ENFOQUE SANTA MARTA
SÃO LEOPOLDO / rs ABRIL/MAIO DE 2017
EDIÇÃO
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JÚLIA MACIEL
Amor sem distinções Família conta como a adoção tornou possível o sonho de ter uma filha
Luana Rosales
Bruna Bertoldi
Mariana Dambrós
página 3
Direito à mobilidade Faltam vias transitáveis. Jozele quase não sai de casa. Página 9
Histórias de bar
Bares e mercearias fazem a alegria de moradores. Página 13
E o CEP da Sta. Marta?
Sem o Código de Endereçamento Postal, todos sofrem. Página 19
2. EDITORIAL
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Apesar das dificuldades, Tialison é dançarino do grupo Explosão da Dança
N
Perseverar por um futuro melhor
essa segunda edição do Enfoque Santa Marta tivemos a oportunidade de conhecer mais de perto a vila e as pessoas que a constroem diariamente. Passadas as primeiras impressões, revelam-se mais histórias e possibilidades a serem exploradas pelos repórteres. Várias dessas histórias se conectam pela marca da força de vontade,
pré-requisito para quem decide correr atrás dos seus sonhos. Muitas adversidades estão aqui retratadas, bem como o mérito de muitas personagens. É necessário falar dos obstáculos e das superações. As próximas páginas reúnem relatos que denunciam, por exemplo, a falta de infraestrutura e acessibilidade que dificultam a vida de muitos moradores. Ela decorre da ausên-
cia de ações concretas por parte do município para regularizar a vila. Essas medidas resultariam na implantação do CEP, por exemplo. E ruas melhores garantiriam o direito à mobilidade. Mas essa também foi uma oportunidade de escrever sobre os exemplos de superação e resistência que fazem da Santa Marta um lugar melhor a cada dia. São casos como o do nosso destaLAURA PAVESSI
que da capa, que aborda o amor incondicional de pais adotivos. Bem como as diversas lições de empreendedorismo espalhadas pela vila que mostram que é possível perseverar mesmo diante de muitas dificuldades. Nesse jornal ainda foi possível dar voz à arte de jovens que se dedicam à dança, música e arte urbana. Uma mostra de que, mesmo em locais
quase esquecidos pelo poder público, a cultura consegue instigar a capacidade de sonhar com um futuro melhor. É através dessas histórias de luta, solidariedade e esperança que escolhemos retratar a vida na Santa Marta. E esperamos que elas continuem sendo agente transformador na comunidade e inspirando outras tantas batalhas.
RENAN NEVES
QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Santa Marta é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Santa Marta, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, são publicadas três edições por semestre e distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo. Telefone: (51) 3591.1122, ramal 1329 / E-mail: posorio@unisinos.br
EDIÇÃO E REPORTAGEM Disciplina: Jornalismo Cidadão
Edição de fotos: Bruna Henssler
Orientação: Pedro Luiz S. Osório
Reportagem: Alessandro Garcia Amanda Cunha Anderson Huber Bruna Henssler Carolina Schaefer Deivid Duarte Elisa Ponciano Fernanda Fauth Júlia Flores Laura Pavessi Leonardo Severo
Edição de textos: Alessandro Garcia Amanda Cunha Anderson Huber Laura Pavessi Thais Ramirez
FOTOGRAFIA Lidiane Menezes Liege Barcelos Luísa Boéssio Lurdinha Matos Manoela Petry Mel Quincozes Milene Magnus Mirian Centeno Natália Collor Rafael Erthal Thais Ramirez Thamyres Thomazini Verônica Luize Victor Dias Thiesen Victória Freire
Disciplina: Fotojornalismo Orientação: Flávio Dutra Fotos: André Cardoso André Martins Andrea Aquini Bruna Bertoldi Bruna Flach César Weiler Diego Mello Estephani Richter
ARTE Fernanda Ochoa Guilherme Santos Igor Mallmann Isabelle Wrasse João Rosa Júlia Maciel Lisandra Steffen Luana Rosales Luana Tavares Lucas Schardong Luciana Abdur Mainara Torcheto Mariana Dambrós Renan Neves Renata Oliveira Silva
Saskia Ebenriter Tainah Gil Thaís Lauck Tuhana Pinheiro Vinícius Emmanuelli
Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia Diagramação: Mariana Matté
IMPRESSÃO Realização: Gráfica UMA / Grupo RBS Tiragem: 1.000 exemplares
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente dos Cursos de Bacharelados e Tecnológicos: Paula Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.
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FAMÍLIA .3
Cleunice, Valmir e os filhos: fortalecidos pelo amor
Os irmãos William e Maiara brincam sempre juntos sem diferenças ou preconceitos
Casal da comunidade conta como realizou o sonho de ter uma filha
A
dotar é uma demonstração de amor, que pode vir acompanhada de dificuldades e frustrações. No caso de Cleunice Rodrigues, de 31 anos, a chegada da filha Maiara veio para unir ainda mais o casal e realizar o sonho tão almejado. Após diversas tentativas fracassadas de uma gravidez e uma depressão, a moradora da Vila Santa Marta e o marido, Valmir de Oliveira, de 36 anos, decidiram adotar uma criança. Foram, então, se inscrever no Cadastro Nacional de Adoção para completar a família. Cleunice trabalha como auxiliar de expedição e reside desde 2009 na Vila Santa Marta, em São Leopoldo. Ela conta que a obtenção da guarda da filha foi rápida, durando cerca de dois anos, contrariando a maioria dos casos brasileiros. As dificuldades enfrentadas não foram poucas, como os preconceitos dos amigos e família. Quando já estavam com os procedimentos encaminha-
Um ato de amor além do sangue dos e na fila de espera, o jovem casal teve uma surpresa: a esposa estava grávida. William Rodrigues de Oliveira, de 5 anos, filho biológico do casal, nasceu com complicações. O período de 9 meses foi ultrapassado e o bebê ficou um mês internado, embora hoje seja uma criança saudável. Um ano após superaram esse problema de saúde, o processo de adoção foi reaberto e em seis meses a espera chegou ao fim. Em um dia comum no trabalho, Cleunice recebeu a ligação tão sonhada e família estava prestes a ter mais uma criança.
NOVA INTEGRANTE DA FAMÍLIA Mai, como é chamada carinhosamente pela família, é uma menina negra. Teve o começo de sua história conturbado. A mãe biológica tinha 19 anos e não tinha apoio do pai da criança. “Ela disse que não tinha condições de ficar com o bebê, e acionaram a assistência social”, recorda Cleunice. Devido às regras dos procedimentos de adoção, os possíveis pais não recebem muitas
informações da origem familiar da criança adotiva, como endereço e nome. Os pais de Mai estão dispostos e preparados para contar como tudo aconteceu. “Ela é da nossa família e vamos ampará-la sempre. Quando ela crescer vai fazer perguntas e vou procurar um psicólogo para ir contando aos poucos de onde ela veio”, conta Cleunice. O filho mais velho também tem questionamentos e a mãe conta que a ajuda de um profissional será essencial. “Às vezes até o William me pergunta umas coisas e eu não sei o que responder”, completa. Para receber a nova integrante da família, o casal teve que se organizar financeiramente e se adaptar à nova rotina. Os amigos e familiares foram essenciais para suprir as necessidades da recém-nascida. “Na firma onde eu trabalho todos compraram fraldas. Uma conhecida da minha colega tinha adotado recentemente três crianças, então ela nos doou várias coisas, como fralda, berço, leite, brinquedos, tudo”, explica Cleunice. Entre alegrias e tristezas, o preconceito com a cor foi uma das dificuldades enfrentadas
pelo casal. De acordo com a mãe de Nai, muitas pessoas não entendem o que é adotar e o amor que existe nisso. “Hoje as pessoas estão mais acostumadas. No começo eu ouvi de tudo, mas temos que filtrar o que é bom. Ela é minha filha e pronto”, relata. O sonho de ter mais uma criança em casa era maior que todas as barreiras. “Pra mim adotar é cuidar e amar. As pessoas dizem que eu vou ser diferente com ela, que sou louca, mas essa é minha forma de amar”, explica Cleunice. Segundo Valmir, o pai de Maiara, a chegada dela na família trouxe muita felicidade, realizando o desejo tão sonhado por ele e pela esposa. Trabalhando de segunda a sábado em uma fábrica de plásticos, ele conta que consegue ficar mais com os filhos aos domingos. Desde o começo do processo de adoção receberam apoio tanto dos pais dele quanto dos da esposa.
IMPASSES DA ADOÇÃO NO BRASIL O Cadastro Nacional de Adoção (CNA), administrado pelo
Conselho Nacional de Justiça, busca agilizar os processos de adoção por meio do mapeamento de informações. Dados obtidos pela instituição pública revelam que para cada criança na fila, há cinco famílias querendo adotar, porém o perfil desejado é bem restrito. De acordo com o CNA, em 2016, havia cerca de seis mil crianças e adolescentes aptos à adoção, sendo 16,99% negras, 48,86% pardas, 33,48% brancas, 0,3% pertencem à raça amarela e 0,36% indígenas. Nos últimos anos a flexibilidade no perfil de desejo das famílias aumentou, o número de pretendentes que aceitam crianças pardas aumentou cerca de 20%. Entre as dificuldades da adoção está a burocracia. Os entraves legais mais recorrentes estão ligados aos vínculos biológicos da criança, que favorece a família biológica, ao invés dos candidatos da fila do Cadastro Nacional de Adoção. Só após a autorização do Ministério Público que o perfil da criança é disponibilizado no cadastro. Thamyres Thomazini Júlia maciel
4. COMUNIDADE
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Da janela se vê esperança O sonho dos moradores é que um dia possam ver da sua casa uma comunidade melhor de se viver
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m Santa Marta, das janelas de suas casas, os moradores têm diversos tipos de visões. Algumas lindas, que para muitos lembram os progressos e evoluções pelos quais a vila passou desde a sua criação. Já outras visões são pouco agradáveis e não deixam as pessoas esquecerem dos problemas que vivem no local. Embora exista uma diversidade grande de olhares, todos dividem a esperança de que um dia o lugar onde vivem será do jeito que sonharam, ideal para crianças e adultos. Da área mais alta do bairro, Enedina e Julio Marques, 68 anos, avistam boa parte da comunidade. Da sacada eles veem muitas das casas da vila e o movimento constante de crianças que correm para a quadra esportiva, construída há poucos meses. Há 26 anos, o casal enxerga esse mesmo cenário. “Inclusive as reclama-
ções são as mesmas de quando chegamos”, ressalta Julio. Mato alto em diversos terrenos, esgoto correndo a céu aberto, barro e enxurradas são algumas as principais reclamações do casal de idosos. Porém, mesmo com os problemas que veem da janela da sala, eles não deixam Santa Marta. Já passaram um tempo fora da vila, mas escolheram voltar. Isso porque mesmo com os problemas bem visíveis, a comunidade ainda é bem mais segura do que outras. “Aqui não tem violência. Já teve, e era muito difícil. Saímos, mas decidimos voltar!”, salienta Enedina. Embora sejam felizes, eles esperam um dia verem da janela algo diferente. Políticos cumprindo o que prometem, máquinas da prefeitura trabalhando por melhorias, um posto de saúde, mais escolas e “estradas” (como chamadas por eles) boas. São exatamente os mesmos desejos de Rui Bruxel, de 75 anos. Ele está em Santa Marta há pouco mais de seis anos e mora em frente a uma das cooperativas de reciclagem do bairro. Rui afirma que o local é muito importante para a gera-
ção de emprego e renda para diversas famílias da comunidade, porém reclama do cheiro e da falta de manutenção no local. “Aqui, muitas coisas poderiam ser melhores se tivessem mais atenção”, opina. Rui conta que gostaria de enxergar mais coisas boas no bairro. Entretanto, a falta de iluminação pública é outro problema que o impede de ver. “Mas a gente aprende a se acostumar. E vai ficando. Vendo o que a gente não quer muito e esperando ver algo melhor.”
A paisagem atual A dona de casa Ilete Costa, 50 anos, sentada no sofá da sua sala, consegue enxergar muito movimento de trabalhadores, de estudantes e de moradores, já que sua casa fica na única rua asfaltada do bairro. Ela também vê toda a quadra de esportes de Santa Marta e a Associação Comunitária da vila. E, infelizmente, também acompanha a falta de cuidado e respeito de crianças, jovens e adultos com as conquistas da comunidade. A quadra esportiva foi uma luta de todos, segundo
Ilete (janela) lamenta o descuido com as coisas da comunidade. Enedina e Julio elogiam a segurança. Rui não se arrepende da sua escolha
ela, e que agora não está sendo valorizada. “É uma coisa boa, mas as pessoas não respeitam nada. Já arrebentaram tudo! Não cuidam nem do que é pra eles mesmos”, reclama. Vivendo na mesma casa há mais 25 anos, Ilete diz que o local que hoje é novo, iluminado e próprio para diversos esportes, sempre foi um campinho de terra, onde os jovens jogavam futebol. “Quando chegamos aqui, não tinha nada. Eram poucas ruas, poucas casas, muitas árvores e uma plantação bem grande de eucalipto. Agora está mesmo bem melhor, só que é uma pena que não esteja cuidado.” Observando Santa Marta pela janela, Erenita Satler Leal, 54 anos, ressalta que muitas mudanças aconteceram desde que chegou na comunidade, há mais de 20 anos, embora nem todas tenham sido para melhor: “Aumentou o número de moradores, de casas, de carros, de tudo. Só que a gente continua sem ajuda nenhuma da Prefeitura e, por isso, as coisas não melhoram”, destaca. De acordo com Erenita, o maior problema que enxerga,
vive e sente diariamente da sua janela é a poeira da movimentada rua em que mora. “Limpo a casa umas três vezes por dia quando o tempo está seco, porque esse pó toma conta”, reclama. E entre tantas coisas que enxerga, Erenita sente falta de algumas bem importante, como um posto de saúde. Além disso, de uma rua em melhores condições para pedestres e motoristas. “A gente vê daqui muita coisa que não presta. Mas é um lugar muito bom pra se viver, mesmo que às vezes a gente não enxergue”, completa Erenita. A dona de casa Ângela Vieira Cavalheiro, 22 anos, fazendo a pequena Amanda, de um ano dormir em frente à janela, avista o esgoto que corre na beira de sua calçada, a rua de chão batido quase intransitável. E essa visão não a agrada nem um pouco. “A paisagem que eu desejo? Uma rua melhor e um posto de saúde para minha filha. Essas coisas iam fazer uma grande diferença já”, completa. Manoela Petry Renata Oliveira Silva
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Comunidade .5
Jandiara se mudou há pouco tempo para a vila
Angela teve gestação complicada
Durante toda a gravidez, Keuren teve apoio
Mães na prática Keuren, Jandiara e Angela viveram a experiência da maternidade na juventude e celebram a vida dos filhos
M
ães jovens são uma realidade na Vila Santa Marta. Ao conversar com as moças, as dificuldades na criação mal são citadas e o que se destaca é seu amadurecimento. De acordo com a ONU Mulheres em 2015, entre 15 e 20% dos nascimentos na Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai são de mães menores de 18 anos. O caso de Keuren Aparecida da Silva se encaixa nestes dados. Ela foi mãe de seu primeiro filho aos 14 anos. Hoje aos 23 anos, ela é mãe de mais duas crianças. Além de Richard de 7, tem Suelen de 2 anos e Pietro de 3 meses. Na época em que o primeiro filho nasceu, a jovem estava em um relacionamento sério. “Demorou um pouco para cair a ficha, mas minha mãe me apoiou”, recorda.
