Enfoque Bairro Farrapos 1

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ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS

PORTO ALEGRE / RS MARÇO/ABRIL DE 2018

EDIÇÃO

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CAROLINA SANTOS

A ARENA É AQUI

PELA SAÚDE DAS MULHERES

Projeto fortalece a autoestima feminina. Página 6

EDUCAÇÃO ALÉM DA ESCOLA Fé e Alegria busca transformar a realidade de moradores. Página 3

LUÍSA CAYE

RENAN LIMA

JOSIANE SKIERESINSKI

CONSTRUÇÃO DO ESTÁDIO GERA IMPACTOS QUE SE REFLETEM ATÉ HOJE PÁGINAS 4 e 5

UM RITMO ABRAÇA O BAIRRO Capoeira traduz em movimentos a força da união. Página 7


2. Crônica/Opinião

ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS | PORTO ALEGRE (RS) | MARÇO/ABRIL DE 2018

Famílias sem lar há mais de cinco anos

M

anhã quente de sábado, dia 10 de março de 2018. A ideia para a primeira matéria para o Enfoque era chegar no bairro que nomeia a edição e entrevistar os moradores da comunidade sobre a relação deles com Grêmio. Passando pela Rua Frederico Mentz, uma mulher me para e pergunta se estou a trabalho para um jornal. Sem titubear, respondo que sim e ela já emenda a primeira reclamação: “não temos casa”. Assim começa nossa manhã no bairro Farrapos, na zona norte de Porto Alegre. Localizada a poucos metros da Arena do Grêmio, um dos mais visitados cartões postais de Porto Alegre, a Vila Liberdade, uma de suas comunidades, teve sua rotina quebrada no dia 27 de janeiro de 2013. A data, também marcada pela tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, está na memória local, atingida por um incêndio naquela noite. As chamas consumiram 90 casas, dei-

xando 194 famílias desalojadas e mais de cinco anos de espera por soluções. Dona Tânia da Silva (foto) vive na comunidade há 30 anos e é uma que teve a sua casa incendiada. Ela mora no número 24, no “condomínio” erguido sobre a praça, quase na esquina da Rua Seiscen-

RECADO DA REDAÇÃO

A importância de dar importância O Enfoque é um jornal que se dedica a contar os fatos ocorridos nas vilas e histórias de vida dos seus moradores. No Bairro Farrapos, cerca de 17 mil habitantes compõem o espaço que está recebendo os repórteres e fotojornalistas neste semestre. No dia 10 de março, alunos de Jornalismo fizeram matérias nas comunidades Liberdade e Mario Quintana, locais que já sofreram muito com as desigualdades sociais e econômicas. É importante que o Enfoque exista. Não só pela experiência dos estudantes, mas também porque é o que traz para dentro do ambiente acadêmico uma amostra, ainda que superficial, do que é a vida além dos das catracas e da segurança de um campus. É preciso dar importância para a população que é a primeira a sofrer com as modificações políticas e econômicas, mostrar que a vida resiste até nos momentos difíceis e tentar ao máximo possível explicar que representatividade tem que ser escancarada. É por isso que vamos nos formar jornalistas, para expor ao mundo o que o mundo é. Este jornal é produzido não apenas como conteúdo de aula. Este jornal é para cada um dos moradores que dispuseram de sua casa e de sua história, para mostrar o quanto o bairro é forte. Este jornal é para todos os estudantes, professores e funcionários que habitam a faculdade perceberem que o universo é bem maior do que a gente imagina. Boa leitura a todos os integrantes da vila e a todos os que não conhecem esse universo. O Enfoque Bairro Farrapos deseja a todos uma mente aberta. JULIANA COIN Editora-chefe

tos e Noventa e Oito. Dentro da casa simples (e muito quente), há uma cama, uma TV de tubo, geladeira e fogão. Ela reclama que todos os seus mantimentos devem ser guardados dentro do refrigerador, escondidos dos ratos que circulam com fome pela vizinhança. O banheiro

do casebre, construído com madeira compensada e telhas de zinco, chama a atenção por um buraco em frente ao vaso sanitário. Um chuveiro elétrico completa o único aposento reservado. Além dos ratos, falta de saneamento básico e de assistência pública,

