Enfoque Vila Kédi 7

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Fernando Eifler

Carol Steques

Gabryela Magueta

Angela, a mãe de todos Página 3

Os empreendedores locais Página 7

Vocação à maternidade Página 8

ENFOQUE VILA KÉDI Alexsander Machado

PORTO ALEGRE / rs ABRIL/MAIO DE 2017

Como se fosse uma única família página 6

EDIÇÃO

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2. CRÔNICA

| ENFOQUE VILA KÉDI | PORTO ALEGRE (RS) | ABRIL/MAIO DE 2017

Estudantes da Kédi

N

a manhã de um sábado agradável de outono, entrei pela primeira vez na Vila Kédi e apreensiva com tantas histórias e rostos que encontraria por lá, comecei a observar cada detalhe para descobrir o que contar. Passando na frente da Igreja Santa Edwiges, seu primeiro prédio, escutei um “Bom dia”, a mim dirigido, de forma simpática, por um senhor. Na diagonal, uma casa verde, o Bar da Ariana, que tem o nome da proprietária, um balcão com produtos pendurados–comoaquelascenasde bares de beira de estrada que vemos nos filmes -, uma mesa de sinuca, um jukebox num dos cantos do bar e um sofá que dava a impressão de estar na sala da casa de Ariana. Saindo do bar, a rua de chão batido e estreita por casas, a maioria de madeira, parecia não ter fim. Alguns cachorros, várias crianças e muitos jovens beiravam as suas moradias e conversavam. Subimaisumpoucoarua,queria chegar na casa da Dona Ângela, líder comunitária da Kédi. Precisava descobrir quantas famílias moravam na comunidade e quantos estudavam ou eram formados em alguma graduação. Encontrei a casa e pedi licença ao seu Pedro, que conversava da porta com quem estava na sala/

No detalhe: Andreia Oliveira da Silva; abaixo, da direita para a esquerda: Paulo “Gordo”, Gustavo da Silva, Guilherme da Silva e Marcelo Almeida

cozinha da moradia. Sem cerimônia, entrei,meapresenteieconheciAndréia Oliveira da Silva, filha de Ângela que, aos41anos,voltouaestudar. Andréia relatou que dos aproximadamente 100 jovens da Vila Kédi, 15estavamestudando.Elacontounos dedos para tentar lembrar o nome de todos. A maioria havia voltado a estudar depois de ter parado para poder trabalhar. Incluindo Andréia que, junto ao professor de História da sua Escola , promoveu um mutirão paraconvenceressesjovensavoltarem paraosestudos,evitandoqueaEscola DoloresAlcarazCaldasfossefechada. “A Secretaria de Educação ia fechar a escola, tinha poucos alunos. Então,

RECADO DA REDAÇÃO

Os sentidos da Kédi A pequena vila é um daqueles lugares que aciona todos os sentidos do corpo. Para visão: temos a graça das crianças. Para audição: a trilha que gira no universo do funk, passa pelo gospel, e chega ao sertanejo a ao samba também. O olfato capta dois extremos: o cheiro hipnotizante de café, levando em conta que a visita acontece ao sábado de manhã. E o outro, terrivelmente menos agradável, é o cheiro do descaso com o saneamento. Na Kédi o esgoto escorre a céu aberto, com a mesma naturalidade que as pessoas acostumaram a correr por ele. O paladar é abençoado com aquele café, acompanhado por um pedacinho de pão caseiro. Ou até mesmo pelos lanches vendidos nos estabelecimentos da vila. Mas, o mais importante de todos eles, o tato, esse se da nos abraços carentes vindos de cada pessoa que dedicou alguns minutos da sua manhã para receber atenção de quem vive além da pequena rua sufocada pela burguesia ao seu redor. O abraço é só uma pequena demonstração de gratidão e fé de que vá melhorar. Vai melhorar. LUA KLIAR Editora-chefe

pensamosqueseriabomparaaescola e para nós daqui”, contou. Conheci quatro dos jovens que ela havia lembrado: o Gustavo da Silva e o Guilherme da Silva, filhos de Ângela, o Marcelo Almeida e o Paulo “Gordo” – como prefere ser chamado. Paulo e Marcelo estão no sétimo ano do ensino fundamental e Gustavo e Guilherme são colegas da mãe no primeiroanodoensinomédio.

