Enfoque Santa Marta 10

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ENFOQUE SANTA MARTA

SÃO LEOPOLDO / RS SETEMBRO / OUTUBRO DE 2018

EDIÇÃO

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LOHANA SOUZA

VIDAS PREJUDICADAS

ASSOCIAÇÃO AGORA TEM CNPJ Registro oficial é condição para ter acesso às políticas públicas. Página 5

TENDÊNCIAS ELEITORAIS

Feita antes da exclusão, pesquisa mostra Lula como o preferido. Página 7

SUÉLEN PEREIRA

DOUGLAS GLIER SCHUTZ

IURY RAMOS

CORTE NAS APOSENTADORIAS E AUXÍLIOS-DOENÇA DO INSS POR ORDEM DO GOVERNO PREOCUPA MORADORES PÁGINA 3

A SANTA INSPIRADORA

A história do nome da Vila e sua vocação solidária e comunitária. Página 9


2. Editorial

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A Vila vai às urnas

m sua décima edição, o Enfoque Santa Marta traz certa peculiaridade, pois estamos em época de eleições nacionais. Neste importante momento para o país, não poderíamos deixar de ouvir os moradores de uma vila que tanto sofre com o descaso do poder público. Afinal, quais são as promessas feitas durante esse período eleitoral? O que motiva os eleitores da Vila a votarem? Confira na página

central a pesquisa de opinião com os moradores. Também vamos conhecer a origem do nome da Vila, assim como o de alguns de seus moradores. Essa Vila Santa Marta, tão cheia de histórias e batalhas. Lutas como a dos catadores que trabalham recolhendo os resíduos, deixando a Vila mais limpa. Em meio às dificuldades enfrentadas diariamente por ali, como a falta energia elétrica ou de ruas asfalta-

das, também existem os momentos de alegria. Como a conquista do tão esperado CNPJ da Associação de Moradores ou a canalização de pelo menos uma de suas ruas. Ainda tem muito que ser feito, mas é aos poucos que as coisas acontecem. Nos admiramos com a simpatia, hospitalidade e força dos moradores. Somos gratos pela acolhida, todas as histórias que ouvimos e cenas que fotografamos.

A Vila Santa Marta é única. Tem histórias que só podem ser de lá, como o caso da dona Veroni, que com 45 anos de vida, não tem um registro sequer. Mas no fundo essa vila não é tão diferente assim das outras. Tem tristeza e alegria. Tem morte e dor, mas também muita vida. Há quem, apesar de todos os problemas, arruma tempo para o trabalho voluntário, melhorando a vida do próximo e a própria. Tem bar, igre-

ja e terreiro, mas tem respeito. Tem escolinha de futebol para os guris e para as gurias. Tem paixão por Inter e Grêmio. Tem muito bicho abandonado, mas também há quem cuide deles com amor e afeto. Tem idoso sofrendo pela perda do INSS e jovem lutando para conquistar um futuro melhor. ESTEPHANI RICHTER LUCAS GIRARDI OTT ÂNGELO SANTOS

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Santa Marta é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Santa Marta, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares e três edições por semestre, é distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo. Edelberto Behs (Coordenador do Curso de Jornalismo): (51) 3591.1122, ramal 1354 / edelbertob@unisinos.br Pedro Luiz S. Osório (professor responsável): posorio@unisinos.br

EDIÇÃO E REPORTAGEM — Disciplina: Jornalismo Cidadão. Orientação: Pedro Luiz S. Osório. Edição de textos: Bibiana Faleiro, Estephani Luana Richter Gehrke, Lucas Girardi Ott, Mariana Artioli de Moraes, Nicole Thaís, Roth, Vanessa Dias da Fontoura e Victória Rambo Lima. Edição de fotos: Paola Pereira Guimarães. Reportagem: Arthur Menezes de Jesus, Artur Cardoso Colombo, Bibiana Faleiro, Caroline Santos dos Santos Tentardini, Eduarda Bitencourt de Oliveira, Eduarda Guilhermano Rocha, Estephani Luana Richter Gehrke, Franciele Arnold Pereira, Gabriel Appelt Nunes, Iara Jaqueline Baldissera, Laura Hahner Nienow, Lucas Girardi Ott, Marcelo Janssen Neri da Silva, Mariana Artioli de Moraes, Martina Belotto Michaelsen, Natan Magri Cauduro, Nicole Thaís Roth, Paola Pereira Guimarães, Thanise Melo da Silva, Vanessa Dias da Fontoura, Victória Rambo de Lima, Vitor dos Santos Brandão da Silva e William Gonçalves Lima Martins. FOTOGRAFIA — Disciplina: Fotojornalismo. Orientação: Flávio Dutra. Fotos: Aline Grubert, Amanda Krohn, Ângelo Santos, Arthur Eduardo, Bruno Flores, Daniela Gonzatto, Douglas Glier Schutz, Gabriela da Silva, Gustavo Machado, Henrique Abrahao, Iury Ramos, José Hameyer, Juliane Kerschner, Laura Rolim, Leila Donhauser, Lohana Souza, Luciano Pacheco, Mateus Friedrich, Milla Lima, Roberta Alano, Suélen Pereira, Suélen Hammes Rodrigues, Tainara Pietrobelli, Thais Ramirez e Vanessa Wagner. ARTE — Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. IMPRESSÃO — Realização: Gráfica UMA / Grupo RBS. Tiragem: 1.000 exemplares.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: Pedro Gilberto Gomes. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Alsones Balestrin. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente dos Cursos de Graduação: Paula Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


Comunidade .3

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Moradores lutam para readquirir benefício do INSS Pente fino do INSS corta aposentadorias por invalidez e benefícios auxíliodoença na Santa Marta

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m 2018, 178 mil brasileiros já passaram por perícia médica devido ao pente-fino do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). O foco? Aposentados por invalidez e beneficiários do auxílio-doença. A medida foi anunciada em 2016 pelo ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, e vem se concretizando desde então. A previsão é que, no final do processo, mais de 1,5 milhões de perícias sejam feitas e 20% de benefícios cortados. A situação no Rio Grande do Sul não foi diferente da do resto do país. Desde 2016, mais de 100 mil gaúchos passaram pelo processo da perícia. Desse número, mais de 60 mil bolsas-auxílio foram cortadas e aproximadamente nove mil aposentadorias por invalidez negadas. Ao total, são 84% de auxílios-doença a menos e 30% de aposentadorias negadas no estado. O número de cortes não foi especificado por município, mas em São Leopoldo, na Vila Santa Marta, eles se transformam em histórias que carregam a espera para que a situação se regularize.

Veroni carrega na pasta azul todos os documentos referente à aposentadoria

Jorge possuía auxílio devido a problemas cardíacos; em abril, o pagamento foi cortado

tanto, demora e, sem ele, Veroni não consegue reaver o benefício. A esperança, para ela, fica dentro de uma pasta azul, onde carrega todos os documentos, laudos, atestados e pedidos de encaminhamento. Para Veroni, o pagamento da aposentadoria é a forma de sustentar a casa e as duas filhas de 14 e oito anos. Com o valor suspenso, a pensão que recebe das filhas não é suficiente. “Estou com dois talões de água atrasados, a luz também. Não tem como pagar, não tenho de onde tirar. Eu não tenho nem como comprar os remédios, estou desesperada”, desabafa ela.

BENEFÍCIO CORTADO

A luta de Veroni, é a mesma que ocorre na casa de Jorge Santos Pereira. Beneficiário do auxílio-doença durante três anos, ele teve o benefício suspenso em abril de 2018, em uma das primeiras leva de cortes do INSS. Conhecido como Jorjão, o apelido que representa solidez e força não condiz com a situação do coração de Jorge. Tendo passado por quatro cateterismos, ele ainda sofre de disritmia e busca na justiça uma forma de recuperar o pagamento. Os problemas cardíacos começaram quando Jorge tinha 30 anos. Com a maior parte da vida de trabaAPOSENTADORIA NEGADA lho dedicada a obras e à construção Veroni Vas da Silva é uma das civil, Jorge conseguiu o benefício pessoas que sofreu corte na aposen- pelo fato de ter sempre contribuído tadoria por invalidez. Com cálculos ao INSS, mesmo que não tivesse a renais em ambos os rins, ela havia carteira assinada. Antes, os trabalhos se aposentado cinco anos antes, aos se multiplicavam e ele conseguia dar 40. Na época, Veroni desmaiou de conta de tudo. “Hoje, não consigo dor durante a jorcarregar um saco de nada de trabalho e, cimento. Quando assim, descobriu os “Estou com dois me chamam para cálculos. A aposenuma obra, eu levo tadoria veio logo talões de água meus filhos para após e se manteve atrasados, a luz fazerem o serviço durante os anos pesado”, explica subsequentes até também. Não tem o morador. agora. “Eu acor- como pagar, não Atualmente, dei no hospital, e Jorge mora com a o médico contou tenho de onde tirar. esposa e três filhos. que eu havia che- Não tenho nem O filho mais velho gado desmaiada. ainda ajuda em alcomo comprar os E daí foi dor e dor. gumas despesas, Fiquei dois meses remédios, estou fazendo pequenos no Hospital Cen- desesperada” trabalhos na Vila. tenário e depois O benefício negado comecei a consul- VERONI VAS DA SILVA veio junto de mais tar no posto da complicações. FuCampestre”, conta. mante por boa parAtualmente, os remédios já não te de seus 50 anos, ele recentemente fazem mais efeito e a vida marcada descobriu um tumor na garganta. A pela dor e complicações ganhou um espera agora é companheira consnovo capítulo na última consulta tante, tanto para marcar as consulantes do corte da aposentadoria. O tas quanto para as resoluções do médico do posto de saúde solicitou advogado sobre os próximos passos o encaminhamento para a cirurgia, para ter o benefício de volta. pois os cálculos que a privaram do EDUARDA BITENCOURT trabalho deveriam ser retirados. O LOHANA SOUZA agendamento da operação, entre-


4. Comunidade

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Rua 6 recebe canalização, mas ainda não é suficiente A situação continua crítica. Mesmo com a canalização, quando chove, as casas enchem de sujeira

toda a sujeira que vinha do alto. Segundo o morador, as crianças da rua costumam brincar em frente a sua casa, justamente por ser um dos melhores locais daquela via. Com uma pá, ele tirava o barro da rua, acumulado com a chuva do dia anterior, para assim secar mais rápido. Ele acredita que, a prefeitura deveria tomar uma providência, mas os moradores também precisam cooperar, cuidando do seu terreno, respeitando o do vizinho e não jogando o lixo na rua. “Eu digo, 50% é da prefeitura e 50% é nosso”, opina. Para o servente, o pior é o fato de muitos moradores estarem pagando por um esgoto inexistente.