ENTRE EM CONTATO

os moradores do Farrapos aguardam, há mais de cinco anos, uma solução para continuar suas vidas. Após conhecer a casa de Tânia, ela nos leva até a de sua filha Eliane. O ambiente simples, não muito diferente da moradia da mãe, abriga ainda o marido, Luis Carlos, e uma filha. Eliane é auxiliar de serviços gerais em uma empresa no Bairro Bela Vista, zona nobre da Capital, e vê todos os dias o contraste com a realidade em que vive. A principal reclamação do casal é que não pode voltar para o terreno onde vivia na Vila Liberdade, pois teme não receber o apartamento prometido pela prefeitura logo após o incêndio. Tenente, como Luis Carlos é conhecido na comunidade, diz que o governo municipal disponibilizou casas para os atingidos pelo fogo, mas no bairro Restinga, no outro lado da cidade. JOÃO DANIEL AITA LUÃ FONTOURA

DATAS DE CIRCULAÇÃO

Débora Lapa Gadret (Coordenadora do Curso de Jornalismo) (51) 3590 1122, ramal 3415 / dgadret@unisinos.br Luiz Antônio Nikão Duarte (professor responsável) (51) 3590 1122, ramal 3415 / luizfd@unisinos.br

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7 de abril

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5 de maio

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2 de junho

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Bairro Farrapos é um jornal experimental dirigido à comunidade do Bairro Farrapos, em Porto Alegre (RS). Com tiragem de mil exemplares, são publicadas três edições a cada semestre e distribuídas gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre.

CONTEÚDO Disciplinas Jornalismo Cidadão e Fotojornalismo Orientação Luiz Antônio Nikão Duarte (texto) e Flávio Dutra (fotografia) Edição geral (chefia) Juliana Coin Edição de fotografia Cora Zordan Reportagem e edição: Cora Zordan, Fernando Eifler, João Daniel Aita, Juliana Coin, Maria Júlia Pozzobon, Paulo Egídio e Ulisses Machado Fotografias: Carlos Molina, Carolina Santos, Josiane Skieresinski, Julia Schutz, Luã Fontoura, Lucas Braga, Luísa Caye, Renan Lima, Otávio Haidrich, Paulo Albano e Valentina Wagner ARTE Realização Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização Marcelo Garcia Diagramação Nathalia Haubert

IMPRESSÃO Realização Gráfica UMA Tiragem 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Av. Dr. Nilo Peçanha, 1600 - Boa Vista - Porto Alegre (RS). Cep: 91330 002. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vicereitor: Pedro Gilberto Gomes. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Alsones Balestrin. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente dos Cursos de Graduação: Paula Campagnolo. Coordenadora do Curso de Jornalismo: Débora Lapa Gadret.


Ensino .3

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Ações populares surgem como proposta educativa C

O casal Andréia e Isaac Nunes comemora os benefícios que a instituição proporciona na vida de seus filhos

MARIA JÚLIA POZZOBON LUÍSA CAYE JULIA SCHUTZ VALENTINA WAGNER

VALENTINA WAGNER

uma certidão de nascimento e um documento de identidade, mesmo depois dos seus 30 anos, além de serviços à saúde e acompanhamentos em outras necessidades básicas. “Já tive casa, fui casado, tive filhos, mas sempre acabei voltando para a rua. Acredito que aqui não é minha segunda casa, mas sim a primeira. Se eu tivesse que voltar no passado, acredito que faria a mesma coisa, pois aprendi até a ler na rua”. Hoje a Instituição Fé e Alegria conta com 36 profissionais Cristiano contratados: é catador de são cozinheilixo desde criança e ras, professores através do Fé e Alegria e profissionais conseguiu fazer uma socioeducativos. certidão de nascimento. Todos acreditam Aline e Douglas que ao assumir a trabalham diariamente posição de que o com os programas direito à educa“Ação rua” e “Serviços de Convivência e ção é, sobretuFortalecimento do, de aprender, de Vínculo” de construir a identidade e o sentimento de pertencer a um grupo social, faz-se necessário repensar o papel da escola dentro do contexto mais amplo, no qual ela, apesar de fundamental, não é a única responsável pela formação integral do ser humano, onde a proposta educativa ajude a fortalecer a ação popular de fé e alegria.