Osquatroconcordamquedevem irparaaescolaporque,paraconseguir um trabalho onde o salário seja mais alto,precisamconcluiroensinomédio. Mas contaram que permanecer na escola é uma dificuldade. “A gente já tem que trabalhar desde agora, não só pela falta de tempo”. Apenas um já pensouemfazerfaculdade:Guilherme querseformaremGastronomia. A realidade dos jovens da Kédi

ENTRE EM CONTATO

não passa de um reflexo das dificuldades que a maior parte da juventude da periferia enfrenta. Percebi que, infelizmente, nesse contexto a educação não é uma prioridade quando a juventude precisa trabalhar e tem necessidades mais urgentes. Marina Lehmann Gabryela Magueta

DATAS DE CIRCULAÇÃO

(51) 3590 1122, ramal 3727

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6 de maio

nikportoalegre@gmail.com

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27 de maio

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10 de junho

Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Petrópolis – Porto Alegre – RS Cep: 90470 280 – A/C Coordenação do Curso de Jornalismo

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Vila Kédi é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Kédi, em Porto Alegre (RS). Com tiragem de mil exemplares, são publicadas três edições a cada semestre e distribuídas gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre.

CONTEÚDO Disciplina Jornalismo Cidadão Orientação Luiz Antônio Nikão Duarte (texto) e Flávio Dutra (fotografia) Edição geral (chefia) Lua Kliar Edição de fotografia Marina Lehmann Reportagem e edição: Arthur Marques, Liane Oliveira, Lua Kliar, Renata Simmi e Tina Borba ARTE

IMPRESSÃO

Realização

Realização

Agência Experimental de Comunicação (Agexcom)

Grupo RBS

Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização

Tiragem

Marcelo Garcia

1.000 exemplares

Diagramação Mariana Matté

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Petrópolis – Porto Alegre – RS. Cep: 90470 280. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente dos Cursos de Bacharelados e Tecnológicos: Paula Campagnolo. Coordenadora do Curso de Jornalismo: Debora Lapa Gadret.


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PERFIL .3

Com inspirações e legados da sua mãe, ela não mede esforços para as melhorias da comunidade

Dona Angela não falta para ninguém A líder comunitária da Vila Kédi cuida de todos como cuida de sua própria casa

N

a viela de chão batido o esgoto corre acompanhando a força da gravidade e desemboca na avenida Nilo Peçanha sem nenhuma cerimônia. Antes mesmo de ingressar em leve subida já é possível observar a fé, que faz parte da vida de todos ali dentro, seja católica, evangélica ou de matriz africana. A cada passo uma casa, à esquerda um tio, à direita uma tia que fez aniversário ontem e no meio da rua um garotinho que ora sorri, ora faz cara feia, indeciso com tantas presenças diferentes. Algumas casas são de tijolos, outras de madeira. Algumas são grandes e abrigam pais, filhos, netos e sobrinhos e outras apenas pai e mãe, que ficam para trás enquanto os filhos ganham o mundo. Em uma delas, ao lado dos escombros da antiga casa que os abrigou por muito tempo, mora Angela Maria Oliveira da Silva, Dona Angela ou simplesmente ‘Tia’, a líder comunitária da Vila Kédi. Ela conta que a Vila tem

mais de 100 anos e já está abrigando a quinta geração da sua família. Natural de Porto Alegre, a senhora de pele negra e olhar sereno saiu de lá uma única vez, quando se casou com seu primeiro marido, Ernani, pai de três de seus seis filhos. Após o repentino falecimento do seu cônjuge ela retornou para a Vila, e criou as três crianças, sem o auxílio da família do marido. “Guerreira, uma mulher muito guerreira”, é como Andreia, sua filha mais velha, a define logo de início. A entrevista é interrompida tantas vezes, que deixa de ser particular, passa a ser comunitária. Angela está sempre com a casa cheia, sempre tem alguém procurando sua atenção. Talvez seja pelo cheirinho do café recém passado, ou pela vontade de participar da roda de chimarrão promovida por Seu Paulo – atual companheiro de Angela -, mas o fato é que não falta assunto: sobre o bisneto de três anos, Tomas; sobre os jovens que voltaram a estudar; ou sobre o hábito de plantar folhagens, muitas e diferentes folhagens. São quase 200 famílias vivendo nos limites do bairro Três Figueiras e Mont’ Serrat, sem