A família está morando nos fundos da casa da mãe de Keuren, com o pai dos filhos mais novos, Braian de Angeles da Silva. Sobre a descoberta da segunda gravidez, o jovem de 20 anos conta ter sido um susto. “Nós ficamos assustados, mas não foi o fim do mundo”, afirma. As mães dos dois apoiaram o relacionamento e a espera das crianças, além de os ajudaram agora durante o crescimento de Richard, Suelen e o pequeno Pietro. Foi na cidade de Venâncio Aires que a história de Jandiara Heloisa Lacerda, de 16 anos, começou. Mãe de primeira viagem de Luiz Henrique de 8 meses, ela conta que se mudou para a Vila Santa Marta há poucos meses e que levou uma gestação tranquila enquanto esperava o filho. A mudança para a vila aconteceu em função do marido que mora no local. A notícia não foi dada aos seus pais da forma que Jandiara esperava, foi por meio de um vizinho que a informação se espa-
lhou. “Ele contou para o meu padrasto e foi ele que contou para minha mãe”, revela. Foi nesse momento que a mãe começou a participar do pré-natal da jovem, que descobriu a gravidez com três meses de gestação. A ginecologista Cleusa da Silva Conceição destaca a importância de apoio durante a gestação de mães jovens. “O risco durante qualquer gravidez é maior sem apoio de um parceiro ou dos pais”, afirma. Manter um emprego ou estudos é outro ponto que a doutora destaca pois são aspetos que afetam o emocional da gestante. Angela Tais Vieira Cavalheiro, 22 anos, também é mãe de primeira viagem, teve a Amanda Vitória há nove meses. “Eu fiquei muito emocionada, até chorei quando ela nasceu”, afirma com um sorriso de orelha a orelha. De acordo com Angela, a gravidez foi difícil, ela passava mal com frequência e tomava soro no hospital repetidas vezes. “A gravidez pode ter sido difícil, mas o parto foi tran-
quilo”, revela a jovem. No posto de saúde do bairro Campestre é possível serem requisitados preservativos de forma gratuita, além de informação para todos que tenham dúvidas em relação a doenças sexualmente transmissíveis ou qualquer problema em relação a saúde sexual. Um acompanhamento com as gestantes é realizado no posto de saúde por agentes todas às quintas-feiras.
PREVENÇÃO A conscientização sobre gravidez deve ocorrer principalmente em relação ao sexo seguro. De acordo com a ginecologista Cleusa da Silva Conceição, são diversos os métodos contraceptivos. “Anticoncepcionais hormonais orais (comprimidos), injetáveis, vaginal, adesivos, anel vaginal, camisinha feminina e masculina, ligadura, vasectomia e DIU de cobre são apenas alguns”, afirma a profissional.
Sobre o acompanhamento da gestação, a doutora reforça a importância do pré-natal. “São necessárias consultas mensais até o sétimo mês e depois disso de 15 em 15 dias”, orienta. Além disto, qualquer gravidez precisa de uma avaliação da mãe e exames que sejam específicos mãe e filho. “Exames para AIDS, sífilis, hepatite B e C, anemia, diabete, tipagem, todos esses e outros mais são muito importantes”, ressalta. Natália Collor Mainara torcheto
Riscos para mãe adolescente - Parto prematuro - Bebê com baixo peso ou subnutrido - Complicações no parto - Infecção urinária ou vaginal - Aumento do risco de depressão pós-parto
6. SOLIDARIEDADE
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Comunidade abraça animais de rua Pessoas dispostas a compartilhar o pouco que têm para amenizar a difícil situação de cães e gatos de rua
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asta uma rápida circulada pela Santa Marta para que se constate uma triste realidade: a grande incidência de animais rua. Em maioria cães, os animaizinhos aglomeram-se, sobretudo, em locais onde há acúmulo de lixo. Dependentes e visivelmente debilitados, muitos deles encontram na solidariedade de alguns moradores a forma de obter seu alimento. E foi atrás dessas pessoas que seguimos. O aposentado Reinaldo Teixeira da Silva, 65 anos, é uma destas almas caridosas. O encontramos em frente a sua residência, onde, como viria a nos contar, abriga doze gatos e dois cães, todos resgatados do abandono. Enquanto pitava seu cachimbo, o homem nos pôs a par de outro perigo que ronda os animais de rua da Santa Marta: o envenenamento. Essa prática, segundo Reinaldo, é bem recorrente, só dele já foram mortos quatro gatos. “Tem gente que não têm coração”, diz. Letícia Regina Assmann da Silva, 25 anos, filha de Reinaldo, conta, que sempre tenta alimentar e acolher animais que circulam pela comunidade. Ela compartilha uma história recente, de quando resgatou uma gata que recém havia dado à luz. A gata e dois de seus filhotes ainda se encontram sob sua guarda. Porém devido à grande quantidade de animais que já possui, uma parte considerável da renda da família está comprometida, o que segundo a jovem, tem dificultado a adoção de novos animais. De acordo com Letícia o gasto da família com ração ultrapassa a barreira dos R$ 300,00 mensais, valor que pesa no orçamento da família. Essa demanda financeira é coberta pelo salário de aposentado de seu pai Reinaldo, dada a atual situação de desemprego enfrentada pela jovem. Inclusive a moça sinaliza para quem tiver interesse fazer doação de ração, que entre em contato pelo telefone número (51) 994276523, ou a faça diretamente no endereço da família, a casa situada Rua Um, nº 192, comunidade Santa Marta.
Reinaldo Teixeira da Silva, 65 anos, abriga 12 gatos e dois cães em sua residência
MORENA Ainda na nossa conversa, Letícia apontou para um caso em específico, o da cachorra Morena. Fêmea, de grande porte, o animal apresenta características físicas similares às de um cão da raça labrador. A jovem relatou que Morena estava muito machucada, com bicheiras espalhadas pelo corpo. A última vez que a avistara havia sido naquela ma-
nhã, quando a alimentou. Decididos a encontrar Morena para constatar sua situação, seguimos pela comunidade, onde observamos muitos outros animais em condições similares às atribuídas a ela. Questionando alguns moradores sobre se a haviam avistado, muitos disseram conhecê-la e eventualmente alimentá-la. Um desses moradores foi Luís Batista Mendes, 56 anos,
que nos contou abrigar em sua casa oito gatos, e mais dois cães. Um deles, ainda em recuperação, resgatado há poucos dias, quase morto. Sobre a localização da Morena, Luís não soube informar, mas nos relatou que o terreno baldio, situado nas proximidades da sua casa, na Rua 5, nº211, é utilizado para desova de animais mortos. E que frequentemente presencia o ato. Finalizando a ronda, encon-
tramos Morena nas proximidades de onde havíamos partido. A cadela, como constatamos, apresentava-se visivelmente debilitada, com marcas de ferimentos antigos, e novos - ainda não cicatrizados. Moradores disseram ter questionado a Secretaria Municipal de Proteção Animal (Sempa) sobre o não recolhimento do animal, e de outros em estado parecido. Segundo eles a informação é de que o Canil Municipal de São Leopoldo, localizado na Estrada do Socorro, nº 1440 - Arroio da Manteiga - em frente à Usina de Reciclagem - está superlotado.
O CANIL Sobre os apontamentos dos moradores da Santa Marta, o Secretário Anderson Ribeiro, se pronunciou, via e-mail, alertando sobre a real função da Secretaria de Municipal de Proteção Animal. “A função da Sempa e do Canil Municipal não é o recolhimento de animais, esta é uma abordagem equivocada que se realizada causa um empilhamento de animais em celas por dezenas de anos de suas vidas”. Quanto à atuação da Sempa, Ribeiro informa que os animais recolhidos para atendimento, após sua cura e castração, são devolvidos ao local de origem. Ficando abrigados no Canil os casos de sequelas graves, cães que comprovadamente foram autores de algum ferimento em humanos e animais que possuem doenças transmissíveis. Segundo o Secretário, o canil realmente encontra-se superlotado, contando com a capacidade de 170 vagas, atualmente abriga mais de 300 animais. Por fim, o Secretário aponta para a importância de uma parceria da comunidade com a Sempa. “É fundamental que a comunidade agende visitas ao canil, para adoção, e para conhecer o trabalho efetuado no local. Trabalhamos hoje em um programa de esterilização de animais de rua para estudar o seu impacto na redução da população de animais. Estima-se que haja 4.000 cães e 6.000 gatos nas ruas da cidade. Ao todo estima-se que São Leopoldo tenha uma população de 110.000 animais, desses 40% caninos e 60% felinos”. Alessandro Garcia Saskia Ebenriter
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Horticultura .7
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Lione cuida de um sítio na Santa Marta e tem uma plantação para consumo e como fonte de renda da família
Luciana Abdur
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Agenor vê na horta orgânica uma forma de cuidar da saúde e arrecadar fundos para a igreja da qual é ministro
Mãos na terra: moradores criam hortas orgânicas Conheça as pessoas que se dedicam ao cultivo de alimentos que vão direto da terra para as mesas
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esmo em tempos de urbanização e crescente consumo de alimentos industrializados, há quem se preocupe com o que é posto na mesa diariamente e busque saber a procedência do que consome, preferindo alimentos naturais e livres de agrotóxicos. Na Santa Marta, alguns moradores também têm essa preocupação, como o Lione e o seu Agenor, que encontraram uma solução bem simples: as hortas orgânicas. Cuidador de uma propriedade rural na comunidade, Lione Santiago, 46 anos, mora com a esposa, Marili Maciel, 40 anos, e os dois enteados, Alexandre, 18 anos, e Juliano, 14. Ali, ele mantém cerca de um hectare de plantação de aipim, tudo sem agrotóxicos e colhido para o próprio consumo e também para vender aos moradores. Lione chegou no local em 2000 para trabalhar como caseiro e participar de uma horta comunitária que funcionava ali com auxílio da Prefeitura de São Leopoldo. Ele e mais
três mulheres trabalhavam no espaço e recebiam uma ajuda de custo de R$ 70 por mês, além do rendimento das vendas dos alimentos em feiras e na comunidade. Com o fim do projeto, em 2005, ele continuou plantando sozinho e hoje vive apenas do que produz.
VIVENDO DA TERRA Sempre em contato com a terra, Lione e Marili levam uma vida tranquila e simples com a família. Em um dia normal, Lione acorda às 5h30 para tirar leite da vaca Mansinha e levá -la, junto com o bezerro Dodô, para pastar. Além disso, cuida dos outros animais que vivem ali, desde cachorros e gatos até porcos e galinhas. Depois, inicia a lida com as hortas, que envolve molhar os canteiros, capinar e, claro, plantar. O aipim cultivado ali é a principal fonte de renda de Lione, mas ele tem ainda uma pequena horta, onde planta alface, rúcula e almeirão, tudo fertilizado com adubo dos próprios animais. Quando está na época, também gosta de cultivar melancia e abóbora em meios aos pés de aipim. Da colheita, uma parte vai para a sua própria mesa; o resto é vendido para os vizinhos, que lhe
procuram pela procedência orgânica de seus produtos. Para Marili, além de ajudar no sustento da família, as hortas também reduzem os gastos com alimentação. Eles consomem o que vem da terra, além dos ovos e leites produzidos pelos animais, precisando comprar apenas alimentos básicos, como arroz, feijão e carne. Já Lione revela que apesar de trabalhar de domingo a domingo, gosta de lidar com as plantas e os animais. “Acho que não consigo mais viver em uma casa normal, como os meus vizinhos, já tô acostumado com essa vida aqui”, comenta.
POR UMA BOA CAUSA Próximo dali mora o comerciante Agenor de Azevedo, 60 anos, que também mantém uma plantação, mas com outra finalidade: arrecadar fundos para a Comunidade Católica Santa Marta, da qual é coordenador e ministro. A ideia, segundo ele, surgiu há quatro anos, quando percebeu um espaço sobrando no fundo do terreno da igreja. Como nasceu na roça e sempre gostou de mexer com a terra, pediu permissão ao padre para iniciar no local uma horta orgânica.
O primeiro trabalho foi limpar o lixo acumulado no terreno. Ele conta que fez tudo sozinho, e levou cerca de duas semanas para tirar a sujeira e cortar o mato alto. Depois de tudo limpo, começou a preparar a terra para receber as primeiras mudas do que se tornaria, então, a horta da igreja. Hoje, Agenor tem ali cerca de 600 pés de alface, além de temperos, como cebolinha e salsa, tudo vendido por um real a unidade. Inicialmente ele partilhava as verduras colhidas entre os fiéis presentes nas missas aos sábados. Mas a ideia não deu muito certo. “O que a gente dá de graça, as pessoas não dão muito valor, então comecei a cobrar para arrecadar recursos para a nossa comunidade”, conta. Com o primeiro dinheiro arrecadado, o ministro comprou um altar novo para a capela, que exibe orgulhoso. O lucro da próxima colheita já tem destino certo: consertar algumas janelas quebradas da igreja.
CUIDAR DA SAÚDE Agenor também investe o que arrecada na própria manutenção da horta, como a compra de sombrite, uma tela usada para proteger as plantas do sol. Para
que as alfaces cresçam bonitas, precisa ir ao local duas vezes por dia, pela manhã e à noite, para molhar e limpar os canteiros. Mas ele adora se dedicar ao trabalho com a terra. “Isso aqui é o que me mantém em pé, é a minha saúde”, relata. A saúde, inclusive, é um dos motivos pelos quais ele sempre sonhou em ter uma horta orgânica. O adubo que utiliza é feito em casa, com cascas de frutas e verduras e restos de erva-mate que guarda durante a semana. Apesar do trabalho, conta que prefere assim. “Pode até não dar aquele pezão de alface bonito, mas pelo menos é saudável”, pondera. Quando as verduras estão prontas, seu Agenor as colhe, coloca na traseira da bicicleta e sai oferecendo de porta em porta. O cabeleireiro Elio de Souza, 40 anos, é sempre um dos primeiros a comprar dele. “Eu gosto porque é um produto que é natural, muito diferente daquele que a gente compra no mercado”, conta o morador, que diz achar bom ter pessoas com essa mesma preocupação entre os vizinhos. Mel Quincozes Luciana Abdur Tainah Gil
8. CIDADANIA
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Solidariedade pela educação Trabalho social da Abrasse resulta em assistência a crianças e suas famílias
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a Santa Marta as crianças estão por todos os lados. Seja jogando bola na nova quadra poliesportiva da sede da Associação dos Moradores da vila ou brincando nas ruas e nos pátios das casas. Foi pensando nessas crianças que foi fundada a Associação Beneficente de Resgate e Assistência Educacional (Abrasse), em 2005, a partir de um trabalho social de membros da Igreja Luterana. Em um primeiro momento a iniciativa focava esforços na promoção de doações de alimentos a famílias de baixa renda. No entanto, logo ficou evidente a carência existente em relação ao atendimento dos pequenos para que os pais pudessem trabalhar. Assim nasceu o Centro Comunitário de Educação Infantil, em 2011, que hoje atende 40 crianças com idades entre 3 e 6 anos em turno integral. A construção da sede localizada na Rua Dois, nº 215, foi possível graças a Brasil Mission Society, TFL (multinacional com unidade em São Leopoldo) e membros da Igreja Luterana Americana. Através de doações destas entidades foram arrecadados recursos para compra do terreno e aquisição dos materiais necessários para executar o projeto. O Centro também possui um convênio com a Prefeitura, que repassa um valor por cada aluno matriculado, auxiliando na manutenção das atividades. A constante superlotação das creches e escolinhas municipais leva o poder público a firmar esse tipo de parceria em uma tentativa de atender a um número maior de crianças. Só na Santa Marta são duas instituições conveniadas. Valdir Becker, presidente da Abrasse, conta que a demanda por vagas para crianças nas escolinhas da região é ainda superior à capacidade atual. Por isso, já há planos de expandir o Centro de Educação, ampliando os espaços físicos para atender a mais alunos, incluindo a faixa etária de 1 e 2 anos. O pedido de financiamento da obra deve ser enviado à Igreja Luterana Americana em junho.
