos um profundo e destemido inventário moral de nós mesmos. 5 Admitimos a Deus, a nós mesmos e a outro ser humano a natureza exata das nossas falhas.

J.L. cumpre o rito inicial lendo o folheto “Triângulo da AutoObsessão”, que fala em reconhecer e aceitar as forças, fraquezas e limitações, onde ressentimento, raiva e medo tornam-se alguns dos ingredientes da compulsão suas experiências, dividindo também o encerramento das sessões com agradecimento e oração. Limpo há seis anos e nove meses, considera que um poder superior o direciona nesse trabalho. Para quem se propõe a ajudar o próximo, o Narcóticos Anônimos é um local que acolhe o doente que está sofrendo e que deve transmitir a mensagem de que é possível viver sem a dependência. K.B, funcionário público de 42 anos, que participa do grupo desde fevereiro desse ano e está limpo há 30 dias, lembra que seu vício era em remédios para dormir. “O médico receitava um por dia, e eu tomava vinte”, diz. Para ele, o grupo representa a coragem de enfrentar o problema, de contar

6 Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter. 7 Humildemente pedimos a Ele que removesse nossos defeitos. 8 Fizemos uma lista de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a fazer reparações a todas elas. 9 Fizemos reparações diretas a tais pessoas, sempre que possível, exceto quando fazê-lo pudesse prejudicá-las ou a outras. para a família e de identificar o abuso de medicamentos. A funcionária pública C.B, de 39 anos, esposa de K.B, lembra que no início não achava importante participar dos encontros. Casados há 20 anos, ela mudou sua visão por entender que o apoio ao esposo faz parte do tratamento e que muitas histórias vivenciadas pelos outros adictos em recuperação são ensinamentos para a própria vida. J.E, técnico eletrônico de 44 anos, casado e pai, participa há três anos do Narcóticos Anônimos e revela estar limpo pelo mesmo período. Diz que o grupo é um propósito de mudança, brinca que as pessoas podem falar o que quiserem de sua vida, mas não admite piadas com o trabalho realizado

pelo “Mãos Dadas”. Para ele, é tão importante quanto à sua família, por permitir se tornar uma pessoa melhor. Já, J.L, de 32 anos, auxiliar geral, diz que está há três meses e 17 dias limpo. Ele, que participou ativamente com a leitura do folheto “Triângulo da Auto-Obsessão” no início do encontro, lembra que tinha vergonha de procurar o grupo na comunidade e que buscou ajuda em bairros distantes, mas por ser morador do local, percebeu que não precisava se esconder para buscar assistência para a adicção. Coube a ele um dos ritos de encerramento da reunião, lendo a mensagem do dia, do livro “Só por Hoje”. DENILSON FLORES PETRA KARENINA

10 Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente. 11 Procuramos, através de prece e meditação, melhorar o nosso contato consciente com Deus, da maneira como nós O compreendíamos, rogando apenas o conhecimento da Sua vontade em relação a nós e o poder de realizar essa vontade. 12 Tendo experimentado um despertar espiritual, como resultado destes passos, procuramos levar esta mensagem a outros adictos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades. Linha de ajuda: (51) 3333-3550


10. Drama

E

ntre as famílias que foram atingidas pelo incêndio de 17 de agosto passado está a do casal Luciléia Oliveira Marcelino da Rosa, 39 anos, e Marcos Antônio da Rosa, 42 anos. Mãe de cinco filhos, Luciléia conta, com o olhar cabisbaixo, que ambos estão desempregados e se mantêm cuidando de carros nos dias de jogos na Arena do Grêmio e que no momento estão na casa de amigos, pois a sua foi totalmente destruída pelo fogo. Após o sinistro, a comunidade se reuniu para ajudar os vizinhos desabrigados. No dia 12 de setembro, estavam reconstruindo seu lar, com materiais conseguidos por meio de doações. Luciléia e sua família já haviam sido vítimas de outro incêndio, em 2013. A tragédia que atingiu mais de 90 residências e fez com que muitas pessoas fossem realocadas para ecocasas, que são destinadas exclusivamente à população de baixa renda, com o objetivo de atender situações emergenciais. O que era para ser resolvido em um ano virou seis e o material provisório foi se degradando ao esperar pela solução definitiva. Segundo a Associação dos Moradores da Vila Liberdade, o Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB) está oferecendo o aluguel social como alternativa, alegando que não há mais material para construir as casas emergenciais. Esse recurso assistencial mensal é destinado a atender, em caráter de urgência, famílias que se encontram sem

ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS | PORTO ALEGRE (RS) | SETEMBRO / OUTUBRO DE 2019