LUÍSA CAYE

om 1,5 milhão de pessoas mobilizadas em 4 mil centros educativos de 21 países da América Latina, da Europa e da África, a proposta educativa Fé e Alegria vem sendo construída com muitas mãos. Por meio dela, são oferecidas oportunidades aos mais pobres, em iniciativas de transformação social, com a perspectiva de defesa dos direitos já conquistados e da busca pelos que ainda não foram alcançados. Surgido no ano de 1955, o programa Fé e Alegria chegou em Porto Alegre apenas em 2005, no Bairro Farrapos, zona norte da capital. Douglas Röedel, 37 anos, formado em Serviço Social pelo Centro Social Metodista IPA, trabalha na instituição desde sua fundação e desde lá elabora diversas atividades com crianças, adolescentes, adultos e idosos. Douglas conta que o principal foco com crianças e adolescentes é tirá-los do trabalho infantil e mostrar para eles a importância da escolaridade e da convivência social nas suas vidas. Já com os adultos o principal foco é o auxílio moradia. Andreia de Oliveira, 41 anos, é uma das várias beneficiadas do Fé e Alegria. Seus filhos Letícia, de 15 anos e Vagner, de 12, frequentam a instituição todos os dias, no horário inverso ao da escola. Mãe de sete filhos, relata a diferença na vida de ambos para seus dois filhos mais velhos, que hoje estão presos. Um de 21 anos, no Presídio Central, e o outro com 17, que está na Fundação de Atendimento Sócio Educativa do Rio Grande do Sul. “A Letícia e o Vagner estudam no turno da manhã e vão para a organização todas as tardes. Lá eles ficam ‘trancados’ e longe de toda a maldade daqui de fora”. Isaac Antônio Nunes, 31 anos, esposo de Andreia, tem dois filhos ainda pequenos com ela. Ezequiel, de 6 anos, já está na fila para o programa. “Assim que a Thaís, de dois anos (caçula do casal), já tiver idade para entrar na instituição, iremos fazer inscrição, pois lá sabemos que eles estarão seguros”, afirma Isaac.

Aline Oliveira, 26 anos, é psicóloga formada pela UFRGS e trabalha no Fé e Alegria há dois anos. A jovem conta que existem três formas de entrada na vida da criança, para tirá-la do trabalho infantil. A primeira delas é a abordagem social, que ocorre nas ruas, com sistemáticas organizadas pelos membros da instituição, que percorrem as ruas e tentam perceber se tem alguma criança realizando atividades que não são próprias para a sua idade. Caso encontre alguma, a criança é abordada diversas vezes até gerar uma familiarização para a partir daí se pensar em atividades proporcionadas pela instituição, que ajudem essa criança e sua família. Além disso, existe a abordagem solicitada, em que a população solicita uma abordagem e também pode fazer uma denúncia. Outra forma é por encaminhamento da rede, onde, caso alguma família seja atendida por outra organização parceira com a prefeitura, elas possam realizar o cortejo dessa família até os programas oferecidos pelo Fé e Alegria. Douglas ainda conta que além das atividades com os beneficiados, a instituição promove encontros com unidades de saúde e serviços sociais para debaterem assuntos relacionados à população e pensar em propor medidas para a melhoria da vida social. Dentro da fundação existem dois programas, o “Ação Rua” e o “Serviços de convivência e fortalecimento de vínculo”. Aline conta que o serviço de convivência e fortalecimento de vínculo atende crianças no turno contrário da escola. Elas recebem, além das atividades, duas refeições por dia. Já o Ação Rua é baseado em um serviço de acompanhamento familiar e de indivíduos, dentro da política de assistência na trajetória de mediações de garantia dos direitos. “Dentro do acompanhamento com a família, que contém crianças em situações de trabalhos infantis, uma das estratégias é a oferta de espaço protetivo, como o serviço de convivência”, conta a psicóloga. Cristiano, 37 anos, catador de lixo desde criança, é morador de rua do Bairro Farrapos e um favorecido da “Ação e Rua”. Através do programa, Cristiano conseguiu fazer