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o início do mês de agosto, foi realizada uma canalização na Rua 6 no bairro Santa Marta, mas os moradores afirmam não perceber muita diferença. No local, foi instalada a rede de esgoto do lado esquerdo da rua, onde havia uma vala aberta. As obras foram realizadas pela equipe do Serviço Municipal de Água e Esgotos de São Leopoldo (Semae). Os serviços duraram cerca de duas semanas. Jéssica Gonçalves, 27, além de ser moradora da Vila, a jovem também é funcionária do gabinete de um vereador da cidade. Sabendo das necessidades do bairro, levou as queixas ao poder público. A canalização da Rua 6 foi uma das reivindicações. Quando a equipe do Semae chegou até o local para fazer o serviço, viu que já havia uma rede até a metade da rua, contando com duas bocas de lobo. Com isso, eles finalizaram a canalização do lado esquerdo. Jéssica afirma que existem planos para fazer a canalização também do lado direito da Rua 6, mas não há data prevista para isso. Ela também explica que a única coisa que o Semae pode fazer é a canalização da rua, a ligação das casas até a rede depende dos próprios moradores. Segundo lhe informaram os técnicos do Semae, o fato da canalização ser só do lado esquerdo, não impedia “que vizinhos tanto do lado esquerdo como do lado direito ligassem na rede”, aclara Jéssica.

POUCAS MELHORAS

Veroni Vas da Silva, 46, está afastada do mercado de trabalho por problemas de saúde. Com a canalização, a situação da sua casa, que já não é muito boa, devido ao pátio todo encharcado por causa de uma vertente de água, melhorou bastante. Antes todo esgoto da rua parava na frente do seu portão. “Vinha fezes, do lado de cima e paravam aqui, dava nojo”, relembra. Ela já buscou conseguir o benefício do programa “Minha casa, minha vida”, para morar em condições melhores, mas por não ter condições de pagar, não obteve. Dos cinco filhos de Veroni, apenas as duas menores moram com ela, Gabriela da Silva,

SEMPRE SOFRENDO

Pedro ajuda a manter a rua em bom estado e acredita que todos deveriam fazer o mesmo

Com canalização apenas no lado esquerdo, ainda não há previsão para obras no outro lado da rua

A canalização trouxe melhorias para Veroni. Seu pátio está sempre encharcado devido a uma vertente, mas agora o esgoto dos vizinhos não para mais na porta de sua casa

de 14 anos e Dienifer da Silva, 8. As meninas vivem uma falsa liberdade, pois, devido a umidade encontrada ao colocar os pés fora de casa, não podem sequer brincar no quintal. Ao serem questionadas sobre como fazem para se divertir, Brenda diz, com tristeza no olhar, que não brinca, já Dienifer relata que não pode brincar no pátio, só dentro de casa.

AÇÃO VOLUNTÁRIA

O servente geral da Cooperativa da Usina, Pedro Paulo de Vargas, 66, mora há 38 anos na

Vila, sendo 24 na Rua 6. Ele conta como sempre sofreu com as sujeiras que vinham até sua residência, por isso, há cerca de cinco anos, vem fazendo melhorias na casa para evitar os contratempos. Sua casa, que era de madeira, hoje é de material. Também levantou o muro para o barro não atravessar o pátio. A casa de Vargas é na parte mais baixa e plana da Rua 6. Há três anos, conseguiu, com a ajuda de vizinhos, melhorar um pouco a situação do esgoto na primeira quadra, onde parava

A dona de casa, Josy Maria Birch, 54, diz que não houve nenhuma canalização, apenas colocaram a boca de lobo na parte baixa da rua, porém o esgoto continua a céu aberto. Quando chove, toda a sujeira da parte mais alta desce e entra na casa dela, causando muita sujeira. “Não tem nada canalizado, não tem cano”, afirma. Na falta do esgoto, cada um faz como pode. Por exemplo, na casa de Josy, por não ter caimento, ela colocou os canos passando pelo pátio do vizinho até o valo mais próximo. Por ser diabética, Josy precisou amputar parte do pé, o ferimento ainda está cicatrizando e precisa de cuidados. Quando acontecem essas invasões de barro no seu pátio e o filho não está em casa para ajudá-la, ela se obriga a ensacar o pé, para não molhar, e assim limpar toda a sujeira. “O meu pátio é o pior de todos, porque entra tudo, a enxurrada vem lá de cima, o lixo vem tudo lá de cima e entra aqui”, protesta. Segundo Josy, os buracos na estrada até amenizam um pouco a situação. “Pra mim é até melhor, não entra tanto, porque quando a rua tá ‘parelinha’ entra tudo pra dentro do meu pátio”. Ela conta que os moradores já fizeram um abaixo assinado solicitando providências da prefeitura, mas o problema ainda não foi solucionado e a única coisa feita foi a instalação de duas bocas de lobo. ESTEPHANI RICHTER ÂNGELO SANTOS


Comunidade .5

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Associação conquista registro O que é CNPJ

Diretoria regulariza associação junto à Receita Federal

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ara ter espaço junto ao poder público e acesso às políticas públicas, como saúde, educação, segurança, saneamento básico, mobilidade e lazer, toda a associação de moradores deve estar declarada junto à Receita Federal. A Santa Marta foi registrada no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) em 1996, mas, devido às dificuldades de gestões passadas, a inscrição se tornou inválida em 2008. Em 2014, Dilce Maria da Rosa tomou posse da presidência da associação e ficou desapontada ao deparar-se com a situação. “Cheguei com vários projetos para a Vila e todos trancaram por causa da falta de documentação”, conta a presidente. Sem ter os papéis organizados, a associação é incapaz de solicitar orçamentos, requerer recursos públicos, desenvolver projetos e se inscrever em programas sociais a nível municipal. Assim, Dilce decidiu que organizar toda a papelada seria um dos principais focos da sua gestão. Foi isso que

CNPJ é um cadastro em que todas as pessoas jurídicas são obrigadas a se inscrever antes de iniciar as suas atividades. Para a pessoa jurídica, o CNPJ tem a mesma função do CPF (Cadastro Pessoa Física) para o cidadão, ou seja, uma identificação perante a Receita Federal do Brasil, que é o órgão responsável por administrar os cadastros de Pessoa Física e de Pessoa Jurídica.

Dilce e Ronaldo comemoram a regularização ela fez. No dia 11 de agosto de 2018, depois de 10 anos, a associação foi regulamentada, e o CNPJ foi reativado. “Ter esse CNPJ na mão é um orgulho”, conta Dilce, com a sensação de dever cumprido: “todos duvidaram, mas eu consegui”. Mas por que o CNPJ ficou baixado por tanto tempo? “O mais difícil foi achar os dados do presidente da época. Sem eles, não conseguíamos levar a demanda adiante”, explica Dilce. Os documentos da gestão que cadastrou a associação junto à Receita Fe-

deral foram perdidos. O contabilista Ronaldo Duarte Camargo trabalhou na Santa Marta um ano e meio para regularizar toda a documentação. De acordo com ele, o que ocorreu com o registro da associação da Vila é muito comum. “Falta qualificação nas diretorias. Normalmente não sabem a

“Ter esse CNPJ na mão é um orgulho. Todos duvidaram, mas eu consegui”

finalidade do trabalho comunitário e, por isso, ocorrem falhas como esta. Um bairro não cresce sem força e não tem força sem conhecimento”, explica. Ronaldo fornece serviço contábil para outras 18 associações de São Leopoldo. “O terceiro setor, organizações de iniciativa privada, que prestam serviços de caráter, sem fins lucrativos, é muito forte na cidade”, conta, ao destacar que toda a associação de moradores deve ser apartidária, independentemente do governo que atue na região.

NOVOS PLANOS

Além de continuar atuando em defesa de direitos

sociais dos moradores e divulgando informações à comunidade, Dilce tem muitos projetos futuros para a “nova” associação: cursos de artesanato, internet para a comunidade, reforma e manutenção do prédio, regularização fundiária, cozinha comunitária e praça ao ar livre para as horas de lazer.

JUNTOS PELA VILA

Associações não se sustentam sem a participação dos moradores da região a qual atendem. Participar de eventos promovidos pela associação para arrecadar dinheiro, bem como comparecer às reuniões de moradores é fundamental para colecionar conquistas, e gerar boa convivência entre os habitantes e dar visibilidade ao comércio e aos serviços da região. “Nos unimos, mostramos a força do nosso bairro, ou ficamos à mercê de prejuízos sociais”, conta o contabilista Ronaldo. Em dezembro chega ao fim o mandato da atual presidente, mas a luta por uma comunidade cada dia melhor continua. LAURA HAHNER NIENOW IURY RAMOS

Melhorias ficam só na promessa Em ano de eleições, o número de campanha política aumenta consideravelmente pelas ruas da Vila Santa Marta, em São Leopoldo. Com mais de cinco mil habitantes, a procura por votos é grande no local e, assim, surgem as promessas de melhorias nas condições de moradia para a população. Segundo Paulo Cesar Prestes, 38 anos, que há três anos é vice-presidente da Associação de Moradores, as principais promessas giram em torno de pavimentação, esgoto e iluminação. “Em época de eleição, a gente se reúne com os candidatos, apresenta as nossas principais reclamações, mas aí eles se elegem e esquecem, ou não fazem o que cumpriram”, diz Prestes. Ele salienta que uma das poucas promessas cumpridas pelos candidatos foi a da energia elétrica. “Há uns

um valor de R$ 700 a instalação. “É bem ruim sair na rua de noite. É escuro, não tem como enxergar. A gente costuma andar em grupo de noite, por questão de segurança”, explica o morador.