Enquanto a solução não vem O incêndio repetido no dia 17 de agosto de 2019 atingiu seis casas, deixando famílias desabrigadas

moradia. É um subsídio concedido por seis meses. A família beneficiada recebe uma quantia equivalente ao custo de um aluguel popular. Para Sandra Ferreira, líder comunitária, “ninguém vai mais para o aluguel social, por que no momento que sai do seu espaço, tu não voltas mais e esse é o medo que eles têm: de perder o lugar onde eles moram”. Fabiana Campos, que trabalha na institui-

ção Fé e Alegria e mora no Bairro Farrapos, participa de reuniões da Associação de Moradores e diz que “muitas vezes o aluguel atrasa e o inquilino acaba tendo que tirar do próprio bolso”. A solução para essas famílias tem sido a ajuda da comunidade, com as doações de cesta básica, móveis, madeira, telhas e roupas. Vieram de vizinhos, da torcida do Grêmio, da organi-

zação Mensageiros da Caridade e até mesmo do Aeroporto Salgado Filho. Tudo foi articulado pelos líderes comunitários e a Associação de Moradores, que compõem um papel essencial e muitas vezes despercebido pela comunidade. Muitas doações foram direcionadas diretamente para a área do incêndio e outras, como móveis e roupas, aguardam o momento em que as constru-

ções estejam prontas. Os moradores relatam como é difícil viver em um bairro que sofre com a falta de infraestrutura, planejamento urbano e saneamento e o descaso de órgãos que deveriam prover a estrutura necessária para se ter condições mínimas para viver. CAROLINA SANTOS BRUNA SCHLISTING

Kauã e Tamires, filhos da dona de casa Luciléia, brincam em meio aos destroços do incêndio

David, de 18 anos, ajuda na reconstrução das casas que foram destruídas pelo fogo em 17/08

Luciléia conta, em frente a sua antiga moradia, como conseguiu ajuda após segunda queima

Sandra, líder comunitária, explica como a Associação de Moradores auxilia a comunidade

Marcos Antônio, de 42 anos, ergue a estrutura do telhado de sua futura casa no bairro

Fabiana, moradora da região, comenta como o aluguel social pode ser uma alternativa falha


Comércio .11

ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS | PORTO ALEGRE (RS) | SETEMBRO / OUTUBRO DE 2019

Um vermelho entre os azuis Estabelecimento inaugurado em 2011 é referência para a população do bairro

e das pessoas que estão sempre lhe apoiando, Borges se emociona e se demonstra grato por toda a ajuda que recebe até hoje. “São tudo para mim, me ajudam demais, e olha que a maioria torce para o time rival. Hoje, por exemplo, preciso sair e vou deixar um deles para cuidar de tudo aqui no bar. Prezo muito de ter uma boa relação com as pessoas, gosto de ajudar os outros na medida do possível e no que for necessário”, afirma.

O

futebol brasileiro se destaca por ter diversos clássicos em todos os cantos do país. Essas rivalidades, consideradas essenciais para a sustentabilidade do esporte, muitas vezes causam complicações para a sociedade. É arriscado, por exemplo, estar com a camiseta de um clube rival no ambiente da torcida oposta. Mas para Ari Borges, esses problemas não influenciaram na sua iniciativa de oito anos atrás. Com 57 anos, o aposentado criou o Bar dos Colorados, em 2011, no Bairro Farrapos, região onde foi construído o estádio do Grêmio, clube rival. Borges lembra que inicialmente sofreu muito com ações da torcida oposta. “No começo foi complicado, pelo fato de que sempre passava um ônibus de torcedores do Grêmio e parava na frente do bar. Por ser um local caracterizado com coisas do Internacional, tinham muitas provocações e até mesmo brigas entre torcedores dos clubes”, relata. Morador da região desde criança e pai de cinco filhos, ele conta que os problemas pararam de acontecer só dois anos depois que a Arena chegou ao bairro. “Inicialmente,

“A ARENA FOI A PIOR COISA QUE PODERIA TER ACONTECIDO PARA O BAIRRO”

Bar dos Colorados, de Ari Borges, é ponto de encontro, inclusive para torcedores rivais os problemas eram recorrentes. Com o tempo, as pessoas que são da região e o resto dos torcedores passaram a aceitar, todo mundo já me conhecia e sabia que sou uma pessoa boa”, conta. Borges explica um pouco sobre a funcionalidade do bar e destaca que o movimento no local é sempre intenso. “Funcionamos todos os dias das 10h às 13h e das 17 às 20h. Em dias de jogos, durante a semana,

optamos por fechar antes das 20h, porque o movimento aumenta mais ainda e gosto de ver os jogos em casa mais tranquilo. Temos máquina de música, sinuca e vendemos aquela cervejinha para as pessoas se sentirem à vontade”, diz. Colorado fanático, Borges declara que, por ser do bairro, queria deixar a marca do seu clube do coração em algum lugar da região, por isso optou pelo comércio. E

ele se surpreendeu com toda a repercussão positiva. “O foco aqui é o entretenimento e o sucesso do bar foi mais do que eu esperava. Tem dias que preciso fechar o bar e não consigo, as pessoas me falam que não vão ter onde ficar, onde curtir. É gratificante ver a resposta das pessoas para o teu trabalho. O mais incrível é que a maioria das pessoas que comparecem no local é gremista”, exalta. Ao falar dos seus amigos