JULIA SCHUTZ

Instituição Fé e Alegria transforma a vida de moradores do Bairro Farrapos


4. Geografia

ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS | PORTO

Movimento da Arena amp

Aumento das vendas em dias de jogos traz alívio financeiro para William Laux, dono do mercado Primo’s

O tricolor não é do Humaitá Inaugurada em dezembro de 2012, a Arena do Grêmio se impõe sobre os moradores do Bairro Farrapos. A chegada de um dos mais modernos estádios da América Latina movimentou o comércio local e gerou oportunidades de geração de renda para os moradores do entorno, principalmente em dias de jogos. No entanto, como pode ser observado em seu site oficial, o clube não “assume” o lugar como seu endereço e credita o empreendimento ao Bairro Humaitá, que faz divisa com o Farrapos, na zona norte de Porto Alegre, contradizendo a delimitação territorial definida pelo mapa oficial da prefeitura da Capital (ver página ao lado). Na visão majoritária dos moradores do Farrapos, o Grêmio escolhe ser identificado com o bairro vizinho pela diferença no nível socioeconômico entre as comunidades. Para Nathiele Vieira Elias, moradora da Vila Liberdade, a

preferência do tricolor pelo Humaitá faz com que os moradores do local se sintam menosprezados. “Lá são condomínios, e aqui é um vilarejo. Mas a Arena está no meio do povo humilde”, protesta. Nathiele reconhece que a Arena melhorou as atividades comerciais e trouxe oportunidades aos moradores, mas reclama da não identificação do clube com seu novo bairro-sede. “O povo daqui se sente desprezado”, conta a dona de casa. O técnico-eletricista e mecânico Daniel Freitas Alves, que reside na Vila Mário Quintana, a poucas quadras do estádio, concorda. “O Humaitá só começa para lá (faz sinal) da (Avenida) AJ Renner”, justifica. Seu vizinho, Osvaldo Rodrigues, que vive há 40 anos na comunidade, reforça a ideia de que a localização da Arena é atribuída ao bairro vizinho pelas diferenças sociais e econômicas. “Talvez seja por causa dos prédios grandes de lá, e por aqui ser mais velho”, presume o jardineiro

aposentado, que jamais assistiu a um jogo no moderno estádio. “Nem sei como é lá dentro, só vi pela televisão”. Rodrigues conta que a construção da Arena piorou o escoamento pluvial do bairro, mas ressalva que o estádio criou oportunidades e trouxe mais segurança à região, diminuindo as ocorrências relacionadas ao tráfico de drogas. Residente na última esquina da Rua VolunArena fica no tários da Pátria Bairro Farrapos; antes da Rua Padre moradores atribuem Leopoldo Bren- rejeição à diferença tano, a colorada socioeconômica torcedor que que Ana Paula Esturvem de longe chedio afirma que sua rotina não ga aqui perguntado pelo sofreu grandes alterações com H u m a i t á ”, ex p l i c a . a chegada do estádio - apenas Procurado pela reportagem, a renda da família aumentou, o Grêmio não se pronunciou já que seu filho utiliza a área sobre a razão de referenciar sua próxima à residência para esta- localização ao bairro Humaitá. cionar carros de torcedores que A assessoria do clube informou frequentam os jogos. Segundo apenas que, por orientação da ela, frequentadores mais assí- diretoria, não atende solicitaduos já reconhecem o Farra- ções do meio acadêmico. pos como sede da Arena. “Só o A Secretaria Municipal do

Meio Ambiente e da Sustentabilidade confirmou que o estádio fica no Bairro Farrapos, em conformidade com a mais recente lei de bairros, aprovada em 2016 pela Câmara de Vereadores. “Na legislação não consta sanções para quem não atribuir o bairro correto ao seu endereço”, completa a nota da secretaria. PAULO EGÍDIO PAULO ALBANO


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O ALEGRE (RS) | MARÇO/ABRIL DE 2018

plia arrecadação comercial Estabelecimentos aproveitam jogos do Grêmio para aumentar ganhos