PAVIMENTAÇÃO

Claudio indica até onde foi instalada a iluminação perto de sua casa dois anos, um candidato veio aqui e prometeu postes de luzes nas ruas, que muitas não têm. Ele cumpriu, mas fez até um pedaço e o resto ficou no escuro”, relata. Porém, segundo o pedreiro Claudio Roberto da Silva, 45 anos, morador da

A casa de Ismael fica na divisa da parte pavimentada da rua com a estrada de barro

Rua 9, a demanda não foi cumprida. Há 13 anos no local, uma de suas principais preocupações é iluminação da rua em que reside. Ele afirma que, desde que se mudou para lá, essa necessidade ficou somente no papel. De acordo com Silva, é

perigoso sair à rua à noite: “Não deixo meus filhos saírem por que é muito escuro, é só da casa para a igreja e da igreja para a casa”. Conforme diz o pedreiro, os postes que existem perto de sua residência foram colocados pelos próprios moradores a

Ismael Soares Cunha, 32 anos, reside há oito anos em uma casa na Rua 1, a principal da Vila. Sua residência tem uma peculiaridade: fica na divisa da parte pavimentada com a estrada de barro, que leva ao lar dos outros moradores. Ele afirma que, quando chegou ao local, já era assim. A obra nunca continuou. “A conversa que a gente escuta é de que vai continuar a pavimentação, mas ficou só na promessa”, reclama Cunha. VANESSA FONTOURA GUSTAVO MACHADO


6. Política

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Eleitores do bairro estão desmotivados Moradores estão pouco confiantes, muitos sem saber em qual candidato votar nas eleições gerais deste ano, cujo primeiro turno acontece em 7 de outubro

“T

em aquela história, candidato é que nem lagarto: o lagarto só sai no verão, e o candidato só nas eleições”, diz Enir Juscelino Hübner, meio brincando, meio falando sério. O metalúrgico, de 55 anos, mora na Santa Marta há 24 anos. A afirmação de Enir reflete a opinião de vários moradores, que demonstram desânimo ao falarem das eleições marcadas para acontecerem, em outubro, no

Brasil. Para eles, há pouca perspectiva de que o cenário político e econômico do país melhore após o pleito. Avanços, em muitas áreas, são necessários para os moradores da Santa Marta, e o setor que aparece, quase com unanimidade, é o da saúde. Para muitos, um plano para reestruturar e melhorar os atendimentos aos pacientes no Estado e mesmo no bairro - seria um fator decisivo na hora de escolher seu candidato. Para outros, é a educação. “Como a gente é mais pobre, sentimos falta disso. Aqui no bairro são poucos que vão fazer faculdade”, comenta Sabrina Feijó, vendedora de 22 anos.

VOTO POR OBRIGAÇÃO

Sabrina diz não ter interesse pelo processo eleitoral – vota, pois é obrigada a participar das eleições. “Eu não gosto muito de eleição, nas primeiras vezes em que votei, votei nulo.” Para o pleito de outubro, ela não tem candidato. “Nem pesquisei nem quero. Por mim, nem votaria”, afirma. Assim como para outros moradores, não é o deslocamento e o tempo para chegar à urna que a desmotiva de exercer a cidadania. Isso porque a jovem vota na Escola de Ensino Fundamental Santa Marta, localizada dentro da Vila. Quem propõe uma mudança drástica é Edison da Silva Vieira, de 46 anos. O dono

do Bazar Silva acredita que não deveria haver eleições neste ano. “Eu sempre votei, nunca anulei o voto. Mas agora não sei em quem votar”. “O que tinha que acontecer no nosso país era ninguém mais ir votar, pelo menos em uma eleição. Virar uma notícia na televisão, uma coisa de primeiro mundo. Isso aí é um protesto. É um protesto unido”, considera.

Para eles, há pouca perspectiva de que o cenário político e econômico do país melhore após o pleito

Ao contrário dos que não sentem motivação nem para procurar informações sobre a eleição, Irno Engel, motorista de 52 anos, ainda sente que esse é um dever seu. “Eu acompanho os debates, leio jornal. Tu tem que te informar”, mesmo que, como ele diz, as propostas “são todas iguais”. Questionado sobre quais ideias o interessariam, ele faz um pedido que chama atenção: “Coisas sinceras. Que não procurassem a gente só em época de eleição. Agora começa a aparecer todo mundo, com mil e uma propostas. Faça uma proposta diferente... algo que seja plausível.” NICOLE ROTH GABRIELA DA SILVA

NAS PALAVRAS DELES Moradores da Santa Marta dão seus depoimentos sobre suas necessidades e motivações, na expectativa das eleições de outubro deste ano

SABRINA FEIJÓ, 22 ANOS, VENDEDORA

EDISON DA SILVA VIEIRA, 46 ANOS, EMPRESÁRIO

ENIR HÜBNER, 55 ANOS, METALÚRGICO

“Acho que a saúde deveria vir em primeiro lugar. Há uma falta de interesse dos médicos, e o dinheiro público é mal direcionado. Não dão importância para o SUS.”

“Não adianta ir fazer protesto, querer queimar pneu, trancar o trânsito. O que tinha que acontecer era ninguém mais ir votar. Eu pagava os R$ 3,00 [de multa por não votar nas eleições] e não votava. Mas vou votar, tenho que escolher.”

“Não dá para perder a esperança, mas está difícil. Faz uns cinco anos que sinto isso. No Rio Grande do Sul, as coisas estão piores há uns dois anos. Talvez isso vinha de antes, mas não tínhamos percebido.”

ARNO ROSA, 49 ANOS, COMERCIANTE

CLEONI DOS SANTOS, 47 ANOS, COMERCIANTE

IRNO ENGEL, 52 ANOS, MOTORISTA

“Acho que a primeira coisa que deveriam melhorar é a segurança. Devíamos ter propostas para geração de empregos. Não tenho esperança para a eleição. Por causa da corrupção…a gente fica perdido.A única coisa que eu tenho na cabeça é o presidente: vou votar no Bolsonaro.”

“Vou ser bem sincera: eu não acredito que vai ser dessa vez que a gente vai ter alguém competente para apresentar um plano bom de saúde ou segurança. Está bem estranha a nossa política. Estou bem descrente. Não tenho acompanhado debates.”

“Não tem como acreditar que as coisas vão mudar. É só promessa. Coisas acontecem, mostram uma mala cheia de dinheiro, e ninguém faz nada. Aqui, você rouba uma galinha para matar a fome dos seus filhos, e aí você é preso.”


Política .7

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Em quem a Vila Santa Marta vai votar para presidente? Ex-presidente Lula liderava a intenção de voto. A pesquisa foi realizada pelo Enfoque antes do candidato ser excluído da disputa

F

altando 40 dias para as eleições que escolherão o próximo presidente do Brasil, moradores da Vila Santa Marta participaram de uma pesquisa de intenção de voto realizada pelo Enfoque. Na manhã de 25 de agosto, 34 eleitores e eleitoras mostraram que o pensamento político do bairro é muito parecido com o do restante do país ao responder à pergunta: “Se as eleições fossem hoje e os candidatos fossem esses, em quem você votaria para presidente?”. Para 41% dos entrevistados, o ex-presidente Lula (PT) deveria voltar à presi-

dência. Em segundo lugar, o deputado Jair Bolsonaro (PSL) teve a preferência de 15% dos entrevistados, mesmo percentual de brancos e nulos. Como a candidatura de Lula estava indefinida no momento da realização da pesquisa, um segundo cenário tinha Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo e vice na chapa petista, como seu substituto. Com essas opções, os indecisos lideraram com 32% e Bolsonaro subiu para 20%, novamente empatando com a intenção de brancos e nulos. A pesquisa também mediu o índice de rejeição dos

Sem Lula, Bolsonaro leva vantagem. Mas predominam os indecisos

moradores da Santa Marta aos candidatos que disputam a presidência neste ano. Neste sentido, Bolsonaro lidera com 38%, seguido de Lula com 26%.

PERFIL DOS ENTREVISTADOS

Das 34 pessoas que participaram, 53% informaram ser do gênero masculino e 47% do feminino. Um dos aspectos que se pode constatar com a pesquisa é o fato de que a candidatura de Lula é mais benquista entre as eleitoras;44% delas afirmam que vão votar no candidato, contra 39% dos homens. O índice de escolaridade daqueles que responderam à pesquisa é baixo, 56% não possui o fundamental completo, enquanto somente 17% informou ter completado o fundamental. Quanto

à realização de algum curso superior, apenas 3% dos entrevistados completou esta etapa da escolaridade, empatados com aqueles que não completaram, também com 3%. Com 46% dos votos, o eleitorado que possui ensino fundamental completo ou incompleto escolheu Lula como candidato. Indecisos vêm logo em seguida, sendo 23%, e brancos e nulos, 19% do eleitorado com baixa escolaridade. Aqueles que possuem superior completo ou incompleto chegaram a um empate. Assim, 50% afirmaram votar em Bolsonaro; já os outros 50% afirmaram estar indecisos.