ROTINA E DESAFIOS Além de receber as crianças para que os pais possam trabalhar, na escolinha da Abrasse os pequenos vivenciam aprendizados que, muitas vezes, não teriam em casa. Exemplo disso é a atenção que a escola dá para a educação alimentar. Uma vez por semana a equipe recebe a visita de uma nutricionista. Os professores e funcionários têm a tarefa de convencer os alunos a comer verduras e legumes, o que, para alguns deles, é novidade. O maior desafio dos educadores, no entanto, é outro. O diretor do Centro Comunitário de Educação Infantil, Fabrício Luís Becker, revela que nem todas as crianças atendidas na instituição possuem uma família estruturada - algumas são criadas pelos avós, outras sem o con-
Valdir Becker, presidente da Abrasse, revela os planos de expandir o centro de educação para atender mais alunos
vívio de um dos pais. Por isso, a equipe realiza diversas atividades com o propósito de integrar os responsáveis pelo aluno com o desenvolvimento e as conquistas que ele alcança na escola. Alguns exemplos são as apresentações da Páscoa, Semana Farroupilha e outras datas comemorativas, além de reuniões com as famílias. Até mesmo o dever de casa ajuda nesse sentido, já que os pequenos devem pedir a ajuda de algum adulto para completar os exercícios. E independentemente do grau de escolaridade dos familiares, para as professoras Graziela dos Santos Silva e Nicole Boita, o incentivo e a valorização da educação devem estar presentes desde os primeiros anos de vida da criança. Isso reflete no interesse e no avanço da criança nas aulas. Por isso, alguns alunos chegam a sair quase alfabetizados da escolinha, pois são estimulados pelos pais. Mas o zelo no Centro vai além do currículo de ensino adaptado às exigências do convênio com a Prefeitura. Também é contemplado o ensino de valores, desde os bons modos e a gentileza até as noções de higiene e organização. No banheiro do prédio, cada aluno tem um ganchinho com a sua foto para pendurar toalhas e escovas no horário de escovar os dentes. Para Graziela e Nicole, as dificuldades de lecionar para crianças de uma região carente como a Santa Marta é o que torna o trabalho gratificante. “Os alunos, mesmo depois de já terem ingressado em outra escola, nos reconhecem na rua, sempre chamando por ‘profe’, ou vem nos visitar, e pra gente isso é especial”, comenta Graziela.
PARCERIAS E CAMPANHAS Mesmo conveniada com a Prefeitura, a Abrasse realiza muitas promoções e faz parcerias a fim de arrecadar os fundos e os materiais necessários para prestar atendimento à comunidade. Além da contribuição espontânea dos familiares dos alunos com alimentos e materiais de limpeza, são promovidas campanhas direcionadas à doação de brinquedos e roupas, bem como eventos para venda de almoços e galetos. Há também a Amigo Legal, uma campanha que possibilita voluntários doarem qualquer valor a cada mês ou ano, e campanhas ligadas à sustentabilidade. Outra fonte de recursos para a manutenção das atividades do Centro é a venda de latinhas para reciclagem. Além disso, através de parceria com uma empresa local, a escola consegue trocar 20 kg de tampinhas plásticas por um brinquedo. Se você tem interesse em apoiar a Abrasse mas não consegue fazê-lo por uma das campanhas acima, a Associação também participa do projeto Meia Tonelada de Carinho do Grupo Sinos. É possível votar pelo link www.meiatonelada.gruposinos.com.br. Laura Pavessi Bruna Flach
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Mobilidade .9
O direito de ir e vir só começa no asfalto Sem condições de se locomover pelo bairro, cadeirante não pode sair de casa
Sem conseguir passear pelo bairro, Jozele encontrou na internet uma válvula de escape. Do jeito que pode, usa o celular e as redes sociais. Um de seus passatempos preferidos é estar online. Vaidosa, pega o batom e passa nos lábios, enquanto a mãe tira uma foto para que ela consiga postar na internet.
U
ma casinha simples, de madeira, com saibro no quintal. Na lateral da casa, uma rampa de cimento construída pelo padrasto de Jozele, é um dos poucos trajetos feito pela jovem moça de 35 anos, que só sai de casa para ir ao médico. Com seus 1,75 de altura, cabelos longos e sorriso largo, ela acena aos que chegam, com os poucos movimentos que têm. Queria ela poder passear pelo bairro onde mora. Mas a rua sem asfalto, desnivelada e sem nenhuma estrutura para uma cadeirante, impossibilitam que Jozele Dejanira Lopes da Silva passeie pelas demais ruas da vila Santa Marta. Há dois anos usando cadeira de rodas, devido a uma doença degenerativa que herdou do pai - já falecido - depende dos esforços da mãe e do padrasto. Antes casada, ela vivia com o então marido e o filho de 18 anos. Com o passar do tempo, foi tendo dificuldades para se locomover, andar e falar, precisando de auxílio para as tarefas diárias. Após a separação, se encontrou sozinha, já que marido e filho seguiram um rumo diferente do seu. Como precisava de apoio, decidiu pedir à mãe que viesse ajudar e morar com ela. Valéria Tenroller, a mãe, morava em Porto Alegre. Aposentada e sabendo das necessidades da filha, se mudou para o bairro de São Leopoldo. Legalmente, o ex marido de Jozele é o seu curador, seu tutor. “Curatela” é um termo atribuído pela Justiça a um adulto mentalmente e fisicamente capaz, sendo ele o protetor, cuidador e responsável por essa outra pessoa, que judicialmente foi declarada como incapaz. No papel, o ex marido é o responsável pelos cuidados. Na prática, dona Valéria e seu Valdeci, o padrasto, se reviram da maneira que podem para dar melhores condições à cadeirante. Aposentada, Valéria dedica boa parte do seu tempo a filha. Quando necessitam ir ao médico, no bairro vizinho, precisam se programar com antecedência. Os ônibus bem que passam no bairro, mas os especiais, para cadeirantes, são poucos. As vezes é preciso sair duas, três horas antes do horário agendado, para conseguir pegar um ônibus adequado.“Já ficamos mais de duas horas na parada esperando o ônibus. Consultamos o
ÔNIBUS É PARA POUCOS
Com poucos movimentos devido a uma doença degenerativa, Jozele não tem liberdade para andar no bairro que escolheu morar
horário do transporte para cadeirante. Quando chegou, não tinha condições da minha filha usar, porque o carro que mandaram não era especial”, relata Valéria. Não fosse o carro de seu Valdeci, Jozele enfrentaria ainda mais dificuldades. “A rua, quando não
chove, até que não é tão ruim. A gente se vira. Chama um vizinho para empurrar. Mas quando chove, não tem como sair. É barro pra todo lado”. Os vizinhos se unem, vez que outra, e colocam grama, terra, caliça, o que tiver, por cima do barro. Tentam, dentro das condições
existentes, melhorar os caminhos que percorrem diariamente. “Se para uma pessoa em bom estado de saúde já é ruim sair na chuva, imagina pra gente. Vamos indo do jeito que dá. Às vezes com um guarda-chuva. Às vezes ligando para o vizinho da Kombi”.
Os ônibus que passam pela vila Santa Marta não atendem a todos os moradores. Apenas aos que conseguem chegar aonde o asfalto foi colocado por onde o coletivo transita. A maioria precisa se deslocar e caminhar até a faixa para conseguir pegar a lotação. Um trajeto de pouco mais de dois quilômetros é o feito pelo ônibus, já que o restante do bairro não é asfaltado, impactando negativamente no dia a dia da comunidade. Por desconhecimento, a família de Jozele nunca entrou com pedido de requerimento junto à Câmara de Vereadores de São Leopoldo, para solicitar ensaibramento ou asfaltamento da rua. Questionada porque nunca fez tal pedido, olhando para o chão disse: “Ninguém olha por nós, não adianta tentar.” A Lei Federal n. 10.098/2000, assegura que os direitos de mobilidade de todo cidadão portador de deficiência devem ser preservados. Conforme esta Lei, Jozele não tem um de seus direitos básicos preservados. E essa falha reflete diretamente na vida dela e de seus familiares. Sem ter condições para adquir uma cadeira de rodas elétrica, precisa contar com a boa vontade de todos e assim ter uma vida mais normal possível.“E se um dia eu vir a faltar? Eu já tenho 65 anos. Um dia vou partir. E quem vai fazer tudo isso por ela? E se meu companheiro não ajudasse com o carro, iríamos sempre depender de carona dos vizinhos? Precisamos de ajuda dos poderes da prefeitura, mas de lá não vem nada”, relata dona Valéria. O direito de ir e vir de Jozele se perdeu entre os buracos da rua sem nome, na ausência do asfalto. Com o passar dos dias, já não bastassem às limitações, vai se vendo cada vez mais presa dentro da própria casa. E mesmo assim segue sorrindo, esperando pelo melhor. E ela confia que bons tempos estão por vir. Júlia Flores Luana Rosales
10. SAÚDE
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Atividade na Santa Marta estimula hábitos saudáveis Exercícios físicos são realizados pelas mulheres do bairro para melhoria da saúde
Rosangela, responsável pelo projeto, incentiva os moradores do bairro manter uma vida saudável
T
er a alimentação controlada e realizar atividades físicas são atitudes básicas para uma vida saudável. No bairro Santa Marta, foi criado um projeto que está deixando as mulheres mais saudáveis e com a autoestima renovada. Rosangela Araújo, de 48 anos, foi a responsável por realizar esse projeto. Com o objetivo de incentivar os exercícios físicos diários e a prática de uma boa alimentação, um grupo de mulheres utiliza duas vezes na semana a quadra poliesportiva localizada na Associação dos Moradores do bairro. Para a realização das atividades, o projeto começou em dezembro de 2016, e conta com oito mulheres. Na Santa Marta não existe nenhuma academia de ginástica. A mais próxima é na Tancredo Neves. “O custo fica muito alto para se deslocar até lá, fora a mensalidade”, conta Rosangela. Conhecida como Mana pelas colegas, Rosangela, após um acidente ocorrido em outubro, que sofreu uma fratura no pé. Decidiu que teria uma alimentação saudável. Com recomendações médicas ela resolveu praticar atividades físicas todos os dias, para reduzir o peso e cuidar da saúde. A moradora conta que convidou as vizinhas, amigas e a irmã para começar a praticar caminhadas em volta da quadra de futebol, na Associação dos Moradores. Foi com ajuda da vizinha Bruna Alves, que as mulheres do bairro puderam praticar exercícios aeróbicos em aulas com músicas e dança. Bruna ministrava duas vezes por semana aulas de dança para as mulheres que quisessem praticar as atividades realizadas na casa da associação dos moradores. Aconteciam às segundas e quartas. Quem também faz parte do projeto é Dilce da Rosa responsável por muitos outros projetos da comunidade, ela foi em busca de uma professora que pudesse ajudar as mulheres, a praticar os alongamentos corretamente. Ao questionar sua vizinha Bruna, se ela conhecia algum, esta viu uma oportuni-
dade de colocar em prática o que gostava e sabia fazer, dar aulas de alongamentos e dança aeróbica. “Fiquei eufórica no momento e vi ali uma forma de incluir as mulheres em prol da saúde e do bem-estar. Minha ideia sempre foi partir de um conceito inclusivo e de empoderamento daquilo que é nosso, o desejo de estar bem consigo mesmo”, afirma Bruna. E ainda ressalta que sempre pensou nos exercícios físicos de acordo com os limites das mulheres. O interesse de Bruna em ajudar as moradoras veio de uma experiência que ela teve anos antes. Em um intercâmbio para a Alemanha em 2014, ajudou um grupo de idosas em caminhadas e exercícios aeróbicos. Ainda conta que o convite foi uma maneira
de buscar uma oportunidade novamente de ajudar os outros a se sentirem bem. Hoje ela não consegue mais dar aulas para as mulheres, pois a sua rotina de trabalho não permite que tenha o tempo suficiente para se dedicar totalmente as atividades. “Logo com o retorno da rotina, voltei a trabalhar e não conseguir disponibilidade para atendê-las pois todas queriam algo mais sério com dias marcados”, diz. Dilce Maria da Rosa, uma das integrantes do grupo de caminhadas está à procura de uma profissional para ajudar nas aulas e nas atividades físicas. “Estamos em contato com uma professora de educação física para que possamos ter aulas de zumba”, diz. Disciplina, motivação e ami-
zade é o lema do grupo, para isso elas optaram em incentivar a reeducação alimentar entre as mulheres. Com a ajuda de grupos on-line de atletas e nutricionistas. As amigas trocam experiências e compartilham fotos nos grupos de suas aulas. As moradoras do bairro contam que começaram a praticar as caminhadas estão muito mais felizes com seus corpos e até se sentindo mais jovens. “Nem acreditei que pudesse mudar tanto meu corpo em pouco tempo”, conta Dilce.
