Enfoque Santa Marta 3

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ENFOQUE SANTA MARTA

SÃO LEOPOLDO / rs MAIO/JUNHO DE 2017

EDIÇÃO

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tuhana pinheiro

Terezinha, uma das muitas chefes, com as filhas Magda e Paola

AS CHEFES DO LAR CRIANÇAS EM BOAS MÃOS Creche informal é alternativa para os pais. Página 11

LUCIANA ABDUR

Lisandra Steffen

MAINARA TORCHETO

MULHERES sozinhas sustentam a casa e criam os filhos página 3

DESAFIOS DIÁRIOS

As dificuldades de quem não sabe ler nem escrever. Página 16

EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Professores incentivam a conscientização ecológica. Página 19


2. EDITORIAL

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Conquistada pelo esforço comunitário, a praça esportiva é o novo lugar de convívio e lazer dos jovens

Comunidade e família, forças da Santa Marta

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urante o processo de edição desse terceiro Enfoque Santa Marta, um tema em especial nos chamou a atenção: a família. Muitas das matérias a seguir se desenrolam em torno desse tópico. Isso reflete como a família, seja constituída por laços de sangue ou por um forte senso de comunidade, move os moradores e a vida da Vila.

Escolhemos destacar logo na capa uma casa chefiada por mulher porque, embora tenha deixado de ser situação atípica nas últimas décadas, não se tornou um desafio menos árduo. Seguindo a mesma lógica, os pais que assumem a criação das filhas também viraram história nas próximas páginas, por se tratar de uma situação ainda tão incomum em

quaisquer classes sociais. Também houve espaço para falar sobre a importância dos familiares na luta por prevenção do vício em drogas, assim como de quem ganha a vida tomando conta dos filhos dos vizinhos. Outro relato importante nessa edição é o de quem sofreu violência dentro do próprio lar, retrato do machismo que persiste em nossa cultura. LAURA PAVESSI

Segurança, desemprego, educação, assistência social, transporte, habitação, política – todos esses temas, abordados a seguir, são questões que preocupam os moradores e que os unem em um mesmo anseio por melhores condições de vida na comunidade que ajudam a construir a cada dia. Apresentamos, então, as 27 últimas histórias ouvidas

pelas ruas e casas da Santa Marta nesse semestre. São lições de vida, cidadania, força de vontade e, principalmente, de amor, que tocaram e transformaram muitos dos repórteres e fotógrafos envolvidos nessa edição. E que demonstram que a comunicação precisa estar em todos os lugares, para que nenhuma dessas vozes deixe de ser ouvida.

ANDRÉ CARDOSO

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Santa Marta é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Santa Marta, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, são publicadas três edições por semestre e distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo. Telefone: (51) 3591.1122, ramal 1329 / E-mail: posorio@unisinos.br

EDIÇÃO E REPORTAGEM Disciplina: Jornalismo Cidadão Orientação: Pedro Luiz S. Osório Edição de textos: Júlia Flores Leonardo Severo Lidiane Menezes Liege Barcelos Manoela Petry Mel Quincozes Milene Magnus Mirian Centeno Thamyres Thomazini Victor Dias Thiesen Victória Freire

Edição de fotos: Verônica Luize Rafael Erthal Reportagem: Alessandro Garcia Amanda Cunha Anderson Huber Bruna Henssler Carolina Schaefer Deivid Duarte Elisa Ponciano Fernanda Fauth Júlia Flores Laura Pavessi Leonardo Severo Lidiane Menezes Liege Barcelos

FOTOGRAFIA Luísa Boéssio Lurdinha Matos Manoela Petry Mel Quincozes Milene Magnus Mirian Centeno Natália Collor Rafael Erthal Thais Ramirez Thamyres Thomazini Verônica Luize Victor Dias Thiesen Victória Freire

Disciplina: Fotojornalismo Orientação: Flávio Dutra Fotos: André Cardoso André Martins Andrea Aquini Bruna Bertoldi Bruna Flach César Weiler Diego Mello Estephani Richter

ARTE Fernanda Ochoa Guilherme Santos Igor Mallmann Isabelle Wrasse João Rosa Júlia Maciel Lisandra Steffen Luana Rosales Luana Tavares Lucas Schardong Luciana Abdur Mainara Torcheto Mariana Dambrós Renan Neves Renata Oliveira Silva

Saskia Ebenriter Tainah Gil Thaís Lauck Tuhana Pinheiro Vinícius Emmanuelli

Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia Diagramação: Mariana Matté

IMPRESSÃO Realização: Gráfica UMA / Grupo RBS Tiragem: 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente dos Cursos de Bacharelados e Tecnológicos: Paula Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


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Família .3

Mulheres guerreiras Conheça a história de vida de mães responsáveis pelo sustento da família

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o Brasil, é cada vez maior o número de mulheres responsáveis pelo sustento dos lares e da família. Na Vila Santa Marta, não é diferente e as causas são as mais diversas. Algumas perderam o marido e outras estão divorciadas. O que todas têm em comum, é que são a principal fonte de renda familiar e é através do trabalho dessas mulheres que a casa e os filhos sobrevivem. Inês Casilda dos Santos Pinto, 30 anos é uma delas. Mãe de Fernanda Pinto Gomes, uma menina de sete anos, ela sustenta a casa e a filha com os cerca de R$ 500 que recebe trabalhando como doméstica. Na parte da manhã leva a filha junto, pois não tem com quem deixar e pagar por uma babá é impossível. No trabalho de Inês, a menina Fernanda assiste televisão, brinca e almoça. Na parte da tarde, frequenta a Escola Tancredo Neves, onde cursa o 1º ano do Ensino Fundamental. Separada do marido há cerca de cinco anos, Inês conta que não recebe nenhum auxílio do governo e busca na Justiça que o ex-marido ajude no sustento da criança. “Ele não paga pensão para a menina. Faz quatro anos que estou na justiça esperando que ele pague. Minha advogada já marcou várias vezes, mas ele nunca vai às a u d i ê n c i a s”, c o n t a . Moradora da Vila Santa Marta desde os quatro anos de idade, Inês foi casada por oito anos e, após a separação, ficou com a criança. O então marido saiu de casa e levou com ele todos os móveis, deixando -a apenas com um colchão. “Ele encostou um caminhão na frente de casa e carregou com tudo. O que tínhamos já era pouco e ele não deixou nada, até as roupas da menina ele levou. Foi os vizinhos que avisaram. Quase passei mal quando soube”, diz. Com a ajuda e doações dos vizinhos e amigos ela conseguiu se reerguer. O marido foi obrigado a vender a antiga casa e metade do dinheiro foi para Inês. Com esse valor ela reformou a atual casinha que divide com a filha. O imóvel está localizado na subida do morro, em uma área de difícil

pregos. Na divisão dos bens meu pai ficou com a maioria dos móveis e minha mãe precisou começar do zero”. Aos 43 anos e com os filhos já crescidos, Terezinha foi mãe, pela terceira vez, da garotinha Paola Daniela Rosa da Silva, hoje com seis anos, que é a caçula e o xodó da família. Quando eu soube que estava grávida da Paola, não foi um problema. Eu era apaixonada pelo pai dela e quando ela nasceu foi tão bom. Quando eu tive os outros eu era nova e a vida era difícil, agora as coisas já estavam melhores, não pagava mais aluguel, estava tudo calmo”, afirma. O pai de Paola morreu quando ela era ainda um bebê de seis meses de idade. Terezinha se emociona ao falar sobre o assunto e diz que saber que a filha não conhecerá o pai é o mais difícil. “Ela vê o meu sobrinho com o pai e fica meio triste. Ela sente falta do carinho paterno, aquele que toda criança precisa. Essa é a parte mais difícil, trabalhar e sustentar não é o problema. A dificuldade é não ter alguém junto, é ela não ter o pai ao lado”. Mas mesmo com todas as dificuldades que passou, Terezinha deu a volta por cima. Hoje ela sustenta a família com os ganhos de seu ateliê, além de empregar outras três mulheres no mesmo local. Lá elas fabricam forros para bolsas, além de complementar a renda com alguns trabalhos de costura. “O começo não foi fácil, mas hoje está tudo mais estabilizado e vivemos bem”, finaliza.