saneamento básico ou comprovante de residência. Há mais ou menos quatro anos Angela teve que chamar os advogados para defender a comunidade de mais uma iniciativa política que, dessa vez queria levá-los para o Porto Seco. Eles não quiseram ir, não querem abandonar seus lares. Ela foi lá, bateu o pé, mas não brigou por isso, não. Angela não briga, não grita, resolve tudo conversando. Enquanto gesticula, suas unhas compridas pintadas de ‘jabuticaba’ ficam pra lá e pra cá, e quando ri, invariavelmente cobrem os lábios. Ela ainda guarda um certo recato de quem não é da geração x,y,z. Na cozinha, ao lado da mesa aonde a família se reúne todos os domingos para comer lasanha e churrasco, uma pequena “portinha” de ferro esconde uma janela que permite a visão de um carrinho de golfe do Country Club. É por aquele espaço que Angela vende lanches e bebidas aos frequentadores e funcionários do clube e assim complementa sua renda. Ela vende mais quando tem torneio, mas mesmo sem nenhum evento ou sinal de movimento no terreno ao lado, quando menos esperamos surge um

sorriso amigo na janela pedindo uma ‘cervejinha’“mas não bota a tampinha fora porque eu não vou beber tudo agora” pede o cliente costumeiro. Turbante amarelo na cabeça, brincos dourados ‘tilintando’ baixinho e sapatos pretos de salto alto, Angela se cuida, é esguia, muito vaidosa e adora uma festa. Para seu aniversário de 63 anos, no próximo dia em 31 de maio, ela já avisa: “vai ter festança”. O feminismo de que tanto se fala o empoderamento das mulheres frente aos problemas da vida e aos seus direitos não ganham esses nomes na Vila Kédi, mas têm um rosto, o de Angela. Antes dela, sua mãe, Dona Celita, era a líder da vila. Mulher igualmente forte, quando se foi deixou o legado com a filha. Angela é mãe de seis filhos, casou-se três vezes e sabe muito, sobre tudo. Ajuda quando alguém quer se aposentar, quando alguém fica doente, ou quando falta gás. Não se nega, às vezes pede para voltar depois, quando está com visitas, entretanto, ninguém parece se importar, pois todos sabem que ela estará disponível cedo ou tarde: Angela não falta para ninguém.

Ela estudou até a oitava série e parou para trabalhar. Hoje se arrepende, pois vê a importância do estudo no futuro dos jovens. Junto com a filha Andreia, estimula os 16 vizinhos adolescentes que largaram a escola a voltarem a estudar. Todas as crianças em idade escolar da Vila hoje estão na escola. Quando fala sobre isso Angela mostra um sorrisão nos lábios cor de carmim. Um visitante se levanta da mesa e diz que vai lavar as xícaras, que antes continham o café cheiroso que ela passou, e não aceita não como resposta. Angela não discute, corre na frente, ligeirinha, e lava ela mesma a louça. Seu lar é uma extensão de si mesma, simples, mas cuidadoso. Tem um gatinho de gesso em cima do armário, um arranjo com rosas vermelhas e a palavra ‘mãe’ na pia, um vaso artesanal azul no centro da mesa, e um aparador com muitos outros bibelôs, tudo limpinho e disposto com cuidado. Angela cuida da aparência, cuida do lar, cuida da família, cuida vila. Tina Borba Gabryela Magueta


4. ESPECIAL

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A comunidade sob A

dentrar a Vila Kédi não é tarefa difícil, pelo contrário, a curiosidade para desvendar um pouco mais sobre a comunidade aumenta a cada casa que se passa. Muitas histórias são guardadas atrás de cada porta. Crianças brincam, correm, jogam futebol sem medo e retribuem olhares de descobrimento. As cercas de madeira expõem brechas nas tábuas e não se perder nos detalhes que a Kédi guarda é um desafio. Marina Lehmann