A BUSCA POR UMA ACADEMIA LIVRE As mulheres responsáveis pelo projeto já estão à procura de ajuda para que possam ser disponibilizadas as aca-
demias ao ar livre no bairro. Desde o ano passado estão em contato com a Secretaria do Orçamento Participativo, para que seja votada a entrega de uma academia para a Santa Marta. Vagner dos Anjos, da Secretaria do Orçamento Participativo, admite que “Muitas das demandas não foram executadas nos últimos anos, g e r a n d o a c ú m u l o”. Considerando a falta de recursos e o montante de demandas nesta nova gestão, será feita novas assembleias buscando solução. A academia ao ar livre, portanto, poderá entrar na listagem das novas demandas, caso seja aceita nessa assembleia. De acordo com Vagner. AMANDA CUNHA Lucas Schardong
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SUPERAÇÃO .11
A difícil luta contra as drogas Usuária de entorpecentes por dez anos, Angélica encontrou na Vila Santa Marta um refúgio para recomeçar
Mãe de cinco filhos, ela espera servir de exemplo para os mais jovens
C
om uma vida marcada pelo tormento e pelo vício, Angélica da Silva Correa passou por inúmeras dificuldades. Usuária de drogas desde os 17 anos e hoje com 32 anos, ela se mantém livre da dependência química há cinco anos. Uma grande mudança em sua história, que iniciou quando ela e o marido mudaram para a Vila Santa Marta. Nascida e criada na Vila dos Tocos, uma área de São Leopoldo conhecida pelo intenso tráfico de drogas, ela viu na Santa Marta o lugar ideal para largar o vício. Foi o pai de Angélica quem lhe apresentou o mundo dos entorpecentes. “Meu pai era usuário, foi com ele que comecei a usar. Minha mãe e meus três irmãos também usavam”, conta. A cocaína foi o primeiro contato de Angélica com as drogas, depois veio o crack, conhecida como a mais letal e selvagem. “Quando você fuma o crack, perde completamente o controle, nada mais importa, esquece a família e os amigos. É ela que te controla, você só pensa nela” (a pedra), diz. Angélica recorreu ao mundo das drogas após perder a guarda do primeiro filho. Triste, tentou encontrar consolo e uma espécie de fuga. “Usei drogas como forma de esquecer meu sofrimento, mas depois que o efeito passava a dor vinha pior”, relembra. Os anos seguiram, a vida passou e ela continuava viciada, presa em um eterno sofrimento. Foi assim que Angélica conheceu o atual marido, Fabiano Flores da Silva, 27 anos, também usuário. Para sustentar o vício de ambos, Angélica vendeu todos os móveis da casa. Todos os ganhos que conseguiam iam para a compra dos entorpecentes. Quando faltava o leite dos filhos, recorriam aos traficantes, que lhes davam pedras de crack para vender e ganhar dinheiro. Porém, eles acabavam consumindo a droga e esqueciam das crianças. “O tempo foi passando e nossa vida indo cada vez mais para o fundo do poço. Nossa casa só tinha paredes, eu vendi tudo”, comenta. Família e vizinhos não ajudavam, pelo contrário, tinham preconceito com o casal, os viam apenas como dois dro-
gados. Nunca ofereciam uma palavra amiga ou algum tipo de apoio, o que aumentava a solidão e a vontade de usar drogas. O estigma e preconceito que os dependentes químicos sofrem é real. Grande parcela da população não entende que se trata de uma doença, que precisa de tratamento. Segundo dados do Relatório Brasileiro sobre Drogas, encomendado pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), realizado nos 27 estados brasileiros, estima-se que existam atualmente nas capitais do Brasil cerca de 370 mil usuários de crack. A grande maioria concentrados nas regiões Nordeste e Sul. O crack e a dependência de outros químicos são hoje sérios problemas de saúde pública, que afetam a vida de diversos brasileiros. Mas não é apenas o dependente químico quem sofre. Para Angélica, personagem dessa história, os filhos e a família também padecem: “Quem usa droga não procura ninguém, esquece que tem família. Eu acho que quem está nas drogas está em um cativeiro, fica preso a ela e quem está próximo sofre junto”.
A MUDANÇA DE VIDA Foi o marido de Angélica quem decidiu largar a dependência. Ele quis sair da Vila dos
Tocos pois lá a oferta de drogas era muito grande, veio morar com a mãe na Santa Marta, onde sabia que poderia se livrar do vício. “Foi ele que tomou a decisão. Disse que isso não era vida e não queria mais isso para nós. Foi morar com a mãe na Santa Marta. Fizemos uma casinha de compensado e botamos na cabeça que não iríamos mais usar. E a gente parou. Sem tratamento nem nada”, afirma. Mas o caso de Angélica e do marido, onde apenas a força de vontade foi capaz de acabar com o vício, é raro. Muitos dependentes químicos não resistem à abstinência e acabam voltando para o mundo das drogas. Por isso, buscar ajuda e passar por um tratamento de desintoxicação é essencial e manter-se longe da oferta também é importante. “Até hoje não arrisco a morar em outro lugar, como os Tocos (Vila). Lá a oferta é muita, tenho medo de brigar com o meu marido ou ficar chateada e procurar nela (droga) a solução”, reitera. Nos dias atuais a casinha simples de compensado deu lugar a uma maior e mais confortável. É nela que Angélica gerencia um pequeno armazém, é dele onde vem o sustento da família. O marido está preso por porte de drogas na Penitenciária Estadual do Jacuí
em Charqueadas. Segundo Angélica, a prisão se deu de forma arbitrária e injusta. Ela luta na Justiça para que o marido consiga a liberdade. “Coloquei um advogado particular, porque o público não se interessava pelo caso, mentia para a família e não ajudava”, conta ela, que visita o marido todo os domingos, sem falta. Três dos cinco filhos moram com a mãe, duas meninas de doze e dois anos e um menino de seis. Angélica espera servir de exemplo para as crianças. Ela costuma aconselhar a mais velha para que não se deixe levar pelas drogas e tenta criar os filhos com o
maior carinho possível. “É uma forma de recompensar, não dei carinho para o meu filho mais velho pois estava nas drogas, então, para esses quero ser exemplo”, admite. Angélica não vê problema algum em contar sua história: “Não tenho vergonha de dizer que fui uma usuária de drogas, porque eu consegui parar. Acordar depois de uma noite de sono, ter um café para tomar, é muito bom. Hoje passamos por necessidade, mas somos felizes e é isso que importa”, finaliza. Lidiane Menezes Tuhana Pinheiro
Saiba onde procurar ajuda Para quem está com problemas envolvendo o consumo de drogas, saiba onde procurar ajuda: 132 — É um serviço gratuito, anônimo, confidencial e que funciona 24h dia. Fornece aconselhamento telefônico personalizado a usuários de drogas e familiares, além de prestar orientações e informações sobre drogas e locais de tratamento. Basta ligar para o telefone 132, o serviço atende todas as regiões do país. CAPS Álcool/Drogas — O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS Álcool/Drogas) é uma instituição do SUS destinada a acolher pacientes e encaminhar para tratamento personalizado, incluindo internações. Além disso, promove diversas atividades, como oficinas terapêuticas e culturais, rodas de conversa e orientações individuais ou em grupo, entre outras. Endereço: Rua Saturnino de Brito, 68 - Bairro São José (próximo ao Corpo de Bombeiros) em São Leopoldo. Telefone: 3566 1739. Horário de atendimento 2ª à 6ª feira: 8h às 18h.
12. UNIÃO
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Aulas de artesanato dão autonomia às mulheres A disposição para ensinar que Salete tem transforma-se em oportunidades para mulheres do bairro Santa Marta. As aulas também são ponto de convivência
S
alete de Paula Zorzi, 52 anos, nasceu na pequena cidade de Liberato Salzano, mas nos últimos 20 anos mora no bairro Santa Marta. Foi no bairro que ela ensinou às mulheres seu até então hobby. Enquanto trabalhava na Escola Santa Marta, junto à pastoral da criança, algumas mulheres demonstraram interesse pelo artesanato e a artesã disse “Eu posso ensinar”. As aulas passaram a ser dadas um dia por semana, com a duração de duas horas. A turma tem 12 alunas e a maioria comparece a todas as aulas. “Mas sempre tem aquelas que vêm e que não voltam. Ou voltam depois de muito tempo”,
conta a professora de crochê, tricô, fuxico e pintura. Além das aulas, ela já trabalhava como costureira e artesã autônoma atendendo em casa. Por meio de suas aulas de artesanato, muitas mulheres conseguiram fazer “uma graninha extra” e ajudar em casa. “Está vendo aquela casa ali? A moça foi nas minhas aulas. Não conseguiu se aposentar e nem trabalhar. Daí abriu uma lojinha de artesanato com o que ensinei”, comenta a costureira apontando para uma casa simples, construída no fundo de um terreno baldio.
OPORTUNIDADE “Quando se pensa em artesanato, acredita-se que seja um hobby mas para mim também é uma maneira de ocupar a mente”, explica. “Quando comecei a ensinar o artesanato eu me senti bem, porque eu sofria de depressão. Mesmo trabalhando
como costureira em casa eu não tinha vontade de nada. Comecei a ensinar e me ocupei. Melhorei. E pude ajudar outras pessoas também”. Ela conta também que as aulas servem como “um ponto de encontro de mulheres. Nos juntamos e tomamos chimarrão. Conversamos. Às vezes é uma forma de lidar com o que passamos todos os dias”. Junto com Salete, seu esposo Etelvino e duas filhas Elisiane e Elisângela, formam a família Zorzi. Elisiane é a mais velha com 27 anos e cursa Serviço Social na Unisinos. Mesmo tendo bolsa de estudos, ela afirma que a renda dos artesanatos da mãe foi essencial para sua formação.“Mesmo com o pai trabalhando, como eu não trabalhava seria difícil, mas sempre pude contar com a mãe”comenta Elisiane, afirmando a importância do trabalho da mãe. Salete se orgulha de suas aulas, pois tudo que ela doou foi seu tempo para ensinar as
mulheres a “crochetar”. Há no bairro cinco mulheres que fazem e vendem artesanato, entre elas está Geusi, dona do Bazar Silva. “A Geusi faz muita coisa e vende ali no bazar dela, desde crochê a pintura em pano”. Dona Ivanilde, a Iva, também produz muito e vende. “A Dona Iva não sabia nada, eu ensinei e ela aprendeu. Foi fazendo um crochê aqui. Pintando ali. E começou a fazer para amigos. Depois os amigos dos amigos encomendavam e ela vendia.”
TRALHANDO Há crianças no bairro que a procuraram para aprender seu trabalho. Queriam passar o tempo ou simplesmente acompanhar as mães. “Eu ensinei uma menina de nove anos a fazer crochê. E ela faz até hoje. A vi crescendo e fazendo.” Se alguém pedisse à ela sobre outras técnicas, fosse tri-
cô, fuxico, pintura em tecido ou qualquer outra coisa ela apenas responde: “Eu te ensino, mas tu tem que trazer teu material. Eu não cobro nada. Mas também não dou nada. Porque eu só doo o meu tempo”. Salete alega que as mulheres do bairro têm interesse pelo artesanato, por que “desejam a casa arrumada e, às vezes, não tem dinheiro para comprar os enfeites. Daí elas pedem para eu ensinar. E elas fazem os enfeites e enfeitam as casas, deixando mais aconchegante”. “Eu comecei doando meu tempo. Ensinei as mulheres o que pude. E agora elas trabalham com isso, assim como eu”, conclui Salete orgulhosa do trabalho que ela fez. O trabalho da artesã proporcionou novas formas de renda através da união. Verônica Luize Andrea Aquini
Salete conta sobre suas aulas e alunas, mostra orgulhosa seus trabalhos artesanais
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Lazer .13
Para eles, um dia comum Os lugares simples da vila são procurados pelos frequentadores em busca de lazer, pinga e risadas
P
ara muitos, a manhã de sábado é feita para descansar depois de uma longa semana entre trabalhos e estudos. Descansar, dormir mais que o habitual, aproveitar a manhã para contemplar o nada. Ainda assim, a Av. Coronel Atalíbio Taurino de Rezende está repleta dos frequentadores dos bares que ali residem. O bar e mercearia Lopes abre com os clientes à porta. Pelo menos cinco deles são assíduos ao local. No bar do Macaco não é diferente. Ali as famílias buscam descontração e lazer. A ligação entre os dois? Muitas brincadeiras, frequentadores excêntricos, fraternidade e competições inusitadas.
Simplicidade Morador da Santa Marta há 25 anos, João Laureo Lopes, 70 anos, é chamado pelos vizinhos como João Canabrava - em alusão ao personagem bêbado de Tom Cavalcante, que fez sucesso em programas de televisão. Ele possui o bar há 20 anos. Permanentemente bem-humorado, Canabrava,
Como muitos moradores, “Canabrava”, Delmar (à direita, acima) e José Carlos fazem do convivio uma festa
natural de Gramado, foi carpinteiro boa parte da vida.“Era arigózinho de obra porque não tinha estudo, só sei escrever meu nome porque decorei as letras”, diz emocionado com o bar como resultado. Humildade é o mantra carregado e mencionado por ele diversas vezes. “Mesmo tendo uma casa e um bar não sou melhor do que ninguém aqui”, declara. Mesmo a extensa fome na infância e a ausência do pai não foram motivos para desistir. Contrariamente, os fatos tornaram-se impulsos na busca por uma vida melhor. A mercearia é motivo de orgulho para o dono. “Aqui é um bom lugar. Antes - o bar - só não dava certo porque eu bebia mais do que vendia”, conta entre as risadas. O movimento do local aumenta com o passar do tempo. “Deus abençoe quem entra, Deus acompanhe quem sai” descreve a placa no balcão do armazém. É o que deseja Canabrava a todos que ali frequentam.
A competição Emborcar martelinhos de pinga é habitual entre os“ratos de bar”. 7h30 no relógio e Giovani Elias de Moura, 57 anos, já espera pela abertura do lugar.“Não fico longe desse véio (dono do bar) nunca,
só não venho quando atraso o pagamento, mas pago!”, declara. Mesmo com esposa, quatro filhos e quatro netos, o pedreiro é fiel mesmo à mercearia de Canabrava. Isto amplia-se a Arlei Oliveira, 45 anos. Assíduo nos bares da região, Oliveira troca o conforto de casa pelas cadeiras de plástico do bar. Solteiro, Oliveira diz que “se fosse casado não estava no bar” enquanto alguém completa a frase com “em casa tem serviço para fazer”. Apesar da disputa acirrada nas manhãs de sábado, o “torneio do martelinho” é uma rotina diária para um deles. Cláudio da Costa, 54 anos, frequenta a mercearia Lopes há 20 anos. Cortador de couro autônomo, bate ponto todos os dias no local. Casado e pai de três filhos, da Costa não se vê fazendo outra coisa senão sentado ao bar rodeado dos amigos.“Se não estou em casa, com certeza estou aqui com eles”diz. Pela assiduidade, Oliveira brinca com Canabrava“. Quando Seu João fechar vai falar com o Semae (Serviço Municipal de Água e Esgotos de São Leopoldo) para fazer encanamento de cachaça na casa da gente”, relata. Delmar Neo é o único a não entornar a pinga. Aos 58 anos, o auxiliar de produção estava acompanhado do chimarrão enquan-
to esperava uma carona. “Não é sempre que bebo, venho aqui mais pela companhia mesmo”, diz, enquanto é contestado. “Se ele bebesse, o que sobraria para nós?”, exclama um dos amigos, em meio às gargalhadas. As chacotas são frequentes entre eles. A vítima da vez é Canabrava, pois o desejo dos clientes é unânime: “ele precisa botar um alambique comunitário aqui”, proclamam.