Inês sustenta sua pequena família, formada por ela e sua filha

Terezinha se emociona ao lembrar do falecido pai de sua filha

As famílias gerenciadas por mulheres

acesso. Quando chove o local fica escorregadio e chegar até a casa exige cuidado. Para Inês todas as dificuldades que ela e a filha enfrentam não são tão importantes. Sua maior preocupação é dar amor e carinho para a filha e, assim, de alguma forma, suprir o que ela não recebe do pai. E assim Inês vai sobrevivendo, fazendo tudo o que está ao seu alcance para manter o seu bem -estar e de sua filha.

MÃE AOS 40 Terezinha Fátima da Rosa, 50 anos, é mãe de três filhos - dois do primeiro casamento e a mais nova, de outro relacionamento. Terezinha mora com suas duas filhas de 23 e seis anos e ganha sua renda através do ateliê de costura que montou em uma peça de sua casa. Separada do primeiro marido quando os filhos ainda eram pequenos, ela trabalhava em dois empregos para manter a

casa e as crianças. “Foi uma época difícil os meninos eram pequenos e o pai não ajudava com pensão por não ter renda fixa. Mas eu conseguia cuidar deles e sustentar a casa”, conta. A filha de Terezinha, Magda Catiane de Castro, 23 anos, ainda lembra como era a vida logo após a separação dos pais. “Morávamos eu, minha mãe e meu irmão mais velho nessa casa, mas ela ainda era pequena e toda de madeira. A mãe trabalhava em dois em-

Conforme dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, cerca de 40% dos lares brasileiros pesquisados (57,3 milhões) são chefiados por mulheres. O número pode parecer baixo, mais se pensarmos entre os anos de 2004 a 2014, esse aumento foi de 67%. As causas da elevação nesses números são diversas, entre elas, o crescimento delas no mercado de trabalho. Lidiane Menezes Tuhana Pinheiro


4. FAMÍLIA

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Esses pais que são umas mães P

As filhas do Carlos Há quem diga que as filhas são muito mais ligadas aos seus pais do que as mães. A doutora em psicologia Fernanda Serralta, explica que a figura paterna tem uma importância enorme para filha mulher, não apenas na infância, mas até a idade adulta. “O pai é aquele que vem separar a filha da mãe, permitindo que ela se relacione com “o outro”, o diferente”, explica Fernanda. Na casa do Carlos Leonel Keller, 56 anos não é diferente. Pai de sete filhos, sendo seis meninas, a relação com elas sempre foi regada de cumplicidade, mas os vínculos se fortaleceram em 2012, quando a esposa Isabel Cristina dos Santos, à época com 45 anos, faltou. A perda da mulher, que também faleceu em decorrência de um câncer, colocou Carlos em uma posição com mais importância ainda na vida das gurias. E os desafios são muitos. “Foi um baque perder a Isabel, mas eu não tive muito tempo para me lamentar. Precisei reagir imediatamente pelo bem dos meus filhos”, relembra Carlos. Natural de Montenegro, Carlos conheceu a esposa em um baile, há 25 anos. Dessa união nasceram Samanta, 29 anos, Bruna, 26, Diogo, 21, Silvia, 19, Samira, 15, Bárbara, 12 e Carla, 9 anos que foi “a rapinha do tacho”. Dos sete filhos, as três menores ainda moram com o pai na casa alugada. Trabalhando de forma autônoma na construção civil, Carlos se vira para não deixar faltar nada às filhas. Além de todo o desafio e da carga emocional, fazer o papel de mãe, exige ainda a necessidade

de se aproximar e discutir questões relacionadas ao universo feminino. Para maioria dos pais, assuntos referentes à sexualidade de suas filhas são verdadeiros tabus, por isso ficam automaticamente sob responsabilidade da mãe. Nesse quesito Carlos afirma lidar com desenvoltura e não se omite. “Mesmo não sendo fácil para um pai, eu preciso instruí-las e orientá-las sobre as coisas da vida. Como a mãe não está aí eu me vejo obrigado a conversar sobre esses assuntos.” Samira Bianca Keller, a filha número quatro, admite que a mãe faz muita falta, que muitas vezes difícil seguir, porém a união delas e do pai tem sido fundamental para amenizar a dor da perda. Ela reconhece todos os esforços de Carlos em compensar da melhor forma possível o impacto da ausência da mãe.“Apesar das divergências e conflitos eu amo muito o meu pai. Ele é o meu super-herói”, afirma. Mesmo desempenhando o papel de mãe, oferecendo amor e carinho, e estando sempre à disposição para dialogar sobre os mais diversos assuntos, Carlos acredita que não irá (e nem quer) substituir a figura materna. “Mãe é única e insubstituível”, sentencia. Liege Barcelos Diego mello Luana Tavares

Carlos (acima) e Pedro superam os desafios diários de serem pais e mães simultaneamente

Diego Mello

edro e Carlos são vizinhos na Santa Marta, apesar disso nunca se encontraram pelas ruas do bairro. O primeiro mora no final da rua Dois, enquanto o outro reside nos fundos do número 76, na rua Um. Mesmo que a distância entre suas residências seja menos de um quilômetro, eles desconhecem a história um do outro. Ambos partilham de um acontecimento comum que mudou as suas rotinas de pais de família: viúvos, eles assumiram a responsabilidade de cuidar das filhas como as mães das meninas o fariam. Pedro Paulo dos Santos ou seu Pedro, como é conhecido, tem 63 anos e é pai e mãe em tempo integral de Maristela da Cruz dos Santos de 13 anos e de Carolina da Cruz dos Santos, 11 anos, há quase seis anos. Em 2011, após quatro anos de luta contra um câncer de mama, sua esposa Cleonice Maria da Cruz Padilha faleceu e a responsabilidade afetiva dele para com elas redobrou. “É um grande desafio que vai sendo superado dia a dia. Todos nós estamos aprendendo a reviver como família, após essa grande perda”, afirma Pedro. Na época em que a esposa faleceu, Mari e Carol tinham sete e seis anos respectivamente. Os vizinhos e os amigos foram fundamentais nesse período que sucedeu a perda da esposa. “De repente me deparei em uma situação que eu jamais imaginaria viver: viúvo e com duas meninas pequenas que tinham a mãe como principal referência. Achei que não suportaria”. Marinete Klein Kauff, vizinha da família, elogia o zelo e o cuidado que ele tem com as filhas. “O seu Pedro é um pai extremamente atencioso e não mede esforços para fazer tudo de melhor pelas crianças.” Sem emprego fixo desde 2008, ele é beneficiário do Programa Bolsa Família, mas os R$ 163,00 recebidos, não são nem de perto suficientes para manter as despesas essenciais de uma criança, o que dirá de duas. Uma hérnia retirou dele a possibilidade de fazer serviços pesados, o que o impossibilitou de “pegar biscates”. Benquisto na rua onde mora, ele é ajudado

pelos vizinhos. “Sobrevivo praticamente da doação dos amigos e conhecidos”, comenta. Pedro está aprendendo a conviver com os desafios e dificuldades que a ausência da figura materna causa na vida de todos. Aos poucos ele vai se habituando com as tarefas e atribuições que a nova condição o exige. “É como se eu estivesse renascendo. Vejo as situações cotidianas com outros olhos”. Zeloso, faz questão de ser o mais presente possível. Em épocas de comemoração pelo Dia das Mães, o carinho e os presentes são todos para o “pai Pedro”, que não perde nenhuma das apresentações na escola e faz questão de guardá-los como verdadeiras relíquias.