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chegada de novos empreendimentos costuma ampliar a arrecadação comercial da região de sua instalação. Com a Arena do Grêmio não foi diferente: muitos moradores aproveitaram a oportunidade para ganhar dinheiro em atividades que vão desde a venda de cervejas no entorno até a abertura dos pátios de suas casas para que os torcedores estacionem seus carros. Um dos comércios que se beneficiou com a chegada da Arena ao bairro foi o Mercado Primo’s, localizado próximo ao estádio. Segundo o dono, William Laux, o movimento em dia de jogos chega a dobrar. Os torcedores e até mesmo alguns conselheiros vêm até aqui e compram, principalmente, produtos como cervejas e carnes. “Eu até empresto churrasqueira para eles assarem as carnes e comprarem as coisas aqui”, comenta William Mas Laux também reclama de problemas, causados por alguns torcedores. “Eles são passados, se

eu não chamo atenção assim que eles chegam, tenho problemas”. Segundo ele, esse tipo de torcedores já protagonizou casos de furtos em seu estabelecimento, motivo que o fez ficar atento ao que acontece em dias de jogos. Outro influenciado pela inauguração do estádio foi a Lavagem Arena. Um dos donos, Adam Pires Lucas, conta que o aumento do movimento não se deu exatamente nos dias de jogos, pois o estabelecimento não permanece aberto nos horários das partidas. Mas, sim, graças à chegada de novos moradores após a construção da casa gremista. O faturamento da empresa cresceu cerca de 30% desde o final de 2012. “Isso se deu, pois, muitas pessoas vieram morar aqui na região. Também houve a construção de uma escola e de novos estabelecimentos. Isso acabou impactando bastante no aumento da nossa clientela”, explica Adam. Não são apenas os estabelecimentos comerciais que lucram com a Arena em dias de jogos. Um desses casos é o do aposentado e colorado Henrique Cieplak. Morador da esquina das Avenidas Voluntários da Pátria e Padre Le-

opoldo Brentano, ele aproveita os jogos do seu time rival e abre seu portão para os torcedores deixarem seus carros. Lá, cabem até quatro automóveis. Cobrando entre R$ 20, em jogos pequenos e R$ 30, nos grandes, ele chega a lucrar até R$ 120 reais por jogo. Para Cieplak, essa é uma forma de conseguir uma renda extra no final do mês. “Mesmo sendo colorado, não posso perder essa oportunidade. Em meses com bastante jogos chego a ganhar R$ 500, e isso faz uma grande diferença na hora de pagar as contas”, conta. Quem também se aproveita do estádio tricolor para ganhar um dinheiro extra é a aposentada Patrícia de Oliveira, que cede sua casa para o Movimento Grêmio Multicampeão fazer churrascos e gelar cervejas em dias de jogos. Ela conta que possui um contrato anual que permite ao Movimento utilizar parte de sua casa. “Eles vêm aqui, utilizam minha geladeira, meu freezer e minha churrasqueira e ficam até o início dos jogos, depois pagam para a minha filha limpar, é um dinheiro que sempre ajuda nas minhas finanças”, explica Patrícia.

O VERMELHO NO MEIO DO AZUL

Um curioso caso do bairro é o Bar dos Colorados, local com aspecto antigo, onde grande parte de seus clientes é de cativos. O estabelecimento conta com uma pintura vermelha em suas paredes, além de um símbolo enorme do Internacional, e o Saci, mascote do clube, em uma parede ao fundo. O dono, Ari Borges, conta que o bar já funcionava muitos anos antes do maior rival do seu clube de coração se estabelecer na região. E ele não se importa com isso, pois conta que não ganhou clientes com a chegada do estádio gremista. Ari prefere vender bebidas para seus clientes fiéis, e não vai em busca dos clientes dos dias de jogos. Para esses, diz que só vende para os que estão de passagem pelo bar, e que não gosta quando param em seu estabelecimento para ficar bebendo. “Só vendo se eles comprarem e forem embora, se eles decidirem ficar aqui bebendo eu não vendo mais”, diz Ari. FERNANDO EIFLER CARLOS MOLINA

Conheça a localização do Farrapos ARTE DA PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE

O bairro Farrapos está localizado ao norte do município de Porto Alegre, entre os bairros Humaitá e Navegantes. Oficialmente, nasceu na data de 17/11/1988, conforme a lei nº 6218. Segundo informação do censo de 2000 do IBGE, possui 17.019 habitantes e sua área total é de 165 hectares. Dados mais recentes da prefeitura de Porto Alegre apontam que a população da Farrapos representa 1,26% da população do município e que sua área representaria 0,36% do total da cidade. Assim, a sua densidade demográfica ficaria em torno de 10,35 habitantes por quilômetro. Sua taxa de analfabetismo é de 7,2%, bem acima da média de Porto Alegre, que é de 2,3%, conforme dados do portal ObservaPOA. Essencialmente residencial, o bairro tem como os principais conjuntos habitacionais o Loteamento Castelo Branco e a Vila Esperança.

Possui, ainda, comunidades como Vila Liberdade, Beco X e Frederico Mentz. Com o crescimento populacional da região e da cidade de Porto Alegre, começou o processo de ocupação em alguns prédios residenciais. Atualmente, conta com uma unidade de saúde, além de pequenos comércios bem distribuídos pelo seu território. Os limites atuais do bairro são: ”Ao norte, desde o limite da faixa portuária seguindo pela avenida Padre Leopoldo Brentano em toda a sua extensão; ao leste, a partir do ponto de 35 encontro das avenidas Padre Leopoldo Brentano e a A.J. Renner, seguindo na extensão desta até a rua Dona Teodora; ao sul, pela rua Dona Teodora, desde a Avenida A. J. Renner até o ponto de encontro com a Dona Teodora com a rua Voluntários da Pátria, seguindo em linha perpendicular até e no sentido do Cais Marcílio Dias; a oeste, a partir

do Cais Marcílio Dias, na altura da rua Dona Teodora, daí seguindo no sentido da rua João Moreira Maciel até o limite da faixa pontuaria”. O bairro teve sua revitalização mais recente em 2017. Segundo a prefeitura de Porto Alegre, o principal objetivo de tudo foi proporcionar espaços de diversão e lazer para as comunidades locais. O início desse projeto foi na semana do 245° aniversário da Capital: houve algumas atividades recreativas realizadas com crianças residentes da Farrapos, como gincana, grafite e pinturas, além de atividades socioeducativas de conscientização ecológica, como o plantio de pequenos arbustos. Além disso foram doados materiais a diversas entidades para a realização do projeto arquitetônico que estava sendo realizado na região, incluindo o bairro vizinho Humaitá. ULISSES MACHADO


6. Saúde

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Comunidade empoderada Mães e filhas participaram da tarde de embelezamento e cuidados

No mês da mulher, a Unidade de Saúde Mario Quintana reforça o atendimento na comunidade

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alões vermelhos presos em uma pequena tenda no pátio de um posto de saúde no Bairro Farrapos. Crianças e mulheres com suas unhas pintadas, expondo o sorriso e fazendo brincadeiras. Foi a primeira vez que a Unidade de Saúde Mario Quintana levou o Projeto Saúde da Mulher, que estimula as mulheres da comunidade a realizarem exames. Para facilitar a vida das integrantes da comunidade que trabalham ao longo da semana, a Unidade de Saúde realizou, no dia 10 de março, uma ação que buscava incentivar as mulheres da região a fazerem os exames de saúde bucal, mamografia, coleta do preventivo de câncer de colo de útero e teste rápido de HIV e Sífilis, além de promover uma palestra sobre planejamento familiar. De acordo com a enfermeira Fernanda de Araújo Carneiro, de 40 anos, coordenadora da unidade, a ideia do projeto é promover uma troca com a população feminina presente. Para ganharem a sessão de manicure com alunas da Embeleze - que fez parceria na ação - elas precisaram assistir à palestra sobre planejamento familiar e fazer os exames

principais (preventivo e teste rápido). Rafaela Vanessa de Paula, de 18 anos, moradora do bairro que estava presente no projeto, comenta sobre a ação. “Estou gostando muito. Quero participar mais, caso tenha outras vezes”. Na situação, a manhã do sábado de 10 de março já havia superado os atendimentos, em comparação com outras ações, como a campanha de vacinação. Dos integrantes do posto presentes na equipe médica - dois enfermeiros, uma dentista, um médico geral - tinham agendados 12 pacientes cada um, sendo

atendimentos com média de 30 minutos. Além das consultas marcadas, os profissionais ainda prestaram serviços para a demanda do dia, que surgiram pela oportunidade de cuidar das unhas, sem agendamento prévio.