A concorrência Há apenas um ano aberto na Santa Marta, o Bar do Macaco, em frente à mercearia de Canabrava, tem outro tipo de competição. Duas mesas de sinuca fazem parte do boteco, uma delas já ocupada pelos primeiros jogadores. A aposta de R$ 50,00 foi vencida por José Carlos de Oliveira, 57 anos. Conhecido pelo apelido de Paraíba, o cuidador de carros compete nas duas competições, pinga e sinuca. Apesar da possível concorrência, o ambiente pouco parece com a Mercearia Lopes. “Aqui é mais um lugar para jantar com a família e tomar uma cerveja no final de semana” diz Fernando Butske, 27 anos, amigo de Valdecir Miranda, o Toco, dono do bar. Seguindo as ideias do filho, Igor Miranda, 17 anos - o Macaco
-, Toco abriu o bar para reunir os amigos. A ideia funciona. Moradores de outras vilas vêm para o local em busca de lazer e diversão. Ainda assim, a notabilidade do bar é destinada à popularidade de Toco pelos trabalhos com caminhão de frete. “Se perguntar para 10 pessoas, 11 me conhecem”, conta ele, com o testemunho dos que o rodeiam. Algazarra de bar não falta.“Esse aí é mais conhecido como gaia, chifrudo”, diz Tiago Silveira, 32 anos, a Paraíba. Silveira, morador da vila Mauá, vizinha da Santa Marta, é outro frequentador assíduo do lugar. “Ele vai passear em casa, não aqui”, diz Butske. Fato que abrange a todos os outros que peregrinam de bar em bar. Cadeiras de plástico, copos de martelinhos, sinuca. As altas risadas da clientela dos dois bares podem ser ouvidas a metros de distância. A baderna ocorre enquanto ainda são 10 da manhã. Descansar, dormir, sossegar são palavras que não estão incluídas em seus dicionários. Lá não tem horário para tomar uma pinga, jogar conversa fora e se divertir com os amigos. Nem mesmo a vida real esperando-os em casa fará isso mudar. Milene Magnus ISABELLE WRASSE
14. BAZAR
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Família busca na união formas de vencer a crise Os membros da família Rodrigues usam da criatividade para tocar o Brechó Infinity
E
stá precisando de roupas diferentes, porém baratinhas por serem usadas, ou um tapa no visual? Basta encontrar o fusca azul da rua 9, na Vila Santa Marta. Ele fica estacionado em frente ao Infinity Brechó e Cabeleireiro, nº 69. A loja, que pertence a Marli Terezinha Rodrigues, 59, e seu marido, Ari Rodrigues, 61, vende roupas, sapatos e brinquedos, além de fazer corte de cabelo. O responsável pelas tesouras é o filho do casal, Jonas. Sua irmã, Adriana, ajuda no atendimento da loja. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) mostram que, entre dezembro de 2016 e fevereiro deste ano, 13,2% dos brasileiros estavam desempregados. Ou seja, 13 milhões de brasileiros estão buscando empregos ou criando formas de sustento sem carteira assinada. Muitas famílias da vila Santa Marta enfrentam o mesmo problema. Uma delas, a Rodrigues, encontrou na união uma forma de superar a crise. Como diz a matriarca, Marli: “Na vida, a gente precisa é resistir!”. Aberta há dois anos, a Infinity é quase um bazar. Além de roupas e calçados, vende caderninhos, brinquedos e, se bobear, o freguês pode sair de lá pedalando uma bike restaurada. Um dos maiores passatempos de Ari é reformar bicicletas. Com frequência ele estaciona suas beldades perto do fusca dele. Duas Caloi 10, o modelo clássico de corrida brasileiro, são seus xodós. Mas não se iluda, o preço faz jus às peças de primeira qualidade. Marli explica que evita comprar roupas para depois vender, direto na loja. “Imagina se aparece alguém dizendo que tal roupa foi roubada dele”, comentou espantada, a dona. Explica que se sentiria muito envergonhada com a situação. Segundo sua filha, Adriana, as vestimentas são compradas em grandes feiras de usados. Durante a páscoa, a loja também vendeu cestas de doces, feitas por Jonas. A loja que começou como brechó, agora está am-
Os Rodrigues cresceram junto com a vila. Hoje, vendem roupas e cortam cabelos para garantir o sustento da família
pliando seus serviços.
O CABELEIREIRO DA FAMÍLIA No fundo da loja, Jonas montou com suas próprias mãos um salão de beleza. “Fiz tudo, reboquei, pintei, só não fiz a parte elétrica”, conta o cabeleireiro de 22 anos.
VETERANA NO BAIRRO
Ele também fez a decoração e desenhou o logotipo da loja na parede. Como estava desempregado e já entendia das tesouras, decidiu incrementar o negócio dos pais. Ele corta, pinta e até faz escova progressiva. Criado na Santa Marta, o cabeleireiro Jonas passou os dois últimos anos em Floria-
nópolis, Santa Catarina. Foi na ilha que ele ficou fera nos cortes de cabelo, fazendo cursos. Ele também trabalhou em salões na cidade. No ano passado teve que retornar para São Leopoldo. “Estava preocupado com minha mãe, ela estava com problemas de saúde”, conta. Há quatro meses, ele decidiu abrir o seu salão.
Marli Rodrigues nasceu em Santa Rosa mas passou boa parte da vida na Vila Santa Marta, em São Leopoldo. “Criei meus três filhos dentro da vila, com muito orgulho e eles nunca se envolveram com coisa ruim”, conta a matriarca. Quando ela chegou na comunidade, há 22 anos, tudo era diferente. Nenhum ônibus entrava na vila e a maioria das ruas não tinham sido abertas. “Na real, cheguei aqui só com a roupa do corpo”, resume a mulher que teve sua vida ligada ao crescimento do bairro. Para garantir o sustento da família, Marli trabalhou na Usina de Reciclagem da vila, a Cooperesíduos, e depois no PAS (Programa de Auxílio Solidário). Ela foi parte de uma das equipes coordenadas pelo Vilson Prestes, o Seu Vilson. Os membros do projeto ajudavam na limpeza urbana da cidade e participavam de cursos de formação. Em troca, recebiam um auxílio em dinheiro. DEIVID DUARTE JOÃO ROSA
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empreendedorismo .15
De costureira a empresária Moradora investe na própria saúde, muda sua vida e a de moradores, ao criar uma lancheria em casa
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orvetes, cachorro quente, pastel e até ovos de páscoa. Nada é impossível na cozinha de Roselaine de Rodrigues de Oliveira, 42 anos, proprietária de uma pequena lancheria na Vila Santa Mar ta. Aos 22 anos, junto com seu esposo e dois filhos, se tornou moradora da vila, deixando Santo Ângelo, sua cidade natal, para aproveitar uma oportunidade de emprego no ramo calçadista em São Leopoldo. Com o tempo, devido ao serviço pesado, passou a ter dores fortes na coluna e por consequência desse problemas de saúde, em janeiro deste ano tomou uma decisão importante. Laine, como é chamada carinhosamente pelos vizinhos e clientes, decidiu sair da fábrica de c a l ç a d o s q u e t r a b a l h av a como costureira e montar um pequeno negócio de alimentos para atender a vila. “A minha rotina era pesada, cinco da manhã já estava
acordada e sem contar que o local era longe e na função que eu tinha, ficava o dia inteiro sentada, mal ganhava tempo para ir ao banheiro, o que prejudicava a minha coluna. Além disso, minhas duas filhas, de 14 e 10 anos, estavam ficando sozinhas em casa, o que me deixou preocupada”, afirma. Além de cozinheira, Roselaine também aproveita sua experiência como costureira e faz pequenos serviços consertando roupas dos moradores. “Faço bainhas, ajusto as roupas e coloco zíper. São R$ 5,00 ali, R$ 10,00 aqui, mas tudo me ajuda na renda mensal”. Sobre o seu ganho com os lanches, ainda está indefinido, pois está utilizando-o por enquanto para pagar algumas parcelas de compras antigas e adquirir equipamentos para seu novo empreendimento. Diz sonhar em logo se organizar financeiramente. Ao ser questionada sobre como aprendeu a fazer quitutes, orgulhosa fala o seu dom, A grande maioria das receitas aprendeu olhando como os outros faziam e testando em sua cozinha se dava cer to. Seus dotes
culinários também foram adquiridos desde criança com sua mãe Terlena, “Antigamente as pessoas aprendiam desde muito pequenas a lavar, passar e cozinhar, foi assim que desenvolvi meu dom na cozinha. Aprendi com a minha mãe a fazer galinhada e polenta. Só comidas caseiras. Conhecida pela família como uma cozinheira de mão cheia, ela diz que o prato prefe rido dos seus familiares é a galinhada com queijo e sua salada de maionese caseira. Além disso, conta orgulhosa que um dos filhos que não mora mais com ela, faz questão de visitá-la apenas para matar a saudade de sua comida. Além dos salgados que prepara, recentemente passou a experimentar novas receitas. Com o intuito de ajudar a sobrinha que estava desempregada, resolveu inovar e também fazer ovos de páscoa para vender. “Minha sobrinha pesquisou a receita na internet e assim compramos os ingredientes e começamos a fazer. Estou feliz, pois temos muitas encomendas, está sendo um sucesso”, conta
ela sorridente, pelas vendas que são realizadas na própria lancheria. Segundo Letiane Gracielle Pavão de Oliveira, uma das freguesas mais assíduas de Laine, o pessoal do bairro está comprando cada vez mais com ela, pois vende a crédito e os outros estabelecimentos não fazem o mesmo. A cliente disse que isso facilitou sua vida, pois hoje mantém uma conta para o seu filho. “Meu filho chega da aula, escolhe o que mais gosta para almoçar, à tarde vai para um projeto aqui da vila e na volta também acaba buscando outro lanche. Facilitou muito, pois pago somente quando recebo e não preciso me preocupar em deixar o almoço pronto”, afirma Letiane que trabalha como auxiliar de serviços para uma empresa de Novo Hamburgo. Roselaine afirma que o pessoal do bairro é honesto e quando recebem, todos pagam ela com pontualidade. Com uma estrutura simples e construída pela família, que trabalha como auxiliar de obras, ela atende os moradores da vila em sua residência. Os pedidos
são realizados por ligações pelo WhatsApp ou pessoalmente. Ela não tem horário fixo, atende seus clientes de segunda a segunda e muitas vezes até às 23h. Apesar de atualmente atender apenas pequenos pedidos, a proprietária tem planos de ampliar seu empreendimento, melhorando a estrutura física e também o cardápio. “Hoje o pessoal está me pedindo a entrega de marmitas para o almoço, pois muitos trabalham e não têm tempo de cozinhar. Como faço tudo sozinha, por enquanto não consigo atender essa demanda” afirma Roselaine. Todo esse sonho tamb é m te m o p ro p ó s i to d e atender às necessidades dos moradores do bairro, que trabalham fora e so frem com a falta de tempo para preparar um almoço ou ter condições de adquirir uma comida fresquinha. Roselaine sonha em também oferecer um local mais aconchegante para que as pessoas da vila possam fazer suas refeições. Bruna Henssler Fernanda Ochôa
Roselaine, está feliz com o empreendimento e já experimenta novas receitas
16. EMPREENDEDORISMO
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O churrasquinho é da Vila A versão em miniatura da tradicional comida gaúcha é montada e vendida por empresa da Santa Marta. Proprietário afirma que a qualidade é 90% do negócio
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ono de fornecedora de churrasquinhos da Vila Santa Marta vende em média cinco mil espetinhos congelados por semana. “Fritz”, como é conhecido Sérgio Osvaldo Lottermann, não vende direto para o consumidor. Ele percebeu que vale mais a pena vender para empreendimentos da região, como o Braseiro Gaúcho e o Mutley Ka-Churrasco, ambos em São Leopoldo. Hoje a fornecedora Churrasquinho do Fritz já está há vinte anos no negócio. Antes de abrir sua em-
presa, Lottermann conta que seus trabalhos anteriores eram exaustivos e não rendiam bem. Ele já recolheu cachorros das ruas pelo Canil Municipal de São Leopoldo, montou sapatos numa fábrica de calçados e fez entregas e cobranças para um supermercado. Nessa época, alguns direitos trabalhistas também não eram concedidos conforme a lei ordena. “Trabalhei dez anos e tenho a carteira assinada por seis meses”, diz. Esses foram alguns fatores que o levaram a abrir seu negócio. Atualmente, Fritz assina a carteira de cinco pessoas que formam a sua equipe de trabalho. Todas moram na Santa Marta. Preocupado com a qualidade da carne que vende, Fritz compra da Proteu Alimentos, de Teutônia, com quem tem parceria há um ano. Seu Fritz
afirma que a qualidade da carne é 90% do negócio. Carrochefe das vendas, a carne de gado é comprada por quilo a R$8,90. Além da carne bovina é possível, os varejistas podem encomendar frango, calabresa e porco. Os espetinhos são vendidos congelados. Devido à grande demanda, a carne “nem chega a esfriar”: os 700 quilos que chegaram na sexta-feira (07/04) seriam vendidos durante a semana seguinte. Fritz e sua equipe montam os espetinhos todos os dias de manhã. É possível estabelecer um padrão das carnes compradas pela mão-de-obra na montagem dos espetinhos. Quando a carne é boa, em uma hora a equipe chega a montar 300 espetinhos. Caso contrário, segundo ele, se perde meio-dia de serviço para fazer a mesma quantidade, pois
Sergio Osvaldo Lotterman, o “Fritz”, mostra um conjunto com dez churrasquinhos que vende para empreendimentos da região do Vale dos Sinos
muito tempo é gasto limpando a carne. As entregas do Churrasquinho do Fritz ocorrem todas as segundas, quartas e sextas-feiras. Elas são feitas pelo cunhado Pedro Gonçalves com a caminhonete Fiat Fiorino, adquirida pela empresa ano passado. Gonçalves também cuida da parte financeira da empresa.
APRIMORAMENTOS Fritz se esforça para respeitar as normas recomendadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A dificuldade é de receber visita de inspeção já que algumas ruas da Santa Marta não têm CEP. Para o local onde são feitos os churrasquinhos, está em planejamento a aplicação de piso branco e antiderrapante. Isso facilita a limpeza e desinfecção do am-
biente. Com a última reforma na rede elétrica e aquisição de seis freezers novos, a empresa passou a economizar com a conta de conta de luz. Ainda está no papel o plano da empresa de vender hambúrgueres também. Fritz ainda não sabe se valerá a pena dividir trabalho com a produção dos churrasquinhos pois teria que fazer muitas entregas de pouca quantidade de hambúrgueres. Em um dia de boas vendas de churrasquinhos, quase três mil peças são vendidas. Com a renda, Fritz mantém a casa junto com sua esposa, Leoni. Ele é natural de Salvador do Sul, pai de um rapaz de 17 e de uma moça de 20 anos. Mora há sete anos na Santa Marta. Victor Dias Thiesen André Cardoso
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ENSINO .17
Os desafios da educação A comunidade escolar se reuniu em 8 de abril para comemorar o aniversário da escola Santa Marta
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esde 2001 o segundo dia do mês de abril é motivo de festa para comunidade Santa Marta. Foi em uma segunda feira que a maior reivindicação da comunidade foi atendida: o então prefeito Waldir Artur Schmidt descerrou a placa que oficializava as atividades do Anexo Fundamental de Ensino Santa Marta. No primeiro ano, o prédio tinha 450 alunos matriculados de 1ª a 5ª séries. Já no ano seguinte, a escola foi ampliada e passou a se chamar Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Marta. Atualmente a grade curricular vai do 1º ao 9º ano. Além do ensino regular, a escola também oferece a Educação para Jovens e Adultos (EJA) à noite. Segundo a diretora Márcia Kehl, o colégio Santa Marta tem 789 alunos matriculados em seus três turnos. Além das disciplinas do currículo a instituição oferece atividades extracurriculares no contraturno. “A escola torna-se um espa-
Atividades marcaram as comemorações do 17º aniversário do colégio Santa Marta
ço de referência para os nossos alunos”, afirma a diretora. Marcos Quevedo Borges, professor de filosofia, enaltece a importância da escola para a comunidade. “Nossos alunos, são em sua maioria vítimas da vulnerabilidade social, e isso torna mais importante o papel da instituição na vida dessas crianças e jovens”. Ainda segundo ele, a maior queixa dos alunos é a ausência de atividades na escola no período de férias. “Precisamos pensar em alternativas que aproximem cada vez mais os alunos da comunidade escolar”, conclui Borges. Paulo da Silva Rodrigues, 57 anos, retomou os estudos depois de 40 anos fora da das salas de aula. A infância difícil na cidade de Três Passos, e a necessidade de trabalhar ainda muito jovem, impediu que ele seguisse no ensino regular. Aluno da Educação de Jovens e Adultos, ele está cursando o sexto ano do ensino fundamental. Pintor autônomo, Paulo voltou a estudar para oferecer uma vida mais tranquila para filha e usufruir de uma “velhice digna”. Adoração pelo futebol e a paixão pelo Sport Clube Internacional, fazem ele sonhar com
a carreira jornalística. Colorado fanático, ele vê no rádio a oportunidade de ficar mais próximo do clube do coração.