Luana tavares

Quis o destino que eles assumissem as responsabilidades paternas e maternas ao mesmo tempo


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SUPERAÇÃO .5

Mesmo com dificuldades, Núbia sempre ajudou outras pessoas

A limitação também constrói Pensar no próximo é tão importante quanto o cuidar de si mesmo

N

o dicionário, isquemia cerebral significa a “suspensão da circulação local do sangue”, uma condição que causa dano irreversível, podendo, em alguns casos, levar à morte cerebral. Dona Núbia Machado, ao longo dos seus 58 anos, conviveu com esse acidente. Com problemas para se locomover, falar e até para raciocinar, foi aprendendo a viver dentro de suas limitações. Afazeres comuns como ir ao mercado, cozinhar, varrer a casa e passear se tornaram tarefas complicadas na vida de dona Núbia. Mas engana-se quem pensa que este acontecimento definiu os caminhos da história desta senhora. Há 30 anos moradora da Santa Marta, encontrou na vila motivos para ser feliz. “Eu nasci com este problema, sempre me senti diferente, passei por muitos preconceitos. Mas foi aqui que me encontrei”, relata ela. O que para muitos seria motivo de desânimo e desculpas,

para ela foi o caminho da superação. Encontrou forças para seus afazeres diários. Buscou maneiras de se adaptar às diferenças, as quais a acompanhariam por onde fosse. Nisso, se descobriu como pessoa. A mãe de Núbia contava para ela, quando criança sobre os “mistérios da vida” e dizia serem esses os motivos da sua salvação. Em um dos sonhos que teve, a mãe de Núbia conversava com um anjo. Foi quando o anjo disse que salvaria sua filha. Para muitos, sonhos são apenas vibrações do inconsciente. Para outros, são interpretações e sinais de outros planos. “Deus foi muito bom comigo. Os planos Dele não foram só em imaginação, eram reais. Eu tive a chance de viver bem”, relata Núbia. Mesmo com seus problemas de locomoção, há quem pense que essa chance não tenha sido tão boa. Mas, para ela, isso nunca foi empecilho. Fez por ela. E ainda mais pelos outros. Quando menina, fazia trabalhos para a pastoral do bairro onde, à época, morava. Em uma de suas missões, conheceu a pequena Sabrina, de apenas nove

anos. Espera-se que os pais deem educação, alimento e amor aos filhos. Mas o pai de Sabrina não seguiu como o esperado, criando a filha para furtar. Casos como esses não são raros. As funções são muitas. Algumas crianças se perdem pelo caminho, são entregues ao Conselho Tutelar, outras têm a vida interrompida. Neste caso, Sabrina teve a sorte de cruzar com alguém especial, que a ensinou a ser diferente. A menina criada para roubar teve de aprender a ser “gente de bem”, como disse dona Núbia Machado. “Somos criados para ser uma coisa, mas apenas nós podemos escolher o nosso caminho, o nosso futuro. E eu a ensinei para ser diferente daquilo tudo. Para que ela não prejudicasse mais ninguém”. Sabrina acabou sofrendo de cleptomania, doença que leva a pessoa a cometer pequenos furtos. Núbia levou a menina para morar consigo. Deu o que se espera de uma família: carinho, educação e alimento. Para o corpo e para a alma. A colocou em uma escola. A fez ter amigos.

A ensinou a viver. “Uma vez a diretora da escola me chamou porque Sabrina tinha roubado uma caneta do colega. Falei que ela deveria deixar esses atos de lado. O psicólogo da escola explicou que pequenos furtos poderiam acontecer, já que os impulsos de um cleptomaníaco são involuntários. Contudo, se trabalhássemos isso, ela poderia melhorar”, conta.

Onde se encontrou Dos 30 anos como moradora da vila Santa Marta, 28 foram dedicados à comunidade. Foi catequista e ajudou na creche comunitária. Esteve sempre presente, de uma maneira ou outra, na construção e consolidação do bairro. Nunca se negou a ajudar o próximo. Outra pessoa que Núbia ajudou, foi a mãe de Elizete Lemes. Ela conta que é muito agradecida por toda a ajuda. “Dinheiro, abrigo e até comida a Núbia já deu para minha mãe. Sempre foi muito boa”, relata Lemes. Em meio a tantos problemas, preferiu ser incansável. Alguém que mesmo debilitada

faz mais do que alguém visto como normal. Palavra essa, com a qual, hoje, Núbia se identifica. Antes de se mudar para o local onde vive, não se sentia parte de lugar nenhum. Conviveu com a depressão. Chegando na Santa Marta, encontrou seu lugar. É ali que ela se reconhece como pessoa e como moradora. Foi no bairro que achou seu companheiro de vida, com quem já é casada há 10 anos. Neste lugar, encontrou uma vizinhança que a acolheu, a ajudou. Uma vila para chamar de sua. Se ela pudesse pedir algo para o seu amado bairro, seriam apenas duas pequenas coisas, que são direitos de todo cidadão, mas que pouquíssimos têm: segurança e pavimentação. “Ajudaria a minha vida e a de todos que aqui moram. Um pouquinho que fizerem por nós, um pouquinho que olharem para nós de bom grado, sem ver apenas os males da vila, já nos ajudaria a ter um lugar melhor para viver. ” JÚLIA FLORES Fernanda Ochoa


6. VIOLÊNCIA

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Superando o medo e recomeçando Terê e Doti venceram a violência​ doméstica, superaram a opressão de seus companheiros e se fortaleceram para começar uma nova vida

O temor de represálias muitas vezes esconde as agressões físicas e verbais

O

número de mulheres que sofrem violência doméstica na vila Santa Marta e nas demais localidades do município de São Leopoldo é constante em relação aos dados encontrados pelos órgãos competentes. Na vila Santa Marta, só duas moradoras resolveram buscar ajuda. Mesmo com medo, as donas de casas revelaram as agressões sofridas pelos companheiros e maridos. A Secretária Joseli Troiana, da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres (Sepom), da cidade de São Leopoldo, revela que o número de mulheres agredidas é maior que os números apresentados por sua equipe; Polícia Civil e Brigada Militar, pois muitas vítimas não prestam queixa. Questionadas por que não prestavam queixas ou atitudes em relação ao que estavam passando, as mulheres declararam-se envergonhadas, por sofrerem esse tipo de violência. Advogada e militante dos direitos da mulher, Joseli

ratifica que muito tem para ser feito. Por isso está lutando para que iniciem a construção da Delegacia da Mulher no município (Deam). A n a C l á u d i a Pi n h e i r o Oliveira é Coordenadora do Centro de Referência de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência, (Centro Jacobina), que faz parte da Sepom. Segundo a coordenadora, no ano de 2016 foram acolhidos mais de 170 casos no Centro Jacobina, fora os reincidentes. Só na região norte, que engloba Campina e Arroio da Manteiga, foram atendidos 40 casos. Mas somente dois casos na Vila Santa Marta. Os dados são da Rede de Enfrentamento (Ministério Público, Patrulha Maria da Penha, Guarda Municipal, Centro Jacobina, Hospital Centenário e Sepom), que realiza encontro mensais. Mulheres vítimas de violência podem recorrer aos Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Postos de Saúde, Polícia Civil, Polícia Militar. São Leopoldo também tem as Promotoras Legais Populares (PLPs), que ajudam as vítimas de agressão. Em São Leopoldo às mulheres vítimas de violência