OPINIÃO DOS QUE GANHAM MENOS

Com relação à renda, 26,3% do eleitorado in-

formou que recebe de R$ 501,00 a mil reais; 18% disse receber menos de R$ 500, ou seja, 44% dos 34 entrevistados recebe cerca de um, ou menos que um, salário mínimo por mês (o salário mínimo está fixado em R$ 954,00), 53% desses eleitores elegem Lula como candidato. Já os que possuem renda de R$ 1.001,00 a dois mil reais e de R$ 2.001,00 a cinco mil, compõem 26,3% do eleitorado entrevistado. Em um cenário com Lula, este eleitorado elege o candidato por 31% dos votos; sem o candidato do PT na corrida eleitoral, estes mesmos eleitores elegem Jair Bolsonaro, com 37%, seguido dos indecisos com 31% dos votos. ARTUR CARDOSO COLOMBO

GRÁFICOS ILUSTRAM OPINIÃO DOS ELEITORES Segundo dados do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), há 1.559 eleitores aptos a votarem nas cinco seções localizadas na EMEF Santa Marta


8. História

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Vilson Prestes é um dos fundadores da Vila Santa Marta e ajudou a criar a Associação de Moradores, que é a base da comunidade

Origens da Vila Santa Marta Relatos que ajudam a criar a identidade local evocam um bairro que, apesar dos problemas, é cada dia mais solidário

Q

uem entra pela estrada principal da Santa Marta, nem imagina o passado coberto por tocos de eucalipto e seis casinhas pequenas que formavam o bairro. Hoje, são mais de mil famílias que entregam suas esperanças para a terra de uma Vila em ascensão.Entre os sorrisos e o cumprimento de todo domingo, a história de cada um que chega, traduz um pouquinho da própria Santa Marta. Há cerca de 28 anos, começaram a chegar as primeiras famílias para tornar o bairro uma comunidade. Acostumado com os pincéis e rolos de tinta nas mãos, Valter Luís Correa, 60, é conhecido pelo apelido de Macaco. Ele é natural de Porto Alegre, onde conheceu a esposa e criou as duas filhas. Pagando o aluguel que só aumentava, as dificuldades foram crescendo e eles viram na Santa Marta uma oportunidade de recomeço. Ele lembra que a primeira

ação para a Vila foi a criação de uma associação de moradores,dirigida por Vilson Prestes, 74, um dos fundadores da Santa Marta. Com a bengala na mão esquerda e o andar cambaleante devido ao peso da experiência, Seu Vilson lembra como tudo começou. Natural de Tucunduva, passou a infância no município de Três Passos. Dos 15 aos 23 anos, período da ditadura militar, morou em El Dorado, na Argentina, onde conheceu a esposa brasileira. Lá nasceu Maria Helena, a primeira dos quatro filhos do casal.

PRIMEIROS TEMPOS

Quando chegou a São Leopoldo, em 1982, sua trajetória, que quase se confunde com a história da Santa Marta, passou por muitos caminhos: pelo Conselho de Desenvolvimento da Comunidade do município, por chão de fábricas e por programas comunitários, como o PAS - Programa Auxílio Solidário. Aposentou-se pela Secretaria de Serviços Públicos de São Leopoldo. Quando ainda era morador da Vila Antônio Leite, Seu Vilson foi convidado para organizar Santa Marta, um lugar que carecia de recursos básicos

e cujo acesso se limitava a duas ao postinho de saúde e à Escola ruas mal estruturadas. Municipal da Santa Marta. Ele ficou responsável por disQuando a Vila começou a tribuir os lotes de terra para as ganhar forma, famílias como a famílias mais necessitadas, em de Maria Helena Saraiva deixauma espécie de recolonização ram a vida da metrópole para da Vila.Viu as primeiras casinhas comprar uma casinha em uma serem construíSanta Marta cada das e ajudou a vez maior.A princontar histórias Os causos de cada cipal necessidade muitos Valde era ar fresco e ters, Marias ou um que chega menos poluição Joceilanes, cujas traduzem um para a recupeorigens trazidas ração da saúde de fora se mis- pouco da própria do filho diabétituram em uma comunidade co. Nascida em cultura de soliArroio dos Radariedade e retos, Dona Maria começo em uma Vila constru- Helena foi criada pela avó até ída pela comunidade. os 18 anos, quando se casou e Na época, o então governo engravidou do primeiro filho. municipal desafiou os moradores Sua vida teve alguns obstácuda Santa Marta a levarem um los, mas eles não a impediram caminhão destinado às obras das de ser uma senhora risonha e ruas do município para dentro da devota, que distribui sopa comuVila. Se conseguissem ultrapas- nitária ao povo da Santa Marta sar as fronteiras delimitadas por sábado sim, sábado não. mato, a recompensa viria em forma de ruas para o bairro. Viu-se, LUGAR PARA VIVER então, nascer a rua número um Depois da perda do filho priseguida pela dois em comple- mogênito, do caçula e do marido, mentos transversais e paralelos, ela, com ainda dois filhos, enconque dão acesso à associação de trou na Igreja Luterana a sua paz. moradores, à cerca de 20 igre- Apesar das dificuldades para se jas, aos três bares, ao comércio, manter financeiramente e com a

precariedade da saúde no bairro, ela acredita nas amizades que cultivou ali. “São as pessoas que moram aqui que fazem a Vila. Não importa o que digam, aqui é um bom lugar para viver”. Santa Marta é refúgio e recomeço, além de ser mãe de muitas crianças que ali cresceram. Uma delas é Jocelaine Severo Costa, 24, mãe de Pedro, Eduarda e Cauã. Ela conta que a família é natural do Paraná, mas se instalaram na Santa Marta um pouco antes do seu nascimento. Cauã tem alguns problemas neurológicos e Pedro sofre de convulsões que exigem exames periódicos no município. Em uma Santa Marta delimitada por fronteiras construídas pelas raízes humanas encravadas na história, a mistura de identidades forma essa miscigenação cultural, que é muito característica de outras partes do Brasil. Na Vila, as conquistas engrandecem a comunidade, mas a luta por pavimentação, saúde e participação do poder público, ainda são pautas para as próximas reuniões da associação. BIBIANA FALEIRO LEILA DONHAUSER


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História .9

O nome do bairro inspira-se na ideia de acolhimento Santa Marta é uma divindade conhecida na religião católica, e o significado dela representa bem quem ajudou na criação do bairro que leva seu nome

de Lucas, e conta quando Jesus se hospeda na casa dos amigos Lázaro, Maria e Marta. Enquanto Maria ouvia os ensinamentos do Filho de Deus,Marta se entregava aos afazeres domésticos,preocupada com a acolhida e a alimentação dele e de seus discípulos. Apesar de ser repreendida nessa passagem bíblica, por ter pedido a Cristo que Maria a ajudasse em vez de ouvir seus credos, ela possuía a estima de Jesus. Por isso,Santa Marta,hoje,é padroeira dos anfitriões, das cozinheiras e das donas de casa, entre outras profissões que têm o objetivo de servir aos outros. Essas informações podem ser encontradas no site franciscanos.org.br.

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or que a comunidade Santa Marta leva esse nome? A resposta a essa pergunta está ligada às origens do local. Edi Welzel de Lima, dona de casa de 60 anos, revela que a comunidade contou com a ajuda do Padre Orestes, grande apoiador do povo da Santa Marta. “A gente obteve muita ajuda do Padre Orestes, e daí ele sugeriu o nome também”, explica Edi, que mora na comunidade desde a fundação. Orestes João Stragliotto,nascido em 1928, foi uma das principais lideranças religiosas da comunidade. Ele viveu próximo à Santa Marta desde 1985 até a morte,em 2002. Entre suas realizações está a criação da Comunidade Católica de Santa Marta. Existente até hoje na Vila, serviu como um dos sustentáculos para os primeiros moradores. Vilson Prestes, personagem conhecido, um dos fundadores de Santa Marta, conta alguns benefícios que padre Orestes trouxe para a Comunidade. “Ele fez poço, colocou luz elétrica, e também cinco tanques para lavar roupa, que o pessoal utilizava”,revela.Além disso,também foram instalados chuveiros para as famílias tomarem banho e um forno para assar pão. Vilson ainda conta como foi a escolha do nome do local. “Tinha que colocar nome na Vila, senão o prefeito não ajudava, daí o padre Orestes disse: estamos em julho, bota Santa Marta”, relembra. O motivo? Os festejos à santa ocorrem no dia 29 de julho. E como já havia a Comunidade Católica homônima, a serviço das novas famílias que se assentavam ali, acabou sendo escolhido esse nome para o novo bairro.

Marta é padroeira dos anfitriões, das cozinheiras e das donas de casa, entre outras atividades que têm o objetivo de servir aos outros

A Comunidade Católica foi importante já para os primeiros moradores

FESTEJOS

As primeiras pessoas a festejar o dia de Santa Marta foram os padres da ordem dos franciscanos, no ano de 1268. Escolheram o dia 29 de julho para homenageá-la.A festa se difundiu rapidamente pelo mundo cristão,sendo Marta reconhecida por ser aquela que serve. Anualmente a Comunidade Católica Santa Marta celebra o dia daquela que serviu como inspiração para sua criação. Também ocorre um almoço comunitário oferecido pela Comunidade aos moradores. Nenhum outro nome serviria tão bem para nomear a instituição religiosa, que serviu e ainda serve as famílias do bairro.

SOLIDARIEDADE

Santa Marta aparece inúmeras vezes no Novo Testamento.De acordo com a Bíblia, ela nasceu em Betânia e era irmã de Maria e de Lázaro. É reconhecida por ser uma amiga de Jesus e seus apóstolos, os recebendo em sua casa. Dilce Maria da Rosa, presidente da Associação dos Moradores do bairro, explica que “quando Jesus chega na casa de Marta, é ela que está preocupada com o serviço”. A passagem em questão está no evangelho

Em imagens, Santa Marta geralmente é retratada vestida de azul ou verde, leva uma cruz e um avental, e tem um dragão aos pés. O dragão em questão é Tarasca, criatura mitológica que, segundo lendas populares da França e da Espanha, principalmente nas regiões de Provença, Tarascon e Valência, foi dominado e derrotado pela santa. Ela geralmente é invocada pelos fiéis para pedir amparo em situações urgentes e difíceis, ou que requeiram diligência e responsabilidade.