FELIPE VICENTE Tainara Mauê


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b olhares em foco

Fernanda RomĂŁo

Jheine Sieben

Jheine Sieben

Thiago de Loreto


6. COMUNIDADE

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Colaboração é o lema entre os moradores Mesmo com demandas atrasadas, a união dos moradores traz algumas mudanças

U

m mundo diferente se esconde à beira da Avenida Nilo Peçanha: a Vila Kédi, que se estende por apenas uma rua, de aproximadamente 500 metros, onde vivem em torno de 200 famílias. Quem olha a entrada da comunidade, mal consegue imaginar as dificuldades enfrentadas pelos moradores do local. Em todo seu território há esgoto a céu aberto, em meio ao chão batido.

DEMANDAS EM ATRASO De acordo com a líder comunitária Ângela Maria Oliveira da Silva, mais conhecida como Dona Ângela, existem pedidos de melhorias para a comunidade na prefeitura há mais de cinco anos. O caso mais urgente e importante para os moradores é a questão dos encanamentos para o esgoto, mas compõem a pauta o asfaltamento da única, estreita e sinuosa rua e, também, caixas de lixo em seus extremos, pois o caminhão não consegue acessar a vila. “Meu irmão teve duas casas queimadas em junho do ano passado (2016) e as árvores do pátio queimaram também. Desde então, estamos solicitando junto à Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Smam) a poda dessas árvores, pois elas estão rachadas e quase caindo em cima da casa dele. Até agora, não vieram”, comenta ela. A auxiliar de cozinha Mara Borges, 42 anos, vive no local desde que nasceu e diz que, desde então, pouca coisa mudou. “No trabalho pediram uma conta de luz como comprovante de residência e não pude entregar, pois não tenho. Fiquei com vergonha. Apesar de darmos o endereço da Nilo Peçanha, é como se não existíssemos aqui”, desabafa a moradora. Mara conta, ainda, que os táxis não entram no local e, dependendo do horário, o serviço de gás se nega a fazer entregas na comunidade.

UNINDO ESFORÇOS Como forma de organizar os pedidos dos morado-

res, a comunidade se reúne e prepara abaixo-assinados com as demandas do local. Os próprios moradores encaminham para a prefeitura, apesar de possuírem uma advogada que os representa em determinados casos. Exemplo dessa organização ocorreu em dezembro de 2016, quando todos os moradores se uniram para instalar luz na vila. Depois de muitos pedidos não atendidos pela Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), a comunidade se mobilizou numa vaquinha coletiva, durante os meses de setembro e outubro, onde, depois de algumas reuniões, conseguiu juntar a verba necessária para a compra dos fios de eletricidade. “A gente passava uma caixinha e cada um colaborava com o que podia”, conta Ângela. Ao total, R$ 6 mil foram arrecadados. Depois, foi a vez de se unir para abrir os buracos no chão, onde foram erguidos os 12 postes improvisados a partir de troncos de árvores. O término do processo aconteceu com a instalação dos fios, realizada por uma empresa contratada. Para o barbeiro Galstem Santos, a melhoria dessas questões afeta diretamente

Sem poder esperar pela Prefeitura, os moradores já conseguiram resolver alguns problemas, mas o esgoto a céu aberto ainda não

seu trabalho. “Seria importante para dar visibilidade ao serviço que faço. Estou aumentando e organizando o espaço aqui dentro para valorizar mais a barbearia”, salienta.

PRINCÍPIOS COMPARTILHADOS O espírito cooperativo faz parte da essência da Vila Kédi.