TAXA DE RENDIMENTO E EVASÃO ESCOLAR Sempre ofertando valores que propiciem uma interação com a comunidade, pais e alunos, a escola Santa Marta também preocupa-se com a evasão escolar. Aliás essa é uma preocupação nacional. Dados recentes divulgados pelo portal QEdu dos mais de 1.3 milhões de alunos matriculados na rede pública e privada do estado, 14 mil estudantes haviam abandonado os estudos ainda no ensino fundamental. Se compararmos com o ensino médio, o índice de evasão praticamente dobra. Segundo a Secretaria Municipal de Educação de São Leopoldo (SMED), em 2016 o município possuía 20.356 mil alunos matriculados no ensino fundamental e um índice de evasão escolar de pouco mais de 1%. Ainda segundo indicadores da SMED, na escola Santa Marta o percentual de alunos evadidos é de 3,86%,
sendo a sexta escola municipal em abandono escolar. Josué Antunes de Almeida, tem 17 anos, é estudante da quinta série do ensino fundamental do colégio Santa Marta. O atraso na conclusão dos estudos, se deram às constantes reprovações e um período fora da escola. “Eu enjoei do colégio, por isso parei de frequentar as aulas”, explica ele. Após esse tempo fora, no início do ano letivo ele voltou a estudar, e garante que agora pretende seguir até o fim. A diretora Márcia Kehl afirma que episódios como o de Josué são comuns. Segundo ela a maior recorrência de evasão é no sexto ano do ensino fundamental. “Essa é a fase mais crítica, a adolescência, quando muitos não querem saber de nada, preferem se ocupar com outras atividades ou ficar em casa no vídeo game. Se não tiver uma família que tenha ‘pulso firme’, essa criança acaba parando de vir à escola.” Além de ser o período de transição para a adolescência, o sexto ano é a série em que o aluno precisa se habituar com a mudança do currículo. “O aluno sai de uma rotina escolar que
têm um número menor de disciplinas, com menos professores e uma atenção maior por parte deste corpo docente e “caem” na área, onde passa a conviver com mais disciplinas, com dez professores, com uma carga horária de dois períodos cada”, explica a diretora. Preocupados em conter a recorrência de evasão escolar, a escola desenvolveu algumas alternativas para melhorar a frequência escolar. “Fizemos uma mudança na estrutura curricular do 5º ano, tornando ele um pouco mais seriado, para os estudantes já irem acostumando com essa transição que sempre é “um baque”. Já notamos que houve uma melhora na organização dos alunos”, Márcia afirma. Quando o aluno deixa de frequentar as aulas a família é chamada para uma conversa. Algumas vezes o Conselho Escolar vai até a casa do aluno ver o que está acontecendo. Se continuarem as faltas, é feita a FICAI, é um registro de infrequência do aluno, que é encaminhado para o Conselho Tutelar que acompanha caso a caso. Liege Pereira Barcelos Diego Mello
18. INFRAESTRUTURA
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Dilema dos moradores para ter uma propriedade regular Habitantes da Vila Santa Marta ainda não possuem as escrituras de seus terrenos, dificultando a compra e venda dos imóveis
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ossuir um documento do imóvel assegura o direito de desfrutar sua moradia com tranquilidade. Estar em situação regular com o município, permite contribuir e cobrar melhorias para o lugar onde vive. Os moradores da Vila Santa Marta, em São Leopoldo ainda não possuem uma escritura. Os processos de elaboração são extensos, os trâmites com o registro de imóveis, os cadastros dos residentes e as delimitações das áreas da vila são passos cruciais para este processo. O fato de possuir um documento que comprove seus bens divide opiniões no povoado e gera dúvidas em relação aos valores que serão cobrados pelas mesmas. Segundo Valentin Melo de Thomaz, Chefe de Gabinete da Secretaria Municipal de Habitação, de São Leopoldo, a “O loteamento Santa Marta foi ocupado desordenadamente, alternando a configuração das quadras, o sistema viário, as áreas publicas e de reservas técnicas. Assim, é necessário, para Regularização Fundiária, interrogações jurídicas para usucapião [processo que permite um morador que reside há muito tempo no local, possuir o direito legal de permanecer nele] e desapropriações.” Existem moradores que estão ocupando áreas públicas que pertencem à Prefeitura, essas famílias teriam que ser reassentadas juntamente com as famílias que residem a margem do Arroio da Manteiga, (PAC), mas antes do reassentamento a Prefeitura teria que realizar um levantamento social para identificação destes moradores. Em 2006 o município promoveu um programa para melhoramento das infraestruturas no referido loteamento tais como: calçamento, iluminação pública e programas sociais. Mas ainda há reclamações da população, dentre elas a pavimentação que ainda não chegou a muitas ruas, e o esgoto, que é um grande problema para os moradores. Mauro da Silveira Machado conta
As placas do Cadastro Único que foram colocadas pela Prefeitura estão sendo consumidas pelo tempo, sem resultados práticos
Nair (à esquerda), Mauro e Cleonice esperam mais atenção das autoridades municipais que nunca realizou nenhum cadastro junto a Prefeitura. Morador há nove anos da Vila Santa Marta, comprou sua casa de terceiros e sabe que terá dificuldade na hora de vender, sem o documento. Escrituras decorrem do processo municipal chamado Regularização Fundiária, segundo a lei n° 11977/2009, Art. 46. A regularização fundiária consiste em um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais. Que visam à regularização de assentamentos que estão em situações irregulares. Garantindo o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Chegando do mercado com sacolas na mão, Cleonice Puhl,
residente na Vila há 23 anos, comenta que também comprou a sua casa de terceiros, realizando somente um contrato de “gaveta”, autenticado pelo cartório. Ela conta sobre a realização do cadastro: “Foi há mais de seis anos, colocaram uma placa com o meu número do Cadastro Único, mas com o tempo e a chuva, ela caiu”, lembra a diarista que sonha em investir na sua casa, mas tem medo de ser retirada do local futuramente pela Prefeitura. Investimentos não são um problema para dona Nair dos Santos, que mora há 14 anos no local. “Quando eu comprei a casa era bem pequena, tudo era de terra, logo que cheguei troquei as telhas, com o tempo eu e os vizinhos compramos canos e instalamos na calçada.” A senhora de 71 anos conta que não tem medo de ser retirada
do local por não possuir escritura e gostaria da presença da Prefeitura na Vila, para poder conversar sobre os futuros valores dos documentos. Thomaz ressalta: “É um processo complexo a Regularização Fundiária, e o município não possui corpo técnico em curto prazo à regularização do mesmo. No município de São Leopoldo há outro loteamento nesta situação, denominado Parque Mauá no Bairro Arroio da Manteiga, lindeiro do loteamento Santa Marta, caso que se encontra na promotoria pública para estudo de parceria entre MP, PMSL e Unisinos para regularização do mesmo”. Mas nem todos os moradores querem uma escritura. Com a chegada do documento os habitantes terão que começar a pagar o Imposto Predial e Territorial Urbano,
o IPTU. Essa notícia de uma nova conta para o bolso não agrada a alguns residentes da vila, como conta a senhora que ocupou o terreno há três anos, mas que preferiu não se identificar: “Não quero mais uma conta para pagar, por mim, fica assim do jeito que está”. Apesar da insatisfação com o encaminhamento do processo de Regularização Fundiária, mudanças devem ser feitas no local. Por exemplo, nas ruas deverá haver espaço para que possa passar um caminhão de bombeiros, uma ambulância, isso garante uma melhor segurança para quem vive no lugar. Além de outros benefícios como pavimentação, CEP para a vila e mudanças na infraestrutura, como praças e escolas. Thais Ramirez Thomas Graef
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INFRAESTRUTURA .19
Os moradores não recebem correspondências e as dificuldades com endereços errados geram transtornos
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ndar pelas ruas da Santa Marta, para quem não conhece, pode se tornar um desafio e tanto. Ruas asfaltadas, estradas de chão, subidas e descidas. Porém, em todas as vias da comunidade há uma semelhança que chama a atenção: a falta de placas para sinalizar por onde se está passando. E a inexistência também traz outros transtornos, como a falta de Código de Endereço Postal e a dificuldade na entrega de correspondências. Os nomes das ruas são variados, possuindo principalmente numerações, o que gera transtorno e confusão com outros bairros da cidade de São Leopoldo. Em muitas ocasiões, moradores que necessitam fazer compras ou cadastros em lojas não conseguem passar o endereço verdadeiro, pois não possuem o CEP correto. Uma confusão de informações, que também dificulta simples ações cotidianas de quem vive por ali. Conforme relata a auxiliar de escritório e estudante de Pedagogia, Rosane Ferreira, os problemas na entrega vêm chamando a atenção dos moradores há mais de quatro anos. Ela é moradora da Rua Santa Martha desde 1991. E confirma que sempre houve confusão na entrega das correspondências. Porém o carteiro da época já conhecia os residentes de cada rua e ajudava no encaminhamento das mesmas. “Hoje em dia temos que tirar a via dos boletos pela internet, mas muitos não têm acesso a esse serviço e precisam ir até o centro dos Correios para retirá-los”, comenta Rosane. A própria filha, Roberta Ferreira, de 17 anos, já passou por problemas ao encomendar produtos pela internet. A jovem comprou um tênis para futebol, presilhas para o cabelo e uma capa de celular, entretanto, os produtos nunca chegaram até a residência. O motivo foi a falta de endereçamento correto, e a menina precisou ir até os Correios na região central da cidade para retirá-los. Ao olhar as contas de água e luz da família Ferreira, uma surpresa: CEP diferente em cada boleto. Buscamos o Código Postal da residência no site dos Correios, contudo, os dados não foram encontrados. O caso, de acordo com Rosane, é considerado normal. “Nosso endereço sempre dá conflito com o de outro morador da Campestre. O número da casa, da rua e do CEP são exatamente iguais, porém, o que modifica é o bairro, e então, nossas contas nunca chegam”. A dificuldade em conseguir receber as correspondências já afetou as moradoras na hora de receber documentos também.
Ruas não possuem sinalização, como placas com nomes, que auxiliam na identificação das vias
Ah, se esse CEP fosse meu A mãe de Rosane, dona Gessi Ferreira, de 76 anos, solicitou o cartão de uma empresa de eletrodomésticos. O cartão veio. Mas a senha, solicitada e enviada pela loja por mais de quatro vezes, nunca chegou até a caixa de cartas. O resultado foi, a quebra do cartão, para inutiliza-lo. Na rua 10 a situação não é diferente. Com uma placa confeccionada pelos próprios moradores, a casa possui dois números distintos. Marli Schmidt, irmã da proprietária desta residência afirma que até reclamações no Procon já foram feitas, porém, nenhum retorno foi obtido. “Temos três CEP diferentes. Eu não moro aqui, mas sempre imprimo na minha casa pra minha irmã os boletos, porque eles não tem internet. E assim como ela, muitos da Santa Marta não possuem e são prejudicados”, afirma. Para quem não possui entrega domiciliar de suas correspondências, os Correios orientam a população a procurar a agência mais próxima para retirar os objetos. “Caixas postais comunitárias também são uma forma de recebimento alternativa para quem não recebe em casa suas cartas e contas”, diz em nota a Assessoria de Comunicação do RS dos Correios. Ainda conforme a Assesso-
ria de Comunicação, os Correios seguem a Portaria nº 6.206 de 13 de novembro de 2015, do Ministério das Comunicações, segundo essas normas a entrega externa será realizada diante de alguns critérios, tais como: indicação correta do CEP; possuir quinhentos ou mais habitantes no distrito, conforme censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística); as residências necessitam estar numeradas de forma ordenada, individualiza e com numeração única; dispor de caixa receptora de correspondência, localizada na entrada.
De acordo com o Diretor de Urbanismo da Secretaria de Gestão e Governo, João Henrique, está sendo traçado um mapa com todas as áreas que necessitam de renomeação das ruas. E a comunidade da Santa Marta está inserida. “Em 2016 foi encaminhado à Câmara de Vereadores nove pacotes como tendo o material para mudança de nomes nas ruas, porém, nenhum foi aprovado. Agora vamos reenviar por lotes”, diz. Dentro de um mês deve ser enviado à Câmara, segundo ele. O processo mais rápido, entretanto, seria a população entrar em contato com um dos vereadores, para agilizar na solicitação e no processo de aprovação.
Dilce Maria da Rosa, Presidente da Associação de Moradores da Santa Marta mora na rua 11, onde o caso é o mesmo. Ela nunca recebeu correspondências em sua residência e sempre precisa ir buscar numa agência dos correios o que está em seu nome. De acordo com a representante da comunidade, um projeto para os nomes das ruas já está pronto. No passado a Associação já havia encaminhado um projeto de planejamento e resgate histórico à Prefeitura e Câmara de Vereadores, porém, o processo não seguiu adiante.
A RUA DESCONHECIDA
PLANEJAMENTO DAS VIAS
Próximo à Rua Um, há uma via que nem nome possui. De chão batido, mas com várias residências e comércios, não é conhecida para quem não mora na Santa Marta. Por ser uma das últimas vias de acesso à Vila, é utilizada principalmente pelas transportadoras e pelos caminhões de empresas e indústrias que estão ao redor. Para quem convive com o pequeno trecho diariamente, problemas são encontrados. Não há luz, não há asfalto, assim como não há
nomeação da rua e, portanto, CEP. A iluminação pública, paga mensalmente nas contas de luz, não faz parte da realidade de quem mora em uma das residências do local. Segundo os residentes, os postes de luz não podem ser instalados ali por um simples fato: não há registro daquela área. Ou seja, como instalar iluminação, se é como se a rua não existisse? Graciela Machado é proprietária de um armazém naquela localidade, e afirma: dificuldades em possuir um comércio naquela localidade é o que não falta. Moradora de casas localizadas entre a via desconhecida e a rua Um, a comerciante relata que as complicações aumentaram quando ela abriu o minimercado. “Os fornecedores querem e não tem um endereço. Nós tentamos explicar e eles se perdem ao tentar chegar, é constrangedor”, fala. A comerciante ainda comenta que seria ótimo possuir um nome na rua e CEP, pois além de gerar valorização ao local, diminuiria os problemas com cadastros. “Eu evito ao máximo fazer coisas que envolvam papeis e documentação, pois meu CEP, por exemplo, dá em uma moradia no bairro Santos Dumont”. Apesar do armazém ainda não ter sido registrado oficialmente, o mesmo só poderá ser regulamentado quando houver um endereço correto. Conforme o geógrafo da prefeitura de São Leopoldo, Eduardo Minossi, essa rua não aparece como existente pela forma como se deu a construção das ruas e lotes de terra. “A Santa Marta teve ruas aprovadas que não foram abertas, assim como locais que foram e não estão constados para nós”, comenta.