O nome da santa também é lembrado na arte urbana da Vila

GABRIEL APPELT NUNES SUÉLEN PEREIRA


10. Sustentabilidade

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Ambiente sustentável em todos os sentidos A reciclagem de resíduos feita pela cooperativa Nova Conquista é um dos principais meios de sustento dos moradores da Santa Marta em São Leopoldo

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ara muitos, envolver-se com a reciclagem é uma questão de conscientização ambiental. Para quem atua na coleta de resíduos da Vila Santa Marta em São Leopoldo, isso vai mais além. Manter o bairro limpo e reutilizar materiais descartados sustenta diversas famílias da comunidade. A Associação Nova Conquista, cooperativa que recolhe o lixo para a reciclagem, é uma alternativa para diversos moradores. Uma delas é Daiana Anjos da Silva, 36 anos, hoje tesoureira da associação. Ela conta que começou a trabalhar recolhendo lixo em 2004, quando seu marido perdeu o emprego em que estava. Um ano depois, quando a Nova Conquista foi fundada, logo passou a fazer parte da equi-

pe. Daiana não tem outras atividades para complementar a renda, que, atualmente, fica em torno de mil reais mensais com a cooperativa. Daiana também afirma que os moradores do bairro não se preocupam com a reciclagem, e por isso, deixam de fazer a separação correta do lixo: “A gente deixa de mandar para o aterro uma grande quantidade. Não só nossa cooperativa, como as outras seis que existem em São Leopoldo, além das empresas que coletam óleo. É importante fazer uma boa separação. As pessoas precisam se conscientizar”, sentencia. A Nova Conquista nasceu no ano de 2005, a partir da mobilização de membros da comunidade para criar um grupo que realizasse todo o processo de reciclagem na região, que até então não existia. Integrantes do Programa Auxílio Solidário (PAS), iniciativa que promovia limpeza das ruas no bairro, uniram forças com cooperativas de outras regiões para consolidar a cooperativa. Desde o seu primeiro ano, ela foi apoia-

da pela prefeitura da cidade, além de receber assessoria do Programa Tecnologias Sociais para Empreendimentos Solidários (Tecnosociais) da Unisinos.

“É importante fazer uma boa separação. As pessoas precisam se conscientizar”

BUSCA POR APOIO

ber os patrocínios. Belinha, que trabalhou a vida inteira com reutilização de lixo, tem apenas a renda de R$ 150,00 mensais para sustentar os três filhos pequenos: Vitória, Yasmin e Daniel. Daniela Portal, de 36 anos, é vice-presidente da Cooperesíduos e busca, junto aos administradores da cooperativa, apoio da prefeitura. Hoje, eles ainda realizam um trabalho independente e, todos os custos com processos, como materiais e locomoção é bancado pelo grupo. “Estamos esperando por uma documentação nova para levar até o prefeito e esperar a resposta dele”, afirma Daniela.

A reciclagem é o meio que ajuda os moradores a manterem-se com estabilidade: muitos são idosos, analfabetos e enfrentam diversas dificuldades. Sem recursos, passam a realizar a coleta de resíduos de forma autônoma. É o que acontece com Eloni de Fátima Lorena, a Belinha, de 48 anos. Por meio da Cooperesíduos, ela recolhe materiais para reciclagem com um grupo de aproximadamente 20 pessoas. Anteriormente, grande parte do grupo trabalhava em uma usina de coleta que funcionou durante 17 anos com o apoio da prefeitura e da SL Ambiental – empresa de soluções de limpeza urbana. Ela empregava muitos dos moradores da Santa Marta, chegando a ter até 120 trabalhadores ativos. A usina faliu quando deixou de rece-

LUTA POR ESPAÇO

Entre as principais dificuldades de quem realiza a coleta e reciclagem de resíduos, está o baixo rendimento. A quantidade de resíduos

coletada pela cooperativa Nova Conquista baixou significativamente nos últimos tempos. O total mensal coletado, atualmente, é de 25 toneladas – o volume normal seria 40. Como a renda da cooperativa depende de quanto reciclaram por mês, eles têm tido um retorno menor. O número de catadores de rua aumentou bastante na comunidade, e muitos vêm de outros locais para coletar. Além disso, alguns deles utilizam veículos para auxiliar o trabalho e reciclar ainda mais. O problema é que, como há muitos meios de coleta, o volume que cada um reaproveita acaba sendo baixo. Belinha conta que, apesar disso, cada um ainda consegue conquistar o seu espaço: “A gente não pode estar entrando num ambiente que é deles e tirar o seu sustento. Se eu preciso, eles precisam também. Penso assim: tem que ter um pouquinho para cada um”, expõe. FRANCIELE ARNOLD ARTHUR EDUARDO HENRIQUE ABRAHAO ARTHUR EDUARDO

ARTHUR EDUARDO

Daiana Anjos da Silva é tesoureira da Nova Conquista HENRIQUE ABRAHAO

Conhecida como Belinha, Eloni de Fátima Lorena sustenta os filhos através da reciclagem

Cooperesíduos utiliza veículo próprio para as coletas


Esporte .11

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Esporte nas horas vagas O projeto Escolinha de Futebol, idealizado por moradores, ajuda as crianças da comunidade a acreditar no futuro

ceira regra o diretor diz que é fácil controlar, pois todos se conhecem na comunidade e os pais ajudam bastante. Para o futuro, Toninho e Valdair sonham com a mobilização de toda a comunidade. O objetivo é que um número ainda maior de crianças e adolescentes sejam beneficiados.

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proximadamente 50 crianças, entre meninos e meninas, com idade que varia de 10 a 15 anos, participam da Escolinha de Futebol da Santa Marta. Os encontros ocorrem duas vezes por semana, as terças e quintas-feiras para os meninos e nas quartas-feiras para as meninas, sempre em turno inverso às aulas, e também aos sábados. O projeto, que esteve inativo por algum tempo, ressurgiu nos últimos dois meses sob a direção de Valdair da Silva Santos, 38 anos, vendedor e morador da comunidade. Ele conta com a parceria de Antônio Vanderlei Vieira Rodrigues (Toninho), 54, aposentado, que atua como treinador, e ainda Diego Soares, 24, como p r e p a r a d o r f í s i co . Santos explica que o trabalho é voluntário e exige muita dedicação e esforço, pois com patrocínio zero, ele precisa, muitas vezes, pagar do próprio bolso para adquirir materiais básicos como bolas e camisetas e, também, realizar a ma-

AS CRIANÇAS APROVAM

Miguel Vieira Rodrigues tem 10 anos de idade e é aluno do 4º ano da Escola Municipal Alvinho. Para ele, entrar para a equipe dos meninos ajuda muito, pois seu sonho é ser jogador de futebol. Já para Carla Monique Keller, 10, artilheira da equipe feminina e aluna do 4º ano da Escola

O convívio e a prática do esporte ajudam a mudar o futuro de crianças como Miguel e Carla nutenção do lugar. O projeto não trata somente de ensinar um esporte para as crianças da comunidade, mas conscientizar quanto ao meio ambiente, drogas e violência. Para abordar os temas na prática, quem participa do grupo também é responsável pela manutenção do local, como recolher o lixo e conservar a vegetação em volta da quadra. Assuntos como drogas

e violência também não são tabus para essas crianças. Desde cedo elas aprendem a importância de manter-se longe delas através do apoio dos idealizadores do projeto. Para participar da escolinha, a criança tem basicamente três regras a seguir: estar frequentando a escola; possuir um bom desempenho escolar e ter um bom relacionamento em casa. Essa ter-

Para o futuro, Toninho e Valdair sonham com a mobilização de toda a comunidade. O objetivo é que um número ainda maior de crianças e adolescentes sejam beneficiados

Municipal Santa Marta, os encontros semanais lhe proporcionaram fazer novos amigos. A menina só perde os treinos quando chove, pois a quadra ainda não é coberta.

PLANOS PARA O FUTURO

Toninho acrescenta que, além da cobertura, deseja ver a cancha fechada novamente, a fim de garantir a segurança no local. Ele comemora quando vê que as árvores plantadas recentemente não foram arrancadas, como nas vezes anteriores. “Isso já é um progresso”, diz. Para ele, incentivar o interesse ao esporte é muito importante, pois afasta a ociosidade das crianças, estimula a autoestima e mostra que elas podem ter esperança em um futuro melhor. Para Dilce Maria da Rosa, 41 anos, presidente da Associação de Moradores da Santa Marta, “ver a escolinha é uma satisfação, porque esse projeto nasceu na comunidade e é feito por moradores da comunidade, que estão totalmente comprometidos com o bem-estar de outros moradores”, diz. IARA BALDISSERA MILLA LIMA

Os palpites entram em campo Gre-Nal é Gre-Nal, e na Santa Marta a disputa não é diferente. É em clima de harmonia e amizade, que os moradores convivem, mesmo com a rivalidade. O clássico gaúcho foi ranqueado, em 2017, pelo jornal inglês Daily Mirror, como o 9º maior clássico mundial e o principal clássico do Brasil. Mas, quando o assunto são resultados bons ou ruins, todo torcedor tem um pouco de técnico dentro de si. O pedreiro Odacio dos Santos Diogo, 72, não é um torcedor fanático, mas tem suas preocupações com o Grêmio Foot-ball Porto Alegrense. “Mudaria o ataque”, afirma o pedreiro, que diz ser “do tempo em que o Grêmio tinha time bom”. “Os que sabem jogar tão deixando o time morrer por isso aí”, completa Diogo. Otimismo está sendo

Torcedor há 50 anos, Odacio tem muitas preocupações com o seu time do coração passado aos torcedores do Sport Club Internacional na Vila. O bom momento no Campeonato Brasileiro de 2018 alegra os colorados. Porém, quanto às preocupações do torcedor, sobra para o ídolo do elenco. “O D’alessandro tem que ficar

Para Sueli, seu amuleto da sorte é a camisa que lhe acompanha há muito tempo

fora”, diz o injetor de solado José Clóvis Martinelli, 55. Na casa de Sueli Terezinha Prestes, de 49 anos, o amor pelo Internacional é grande. “Ganhando ou perdendo, ele é o Inter, não interessa”, ressalta a dona de casa. Amigos há mais de 15

a n o s , o co n s t r u t o r Ro naldo dos Santos, 42, e o proprietário de bar Claudionir José de Oliveira, 37, o Kádi, não perdem tempo com brigas. É no Bar do Kádi que os compadres se encontram e conversam sobre futebol sem problema

algum. “O ruim não é ser rebaixado e perder, o ruim é aguentar os gremistas no Facebook”, diz Ronaldo, construtor e colorado. Torcedores apaixonados sempre possuem um amuleto da sorte. Camisas, imagens de santo, bandeiras, lugar no sofá, entre outros, estão presente na vida dos fãs. Esse é o caso de Sueli, que possui uma camiseta babylook do Internacional. Gremista desde que “se conhece por gente”, Claudionir tem três camisas do Grêmio, mas sempre usa a mais antiga. “É a mais pé quente”, exclama o proprietário do Bar do Kádi. Já o amigo Ronaldo, pega mais leve, enrola-se em uma bandeira do Inter apenas em jogos “importantes”. MARCELO JANSSEN JULIANE KERSCHNER