são atendidas na Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento 1° (DPPA) ou Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento 2º (DPPA), esta última localizada na Zona Norte. Ana Claudia e Joseli destacam que as fases da agressão podem ser explicadas no chamado “Ciclo da Violência”. Conforme a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), violência verbal e psicológica contra mulher também é agressão (veja box). Na Santa Mar ta, a violência doméstica acontece sistematicamente, apesar de poucas mulheres fazerem o registro. Um exemplo disso é a Rosemari Pavão, 46 anos, mais conhecida como Doti. Ela é mãe de oito filhos e já sofreu vários tipos de violência que foram de tapas e socos a agressões com armas de fogo, facas e paus. O pesadelo na vida de Doti começa, a partir do momento que se obriga a sustentar a casa sozinha, e as dificuldades surgem. A única alternativa encontrada foi casar com o companheiro de 15 dias de relacionamento e colega de serviço da reciclagem. Doti lembra quando a situação chegou ao ponto a qual não tinha mais

o que fazer. A recicladora de resíduos levou tempo e coragem para levar o seu histórico de abusos para as autoridades, por medo de represálias do companheiro.

Superação Rose vivia num cerco fechado, sofria violências todos os dias, além de ameaças constantes do marido. Mesmo com ajuda dos vizinhos ela negava tudo à polícia quando acionada por medo do companheiro. Joseli afirma, que muitos casos não são descobertos por medo das vítimas de procurar ajuda com vergonha e medo do acontecido. Outra moradora que sofreu na pele a violência doméstica é a Ter,ê como é chamada pelos mais íntimos. Teresinha é separada, mãe de nove filhos, beneficiada pelo bolsa família e vencedora do câncer de colo de útero. Terê foi casada durante 20 anos, quando sofreu várias agressões físicas e psicológicas. “Apanhava quase diariamente por nada, ele me espancava muito. Já fui agredida até com facas”, afirma Terê. Nada disso deixou abalar essas mulheres vencedoras

e batalhadoras que deram a volta por cima e estão felizes com a nova vida junto das pessoas que amam. Teresinha emocionada declara a alegria de morar na Vila Santa Marta, ter seus pais por perto, e os filhos sendo a sua estrutura familiar.

As formas de violência contra a mulher l Violência física

(contato físico);

l Violência psicológica

(manipular, humilhar, ameaças e ridicularizar);

l Violência sexual (força a

ter relações sexuais sem proteção);

l Violência patrimonial

(destruição de documentos, furto do cartão bolsa família, por exemplo);

l

Violência moral (calúnia, difamada ou injuriada).

Mirian Centeno IGOR MALLMANN


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COMUNIDADE .7

Luta contra as drogas começa em casa Esforço para manter os filhos afastados dos entorpecentes inicia cedo

H

oje é difícil encontrar uma comunidade onde não haja consumo de drogas. Seja por adultos, jovens ou até crianças, o consumo é intenso e mantém um mercado movimentado no tráfico. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2015, divulgada pelo IBGE ano passado, 55,5% dos estudantes do 9º ano de escolas públicas e privadas de todo o país, a maioria entre 13 e 15 anos, já experimentaram bebidas alcóolicas. Já a taxa dos que usaram drogas ilícitas aumentou de 7,3%, em 2012, para 9%. E essa realidade preocupante tem feito pais perderem o sono na comunidade de Santa Marta. No local, segundo os moradores, as drogas circulam pelas ruas livremente e o acesso das crianças é muito fácil. Elizete Adriana Severo, 41 anos, dona de casa, e Alex Machado Alegre, 42 anos, soldador e mecânico, são pais de Isabella, de nove anos. Para eles, a droga é uma das maiores preocupações. “Ela estuda de tarde e fazia um

projeto social no contraturno, onde aprendeu artesanato, cultivo de horta e esporte. Hoje, não tem atividades fora da escola e isso faz muita falta, porque deixa mais tempo livre para experimentar outras coisas”, diz Elizete. Em casa, Isabella anda de bicicleta, faz crochê com a mãe, assiste a desenhos na TV e brinca na casinha feita especialmente para ela. Foi a mãe quem construiu, enquanto o pai trabalhava na obra da casa da família. “Eu ajudava a sentar tijolo, voltava e colocava mais uma parte da casinha dela. É mais uma coisa para ela se entreter e querer ficar em casa”, destaca Elizete. De acordo com Elizete, na rua, as crianças estão expostas a todo tipo de comportamento e ação, boas ruins, lícitas e ilícitas. “Tem pessoas muito boas no nosso bairro, mas na rua também tem muita gente ruim, mal-educada e sem juízo”, diz a mãe. Segundo ela,“graças a Deus”, os filhos têm a cabeça no lugar. Com quase 18 anos, o mais velho trabalha e não se deixa levar pelas más influências. Isabella ainda passa os dias brincando, mas já escuta dos pais e do irmão muitos conselhos so-

bre as coisas que pode encontrar na rua. Segundo a mãe, pelo acesso às drogas ser muito simples, histórias tristes de vizinhos e familiares não faltam. “Temos histórias bem próximas: minha tia perdeu meu primo para as drogas. Foi morto por causa disso e conversamos muito com os nossos filhos sobre isso. É um alerta para eles”, conta Elizete. Letiérre Senna, de 27 anos, é pai de Nícolas, de um ano, e padrasto de Kauã e Vitória, de nove e sete anos. Operador de escavadeira, ele se preocupa muito com a maneira como as crianças ocupam seu dia e com o fato de estarem vulneráveis. Eles vão para a escola e ficam em casa no restante do dia, brincando com o primo, Henrique, de seis anos.“Faltam projetos, atividades para que eles possam aprender algo e também se entreter”, reclama. Segundo o operador, na escola as crianças ouvem um pouco sobre a realidade da comunidade em relação às drogas e à violência. Mas o principal papel é da família, que nunca deixa de tocar nesses assuntos. “A gente sabe que não pode chegar perto de droga”, diz Kauã. “E que se alguém oferecer bala, não é para aceitar”, com-

Alex e Elizete (à esquerda) tentam alertar a filha Isabela sobre as drogas. Segundo Kauã, Henrique, Vitória e Nícolas, o assunto é abordado em casa e na escola. Para Catarina (abaixo), a luta da comunidade contra as drogas está perdida

pleta a pequena Vitória.

Fácil acesso Um jovem morador de Santa Marta, que nesta matéria será chamado de Paulo por não querer se identificar, convive com a droga desde o início da adolescência e lamenta que essa seja uma infeliz realidade de muitos jovens do local. Ele considera uma missão quase impossível reverter esse cenário. “Nasci e cresci aqui, e só vejo as coisas piorarem”, ressalta. Segundo Paulo, é só estalar os dedos que aparece alguém para fornecer todos os tipos de drogas. É muito difícil fazer com que as crianças não se envolvam, não fiquem curiosas, porque em toda esquina seus amigos, desde muito novos, estão envolvidos. “Na pracinha (próximo à quadra esportiva), não é mais lugar de criança brincar. É lugar de usar drogas e isso é triste. Eles perdem a infância para se envolver com isso tudo”, diz. Mesmo tendo começado cedo nas drogas, Paulo afirma que teve uma infância bem boa, com muitos brinquedos e brincadeiras. Ele lembra de soltar pipa, jogar taco com os amigos e brincar na rua até o início da adolescência. Hoje,

as crianças mal começam a brincar e já esquecem que são crianças. “Com 10, 11 anos, já se reúnem para beber e fumar”, relata. E essa prática deixou de ser, ou de pelo menos parecer, ilegal. Paulo lembra que quando começou a se drogar precisava se esconder nas áreas mais isoladas e escuras da vila, para que ninguém o visse. Caso algum vizinho percebesse, chamava a polícia, que aparecia rápido e resolvia o problema. Segundo ele, hoje a Polícia chega a passar na frente de crianças se drogando e não faz nada. “Não fazem, porque aqui é legalizado. No resto do Brasil pode não ser, mas em Santa Marta é”, ironiza. De acordo com Catarina Rodrigues, de 64 anos, o consumo de drogas na Vila chegou a tal ponto, que já é impossível mudar. “A cada esquina tem alguém usando e não só maconha, é muito mais”, diz. Além disso, o uso de drogas já está diretamente ligado à violência, o que torna a transformação ainda mais difícil.“Porque tu não me paga, eu vou lá e te mato. Daí vem alguém e me cobra, eu não tenho e sou morto. E assim vai”, exemplifica. Manoela Petry Renata de Oliveira