O OBJETIVO VAI ALÉM

Outro ponto que a enfermeira coordenadora da unidade ressalta é que o objetivo também é passar conhecimento para as adolescentes. Na região, como Fernanda comenta, é comum jovens serem gestantes. “É importante frisar que o foco é

a adolescente. Quando a pessoa já está com uma família constituída, ela já vai ter a preocupação de se cuidar, mas nosso problema maior é buscar a adolescência”. Ela ainda argumenta que se cuidar é pensar em si e que essa é a intenção das ações: fortalecer as jovens, ensinando que tudo acontece em fases, o dia-a-dia, a vida, tudo é feito por planejamentos e etapas. “A gente tem que colocar na mente dessas meninas que elas têm força pra isso e elas conseguem ser tudo o que elas quiserem” acrescenta a coordenadora.

Equipe médica que realizou o projeto pioneiro nas comunidades

QUANDO O DESTINO MOSTRA SUA FORÇA

Jéssica da Silva Bueno, de 26 anos, é a presidente da Associação de Moradores Mario Quintana. Por coincidência ou estratégia do destino, além de desempenhar as funções administrativas e trabalhar como cabeleireira, ela faz um curso de manicure pela Embeleze e descobriu, no dia, que estaria no bairro onde mora, ajudando num projeto tão empoderador e saudável. Como ela mesma observa, “quando a gente é pra tá num lugar, a gente tem que tá nele, né? Não saímos longe do nosso pé”. Sob a tenda azul enfeitada com bexigas, a representante da Associação conta, enquanto pinta as unhas de duas meninas, que o cargo foi passado pra ela de família. Sua história começou nas comunidades Tio Zeca e Areia. Em 1995, seu pai realocou todas as famílias que estão até hoje lá e, aos 47 anos, passou as funções de coordenação para as filhas. Hoje, a comunidade Mario Quintana abriga 500 pessoas e mais integrantes das comunidades ao redor, sendo algumas delas Liberdade, Pampa, Tecnológica, Saco do Cabral - entre outras. Todas elas são atendidas pela Unidade de Saúde Mario Quintana. JULIANA COIN RENAN LIMA


Cultura .7

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Berimbau chamou Grupo Olufé emociona crianças e moradores da comunidade

O

som do berimbau chamou a atenção de todos que passavam pela praça do Antigo Sesi, como é conhecida pelos moradores do Bairro Farrapos. Em um sábado pela manhã, o instrumento anunciava a chegada do professor Tchaka, junto dos demais integrantes do grupo Olúfé, que se reuniram na manhã de sol do dia dez de março. Tchaka preferiu usar apenas o seu apelido, que é uma questão muito forte dentro dessa prática, no qual há um tradicional batizado. É comum que os capoeiristas passem a ser conhecidos pela comunidade por sua denominação artística que, dentro do coletivo, tem mais força do que o próprio nome. O apelido pode vir de inúmeros motivos, como características, uma habilidade particular e até mesmo cidade de origem. Com 32 anos como capoeirista, ele pratica a modalidade desde os 13 anos. Começou na cidade de Guaíba. Conheceu o instrutor Daniel (na época era cordel amarelo e azul) e faziam parte do Grupo Guerreiros da Libertação do Mestre Farol. Hoje, trabalha com as crianças na associação dos moradores, no Bairro Humaitá, além de ministrar eventos livres uma vez por mês na Academia do Bairro Rubem Berta e se reunir em diversos locais e praças de Porto Alegre. A ideia é fazer essa prática ser cada vez mais reconhecida. “O