HISTÓRIA DO CEP A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos criou o CEP (Código de Endereçamento Postal) em 1971, porém, foi em 1992 que ele adquiriu a forma estrutural que possui até hoje, com oito algarismos. O principal objetivo é no auxílio à separação e entrega das correspondências. O CEP atualmente utilizado no Brasil é composto de oito dígitos, divididos em duas partes, uma de cinco algarismos e outra de três, separadas por um traço. O objetivo principal é orientar e acelerar o tratamento, o encaminhamento e a distribuição de objetos de correspondência, por meio da sua atribuição a localidades, logradouros, unidades dos Correios, serviços, órgãos públicos, empresas e edifícios. Se o CEP estiver errado, as correspondências e encomendas demandam mais tempo para serem devidamente separadas e entregues. Há, ainda, a possibilidade de algum objeto ser entregue em endereço indevido. Fernanda Fauth Mariana Dambrós
20. INFRAESTRUTURA
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Sem água na rua sem nome Encanamento descoberto e instalado quase no meio da rua vive quebrado por causa do tráfego de veículos
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á virou parte da rotina dos moradores da última rua da Vila Santa Marta ficar sem água. Ficar sem nome para a rua onde vivem, é muito difícil de resolver um problema. A via é caminho para que os caminhões de lixo e de resíduos sólidos, que entram pelo bairro em direção a uma usina de reciclagem e ao aterro sanitário do município. Com tráfego tão intenso dia, a rua de chão batido levanta a poeira nos dias de sol e é praticamente intrafegável nos dias de chuva. As constantes modificações que precisam ser feitas na rua para permitir a passagem de veículos acabaram expondo o encanamento de água. A situação é tão precária que basta que um caminhão passasse pela rua para que os dutos de água se rompam. A água jorra via abaixo, tornando muito difícil a subida do morro da rua Um para a Sete. Muitos carros penam para subir o aclive e, segundo moradores, caminhão chegam a atolar por causa do lodo. Conforme a dona de casa Jés-
sica Garcia de Souza, que mora na esquina da rua sem nome com a rua Seis, há pouco tempo, um dos caminhões ficou atolado na região por quase um dia inteiro, em um dia de chuva. Na tentativa de retirada do veículo do local, a empresa dona do veículo usou três retroescavadeiras e uma delas estourou a tubulação. Ela diz que teve que chamar o Serviço de Água e Esgotos de São Leopoldo (Semae) para resolver o problema . A tubulação rompida foi consertada, mas só ao anoitecer quando começou o esquema de plantão da Semae. Mas a situação da estradinha de terra é tão ruim nos dias de chuva que seu marido teve que abrir um portão na lateral da casa que
não vêm arrumar porque não está todo mundo sem água. E aí fica desperdiçando água, com aquele barral ali. O pessoal tenta subir [a lomDemora no ba] de carro e não atendimento consegue”, lamenta. e vazamentos A moradora comseguidos deixam os moradores sem água plementa que, em por semanas todas as vezes que ligou para o Serviço, teve que esperar que a equipe consertasse o problema durante o início da noite. Drama similar vive o porteiro Luiz Batista Mendes, que mora há dez anos no bairro. O simples sedá para outra rua lateral. nhor de cabelos brancos e boné “Durante o dia, a gente liga, na cabeça cuida da casa onde foi mas o Semae não vem. Eles ficam porteiro enquanto ali funcionou enrolando até dar o horário do uma igreja. O morador conta plantão, que é quando eles aten- que o pastor da congregação foi dem, umas sete, oito horas da noite. para Viamão e ele pode comprar, Enquanto isso, o pessoal fica sem com algum esforço, a casinha água. Se estoura o cano de tarde, onde vive com a esposa e cuida fica até de noite”, diz. A moradora de vários cães e gatos. também reclama dos constantes Segundo disse a Prefeitura não rompimentos dos canos.“Só que é se importa em consertar os canos. aquela‘matação’. Arrumam, deixam Na rua que não tem nome, o encao cano de fora e vem o caminhão e namento já foi remendado tantas quebra de novo”, reclama. vezes que até as emendas vazam A reportagem constatou que água. O cano, semienterrado, deixa a tubulação está, de fato, rompida uma trilha de barro por onde a água e vazando água sem parar. Como corre. Ligação formal com a rede de o cano está só parcialmente dani- água o idoso não possui. ficado, a dona de casa diz que o O drama só é amenizado com problema não é resolvido. “Como a boa vontade de uma vizinha, não estourou por completo, eles que aceitou fazer uma ligação. Os
vizinhos dividem a conta de água por causa da situação, mesmo que isso cause certo constrangimento para Mendes. Mas, mesmo sem abastecimento, ele está sendo cobrado pela Semae por dívidas que não sabe de onde vem. “Aqui eu não tenho ligação formal. Eu morei no Campestre e tinha água no meu nome e eu fui até pedir o corte e eles [Semae] disseram que não poderiam cortar quando eu fui me mudar de lá. Como tem morador novo, devem ter confundido”, afirma. Mendes diz que recebeu uma oferta a empresa de água do município para receber a ligação na sua residência na última casa da rua Seis. Porém, teria que desembolsar do próprio bolso para ter o fornecimento regularizado. Ele até comprou os canos, mas Semae nunca veio realizar a instalação da rede de água e esgoto da residência. Perguntado sobre qual o seu desejo para o bairro, o homem é singelo. “Se dessem um jeito nessa rua e colocassem calçamento, já melhorava. Por que o problema não é só para mim, é para todos, né”. Procurada,S emae e a Prefeitura de São Leopoldo não responderam aos contatos da reportagem. Leonardo Severo Vinícius Emmanuelli
Tradição e cultura entrelaçados na Santa Marta Danças, atividades coletivas, reuniões para dialogar sobre assuntos diversos. Esses, entre outros, são os objetivos do Grupo Tradicionalista Sepé Tiarajú, localizado na Vila Santa Marta. Com aproximadamente 60 integrantes, mantém grupos de dança divididos em dois: mirim, que abrange dos 5 aos 12 anos de idade, e juvenil, que abrange jovens entre 12 a 16 anos. Coordenados por Carla Souza, 43 anos e dona de casa que está no Grupo há oito anos, as crianças e adolescentes se reúnem toda segunda-feira à noite. Nos encontros, além de ensaiar as danças, eles conversam sobre questões que possam ter dúvidas e ouvem conselhos. Um exemplo disso é quando surgem dúvidas sobre o uso de drogas. Os mais velhos, instrutores e pais dos jovens, sempre orientam para que não caiam na “curiosidade” de usar entorpecentes.
AÇÕES INTEGRADAS Durante o ano, são realizadas algumas atividades, além de apresentações em escolas. Sempre que possível se apresentam em rodeios crioulos. Carla conta que na maioria das vezes só é possível levar o grupo para se apresentar na região do Vale dos Sinos, devido a custos como transporte e alimentação. Os recursos para manter as atividades vêm dos próprios integrantes. Além disso, os representantes do Sepé Tiarajú participam de alguns torneios de dança, disputados na própria cidade, mas sem nenhuma agenda pré-determinada. Com o crescente número de jovens envolvidos com drogas ou crimes, muitos pais e mães ficam temerosos em deixar seus filhos com tempo ocioso, sem qualquer atividade extra. Pensando nisso, Cemilda Ana Marcon, mãe de um integrante do grupo, relata que seus dois filhos sempre par-
ticiparam do grupo, sendo que um já atingiu a idade máxima, que é 18 anos. “A gente sempre tem medo que os nossos filhos se envolvam em coisas erradas, então participar do grupo é bom para que eles possam ter alguma ocupação”, afirma. Em sua maioria residentes da Vila Santa Marta, os jovens estudam na escola que leva o
jovens, há aqueles que pretendem levar adiante o trabalho. Este é o caso do Bruno de Oliveira, 16 anos, aluno do 9º ano do ensino fundamental. Bruno conta que pensa em seguir carreira na área da dança de maneira profissional, atuando como instrutor. Segundo ele, é algo que lhe motiva e atrai. Ele também relata a importância do grupo Grupo no seu dia-a-dia: “O gruTradicionalista po pra mim representa Sepé Tiarajú uma irmandade, reprepratica a dança senta a integração entre sem esquecer da as pessoas próximas solidariedade a mim”, afirma. Bruno, nome do lu- e da amizade além de fazer parte da gar. Isso acaba facilitando a integração entre equipe de dança juvenil, tamtodos, pois tem uma convivên- bém é o “Costeiro”, espécie de cia maior, fazendo com que líder do grupo, que sempre vai à frente dos demais da equipe exista uma amizade. e realiza os movimentos que ALÉM DO GRUPO coordenam o restante. Em movimentos artísticos que costumam trabalhar com
Anderson Huber Lisandra Steffen
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EquitAÇÃO .21
Caseiro e dedicado à sua égua Guerreira do Velho Preto, Patrick já conquistou vários prêmios
Os sonhos de um jovem laçador da Santa Marta Um menino e seu fascínio pelo esporte símbolo Rio Grande do Sul
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forma como amarra cuidadosamente o animal na cerca da casa deixa claro seu carinho. A égua, embaixo da sombra de uma árvore, recebe os cuidados do menino. Com calma e dedicação o adolescente Patrick Warlei da Silva, 16 anos, cuida de sua fiel companheira, chamada Guerreira do Velho Preto. Ao mesmo tempo em que comenta sobre o animal, o garoto de forma carinhosa passa a mão pelo corpo da égua. Em seguida faz uma trança na crina da égua e a leva de volta para o estábulo. Lá ele a alimenta e já deixa preparada a montaria e o laço, que utilizará mais tarde. Ele já teve outros cavalos, a égua é aquisição recente, mas o amor demonstrado parece ser de longa data. Na contramão dos jovens urbanos de sua idade, Patrick é caseiro e gosta das coisas do campo. Além dos hábitos campeiros que cultiva, ele possui um gosto especial pelo tiro de laço, atividade que o acompanha desde a infância. O garoto passa boa parte do tratando a égua da égua e treinando laço em um espa-
ço aberto próximo de sua casa. Além da alimentação, cuida dos cascos e a prepara para o que mais gosta de fazer: laçar. A paixão do menino pela atividade começou cedo. Segundo a mãe, a costureira industrial Olga da Silva Garcia, 48 anos, aos três anos Patrick já gostava de cavalos. Quando criança foi muito apegado a uma égua que a família tinha. O animal foi comprado junto com uma carroça, utilizada na época para coletar materiais recicláveis. Quando a égua morreu, devido a uma picada de cobra, o menino chorou muito e chegou a ficar doente. Os pais então perceberam o gosto do filho pelos equinos. Com o passar dos anos, Patrick foi se interessando cada vez mais pelo laço e essa atividade virou sua inspiração. O laço é o mais importante para ele, seja como passatempo ou quando pensa no futuro e responde sem dúvidas o que tem como objetivo. “Quero ser laçador”, afirma. Falar da atividade faz os olhos do garoto brilharem de entusiasmo. Apesar da pouca idade, ele sabe muito bem o que pretende ser. Patrick mora desde que nasceu na Santa Marta. Seus pais vieram antes, há 22 anos para a vila e até hoje vivem no mesmo
lugar dos primeiros tempos. A família é natural de São Leopoldo, mas moraram por algum tempo na cidade de Portão, antes de se mudar para a casa onde vivem atualmente. Vieram para tomar conta de um dos terrenos e acabaram ficando. Apesar do bairro ter dificuldades de infraestrutura, todos afirmam que gostam de morar no local. O jovem laçador é filho único, e o orgulho da família, que o acompanha quando participa de torneios e rodeios. Ele já ganhou prêmios nos eventos de laço em que participou. O mais notável foi a premiação no Rodeio Estadual de Portão. Hoje, além de laçar por diversão acompanha os rodeios e eventos e, se possível, participa das competições. A mãe comenta que nos primeiros tempos tinha medo do filho se machucar, mas foi se acostumando com a ideia. Hoje considera o adolescente muito focado e responsável. O pai de Patrick, Vanderlei de Almeida Garcia, 44 anos, pensa na atividade como uma forma de manter o adolescente ocupado. Vanderlei temia ver o filho envolvido com o tráfico e fica aliviado pela paixão demonstrada pelo menino com o tiro de laço. “Muitos dos me-
Da brincadeira à competição O tiro de laço é uma competição típica do estado do Rio Grande do Sul. Segundo registros, as provas de laço iniciaram no início dos anos 50, no município de Esmeralda. Um grupo de peões resolveu competir quando laçava o gado para marcação. A ideia logo virou atração de uma festa campeira organizada naquele ano. Durante as provas de laço o ginete, como é chamado o laçador, tem como objetivo laçar um novilho. As competições normalmente ocorrem em rodeios ou eventos realizados por CTGs. É uma atividade que exige foco, agilidade e concentração do laçador. Para competir é necessário que os ginetes usem a tradicional indumentária típica gaúcha, composta por bombacha, camisa, lenço, guaiaca, chapéu e botas. A competição foi declarada, em 2014, o esporte símbolo do Rio Grande do Sul. Estima-se que a atividade tenha em torno de 50 mil praticantes e é uma das principais competições nos rodeios. Fontes: g1.globo.com/rs, radiosantiago.com.br e agron.com.br
ninos da idade dele já estão no mau caminho”. A mãe comenta que os únicos vícios do filho são o laço e o Facebook. Apesar das dificuldades financeiras que a família passa, os pais não medem esforços para incentivar o filho. Mesmo a mãe estando desempregada e o pai recebendo apenas auxílio-doença, a família comprou a égua para Patrick continuar fazendo o que mais gosta. Patrick, além de laçar, tem jeito para lidar com os animais. Ele é procurado para colocar ferraduras e até mesmo amansar domar os cavalos
mais inquietos. Patrick atende de bom grado os que lhe procuram para tratar os animais. Mesmo gostando de onde moram, a família planeja se mudar para algum lugar com mais espaço para Patrick praticar a atividade que tanto gosta. A mãe sonha tornar a paixão do filho em uma profissão e quer ver o menino estudando veterinária futuramente. Já Patrick sonha apenas em continuar laçando, independente do que aconteça. Elisa Ponciano Estephani Richter
22. CULTURA
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Quando não está em aula, a jovem Eloísa se dedica à prática do instrumento de cordas
Música engaja jovens no contraturno escolar O projeto Vida com Arte mudou a rotina da família Silva, e suas horas livres
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az tempo que a agenda de Juçara Y Castro da Silva, dona de casa, vive movimentada. Seus dois filhos participam de um serviço de convivência e fortalecimento de vínculos, e esse empreendimento social acabou conquistando a família inteira. Três vezes por semana, ela os leva até a antiga sede da Unisinos, no centro de São Leopoldo. É lá que ocorrem encontros do projeto Vida com Arte. Mantida pela Universidade, a iniciativa promove a inclusão cultural de 240 jovens da rede pública de ensino. São mantidas duas orquestras de cordas, dois grupos de percussão, dois grupos de musicalização e o coral. Para a mãe, a atividade extracurricular representa segurança. “Nas vilas, a gente tem que se ocupar com alguma coisa”, destaca. O bairro proporciona poucas opções de recreação às crianças e adolescentes, que buscam nas ruas o seu entretenimento. Com a ação, Juçara sabe que a Eloísa e Claiton estão envolvidos em um exercício que colabora para o desenvolvimento pessoal de ambos. E tem mais: integrar
a banda abre portas para o futuro profissional da dupla, cujo hobby são as partituras.