12. Educação

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Um passo a mais para o futuro Moradores que estão cursando o ensino superior contam seus desafios e planos para a vida acadêmica

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ensar no futuro profissional, e no que ele pode agregar, é um dos caminhos percorridos por algumas pessoas em suas vidas. Para alguns moradores da Vila Santa Marta que têm a chance de cursar o ensino superior, o objetivo é conseguir firmar esse compromisso consigo mesmo. Além de serem exemplos de orgulho, não somente para suas famílias, mas também para a comunidade. De acordo com dados levantados pelo Enfoque, mais de 50% dos entrevistados na Santa Marta não possuem o ensino fundamental completo, e 17% informam ter completado o fundamental. Já 12% possuem o ensino médio completo e 9% não completo. Em relação ao ensino superior, a amostragem constatou um empate de 3% de pessoas que possuem o ensino superior completo e incompleto. Segundo dados do IBGE, apenas 15% dos estudantes brasileiros entre 25 e 34 anos estão na faculdade. Apesar do baixo número de escolaridade no ensino superior, há quem se esforce e tente acrescentar mais aprendizado em suas vidas. A idade, momento e situação não interferem na busca de quem quer tentar a vida acadêmica e conseguir um diploma para chamar de seu. Um exemplo disso é Bruna Graziela Rosa da Silva, 23 anos, que cursa Direito no campus da Unisinos de São Leopoldo. Caloura na universidade, Bruna optou por fazer apenas uma atividade acadêmica para se ambientar, não somente ao curso, mas também à faculdade. “Está sendo muito bom. Comecei neste semestre fazendo uma cadeira para fazer algo na vida. Porque só trabalhar não dá”, admite. Para o ano que vem, Bruna tentará conseguir Financiamento Estudantil (FIES) ou bolsa do Programa Universidade para Todos (Prouni), com a nota do Enem. Estudando à noite, a jovem está equilibrando seu trabalho como secretária recepcionista em um escritório de Novo

Ao lado da mãe orgulhosa, Gilson mostra medalhas conquistadas com a canoagem

Bruna não quis ser fotografada. Ela se inspirou em uma colega de trabalho para estudar Hamburgo e seus estudos. A profissional de Direito que lá atua foi quem serviu de inspiração para a jovem buscar carreira como advogada.

DA PAIXÃO À PROFISSÃO

Há também quem nasça com vocação, um diferencial para quem vai ingressar na universidade. Esse é o caso de Gilson Siduoski Napiwoski, de 19 anos, nascido e criado na Santa Marta. O jovem pratica canoagem há oito anos, tendo conquistado mais de 50

medalhas. Uma paixão que se transformou em um plano de carreira. Gilson está no primeiro semestre de licenciatura em Educação Física na Ulbra, em Canoas. Bolsista do Prouni, Gilson estuda à noite para poder treinar canoagem durante o dia. O esportista é o primeiro de sua família a ingressar no ensino superior, motivo de orgulho entre os parentes. Sobre a experiência acadêmica, Gilson demonstra entusiasmo e receio. “Está de boa e complicado ao mesmo tempo, porque

A idade, momento e situação pouco interferem na busca de quem consegue entrar na vida acadêmica e buscar um diploma. As dificuldades vão sendo superadas

peguei mais cadeiras voltadas à Educação Física: anatomia, futsal e fundamentos da ginástica. É um pouquinho mais puxado”, admite. Gilson tem como plano se formar em licenciatura e depois pagar as cadeiras que faltam para cursar o bacharelado em Educação Física. Licenciado para lecionar, a proposta é começar a dar aulas em academia para poder ter a oportunidade de conciliar o trabalho com o treino. “O meu foco é não abandonar a canoagem. Se não conseguir como atleta, pelo menos quero seguir como lazer”, confessa. Tem também quem pense no futuro de outros jovens, como é o caso de Jéssica Fernanda Gonçalves de Morais, de 27 anos, que cursa licenciatura em História, também na Ulbra. Bolsista do Prouni, seu objetivo é ser professora para explicar, em um futuro próximo, sobre a complicada situação política brasileira atual. Também tem o desejo de atuar dentro da Santa Marta, pois em sua experiência na escola do bairro, teve professores que não viviam a mesma realidade dos alunos, de acordo com Jéssica. Divorciada e com dois filhos pequenos, a estudante se esforça para ir às aulas, cuidar dos filhos e trabalhar. Jéssica atualmente trabalha como cargo de confiança para um vereador, e em época de campanha eleitoral sua vida fica bastante corrida. “Está sendo bem difícil, pois estou fazendo três cadeiras, duas presenciais e uma de ensino a distância. Além de ter que ir até a Ulbra duas vezes por semana, ainda tenho que conseguir tempo para realizar a aula de EAD”, conta. Pessoas como Jéssica, Gilson e Bruna tiveram oportunidades de buscar uma formação acadêmica para completar um ciclo de estudos. Eles fazem parte daqueles poucos 3% da Vila Santa Marta. A chance de serem motivos de satisfação e orgulho para si mesmos, suas famílias, e até para a comunidade, talvez seja o que move estas pessoas. Um passo a mais para garantir um futuro melhor e com mais visão de mundo. MARIANA ARTIOLI DE MORAES BRUNO FLORES


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Educação .13

Acompanhamento que promove mudanças Apoio do Centro Comunitário de Educação Infantil na vida de Monique vai além do ambiente escolar, melhorando sua qualidade de vida

a escola três dias por semana. Ingrid se orgulha ao falar que o trabalho de todos possibilitou uma mudança na vida da menina. Quando questionada sobre o vínculo com ela, exclama: “Existe já um amor entre nós duas!”. Nos turnos da manhã e tarde, Monique aproveita o tempo no Centro com outras crianças. Lá, eles recebem café da manhã, almoço e café da tarde. Resultado do esforço dos voluntários que trabalham para a Abrasse, o lugar disponibiliza brinquedos diferenciados para as crianças, além de uma decoração rica em detalhes. A associação mantém, atualmente, apenas a escola como projeto, que já completa sete anos. Para isso, eles contam com doações e repasse de verbas da Secretaria Municipal de Educação de São Leopoldo (SMED).

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rojeto da Associação Beneficente de Resgate e Assistência Educacional (Abrasse), o Centro Comunitário de Educação Infantil, localizado na Vila Santa Marta, em São Leopoldo, acolhe 40 crianças de três a seis anos de idade. Dentre elas, está Monique Magali Silva de Freitas, uma menina alegre, que adora dançar e fazer caretas em frente ao espelho. Monique apresenta dificuldades no desenvolvimento da fala e na socialização com outras crianças e adultos. Sua comunicação ocorre, na maior parte do tempo, por gritos e grunhidos, apesar de já ter completado quatro anos de idade. Mônica Silva de Farias, dona de casa e mãe de Monique, afirma que, na opinião da médica pediatra da menina, suas características configuram um Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). Contudo, ainda não houve um diagnóstico psicológico comprovando o referido diagnóstico.

MODIFICAÇÕES NECESSÁRIAS

Para o melhor desenvolvimento da menina, a professora e os alunos foram fundamentais Com o auxílio da diretoria da Abrasse, Mônica conseguiu acompanhamento psicológico para a filha no Centro de Atenção Psicossocial Capilé (CAPs), de São Leopoldo. O tratamento iniciou paralelamente à entrada de Monique no Centro Comunitário, quando tinha três anos. Desde lá, seu desenvolvimento tem apresentado melhoras significativas, principalmente na fala, como conta a mãe. Para atender às necessidades de Monique, as professoras prestam atenção especial a ela. Estão atentas ao horário para levá-la ao banheiro e lhe dar comida na boca, pois ela ainda não come sozinha. Para auxiliá-los nos cuidados com Monique, a voluntária Ingrid Schmitt Muller, 58, frequenta

Mãe e filha se divertem na brinquedoteca

Monique frequenta a escola três dias por semana

Segundo o presidente da associação, Valdir Becker, aposentado e voluntário, o espaço da escola só comporta 40 crianças, mas, para atender às necessidades da Vila, é necessário expandir o local e reduzir a idade mínima para um ano. Felizmente, a ajuda para essa ampliação veio por meio da Igreja Luterana dos Estados Unidos, que financiou a obra no segundo piso. Ainda não há prazo para a finalização da construção, por depender do repasse de capital da igreja, mas a previsão do valor total da obra é de 140 mil reais. O novo espaço comportará salas de aula, brinquedoteca, banheiros e depósito de alimentos. Com isso, será possível atender 75 crianças, de um a seis anos. Becker explica que o trabalho feito pela Abrasse é de extrema importância para as famílias da Vila Santa Marta, mas que há dificuldades. Entre elas, o repasse de valores da SMED, sempre com um mês de atraso, e as histórias tristes que as crianças carregam. Ele lamenta que muitos de seus alunos tenham perdido a figura paterna, e aproximadamente seis convivam com pais presidiários. “O Dia dos Pais é o mais difícil, algumas crianças não vão às homenagens, ou aparecem muitas mães e avós”, conta. VICTÓRIA LIMA ALINE GRUBERT


14. Relatos

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As memórias de Maria Vieira Ao lado do esposo Antônio, a gaúcha de Encantado é dona de muitos números. Entre eles, 4 filhos, 7 netos e 40 anos de casamento

M

aria Vieira, 65, cortava lenha quando interrompeu as atividades do dia para contar sua história. Num caminhar lento, ela trouxe algumas cadeiras da cozinha para a área da casa, mas não se sentou durante toda a manhã. Acompanhando a esposa, estava Antônio Carvalho Vieira, 63. Há 32 anos, a dupla vive no bairro Santa Marta, 15 na mesma casa. Ao todo, são 40 anos de casamento. Com quatro filhos, o casal é avô de sete netos. Toda a história da família Vieira começou na cidade de Planalto, no Paraná, quando Maria e Antônio se conheceram em um baile no interior do município. Um ano de namoro foi suficiente para o relacionamento se transformar em casamento. Contudo, havia um problema. Maria não possuía documentos. Nascida na cidade de Encantado (RS), ela foi adotada, ainda bebê, pela família Furigo, sem nunca ter conhecido