Caminhando pelo local dá para perceber: vizinhos conversando na frente de suas casas, crianças brincando na rua, as músicas que embalam a roda de chimarrão ao sol. “Aqui é assim, cada um faz um pouco e todo mundo fica bem”, o rg u l h a - s e  n g e l a . Em um espaço onde mais de 400 pessoas vivem, havendo casos de cinco ou

mais gerações de uma mesma família passarem pelo local, esses princípios colaborativos são experimentados desde o berço, caso dos avós e pais de Paulo Tiribiçá dos Santos, 62 anos. “A gente aprende a se ajudar e a coisa melhora”, conta ele. Renata Simmi Amanda Bormida


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COMUNIDADE .7

Lugar de empreendedores Desde o final do ano passado, a Vila ganhou dois novos comerciantes

S

ete empreendimentos funcionam na Vila Kédi, dos quais dois são novos: o cabeleireiro Galstem da Silva e as trufas de Paulo dos Santos. Ambos começaram no final do ano passado e já pensam em expandir durante 2017. O último estabelecimento encontrado na vila passou por momentos difíceis no ano de 2016, ano em que Eder Bueno, o proprietário, teve de aumentar os valores das bebidas, produto no qual mais fatura. Os fornecedores e os atacados onde compra elevaram os preços em cerca de 5%. Isso obrigou o comerciante a subir 10%, o que fez clientes assíduos, como o aposentado

Geraldo Camargo, deixarem de frequentar o bar. Mas neste ano o microempresário conta que a venda voltou a crescer e que o bar pode ganhar novos investimentos. “Nós deixamos de vender xis há alguns anos, agora penso em voltar a fazer, o pessoal sente falta”, comenta. A nova geração da Vila Kédi não pensa mais em apenas procurar um emprego, mas se preocupa em procurar cursos profissionalizantes e até começa a olhar para algo que lhe parecia muito distante: o ingresso na faculdade. Galstem da Silva começou no final do ano passado a empreender na vila, influenciado pelo irmão. Há cerca três meses atua como cabeleireiro, ao preço de R$ 10,00 o corte. Sua especialidade é o desenho capilar. Com sua renda crescendo, o jovem de 21 anos passou a cur-

sar Administração na Faculdade Faccentro e também a planejar crescimento do negócio. “Com o tempo, pretendo comprar navalhas profissionais e começar a fazer barba t a m b é m”, p ro m e te. Angela da Silva, moradora e uma das líderes comunitárias da vila, tem como vista da jane-

chê, para venda de lanches e cafés. Entre seus clientes estão jogadores de futebol e empresários, clientela de dar inveja a qualquer estabelecimento. A renda do “Os dias em barbeiro que eu mais fatuGalstem vem de seus ro é nos finais de atendimentos na semana, me prepaprópria vila ro para não faltar nada para o pessoal do clube”, afirma. O mais novo comerciante da Kédi é Paulo Santos. Ele, que vende trufas de chocolate para o pessoal da vila, la dos fundos de sua residência tem entre seus clientes mais o Country Club. Conhecida na fiéis as crianças. Paulo e sua vila por fazer deliciosos pas- vizinha Joana começaram com téis, além de ser a responsável as vendas ao final de março pelos salgados das festas de e pretendem seguir com as aniversário, sua fama chegou trufas e com outros tipos de até as pessoas que praticam doces por muito tempo. golfe do outro lado da parede. Arthur Marques Por isso, a janela começou a ser Carol Steques usada como espécie de gui-

As religiões da Kédi É na entrada da Kédi que a religião católica se faz explícita, com a presença da Igreja Santa Edwiges, da Paróquia Nossa Senhora de Mont’Serrat. A simplicidade, coerente à vila, revela um espaço fechado, com alguns vidros quebrados, que permitem uma pequena visão do seu interior: uma cozinha basicamente equipada e um salão com cerca de duas dezenas de cadeiras e um crucifixo preso na parede. Os signos religiosos aparecem aos poucos na extensão da vila: uma pomba da paz, terços pregados na parede, um quadro com a imagem de Jesus, um crucifixo. A presença destes símbolos chama atenção nos lares daqueles que são devotos a Deus. A casa de Ângela Maria Oliveira da Silva, líder comunitária da Kédi, marca a Igreja Universal até na mesa da cozinha, com uma pequena imagem da pomba que a simboliza. A religião mora nos pequenos detalhes desse lar. Segundo ela, foi a fé que tirou uma de suas filhas das drogas. “Não foi fácil, mas sempre acreditei que Deus iria libertar ela”, conta. Mesmo que a fé esteja presente na maior parte dos lares da comunidade, não são em todas as casas que a crença habita. Há também aqueles que não acreditam em nada, outros que acreditam que Deus não precisa de uma casa específica, que ele pode estar presente em qualquer lugar. Há quem veja na música a sua religião. Por fim, a Kédi não passa de um pequeno recorte da diversidade religiosa de um estado laico como o Brasil. O importante para seus moradores é viver em paz. Lua Kliar Giulia Godoy