8. PODER PÚBLICO

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Precisamos falar de segurança

Victor Thiesen André Cardoso

Homicídio doloso

Furtos

Furto de veículo

Roubos

Roubo de veículo

Estelionato

Delitos relacionados à armas e munições Posse de entorpecentes

Tráfico de entorpecentes Praças muitas vezes se transformam em pontos violentos

2014 2015 2016 FONTE: SSPRS

3500

O crime em São Leopoldo 3000

Segundo o relatório estatístico de indicadores criminais da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSPRS), os furtos foram os crimes mais praticados na cidade de São Leopoldo, nos últimos três anos (ver gráfico). Apesar do decréscimo de 208 de 2014 a 2016, o ano passado ainda marcou 3030 registros. Mesmo com a queda nos indicadores a insegurança dos moradores se justifica. Ano passado houve a média de quase nove assaltos por dia. Ao todo foram 2274 roubos, queda em relação a 2015, mas ainda acima dos 1802 em 2014. Na Vila Santa Marta, os moradores contam que durante o dia se sentem mais seguros do que a noite. Otávio (o nome da fonte foi trocado para preservar sua identidade), 27 anos, morador da Vila, menciona a vez em que o assaltaram próximo à nova quadra poliesportiva. “Entrou o sol, já era!”, afirma ele. Alguns desses indicadores apontam para diminuição leve da criminalidade em São Leopoldo. Talvez Santa Marta já sinta esse reflexo. Houve uma redução de crimes nas praças. Tais pontos muitas vezes acabam se tornando locais para ociosos, tráfico “e até mortes”, como conta Pedro (o nome da fonte foi trocado para preservar sua identidade), morador das proximidades de uma pracinha. Para esse residente, a entrada da Vila está sendo mais vigiada

No Brasil, a segurança pública está sob responsabilidade de quatro órgãos policiais: Civil, Militar, Federal e Rodoviária Federal. Eles mantêm a ordem pública e a segurança das pessoas e do patrimônio conforme consta no art. 144 da Constituição brasileira de 1988. Apesar de existirem quatro órgãos, quem mora na Vila está mais acostumado com os dois primeiros,

2500

A

Índice criminal

Força policial

a Polícia Civil e a Militar. Polícia Civil e Militar são instituições Estaduais. De maneira geral, a Polícia Militar é o órgão em função da prevenção de crimes. Essa atuação é chamada de vigilância ostensiva. No caso da Polícia Civil, as atribuições são de investigação criminal, de atendimento à população, de expedição de documentos, etc. A boa relação entre as polícias garante melhor segurança ao município.

2000

São Leopoldo promove ações contra o crime. Câmeras de segurança espalhadas pelos bairros e concentradas no centro, fornecem diariamente gravações que auxiliam a vigilância dos espaços públicos. As imagens registradas também são utilizadas diariamente pela Polícia Civil em suas investigações. Dentro do plano de segurança do município, a cidadania ganha espaço central. “Retomamos desde o início de 2017 a remontagem de uma equipe de prevenção com assistentes sociais e psicólogos”, diz o secretário Sant’Ana. Ele compreende que para isso acontecer é necessário dialogar com as demais secretarias envolvidas com o tema. Por exemplo, a Secretaria da Educação. Nela são desenvolvidos projetos de prevenção social à violência e indicadas as diretrizes da segurança. Além disso, identifica as situações de vulnerabilidade criminal. Grande parte desses projetos é desenvolvida com jovens em idade escolar. Na Prefeitura a segurança também é debatida no Gabinete de Gestão Integrada (GGI). O GGI é integrado pelo comando dos órgãos de segurança e representantes das associações de moradores. Nele, as associações indicam para os oficiais de segurança pública os problemas de sua comunidade. Por isso é importante que os moradores da Santa Marta compareçam às reuniões da Associação de Moradores da comunidade

pela Brigada Militar, e a violência parece ter diminuído.

1500

pesar de algumas estatísticas criminais de São Leopoldo diminuírem, segurança pública é uma demanda permanente. É necessário que os moradores discutam o que é ser cidadão e se manifestem pela causa da segurança. Policiamento ostensivo e investigação criminal nem sempre dão conta de todo o problema. Ainda mais quando as condições de trabalho são afetadas pelos baixos salários e pelo pequeno contingente policial. Nesse contexto, cabe também aos outros setores da sociedade enfrentar sua violência com ações que valorizem a dignidade do cidadão. Uma pessoa que não tem visibilidade social está mais vulnerável ao apelo do crime organizado, segundo Carlos Sant’Ana, secretário da Segurança e Defesa Comunitária de São Leopoldo (Sesdec). De acordo com ele, “do outro lado nós temos o tráfico, a criminalidade organizada de uma maneira geral, que vai acolher essa pessoa. Vai empoderá-la com a arma, vai empoderá-la com dinheiro, vai seduzi-la com essa ideia de pertencimento”. Para o mestre em sociologia Francisco Amorim, ações que visam à cidadania devem priorizar a retomada dos espaços públicos e estratégias de inclusão social. É papel do poder público proporcionar meios para que todos os cidadãos realizem suas aspirações. Por outro lado, segundo Amorim, a comunidade

A cidade age

para discutir as demandas da Vila. As reuniões acontecem na última quinta-feira do mês, às 19h30 na sede da Associação, Rua Um, número 21.

1000

tem o papel de protagonista e precisa se mobilizar para ter espaço em toda a cidade.

500

Para especialista e representantes da segurança pública, ‘cidadania’ é a palavra-chave


ENFOQUE SANTA MARTA | SÃO LEOPOLDO (RS) | MAIO/JUNHO DE 2017 |

Política .9

Cenário político divide opiniões Moradores avaliam melhorias da Vila, apontam falhas e dão opinião sobre a política brasileira

M

oradores da Santa Marta mantem-se de olho na política, acompanham o mais de per to possível seus candidatos e suas promessas. E é nos três poderes que se cuida desse assunto, pois como disse Verônica Ribeiro de Souza, manicure do bairro “os problemas que temos no município são gerados por conta da má administração dos outros, se falha lá em cima não dá para conser tar embaixo”. Para a manicure Verônica Ribeiro, de 33 anos, a nova g e s t ã o m u n i c i p a l t ro u xe melhorias para o bairro em questões de estrutura. Mas, segundo ela, “ainda tem muito que ser feito para quem trabalha e mora aqui. O bairro precisa ser regularizado, aqui onde tenho o negócio não pude registrar por que é área verde. Mas mesmo assim foi construído nessa área. Nós precisamos trabalhar, mas não podemos registrar por que o bairro está irregular. “Ela considera que “política é um assunto que rende, e que deveríamos conversar diariamente. Devíamos prestar atenção em quem votamos e votaremos, muitas vezes os problemas que temos é por falta de fiscalização.” J á p a r a N u b i a R e gi n a Machado, aposentada, diz que o problema geral, em qualquer dos três poderes é a má administração do dinheiro. Temos impostos, e ao invés de investir no que importa que é educação, saúde e segurança. Ela faz outro questionamento: “Tudo que vemos são os governantes falando de falta de dinheiro, mas nós pagamos muitos impostos, como não tem dinheiro? ”