Maria e Antônio tem o sonho de reformar a casa os pais biológicos. Maria contou que não era do interesse dos familiares a registrarem, porque documentá-la significaria partilhar a herança, algo indesejado por todos. Nunca frequentou a escola, atividade jamais negada ao restante dos irmãos. Maria não sabe ler nem escrever. Residiu na cidade de Três

Maria teve o primeiro documento em 1978. Durante 25 anos, ela não existiu aos olhos do Estado

Passos até completar 15 anos. Viveu a infância trabalhando, sendo castigada pela família com frequência. Aos 11 anos, fumou escondido o primeiro cigarro. Mudou-se de carro para o Paraná com o irmão mais velho, Roche Orlando Furigo. No dia 27 de maio de 1978, com 25 anos, Maria tomou posse do primeiro documento. No intuito de casar-se com Antônio, ela foi registrada como filha de Libera Maria Capelani Furigo, esposa de Orlando. Assim, Maria, nos documentos, é fruto de um relacionamento da esposa do irmão adotivo mais ve-

lho. Ela recebeu o sobrenome Furigo e pôde realizar o matrimônio na comarca do município de Capanema, também no Paraná. Antônio nasceu na cidade de Planalto. É agricultor. Cultivava feijão, arroz, milho e soja. Depois do casamento com Maria, teve problemas no plantio. Na época, havia uma solução: o arrendamento. Consiste em alugar uma porção de terra para que outra pessoa cultive, enquanto o proprietário lucra pelo espaço cedido. Os Vieira não aderiram à prática. Antônio culpa sua ingenuidade na época, pois ele diz ter percebido a falta de lucro da fazenda muito tarde. Com a esperança de uma vida melhor, o casal viajou para o Paraguai, trabalhando por um ano como agricultores em terras estrangeiras.

A RENDA DOS VIEIRA

Recuperados financeiramente, retornaram ao Brasil. Em 1986, a dupla mudou-se para São Leopoldo. Antônio trabalhava como metalúrgico em 1991 até sofrer um acidente que mutilou a mão esquerda. Como compensação, recebe o auxílio-acidente conhecido como pecúlio.

Consiste em uma indenização que paga 50% do valor de um salário mínimo. Depois do ocorrido, o planaltense ficou desempregado. Vinte e sete anos depois, Antônio vislumbra a aposentadoria. Segundo ele, o mesmo pedido foi negado a Maria. Como opção, ela aguarda a Lei Orgânica da Previdência Social - LOAS, que regulamenta o Benefício Assistencial de Prestação Continuada. De uma forma ou de outra, o dinheiro que irão receber já tem destinatário: a casa. Com goteiras e rachaduras nas paredes, o casal tem o sonho de restaurar o lar que os acompanha há 15 anos. Maria foi enfática ao afirmar que não acha a vida na Santa Marta difícil. Como forma de sustento, ela e Antônio trabalham com reciclagem. Juntos, ao final de um mês, conseguem a quantia de 150 reais. Com 65 anos, Maria não pensa em parar de trabalhar. Ela mantém-se firme, apesar de os filhos se colocarem contra a decisão. “Por eles, eu não trabalho, mas é que eu não quero parar. Eu não cansei”. NATAN CAUDURO SUÉLEN HAMMES RODRIGUES

A morte sob os olhares de moradoras Não é fácil falar sobre morte, mesmo que só tenhamos esta certeza na vida. Dentro da Santa Marta, existem casos como o da Jocelaine de Fátima Delorena, 43 anos, moradora da Vila há 20. Há quatro anos ela perdeu o filho Léon Nunes, de 22, que foi morto por engano, para o tráfico. Ela conta que estava guardando dinheiro para os 15 anos da filha mais nova, quando recebeu a notícia da morte. Um mês antes da festa. Usou o valor guardado para fazer o velório e enterrar o filho. “Também recebemos um valor da empresa onde ele trabalhava, assim consegui pagar tudo o que precisamos para enterrar ele”, afirma. Mas Jocelaine conta que nem todos têm a mesma sorte. “Temos conhecidos aqui da Vila que morreram, e a família não tinha nada. A prefeitura deu

para essa ocasião, já possuía lugares comprados no cemitério da comunidade. Então, assim que a sogra faleceu, não tiveram maiores dificuldades para fazer o velório e o enterro.

SOLIDARIEDADE

Jocelaine ainda guarda roupas do filho Léon, que perdeu em 2014 o caixão e o lugar no cemitério. Mas isso só acontece durante a semana, pois se a pessoa morre no final de semana, não tem como falar com a prefeitura para garantir esse auxílio”, relata. Jocelaine recorda que teve auxílio da igreja, que ela o filho

Ivanilda recorda com carinho de Durcelina, sua sogra, que morreu em junho

frequentavam, para superar os meses difíceis. Ivanilda Rigotti,45 anos, que reside na Vila há 26, falou sobre a perda da sogra, Durcelina Camargo da Silva, que ocorreu há quase três meses. A família é católica e participa da igreja da

comunidade. Porém, ela e o esposo acreditam que ela poderia fazer mais nestes casos. “É feita a unção dos enfermos, depois a missa do sétimo dia e daí a missa do primeiro mês.” Ivanilda lembra que a família tinha uma reserva

Porém, recorda-se de um vizinho de porta, cuja família não tinha condições para comprar o caixão, muito menos o espaço no cemitério. Como a morte ocorreu no final de semana, não puderam contar com o auxílio da prefeitura. Os vizinhos fizeram uma “vaquinha”, e a Associação dos Moradores do Bairro abriu uma exceção para que o velório fosse feito na sede. “Se fossem esperar pela igreja, não teriam esse auxílio”, afirma Ivanilda. PAOLA GUIMARÃES THAIS RAMIREZ


Umbanda .15

ENFOQUE SANTA MARTA | SÃO LEOPOLDO (RS) | SETEMBRO / OUTUBRO DE 2018

Apesar de tudo, convivência Como uma casa de religião de matriz africana coexiste com a vizinhança diversa

Muitos vêm atrás de uma palavra de conforto, tomar um passe, enfim, eles sabem que as portas daqui estão sempre abertas

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Rua Jacarandá é o que se convencionou chamar, em boa parte do RS, como lomba. Quem sobe, pode sentir o peso do exercício físico nos músculos da coxa. Quem desce, talvez tenha problemas com os joelhos. Quem para no meio do caminho, percebe um lugar que cura dores nas coxas, nos joelhos, nas almas e na integridade humana. O número 477 não está nas paredes do Centro de Umbanda Ogum Iara no Reino de Jurema, denominado assim pelo modesto cartaz pendurado na fachada do local, cravado no coração do Arroio da Manteiga. Quem atende às palmas do desavisado que passa por uma das poucas vias asfaltadas da redondeza são as irmãs de santo Rosangela Graeff, 46, e Geisiane Rodrigues, 28. Ambas moram no anexo dos fundos do pátio, atrás do que, na linguagem de seus frequentadores, chama-se salão. Elas, agora, ocupam o lugar que foi morada do pai de santo Ezequiel. No terreno há telhas e tijolos pelo chão, pois parte do prédio usado agora tão somente para fins religiosos nos fundos passa

Para Rosangela, o local é casa de morar e casa de religião por uma reforma. Essa, aliás, é uma tônica nas redondezas. Construir e reconstruir. Seja com material de construção ou sentimentos, os moradores se colocam nessa posição: sempre em frente. O bairro, ao longo do tempo, diminuiu sua insegurança, conforme mostram as ocorrências registradas, e consegue progressos dos mais diversos - como se pôde perceber ao longo das últimas edições deste jornal.

EXPRESSANDO A FÉ

A terreira vive seu ponto alto aos sábados. É nesse dia em que, “quase todas as semanas”, os irmãos de santo formam a fa-

mosa corrente. Lá pelas 14h, os oito filhos do pai Ezequiel - Rosangela, Geisiane e mais seis - se preparam para o grande momento, utilizando formas de descarregar algumas energias, como o banho de ervas. Às 15h, eles já estão preparados e podem incorporar as entidades e receber os visitantes. Entre os visitantes, varia bastante a presença do local. Pode chegar a 20 o número de pessoas frequentando o ambiente. “Muitos vêm atrás de uma palavra de conforto, tomar um passe, enfim, eles sabem que as portas daqui estão sempre abertas”, explica, com tom convidativo, Rosangela.“Os sábados

à tarde são dedicados aos caboclos. Fazemos tudo isso pra Pai Ogum”, explica, dizendo que esses eventos costumam ir até 19h30, mais ou menos. Nesses casos, todos se encontram de branco, e o evento não se estende. Mas esse não é o único tipo de reunião na casa. Há, também, as situações que só se desenrolam à noite. “Aí é pra Exu, é a festa pra Porteira. Sempre acontece no último sábado do mês. Aí as pessoas vêm com pedidos pra gente fazer trabalhos”, conta Geisiane. Nesses casos, as pessoas não vestem branco. A movimentação começa às 20h e termina por volta da meia-noite, podendo se estender um pouco. Geisiane e Rosangela, além de expressarem a fé naquele local, são moradoras. Assim sendo, precisam estar atentas à vizinhança. E, a última coisa que querem, é incomodar. Por

isso, pregam o respeito. “Temos vizinhas evangélicas e não tem problema. Elas escutam os hinos delas, numa boa, e nós fazemos a nossa aqui. Cada um no seu canto. A gente até se dá bem”, explica Rosangela. “Mas tem muita gente que ainda é muito preconceituosa. Escutamos comentários maldosos, mas ignoramos. É melhor assim”, contrapõe Geisiane. Ainda que contem com uma boa aceitação daqueles que cercam o local, as irmãs de santo fazem questão de se assegurar da legitimidade legal antes de qualquer encontro mais barulhento ou tardio. “A gente faz questão de avisar os vizinhos, mas também de ter os documentos que nos permitem fazer tudo isso dentro da lei”, dizem, uma completando o que a outra diz. Ao fim da conversa, todas as frases das irmãs de santo quase sempre eram complementadas por observações como “mas é importante saber a opinião do pai”, “o pai indica o caminho”, “nesses casos precisamos ouvir primeiro o pai”. Para um leigo, parecem ser mais uma família, como tantas outras, que só quer viver em paz. ARTHUR MENEZES DE JESUS MATEUS FRIEDRICH