Governo não procura os filhos e hoje pratica O jogo de capoeira da incentivar esse esporpara levar seu neto, que te, onde quem divulga Praça Sesi representou é conhecido no grupo capoeira é capoeirista”. a importância do Olúfé como Sabiá. Ele O Grupo Olúfe surgiu respeito e a força gosta de confeccionar pela intenção de Mestre da união os seus próprios instruMarcelo e Mestre Bolívar mentos e presentear as de trazer um pouco de cultura e os crianças. Quando seu filho tinha seis valores da capoeira, principalmente anos, ele fazia capoeira na escola de em comunidades de periferia. De surdos Lilian Mazzerom. Foram 20 acordo com Tchaka, a Capoeira é anos praticando e participando de muito mais do que uma luta, pois diversos grupos de capoeira, como agrega um estilo de vida. “Ajuda o as aulas proporcionadas pela Espessoal a seguir um rumo mais certo. cola Famello. Lá, teve aula com o A periferia tem muita violência e que- professor Jorge, do Grupo Aruanda, remos levar o pessoal da comunidade onde recebeu a terceira graduação, a descobrir novos caminhos”. a da corda verde e amarela. Alguns integrantes do grupo já O evento na praça foi uma novivem de capoeira há muito tempo. vidade para a vizinhança. Mateus Miaguy começou acompanhando estava jogando bola com o seu filho e

nunca tinha visto e nem ouvido falar do grupo. “Acho que são importantes eventos desse tipo, pois reúnem as pessoas”. Ismael, que visita a sua mãe, moradora há 30 anos na comunidade, também disse que são poucas as vezes que se tem a oportunidade de presenciar esse tipo de cena. Foi um momento de abraços, troca de comunicação e afeto. Em meio aos movimentos de luta, músicas entoavam a realidade da desigualdade do Brasil e lembravam a sua história, já que a capoeira, mais do que um esporte nacional, teve papel essencial como uma resistência dos escravos no período do Brasil Colonial. Além disso, sua prática é benéfica para o alívio do estresse, para a saúde física e para o contato com a cultura africana. Lucimara, que tem um cunhado que participa do grupo, acha muito boa a interação entre a comunidade. “É uma energia muito boa, proporciona um contato. Acho que até une mais as pessoas do que religião”. O evento possibilita que os cidadãos possam conhecer essa atividade tão rica, que mistura arte marcial, esporte, cultura popular e muita música. Na roda de dez de março, deixou de existir raça. Ninguém se distinguiu por cor, por crença ou por idade para poder se envolver nas sensações proporcionadas pela atividade. Capoeira, me chama que eu vou. CORA ZORDAN JOSIANE SKIERESINSKI


ENFOQUE BAIRRO FARRAPOS

PORTO ALEGRE (RS)

EDIÇÃO

MARÇO/ABRIL DE 2018

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ENSAIO FOTOGRÁFICO

O cotidiano em perspectiva OTÁVIO HAIDRICH

A

miséria das comunidades carentes brasileiras é frequentemente identificada como parte da realidade do país, composta por problemas sociais, habitacionais, de saúde, segurança, e muitos outros, vividos por pessoas que batalham para sobreviver e melhorar suas vidas. Cercadas por mitos, preconceitos, ideologias e conflitos, esses ambientes são, muitas vezes, ignorados em sua perspectiva mais humana,aquela do cotidiano. Àsombra daArena do Grêmio,em

constante contraste com bairros mais abastados ao redor, se encontra o Bairro Farrapos, onde a precariedade de moradia, do saneamento básico problemático, de ruas mal ou não pavimentadas, e esgoto a céu aberto são reflexos do descaso e descuido dos órgãos responsáveis. Passar pelas ruas e vielas do Bairro Farrapos nos leva a um exercício de imaginação: pensar em cada vida que que está lá, sua história e respectivos futuros. O movimento da comunidade em um sábado é pacato e remete

a uma vida em modo lento, na qual o tempo parece quase parar. Nas ruas as crianças brincam,idosos sentam em frente às suas casas e famílias se divertem e interagem, mantendo um clima de felicidade em suas vidas, mesmo em meio a uma situação adversa. Ainda assim, não deixam de se indignar e, ao mesmo tempo, desejar uma vida melhor. Mantêm o queixo erguido, com determinação pela sobrevivência,que se vê estampada no rosto dos moradores e em suas batalhas diárias. CAROLINA SANTOS

LUCAS BRAGA

LUCAS BRAGA

LUCAS BRAGA

LUCAS BRAGA

CAROLINA SANTOS

LUCAS BRAGA

OTÁVIO HAIDRICH


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