Divergência nas opiniões Roman dos Santos, 40, vendedor de móveis diz que no bairro tem ruas que não existem, mas tem nos mapas da cidade. Não tem saúde, não tem estrutura e o que tem é precário. Ainda tem

Adélia da Silva sente-se incomodada com a situação do governo e apresenta possíveis soluções

Salésio Texeira mostra-se satisfeito com o atual governo municipal e com as mudanças apresentadas no bairro

os problemas causados pelas invasões, que deveriam ser resolvidos”, Ele conclui dizendo que o governo do prefeito Vanazzi por enquanto não mostrou resultados, mas ele tem esperança que alguma mudança ocorra. Para ele no Rio Grande do Sul, uma solução seria “focar na educação, principalmente na situação dos parcelamentos dos funcionários, se um professor não consegue pagar suas contas, ele não tem disposição para dar aula, e assim a educação não é de qualidade. Dizem que o estado não tem dinheiro, mas nós pagamos os impostos da forma certa. ” A nível federal, para ele o único problema é a corrupção e os escândalos. Dona Adélia da Silva, 55 anos, funcionária de serviços gerais da Cooperesiduos – Cooperativa de Reciclagem do bairro – conta que “para o bairro, a atual gestão ainda não fez nada, o posto não tem estrutura. A marcação de consultas não funciona ou falta horário. Falta muito recurso na saúde. Falta estrutura, rua, asfalto e principalmente segurança”. Complementa sua avaliação acrescentando: que ela acredita como cidadã, Verônica Ribeiro que já que se tem e Núbia Machado 2 0 0 p o l i c i a i s, p o r discutem política, pois exemplo, não adianpara ambas, esse é um assunto necessário ta deixar todos num mesmo ponto. Devee rotineiro ria colocar cinco num ponto. Cinco num outro e assim espalhar os 200. Pelo menos seria possível cobrir uma área maior”. Portanto ela conclui que o problema geral do governo, é má administração e diz que “é igual a uma casa. Se você tem tanto de dinheiro, você vai comprar o necessário e o que não pode parcelar em primeiro, e depois o que se parcela. E assim tu paga tudo e consegue dar conta. Acredito que no governo deveria ser igual.” Entretanto Salésio Vicente Texeira, 48 anos, metalúrgico acredita que “o governo municipal está bom. Temos asfalto, temos saneamento, temos muita coisa para um bairro que não tinha nada.” Verônica Luize Bruna Flach


10. DESEMPREGO

| ENFOQUE SANTA MARTA | SÃO LEOPOLDO (RS) | MAIO/JUNHO DE 2017

Jovens trocam os livros pela procura de trabalho A juventude da Vila quer estudar e ter carteira assinada. Mas os empregos estão escassos e a vida está difícil

A

necessidade de ingressar no mercado de trabalho faz com que muitos jovens abandonem os estudos. O desemprego é crescente no Brasil e aumenta a competitividade por emprego, colocando mais obstáculos na busca por um serviço. A juventude da Santa Marta não é exceção, vários desses moradores optaram por interromper os estudos para contribuir na renda familiar. Leomar Silveira tem 23 anos e nunca assinou sua carteira de trabalho, sempre trabalhou informalmente com pavimentação. O jovem que parou de estudar no 6° ano, para ajudar nas contas de casa, está desempregado. No momento faz bicos como servente para sustentar a família. Quando as contas apertam pede ajuda para a mãe, Roseli Silveira, 45 anos, com quem divide o terreno onde mora. O artilheiro do time de futebol

da Santa Marta relata que está muito difícil achar emprego. Largou currículos pela vila, procurou no SINE e até agora nenhuma resposta. Segundo ele essa situação não é rara. “Maioria das pessoas que eu conheço está desempregada. Procurando um bico para conseguir sustentar os filhos”. A mãe Roseli alimenta os seis filhos com o trabalho na Cooperativa de reciclagem do Santa Marta. Com os três filhos mais velhos desempregados conta que reduziu os gastos dentro de casa. “Hoje em dia está tudo muito caro, mas o que importa é não passar fome”. Mãe e filho concordam que a falta de emprego se deve a atual crise econômica, segundo ela o desempenho do governo federal vai mal.“Lula e Dilma era ruim, mas depois que saiu piorou”. A história de Leomar se repete em muitas casas da vila, talvez seja algo recorrente em vários lares dos bairros mais humildes. Muitos responsabilizam a crise financeira, governos passados, atuais e futuros. Mas o que parece ser regra para esses jovens, é que quando a necessidade de sobreviver bate a porta, os estudos ficam em se-

gundo plano. E a falta de escolaridade afeta na hora de concorrer ao mercado de trabalho. Carteira de trabalho assinada é luxo que muitos não podem se dar. Aos 16 anos William da Silva, também largou os estudos, no 1° ano do Ensino Médio, para trabalhar. O primeiro emprego foi na famosa lancheira McDonald’s. Trabalhou também como servente de obra, mas ficou desempregado após a firmar quebrar. Depois de quatro meses sem emprego, conseguiu alguns bicos como pintor com o pai. Para William a situação do mercado de trabalho não está fácil. “Difícil achar emprego, não está barbada”. Hoje com 20 anos, jovem quer voltar a estudar ainda esse ano para completar o sonho de ser Engenheiro Civil. Kellypher Souza, 17 anos, está no 2° ano do Ensino Médio e à procura de um emprego para sustentar o filho de dois anos e ajudar nas contas de casa. Mesmo sendo mãe tão jovem ela não pensa em parar de estudar. Quer estagiar no Senai com o programa Menor Aprendiz, e no futuro pretende cursa faculdade de direito. A adolescente mora com o ir-

Leomar e Juliana estão desempregados. Ambos interromperam os estudos no ensino fundamental e nunca tiveram a carteira de trabalha assinada. Agora estão buscando um emprego formal

mão e a mãe, Sonia de Souza, 35 anos, que trabalha na cooperativa de reciclagem. Sonia é uma exceção, começou a trabalhar aos 13 anos, e mesmo com dois empregos conseguiu concluir o Ensino Médio. Ela afirma que a realidade está muito dura, principalmente com os reflexos da atual gestão de Temer. “Atual governo piorou 100%. Cadê a verba, onde foi parar nosso dinheiro? ”. Ainda segundo Sônia a crise teve graves reflexos dentro de casa, muitos gastos foram cortados. “Tivemos que reduzir tudo. Ficamos apenas com o básico, feijão e arroz”. Para as mulheres a maternidade, que tantas vezes chega antes do diploma, atrapalha a finalização dos estudos. A grande responsabilidade de cuidar dessa nova vida dificulta na hora de procurar um emprego ou até de mantê-lo. É uma dupla função, trabalhar e ser mãe. É o caso de Raquel Gonçalves, 21 anos, que estudou até o 1° ano do Ensino Médio. Antes trabalhava como Agente de Trânsito, mas pediu para sair após descobrir que estava grávida. Mora com os sogros e o marido que sustenta

a família como metalúrgico. Raquel tem curso de administração e quer terminar os estudos cursando o Educação para Jovens e Adultos - EJA. Pretende procurar trabalho como secretária, mas esse plano será adiado por mais algum tempo. Agora quer se dedicar a criação de sua filha Melissa, de 11 meses, até que ela complete idade suficiente para entrar na educação infantil. Juliana de Oliveira, tem 20 anos. Estudou até o Fundamental, parou após casar e engravidar. Nunca trabalhou antes, mas agora quer assinar sua carteira pela primeira vez. O marido Roger é autônomo, vendedor de abacaxi. Segundo ela, a família se sustenta como pode. “Dá para viver, pagar as contas e comer”. Juliana queria voltar a estudar ainda este ano, mas até agora não conseguiu vaga no EJA. Na procura por emprego, largou currículos em diversos lugares. Mas tem dificuldade em sair a procura de trabalho porque sua filha, a pequena Luiza de dois anos, precisa de alguém que a cuide. Luísa Boéssio André Martins