“Congrego há 30 anos na Igreja Evangélica Assembleia de Deus, no bairro Passo d’Areia. Acho que as pessoas devem acreditar em alguma coisa para ter um rumo na vida. A nossa salvação a gente encontra na igreja, e isso vale ouro”. Clarita Valadão Soares Aposentada

“Frequento a Igreja Santa Edwiges, da Paróquia Nossa Senhora de Mont’Serrat, aqui no começo da Vila. Há mais ou menos seis anos. Vou na missa todo mês”. Tania Rosangela Dutra Diarista

“Não sei nem o que é passar na Igreja. Uma vez eu fui na Deus é Amor e o pastor mandou eu trocar de blusa, porque estava aberta demais. Isso me fez desistir da igreja. Deus não vai olhar a roupa que eu estou usando”. Mara Ribeiro Borges Auxiliar de cozinha

“Não vou em nenhuma Igreja. Trabalho de segunda à sexta, quando chega final de semana eu tiro para faxinar o meu barraco”. Maria Adelaide Santos Garcia Doméstica

“Faz sete anos que vou na igreja católica, aqui na Vila. Comecei a ir logo quando vim morar na Kédi”.

“Nunca fui na igreja. A minha igreja é o funk. Eu acredito em Deus, mas não preciso ir em nenhum lugar para isso”.

Dinamara da Silva Diarista

Ketelin Samara Neves Estudante

“Fui para igreja porque a minha mãe ia para me salvar das drogas. Quando comecei a frequentar a Universal, comecei a me libertar dos meus vícios. Deus tem o poder de nos curar, mas a gente tem que querer também. Hoje eu vou pedir para que Deus liberte o meu filho, que é viciado. Ele tem o meu exemplo em casa, mas tudo é no tempo de Deus, né? Ele que tem poder sobre nós”.

“Não vou em nenhuma igreja. Eu ia na Universal quando tinha a Força Jovem, fazia parte do grupo. Quando o grupo acabou, saí da igreja e não voltei mais. Isso faz quase um ano”.

Andreia Oliveira da Silva Doméstica

Larissa Duarte Estudante, pediu para não ser fotografada


ENFOQUE VILA KÉDI

PORTO ALEGRE (RS) ABRIL/MAIO DE 2017

EDIÇÃO

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As grandes mães Mulheres da comunidade falam sobre os desafios da maternidade

À

s 10h da manhã de um sábado, não foi difícil encontrar mulheres na Vila Kédi, lugar em que a vocação à maternidade se faz presente ao longo dos seus mais de 500 metros de extensão. Em cada casa, se pode encontrar uma mãe, rodeada dos seus pequenos. Na verdade, elas não são mães apenas dos seus filhos, mas, sim, de todos, pois, na medida do possível, ajudam as crianças que ali moram. Cada uma com diferentes histórias de vida. Assim como qualquer outra data comemorativa, o Dia das Mães não passa em branco na vila. A grande família Kédi, costuma comemorar sempre. Mãe de quatro meninos e duas meninas, a líder comunitária da Vila Kédi, Ângela Maria Oliveira, conhecida por todos como Dona Ângela, é engajada com as causas sociais e está sempre na busca de melhorias para a comunidade. Exemplo de uma grande mãe na comunidade, ela abraça todos que passam pelo seu portão. Ela é receptiva e acolhe a grande comunidade. É difícil encontrá-la sozinha em casa. Ângela teve sua primeira experiência com a maternidade aos 24 anos, mas conta que desde pequena ajudava a criar os irmãos. “Sempre tive o espirito de mãe, cuidava dos meus irmãos então aprendi a ser mãe desde muito jovem. Criei todos aqui na vila”. Ela ainda completa, “cinco dos meus filhos moram aqui na vila e um deles mora no bairro Restinga, na Zona Sul”. Ao falar da sua idade, Ângela responde prontamente, “tenho meia dois”, ainda brinca que, depois de uma certa idade conta-se assim os anos. Ela trabalha com a venda de comidas e está sempre envolvida em atividades com os moradores. Para ela, a maternidade é algo positivo e de muito crescimento. “Eu gosto de ser mãe”, completa.