Botecos alegram a rotina diária Entre as vielas e ruas que contornam a Vila Santa Marta, alguns moradores enfrentam a rotina de trabalho com pequenos intervalos de diversão. Diferentes das casas noturnas do centro da cidade, os botecos da Vila são espaços de passatempo para quem deseja saborear uma bebida, gelada ou quente, para animar os dias. É o caso da Mercearia Lopes, localizada na Rua 1. O estabelecimento, até então, era apenas uma distração para João Lopes, 67 anos, que ao se aposentar do trabalho como carpinteiro, acabou investindo em um lugar para oferecer o famoso “martelinho”. Apesar da grande variedade de licores, uísque e cervejas, a Mercearia Lopes é famosa pela vasta oferta de cachaças artesanais preparadas pelo atendente,

Deoclides Dias, 59 anos. Os horários de chegada dos frequentadores são regulares, sempre por volta das 11h30. “Grande parte vem aqui entre onze meia e meio dia e meia, para tomar uma dose antes da tarde. Depois, a partir das 17h, sempre tem gente por aqui também. Recebia apenas os amigos, mas com o tempo e a aposentadoria, resolvi expandir e abri a mercearia”, destaca o proprietário. Além das bebidas, quem frequenta a mercearia também desfruta de momentos de lazer, jogando dominó e canastra. É o caso do cliente e amigo, Giovani Elias de Moura, de 59 anos. Há dez anos, o auxiliar de obras passa, todos os dias, no boteco para degustar uma pinga. “Nós já somos a família do João; quando um de nós não aparece, já ficamos preocupados. Eu passo aqui todos os dias”, ri.

João Lopes oferece diferentes tipos de cachaças aos frequentadores de sua mercearia Assim como Moura, o dono da mercearia confirma a camaradagem existente entre ele e sua clientela. Viúvo e longe dos filhos, Lopes passa os dias cuidando do empreendimento. Para evitar discussões polêmicas, assuntos como política

e religião não estão entre os temas das conversas dos frequentadores. Futebol é o máximo de rivalidade permitida na mercearia.

MÚSICA PRESENTE

Diferentemente da Mercearia Lopes, outro bar agi-

ta as noites na Vila Santa Marta. Conhecido pelo aparelho “jukebox”, que dá o tom musical do local, o Bar do Diel também é um dos mais procurados na localidade. O boteco tem como proprietária a jovem Cinara Lopes, 32 anos. Esposa do Diel, que dá nome ao espaço, ela se divide entre as funções de garçonete e administradora do local todas as noites. Sem hora para fechar, há oito anos, o bar recebe clientes para churrascos e almoços diariamente. As bebidas preferidas s ã o : a ce r ve j a e , c l a r o , a cachaça. “Nós somos o bar mais frequentado da Vila, sem dúvida. Aqui o pessoal chega e fica até a festa acabar”, afirma. EDUARDA ROCHA VANESSA WAGNER


ENFOQUE SANTA MARTA

SÃO LEOPOLDO (RS) SETEMBRO / OUTUBRO DE 2018

EDIÇÃO

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Amor e dedicação Muitos cães e gatos são abandonados. Conheça histórias de quem, mesmo com pouco recursos, faz o possível para ajudá-los

“A gente sabe quando uma pessoa é boa ou ruim conforme a maneira como ela trata os animais”

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exemplo da grande maioria das periferias das cidades, algo que logo chama a atenção ao chegar à Vila Santa Marta é a quantidade de animais de rua. Cachorros e gatos de todas as cores e tamanhos circulam livremente pelas estreitas ruas de terra. Apesar do Canil Municipal de São Leopoldo ser ali perto, no alto da Vila, fica claro o abandono, a falta de controle e estrutura para acolher todos os bichos. Sendo assim, os animais ficam à mercê da boa vontade dos moradores da região. É o caso de Reinaldo Teixeira da Silva, 65, há 28 anos morador da Santa Marta. Natural de Cambará do Sul, o senhor alto e robusto diz que sempre gostou e teve contato com animais. “Fui criado numa fazenda, sempre tive um contato muito próximo com o gado, cavalo, porco, galinha, até marreco. Depois, em todos os lugares que morei sempre tive bichos”, conta. Atualmente toma conta de onze gatos e três cachorros, mas em outras épocas o número de

Guri, cãozinho de 17 anos, é companheiro de Dona Ana bichanos passava de 20. Aposentado com um salário mínimo, Seu Reinaldo também trabalha com reciclagem para complementar a renda. Boa parte do dinheiro é destinado ao sustento e tratamento de seus companheiros peludos. “Faço porque gosto e por amor”, revela. Apesar das dificuldades, ele faz o máximo pelo bem-estar de seus animais, tanto é que os alimenta apenas com ração. “Cada saco de 20 kg custa R$ 185, e preciso de dois por mês. Fora quando algum fica doente, pago o tratamento do meu bolso”, explica. Ao longo de quase três décadas morando na Santa Marta,seu Rei-

Seu Reinaldo sempre teve contato e gostou de bichos naldo nunca soube de qualquer programa de castração na região. Também diz jamais ter visto uma carrocinha passar por ali para recolher os animais de rua. O catador Joel, Pedroso dos Santos, 55, é conhecido na Santa Marta pelo apego que tem pelos bichos. “Fixo tenho dois cachorros, mas todos que aparecem na minha casa eu cuido,e como o pátio é aberto aparecem muitos. Se eu tenho alguma coisa em mãos na hora sempre dou para eles”, expõe. Os cachorros constantemente o acompanham em suas andanças pela Vila, na qual reside há cerca de 30 anos. “Fico triste quando vejo as pessoas judia-

rem dos bichinhos. A gente sabe quando uma pessoa é boa ou ruim conforme a maneira que ela trata os animais”, manifesta.

VAQUINHA POR PITOCO

Ana Maria Pedroso dos Santos, 67, natural de Soledade, a simpática senhora de cabelos imaculadamente brancos morou em cinco cidades até chegar à vila leopoldense, há cerca de três décadas. Ela também é muito apegada ao seu cachorro, o Pitoco, um vira-lata parrudo de porte médio. Até uma vaquinha já organizou para pagar as vacinas de seu com-

panheiro de estimação. Na pequena casa de tijolos pintados de branco, perto da acanhada ponte da Vila, junto com Pitoco vive Guri, também sem raça definida. O focinho todo branco do pequeno cão não deixa esconder seus 17 anos. O cachorrinho era o animal de estimação de outro morador da Santa Marta, que pouco antes de falecer o doou para o marido de Dona Ana, Romário Sergio Rodrigues, 51. Ao contrário de Seu Reinaldo que convive e gosta de animais desde criança, Dona Ana nem sempre foi apegada aos bichos. “Na verdade, eu comecei a gostar mais da cachorrada depois que vim morar aqui na Santa Marta”, revela. E ainda opina sobre o maltrato aos bichinhos. “Se os animais são criaturas de Deus, e ele criou todos nós, por que maltratar? Não é certo”. LUCAS GIRARDI OTT AMANDA KROHN

Desejo de fazer a diferença Abdicar de seu próprio tempo para ajudar o próximo não é problema para quem é voluntário. Apesar do cansaço e dos desafios, a sensação de dever cumprido é recompensadora. Na Vila Santa Marta, de São Leopoldo, a realidade não é diferente. As carências, em diversas áreas, são percebidas pelos moradores, que se empenham, por meio do voluntariado, a auxiliarem a comunidade. Observando as carências do bairro onde vive, Salete de Paula Zorzi, de 54 anos, d e d i c a a o vo l u n t a r i a d o grande parte de sua rotina. Dividindo o tempo de seu trabalho como costureira, ela encontra espaço para atuar na Pastoral da Criança e, ainda, para dar aulas de crochê e tricô a um grupo de mulheres. “Tem que ter coragem e força de vontade para con-

ROBERTA ALANO

Valdair da Silva Santos tinuar, mas nosso ânimo é lembrar que as pessoas precisam da gente”, relata. Desde criança, Antonio Vanderlei Vieira Rodrigues, de 54 anos, sempre gostou de futebol. Já adulto, encontrou a oportunidade de unir a paixão pelo esporte com a vontade de ajudar os mais novos. Há quase dois meses,

ROBERTA ALANO

Salete de Paula Zorzi decidiu treinar a garotada da Santa Marta. Com seus conhecimentos técnicos de futebol, ele chega a reunir mais de 50 alunos nas aulas do projeto, chamado Escolinha Santa Marta. “Nossa preocupação é tirar as crianças da rua, para que elas se tornem cidadãos de bem”, explica, esperançoso.

LAURA ROLIM

Antonio Vieira Rodrigues Encostado desde 2015 por motivos de saúde, o projeto com os jovens é fonte de distração para Antonio. “Como eu tenho problemas de diabetes e algumas complicações nas pernas, não consigo trabalhar. Esse projeto me ajuda a não ficar parado em casa, a gente não fica sozinho, não entra

em depressão”, conta. Também envolvido na Escolinha, Valdair da Silva Santos, de 38 anos, vê o voluntariado como uma forma de beneficiar a comunidade em que reside há 28 anos. Hoje, ele é responsável por lavar, na sua própria casa, os uniformes da garotada, além de auxiliar na compra das bolas de futebol todos os meses. “É uma satisfação tirar as crianças da rua. Eu cresci aqui, meus filhos e sobrinhos moram aqui. Esse trabalho é um espelho, a gente fica com orgulho. Eu poderia ter ido para outro caminho, se não fossem as pessoas que me ajudaram. Algumas crianças só tem o pai ou a mãe, então, alguém tem que ajudar”, ressalta. MARTINA BELOTTO LAURA ROLIM ROBERTA ALANO


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