ENFOQUE SANTA MARTA | SÃO LEOPOLDO (RS) | MAIO/JUNHO DE 2017 |

EMPREENDEDORISMO .11

Cuidados com as crianças A falta de creches e escolas infantis para atender a população da vila abre espaço para as cuidadoras locais

A

vila Santa Marta possui apenas uma creche municipal. O espaço é pequeno e não consegue atender toda a população. Muitas famílias não conseguem vagas no local e precisam buscar alternativas para cuidar dos filhos no dia a dia. Essa carência de atendimento abre a oportunidade para uma prestação de serviço na região: as “cuidadoras de criança”. Além da falta de um serviço público para a população, o alto custo de uma escola infantil particular colabora para o surgimento das cuidadoras de crianças. Essa dificuldade, aliada ao senso natural de confiança nos vizinhos, por serem pessoas conhecidas, fomenta a prestação do serviço. Conhecemos duas cuidadoras de crianças que trabalham na vila.

Planejamento S andra Vargas tem 37 anos e há um ano cuida de crianças. Trabalhou cerca de três anos em uma escolinha

infantil, como merendeira, e quando ficou desempregada decidiu cuidar de crianças para garantir uma renda. No antigo emprego aprendeu as metodologias necessárias para trabalhar com qualidade, preocupando-se com alimentação, a higiene e o entretenimento. Com a ajuda do marido, a cuidadora construiu um cercadinho de madeira, espaço reservado para os pequenos brincarem. Sandra pretende regularizar a atividade se registrando como Micro Empreendedora Individual. Para a cuidadora, a iniciativa traz mais segurança para quem deseja contratar os seus serviços. “É bom ter uma empresa regular para as pessoas confiarem, né? Hoje eu cuido de crianças porque um indicou pro outro e por aí vai” ressaltou. Atualmente cuida de três crianças, dois bebês com pouco mais de um ano e um menino de seis anos, com a possibilidade de receber mais duas nos próximos meses. Além das crianças que atende, ela tem uma filha de nove anos, a Carol. A menina, sorridente e saltitante, gosta muito dos bebês e chega a considerá-los como irmãos.

Futura pedagoga C a m i l a Va r g a s , d e 1 9 anos, cursou Magistério. Há cinco anos trabalha em escolinhas de educação infantil e desde o início de 2017 passou a cuidar de crianças em casa. No lar ela cuida de duas crianças, uma de sete meses e uma de pouco mais de dois anos. Decidida a continuar a profissionalização ingressando na graduação de Pedagogia, Camila estuda para fazer as provas do Exame Nacional do Ensino Médio(Enem). Devido ao alto custo para pagar uma universidade a jovem realizará a prova para tentar conquistar uma bolsa de estudos. A jovem também ajuda o marido a cuidar do temp l o o n d e e l e é m i n i s t ro. “Eu ajudo a limpar a igre ja e com os estudos ‘tava’ difícil trabalhar fora, então decidimos que eu ia ficar em casa, daí surgiram as crianças para eu cuidar”. A jovem aponta a falta de recursos da população local como um impulso para a profissão. “Eu já trabalhei em escolinha e é caro manter um filho lá” finaliza.

Sandra (acima), sempre acompanhada da filha, pretende criar uma microempresa. Camila atualmente cuida de duas crianças e sonha em cursar Pedagogia para se profissionalizar

Lurdinha Matos Lisandra Steffen

Venda de pinhão e lenha aquece os moradores O tempo frio já está batendo na porta e o inverno está chegando. Nada melhor do que se aquecer em volta de um fogão a lenha e comer aquele pinhão recém tirado da panela ou da chapa. O pinhão é uma semente vinda da pinha, que nasce da árvore chamada de Araucária, popularmente conhecida como pinheiro. Tendo como época de colheita o outono e o inverno e é muito comum nas casas dos gaúchos. Além de consumido puro, pode ser incluído em diversas receitas. Na Ferragem Vende Bem, o comércio de pinhão atrai os moradores da Vila Santa Marta. O produto está à venda há menos de um mês. A funcionária, Cleoni dos Santos, conta do sucesso do alimento,.“Meu sobrinho que me deu a idéia e falei para o dono da loja. Experimentamos à venda e deu certo, a primeira remessa

compramos em São Francisco de Paula e a segunda em Bom Jesus, hoje à noite mesmo estamos indo buscar mais lá.” O dono do negócio Vanderlei Caldeirini, que possui outro comércio, na Santa Augusta, há 20 anos, decidiu abrir uma filial na entrada da vila Santa Marta.“Aqui é a entrada e saída, todo mundo passa por aqui, pretendo ampliar a loja, pois na matriz o movimento caiu com o tempo, aqui está rendendo mais”. Quem compra o pinhão sempre volta, conta Cleoni “Um dia vendemos 120 kg e já foram quase 2.000 kg em menos de um mês.”Entre uma conversa e outra apareceu seu José da Cunha, que foi incumbido da missão de comprar pinhão,“A tia veia achou bonito e me mandou vir aqui comprar,” conta o senhor. O preço é de cinco reais o kg e é vendido em sacos, expostos

logo na entrada do negócio. Outro produto que vende bem é a lenha para fogão, que por ser um atrativo da época.Por isso a Ferragem resolveu comercializar também esse produto. As madeiras podem ser utilizadas para

o aquecimento do fogão a lenha, servindo assim para acalorar a casa. A vizinha do local, Letícia Torres Wenschefelder, diz que sempre compra as madeiras e o pinhão na loja. “Gosto bastante de comprar, pois aquece a casa e a alma, tenho

um fogão pequeno, comprei o cano, a lenha, só não comprei o fósforo”brinca. Dona Marizete Torres, mãe de Letícia é moradora de Tramandaí, mas sempre quando vem visitar a filha leva sacos de pinhão e lenha para o litoral. O proprietário do comércio compra a lenha de escora, corta e ensaca e vende a seis reais o kg. Moradora de outro bairro, Janete Silva Castro, Comércio voltava do supermerdo produto cado, quando passou gera renda neste de carro e viu que os período do ano preços estavam baratos e decidiu parar para comprar. “Primeira vez que venho aqui na loja, pinhão é bom e precisava de tocos, troquei meu fogão a lenha ano passado, pois já estava velho”, comenta. Thais Ramirez Guilherme Santos


12. PREVIDÊNCIA

| ENFOQUE SANTA MARTA | SÃO LEOPOLDO (RS) | MAIO/JUNHO DE 2017

Aposentados e pensionistas enfrentam dificuldades Valor das pensões não cobre despesas e faz com que a procura por empréstimos aumente

D

epois de anos de trabalho, ou por não terem mais condições de exercer uma profissão, chega o momento dos trabalhadores se aposentarem ou recorrerem ao auxílio doença concedido pelo governo. Quando finalmente conseguem a aposentadoria, ou auxílio, o valor recebido, na maioria dos casos, é a única forma de sustento desses trabalhadores. Mesmo com essa fonte de renda, muitos passam por dificuldades financeiras, o que faz com que a procura por empréstimos aumente entre esse público. O processo de solicitação de aposentadorias, pensões e auxílios doença é desgastante e preocupa os trabalhadores e quem precisa do valor para se manter. O tempo de espera para concluir o processo, além das inúmeras perícias necessárias, no caso do auxílio doença, são as maiores reclamações dos beneficiários. Além da burocracia no processo, um fator recente é temido pelos trabalhadores.