TALENTO INATO Eloísa, 10 anos, não demora para pegar a viola e exibir seus talentos. Mostra-se tímida, com a fala baixa, até entoar as primeiras notas de“The Happy Squirell”– sua canção favorita. De acordo com a dona de casa, a música ajuda a caçula no processo de desinibição. Vence a dificuldade de se enturmar com os colegas quando a professora pede que ela toque. O espírito de equipe, inclusive, é um dos pontos trabalhados pelo maestro com os alunos. Cada instrumentista deve prestar atenção no outro para que haja harmonia no conjunto. Desde 2013, Eloísa comparece aos treinos de seis horas semanais. Diz que aprendeu rápido e só enfrenta dificuldades em algumas trocas de acorde. Emprestado pelo projeto, o instrumento está sempre com a pequena. Retira-o da capa, ensaia, limpa e guarda com zelo. Afirma que deseja ser uma musicista famosa. Mas sem muitas viagens, pois não quer se distanciar dos pais. Juçara não deixa que tanta prática impeça a garota de aproveitar a infância. Diz que é
importante reservar períodos para as bonecas e desenhos. Claiton, o irmão, foi selecionado para o projeto logo no seu lançamento, em 2009. Frequentava a Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Marta e começou como percussionista já no segundo semestre daquele ano. Desde então, viajou para inúmeras cidades com o grupo ao qual pertence. “Cada apresentação é uma experiência nova e fico feliz por essa oportunidade ter chegado até mim”, conta. Nos últimos tempos, o menino tem se deslocado para ensaiar em Caxias do Sul, onde ocorrerá o próximo concerto. Aos 16 anos, frequenta o curso técnico de informática na cidade de Portão. Os planos, porém, apontam para a escolha de outra carreira. Quer morar em Santa Maria, com os colegas, pois a Universidade Federal situada naquele município oferece bacharelado em música. Por intermédio do Vida Com Arte, descobriu sua verdadeira vocação. Domina o pandeiro, o xilofone, a marimba, o vibrafone, o surdo, a bateria... Ele explica que a percussão compreende vários instrumentos. Surgiu, em 2014, a oportunidade de expansão do projeto através de um núcleo na Asso-
ciação Vida Nova. “Meu colega Emerson e eu assumimos as aulas de percussão. Atendemos crianças de seis a 12 anos, dentre elas, algumas com necessidades especiais, de 1º a 5º ano do ensino fundamental”. Como oficineiro, o jovem conquistou retorno financeiro a partir de sua paixão. Ele ainda recebe cachê em alguns shows nos quais o professor Douglas Gutjahr o inclui.
SOBRE A INICIATIVA Concebido pela Unisinos e a Orquestra Unisinos Anchieta, o projeto Vida com Arte disponibiliza oficinas em São Leopoldo e Porto Alegre. Os jovens são atendidos por uma equipe multidisciplinar composta por professores instrumentistas, professores de musicalização, psicólogos e assistente social. Começam pelas lições de introdução à teoria musical e seguem para o aprendizado de um instrumento conforme habilidade e preferência. Segundo Juçara, que vivencia o projeto desde o início, o mesmo foi se remodelando com o passar do tempo. “No começo, a Prefeitura buscava e dava passagem de ônibus para os participantes”. Visto que muitas crianças das redondezas desistiram de ir às
reuniões, a mãe da Eloísa e do Claiton resolveu conduzi-los com o próprio carro. Em 2017, ocorrerão outras mudanças, e o enfoque do trabalho comunitário será integralmente a música. Isso significa mais concertos e menos apoio assistencial. A alteração, entretanto, não incomoda a dona de casa. Ela garante que o comportamento dos filhos nunca exigiu atenção das profissionais da área. Continuará se desdobrando para acompanhá-los em todas as oportunidades, pois acredita que essas não devem ser desperdiçadas. Nem ela, nem o marido, desfrutaram de uma chance similar na juventude. Jesus Alair da Silva, o pai da família, trabalha durante a noite. Apesar dos horários invertidos, o funcionário do shopping Lindóia, de Porto Alegre, procura estar presente em cada apresentação que acontece. Se preciso for, dorme poucos minutos e segue na carona da esposa. São recitais mensais e shows de encerramento anuais, fora os ocasionais espetáculos em eventos e festivais de música. O casal presencia, emocionado, a evolução dos seus descendentes. Victória Freire Thaís Lauck
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Cultura .23
Jovem encontra na dança uma oportunidade na vida Mesmo com uma infância difícil, Tialison não deixou seu sonho para trás, que é ser um professor de dança
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ialison dos Santos Linhaio, nascido e criado na Santa Marta, é movido desde a infância pelo mundo da dança. Hoje ele está com 20 anos, porém atua como dançarino desde 2010, no grupo Explosão da Dança. Os ensaios ocorrem na cidade de São Leopoldo, na Vila Brás. Com dificuldades, o jovem foi driblando as adversidades, sempre visando o sucesso. Atualmente Tialison está no grupo adulto, atuando em Jazz, Dança Contemporânea e Dança de Rua. Ele frequentou o Associação de Meninos e Meninas de Progresso (AMMEP), que se localiza na própria Vila Santa Marta. “Eu entrei no projeto por convite da professora Graciela. Dentro do projeto da AMMEP, ela me mostrou a dança e me incentivou a ir para o grupo de dança dela, que é onde estou até hoje, no Explosão da Dança”, conta Tialison.
Tialison reside na Santa Marta, porém suas atividades como dançarino ocorrem na Vila Brás
A professora em questão é Graciela de Oliveira, formada em Educação Física e pósgraduada em Dança. O Grupo Explosão da Dança surgiu em 2005. Graciela lembra que além de desenvolver amplas competências físicas, a atividade é voltada fortemente para a expressão, os sentimentos e a emoção. “A dança, como um projeto social, eleva a autoestima da pessoa. O Tialison estava inserido em um contexto muito vulnerável, e a dança lhe possibilitou uma vida melhor”, complementa a Professora Graciela.
DIFICULDADES NA ESCOLA Na escola, a situação é um pouco delicada. Tialison ainda não completou o ensino fundamental, tendo parado de frequentar o colégio na oitava série. Segundo ele, a família estava passando por algumas mudanças. Sua mãe, Dona Romilda, mudou-se no ano de 2010 para Tramandaí, no litoral do estado. Para não ter que se desligar da escola de dança,
o jovem dançarino optou por ficar na cidade, ao invés de ir morar com sua família. Durante o período inicial dessa nova rotina de sua vida, Tialison ficou morando com sua irmã Letícia. Depois morou em diversos lares diferentes. Residiu com sua avó, com seu irmão, com seu tio, e até mesmo nas casas de alguns amigos próximos. Hoje, o jovem está morando com seu irmão Edilson. A principal renda na casa em que ele mora é de seu irmão, que é dono de uma empresa especialista em lixação de parquet. Mesmo não tendo carteira assinada, Tialison colabora financeiramente para os custos da casa e para seus afazeres na dança, trabalhando eventualmente com seu tio, que é azulejista. Apesar de ter suas dificuldades, o jovem comparece aos treinos sempre com o pensamento positivo. Sua principal meta na vida era ser um professor de dança. Ele reconhece que isso não é uma tarefa fácil, pelo fato de ainda não ter acabado o ensino fundamental. É um sonho distante, mas não impossível.
“Eu enfrento minhas dificuldades diárias para dançar, e não pretendo desistir. Mas hoje em dia, eu já agradeceria se tivesse um trabalho de carteira assinada”, conta Tialison, sem perder o otimismo.
DISCIPLINA E RESPEITO Tialison já pode se considerar um vitorioso, simplesmente pelo fato de não se deixar levar pelas más influências. Segundo ele, a esfera do esporte e da educação têm um dever social muito importante. A dança, para ele, foi um refúgio para não estar somente frequentando as ruas e correr o risco de se envolver com más companhias. Boa parte de seus amigos, além de não acabar a escola, não se interessam por projetos sociais. “Na dança eu aprendi a ser solidário com o próximo, e ter respeito com as pessoas. Temos uma boa disciplina que alguns não têm a oportunidade de ter”, ressalta Tialison. Na dança, já conquistou alguns prêmios. Junto ao grupo, realizou várias viagens,
dentro e fora do estado. Na cidade de Bento Gonçalves, ganharam o Sul em Dança, além de já terem disputado títulos nas cidades de Joinville e Garopaba, no estado de Santa Catarina. Além de ter a oportunidade de conhecer outras cidades, e até outro estado, Tialison conheceu no grupo de dança sua namorada, Tainá Rodrigues. Segundo Tialison, a dança é uma atividade que revela muito o preconceito das pessoas. Primeiramente com sua família. Ela não o apoiou quando Tialison iniciou, pois não acreditam que o jovem possa ter um futuro profissional na área, apesar de ser o principal objetivo dele. Há, também, o preconceito no grupo de amigos. “Eu sempre passava pela rua e alguns amigos ficavam dizendo que dança era coisa de menina. Mesmo assim, eu nunca dei atenção para esse tipo de comentário. Sempre fiquei focado no meu propósito”, afirma Tialison. Rafael Erthal Renan Neves
ENFOQUE SANTA MARTA
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EDIÇÃO
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Pássaros da resistência Grafiteiro utiliza sua arte como forma de contestação e integração da comunidade
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ara os moradores de São Leopoldo, em especial da Vila Santa Marta, é comum passar por muros cobertos por grafites. Essa intervenção urbana é a forma de expressão mais popular nas cidades. Uma em especial colore e faz parte da história da Santa Marta. O grafiteiro Mateus Greff, mais conhecido como Xamã, espalha sua arte pelos muros. O Enfoque passou uma manhã acompanhando o trabalho do grafiteiro e conhecendo um pouco sobre sua vida. Mateus cresceu no bairro Feitoria, onde encontrou a influência do grafite e Hip Hop desde criança. Ele explica que o grafite não é uma profissão e sim um estilo de vida do movimento cultural do Hip Hop. “É um estilo de vida que tu assume no teu dia a dia para melhorar a comunidade. Esse estilo me influenciou, ampliou minha visão e me transformou em um cidadão” ressalta o grafiteiro.
Santa Marta Ele veio morar na Santa Marta aos 19 anos. Quando chegou já havia um cenário cultural na região. “Quando eu cheguei aqui, já tinha os caras que dançam muito e faziam rap, mas não tinham a noção do que era Hip Hop. Foi através de oficinas nas escolas que entenderam como essa cultura se estrutura. Se perguntar para a criançada do bairro eles já sabem, quase to-
Xamã entende que o grafite, assim como toda forma de arte, amplia a visão das pessoas e as faz pensar
dos praticam essa cultura”
transformaÇÃO Xamã entende que o grafite, assim como toda forma de arte, amplia a visão de todo mundo e faz as pessoas pensarem. “O cara dança, pratica esporte, canta, faz poesia, tem que ler, escrever. Automaticamente esse estilo de vida te obriga a estudar, te puxa, faz tu pensar.” E ressalta a importância de se organizar em grupos, coisa que no momento não consegue fazer. Já fez parte de alguns grupos como“Ao Extremo”, mas agora apenas faz participações em lugares diferentes. “No momento é meu grafite e eu”, ressalta.
Evento para maio
A Escola Santa Marta tem um time de futebol que envolve a vila toda. Mateus teve a ideia de unir a associação de moradores, o time e o movimento remanescente do Hip Hop para um grande evento, quando um palco para apresentações será montado em frente à escola. Um espaço que também poderá permitir a discussão de algumas demandas do bairro, e para encher os muros da escola com grafite. “Primeiro evento em anos, em questão de cultura. O que acontece muito aqui é reunião religiosa, evangélicos e católicos se organizam.”
Xamã e os pássaros Animais em geral são os desenhos mais comuns de encontrar nos grafites de Xamã. Mas não foi sempre assim. Ele conta que antes, quando ainda assinava seus
trabalhos como Mateus, fazia de tudo: pessoas cantando, cenas de violência e também animais. Não tinha um conceito. Estudando suas origens, Xamã descobriu que em São Leopoldo, antes da chegada de alemães e portugueses, viviam os índios Kaingangs, etnia indígena da qual sua mãe é descendente. Os índios migraram por causa do confronto cultural com os colonizadores. Se mudaram para região noroeste do estado. Em 2010 a tribo voltou a se instalar no município, na beira da BR 116. Na época a administração e população não viram com bons olhos a situação. Sendo assim, criou-se um assentamento no bairro Feitoria. Foi durante um encontro de grafiteiros de Brasília, em 2013, que ao explicar sobre seus pássaros foi chamado de Xamã. Segundo ele, designa um líder espiritual da tribo. No Brasil tem nome pajé ou cajá. Xamã é de origem estadunidense. Na volta para São Leopoldo começou a assinar seus trabalhos como Xamã.“Começou a fazer mais sentido aquilo que eu já fazia”. A arte sempre teve símbolo de resistência, enfrentamento à essa sociedade injusta. Minha arte ganhou conceito. Um dos grandes problemas de ser artista é o que apresentar. O que eu vou pintar na parede? A ideia é passar algo através do teu trabalho. O pássaro é isso, aquela lenda da região, se tiver algo de errado ele canta e avisa os índios. Onde tem passarinhos é sinal que tem resistência acontecendo.
Pixação X Grafite Questionado sobre a picha-
ção, Mateus responde que as duas artes são a mesma coisa, apenas no Brasil há essa separação. ”Os dois são uma arte visual, a diferença são as cores. O verdadeiro grafite, na origem, não tem autorização, é tu chegar e te apropriar daquele espaço”. Ele concorda que há inúmeras reclamações da sociedade afirmando que o pixo é depredação do patrimônio, e vandalismo. “É um vandalismo simbólico, é um símbolo. Uma parede pichada ou grafitada não deixa de cumprir sua função social de separar e dividir, continua sendo parede”. Para ele, é arte porque faz pensar, se ela faz pensar está cumprindo seu papel de ser bonito ou feio, é fazer pensar, sem agredir.“A juventude está riscando, a estética do jovem é essa”, afirma o grafiteiro.
poder pÚblico Na gestão passada da prefeitura de São Leopoldo, a Secretaria de Cultura foi uma das primeiras a ser cortada, assim como o diálogo com os artistas. Com a atual gestão de Ari Vanazi, Mateus foi chamado para conversar sobre a questão das pichações que estão incomodando a população. Ele ressalta a importância desse ambiente de diálogo com o poder público:“Ao invés de sair apagando tudo, eles chamam os artistas para conversar. Está em discussão, o que vai ou não ser pintado, decidindo juntos”. A proposta é pintar a cidade, o muro do rio dos sinos, os postos de saúde, as escolas. Mas fazer isso demanda recursos, para Xamã não seria necessário pagamento de cachê, mas
investimento principalmente em material, que é caro. “Tendo material e diálogo com a comunidade, eu garanto que sairiam coisas fantásticas em todas as escolas da cidade”.
Vida acadêmica Trajetória rápida e conturbada. Aos 21 anos de idade, Xamã tinha cursado apenas até a sexta série. Abandonou a escola aos 14 anos, mas através do grafite sentiu necessidade de saber mais, sentia dificuldade em dialogar e teorizar sobre aquilo que pensava. “Coisas que eu sabia, mas não sabia que sabia” Retornou aos estudos cursando o EJA no turno da noite, mas não suportou o ambiente da educação em sala de aula. Foi aí então que ele descobriu que o governo tinha provas para eliminar o ensino fundamental e também médio. Logo depois de passar pelas provas se inscreveu no Enem, com um bom desempenho conseguiu uma bolsa pelo ProUni. Passou em primeiro lugar em Artes Visuais pela Uniasselvi em 2011. “Comecei e não me adaptei ao ambiente acabei trancando, mas agora voltei pagando porque perdi a bolsa”. Paga conforme consegue, mas pelas oficinas e workshops que realiza na universidade atraiu a atenção dos professores, que o chamaram para fazer um grafite nas paredes faculdade. Essa parceria seguirá. Segundo ele, ofereceram o programa de pós em troca dos seus trabalhos. Luísa boéssio André Martins