A CASA DAS SETE MULHERES As mães da Vila Kédi, são mulheres que acordam cedo para trabalhar e cuidar dos seus filhos, se preocupam com a educação e sonham com um bom futuro para a família. Thainá Fontoura, de 21 anos, está no nono mês de gestação e tem uma menina de três anos. Teve sua primeira filha com 18 anos e é separada do pai da criança. Para ela, ser mãe jovem é um desafio. “Quando descobri que estava grávida não foi nenhum susto, pois eu já tinha a vontade de ser mãe, mas acredito que com a maternidade tive muito amadurecimento”. Thainá mora numa família só de mulheres: ela tem cinco irmãs, a mais nova de dois anos e a mais velha tem 24. Ela sempre ajudou a cuidar das suas irmãs, então a maternidade sempre foi muito presente na sua vida. A jovem,

que mora na Vila Kédi desde que nasceu, a vê como um lugar tranquilo. “Como em todo o lugar, aqui também existem dificuldades, mas apesar disso é um lugar calmo, todos nos conhecemos e tentamos nos ajudar”. Thainá estudou até o ensino médio e agora se dedica para a cuidar das filhas e da família. Para a sua mãe Mara Borges, a maternidade tem seus momentos bons, mas também tem há os momentos difíceis. “A maternidade é um dom de Deus, é muito bom ser mãe. Criar seis meninas não foi difícil, pois uma ajudava a outra, uma aprendia com a outra”, completa.

TIA TAMBÉM É MÃE É na casa de número 326 que moram a diarista Tânia Rosângela de Jesus e mais cinco pessoas. Ela tem mais uma daquelas histórias que deixam qualquer pessoa emocionada. Com 47 anos, mãe de quatro meninos e duas meninas, além de cuidar dos seus filhos, ela cria a sobrinha Ester Sofia Dutra Carvalho, de 5 anos, filha de sua irmã Saionara de Jesus. Tânia sempre a ajudou a criar a sobrinha, mas com o falecimento repentino da irmã, passou a ser mãe de fato de Ester. “Para mim, ela é minha filha, eu cuido dela e também recebo ajuda de pessoas próximas, o que estiver no meu alcance eu faço para ela”, comenta. Tânia é também dedica atenção aos filhos das vizinhas. “Às vezes, as crianças estão pela rua e eu fico cuidando”. Como todas os moradores, Tânia comenta que a Vila Kédi é uma comunidade pequena, mas é um lugar tranquilo com muito amor e solidariedade dos que ali moram. “A gente se ajuda. Compartilhamos momentos bons, alguns momentos nem tantos, mas somos uma grande família”, esclarece. Tânia costuma organizar festas de Natal para as crianTânia, Thainá, Mara e Angela ças. Acha que isso é muito têm muito o que importante para a comunicomemorar no Dia dade. Sempre no final do das Mães ano ela arrecada dinheiro e busca doações de brinquedos para as crianças. “Eu faço a festa aqui na rua, faço bolo, compro balões para as crianças e assim elas passam momentos divertidos. Eu gosto de ajudar a comunidade”, completa. Angela, a jovem Thainá, Mara e Tânia, são uma pequena parte das mães da Vila Kédi. Todas elas trabalham pela comunidade, para um futuro melhor dos filhos e das pessoas que moram ali. Mulheres fortes e guerreias que não medem esforços para conciliar as atividades do dia-a-dia com a família. As mães da Vila Kédi sonham com os pés no chão, elas têm voz e vez, é com elas que a grande família Kédi aprende diariamente amar e lutar pelo lugar que vivem. Liane Oliveira Fernando Eifler


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