Mesmo colhendo bons frutos com a população nos dias de hoje, após a criação do bar, Borges acredita que a construção da Arena trouxe muitas complicações para a região, principalmente no fator social. “Existiam muitos campos de futebol no local onde foi criada a Arena. A água da chuva escorria toda para lá, hoje em dia ela volta e alaga todas as casas. Priorizaram uma boa infraestrutura apenas ao redor do estádio e não se preocuparam com a gente. Nem imaginava que a Arena seria aqui. Se eu soubesse, não tinha feito o meu comércio pela região”, finaliza. JUAN GOMEZ LUCAS BRAGA F.

O mais famoso da praça Quem lê ou ouve falar no nome Isabel Cristina dos Santos Pereira, se não for um familiar ou íntimo, provavelmente não saberá de quem se trata. Mas para os torcedores do Grêmio que frequentam a praça Setembrino Nunes da Silva, das várias parecidas que se encontram perto da Arena, é só falar do Bar da Isa. Pronto. O Bar é um dos pontos mais frequentados pelos gremistas nos aquecimentos para os jogos do time. Ganha ainda mais relevância porque na mesma praça, algumas casas foram compradas ou alugadas por gremistas, com o intuito de fazer um ponto de encontro nos dias de jogos. Isa tinha o seu bar na rua

da Arena de 1995 até 2003. Quando a dona do estabelecimento soube que ali se construiria o estádio do Grêmio, quis o ponto de volta. Isa, moradora do bairro Farrapos, não viu outra alternativa senão fazer da garagem da casa do pai, a poucos metros do antigo bar, um novo ponto. “Eu comecei aqui onde estou hoje com um pequeno restaurante. Então, os operários nordestinos que estavam trabalhando na construção da Arena começaram a vir almoçar aqui todo o dia”, ressalta Isa, informando que vendia cerca de 60 almoços por dia, na época. A coisa começou a melhorar ainda, quando um grupo de torcedores veio até ela per-

Isa recebe gremistas em dias de jogos guntar se teria como fazerem um churrasco na praça em frente ao bar. A partir desses churrascos, o grupo teve

a ideia de alugar uma casa em frente ao bar. “Agora já são duas casas locadas aqui na frente. E ainda tem gen-

te que vem toda a hora aqui perguntar se tem mais alguma casa para locar por aqui. Fiz uma parceria muito boa com esses grupos que locam aqui” complementa Isa. A curiosidade é que Isa é colorada, mas segundo ela, todos os que frequentam o bar são como seus filhos. O estabelecimento inclusive é decorado com vários pôsteres e retratos do Grêmio e dos grupos que por ali passam. Isa diz que todos cuidam da praça, além de que, nos dias de jogo, ela disponibiliza banheiros químicos para ninguém sujar o local. LELO VALDUGA LUCAS BRAGA F


ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS

PORTO ALEGRE (RS) SETEMBRO / OUTUBRO DE 2019

EDIÇÃO

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JULIA TOMAZI

A rua como ela é

N BRUNA SCHLISTING

o Bairro Farrapos, na Zona Norte de Porto Alegre, encontramos a rua como ela é. Talvez identificada por outros nomes como acesso, por ser o caminho possível para algum lugar próximo; ou, mesmo, beco – uma vielazinha com pouco espaço. Porém, as maneiras de vivenciarmos as vias da região não terminam por aí. A partir do momento em que conhecemos o bairro também percebemos as inúmeras possibilidades do que significa morar ali. Crianças e carros andam no mesmo espaço. Há uma grande quantidade de gatos e de cachorros que compartilham as estradas. Às vezes, pátio e calçada não se diferenciam. É o esgoto que não drena; é a chuva que, embora faça sol,

permanece sem escoar; e é o lixo do dia a dia que, não por culpa da vizinhança, já se tornou costumeiro. Apesar dos pesares, o grito não é contido no bairro e, muito menos, os sons ficam no volume mínimo. Mas, claro, a calmaria também tem vez para aqueles que a preferem. Enquanto isso, a comunidade usa todos os seus sentidos com vontade. Pessoas sorriem, trocam palavras, leem seus jornais, praticam esportes, param no tempo dentro de abraços confortáveis e muito mais. De certa forma, já não importa qualquer nome, mas os sonhos daqueles que só querem viver com dignidade. BRUNA SCHLISTING JOSIANNE ANA MOSER

JESSICA MONTANHA

ALANA SCHNEIDER

JESSICA MONTANHA

JULIA TOMAZI

JOSIANNE MOSER

JOSIANNE MOSER


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