Quando o orçamento fica apertado, Júlio acaba renovando os empréstimos

Para cobrir os custos com medicamentos, que muitas vezes não conseguem por meio do governo, e outras despesas, os beneficiários precisam buscar outras fontes de renda. Os que não conseguem fazer “bicos”, mesmo aposentados, recorrem a empréstimos. É comum bancos e concessionárias de crédito oferecerem empréstimos em condições especiais para aposentados e pensionistas. O valor recebido é destinado para cobrir despesas acumuladas ou contas que o valor mensal do benefício não cobre. É o caso de Maria Cristina Moreira Leite, 51 anos, que trabalhava em um frigorífico. Hoje ela encontra-se afastada do trabalho e recebendo auxílio doença devido a problemas nos braços e na coluna. No caso de Maria, foi preciso passar por cinco perí-

cias e contratar um advogado particular para conseguir o auxílio doença. Ela relata já ter feito alguns empréstimos para pagar contas acumuladas como a de água e luz, para não suspenderem o abastecimento. Vivendo com a filha e a neta, o valor recebido pelo benefício nem sempre cobre as contas da casa, mesmo com a filha contribuindo financeiramente. Caso semelhante ocorreu coma aposentada e pensionista Onelna Pereira Michel, 69 anos: ela também utilizou o dinheiro de empréstimos para cobrir as despesas. Já o exminerador aposentado Júlio Bibiano dos Santos, 75 anos, comenta que os empréstimos serviram para complementar a renda e adquirir bens. O valor recebido pelo aposentado, um equivalente a cerca de nove salários mínimos na época em que se aposentou, foi diminuindo ao longo do tempo. Muitos dos aposentados ainda precisam da ajuda financeira dos filhos, parentes e até mesmo de desconhecidos para se manterem. A situação se agrava para quem ainda não recebe o benefício. É o caso do morador Mário Batista dos Santos, 64 anos, que tenta se aposentar

por invalidez há um ano. Mário tem hérnia de disco e não pode mais exercer a função de ajudante de pedreiro. Mesmo com o problema de saúde, já realizou 15 perícias e mesmo assim, ainda não conseguiu o benefício. Para ele o benefício ajudaria a se manter. Sem filhos por perto e não podendo mais trabalhar, atualmente mora de favor em um cômodo na casa da aposentada Iolanda Zanini Batista, 62 anos. O quartinho, no quintal da casa da conhecida, é bem organizado e com dificuldade foi construído por ele. Apesar de não ter nenhum grau de parentesco, Iolanda disponibilizou um espaço em seu pátio para que Mário construísse um cômodo para ele, pois o morador não tinha onde ficar. O gesto da moradora é de quem entende bem as dificuldades enfrentadas por ele. Iolanda é aposentada por invalidez e recebe o benefício há quatro anos. Para conseguir se aposentar precisou contratar um advogado para ajudar no processo. Para Iolanda, o processo até conseguir o benefício foi curto, cerca de dois meses. No entanto, as inúmeras perícias que precisou fazer antes foram a parte mais difícil. A

Mesmo dividindo as despesas com a filha, Maria Cristina admite que o benefício do auxílio doença não é suficiente

Onelna recebe aposentadoria e pensão, mas já precisou recorrer a empréstimos consignados

Sem fonte de renda, Mário mora em um cômodo cedido por uma conhecida do bairro

São as mudanças nas regras previdenciárias que tramita no Congresso Nacional. Se já é difícil conseguir o direito atualmente, muitos temem que os filhos e netos tenham ainda mais dificuldades com a reforma da Previdência.

benefício RECEBIDO não é suficiente

aposentada sofre com diversos problemas de saúde, usa marca-passo e atualmente sofre devido a complicações de uma cirurgia mal sucedida que realizou na bexiga. Ela relata que em alguns meses falta dinheiro até para comprar os remédios necessários. Apesar das dificuldades ela é solidária com a situação do amigo Mário. “Nós nos ajudamos, cedi o cômodo para ele ficar senão ele não tinha para onde ir ”. Segundo pesquisa da Instituição Innovare Pesquisas, sete em cada dez aposentados têm sua renda mensal garantida pela previdência social. O que se observa nas histórias dos aposentados e beneficiários que vivem na Santa Marta é que o valor dos benefícios recebidos não cobre todas as despesas. A situação se agrava quando precisam recorrer a empréstimos, que descontam boa parte do valor mensal recebido. Para sobreviver é preciso administrar o pouco que possuem, ou depender da ajuda de terceiros. Mesmo assim, eles reconhecem que sem o benefício a situação estaria bem pior. Elisa Ponciano Luana Rosales

Com diversos problemas de saúde, Iolanda se vira como pode para comprar os medicamentos que utiliza


ENFOQUE SANTA MARTA | SÃO LEOPOLDO (RS) | MAIO/JUNHO DE 2017 |

TERCEIRA IDADE .13

Falta amparo para enfrentar a velhice Idosos da Santa Marta não são incentivados para atividades de distração e lazer

C

om a chuva caindo, poucas casas abrem a s p o r t a s. As q u e abrem têm pessoas sentadas à frente para, provavelmente, logo realizarem seus compromissos. As atividades observadas ficaram entre compras no mercado, faxina, preparo do almoço, ir à igreja. Apenas algumas pessoas não planejaram nada para este sábado: os idosos. O baralho, a roda de chimarrão, o jogo de bocha, vão sumindo aos poucos da rotina da terceira idade. O tempo livre é, agora, mais livre do que nunca.

Passatempo Aposentada, Ledoina Fernandes, 70 anos, encontrou no grupo de idosos da vila Campestre, bairro vizinho a Santa Marta, uma distração. Depois de trabalhar 12 anos como cuidadora de idosos, Ledoina juntou-se a eles para ocupar o tempo livre. “Faz uns seis anos que participamos (ela e o marido) do grupo de idosos, agora resolveram nos colocar como diretores do grupo”, conta. Moradora da Santa Marta há 24 anos, a aposentada divide com o marido a casinha verde nos fundos de um terreno na rua 11. A casa é repleta de silêncio e tranquilidade, que pode ser resultado da falta de oportunidades de lazer e atividades para a terceira idade na comunidade. Nas mais de duas décadas de vivência na vila, a aposentada diz conhecer e ter amizade com muitos idosos. Entretanto, a união entre eles parece estar longe de funcionar. “Já pediram para eu passar de casa em casa anotando os nomes das pessoas mais velhas para estrear um grupo de idosos, mas eu não vejo vontade por parte deles”, relata. No grupo da vila vizinha, a união parece estar perdendo a força, já que a presença dos integrantes vai diminuindo aos poucos. “Muitos já morreram, outros estão acamados. É difícil dizer um número certo de pessoas, mas fica em torno de 18, 20 pessoas nas reu-

niões”, conta Ledoina. Também aposentado, o marido de Ledoina, Danilo Pommering, 57 anos, começou a frequentar os encontros após um convite para tocar gaita nas festas do grupo. “Aprendi a tocar aos oito anos, enquanto ainda não tinha começado a ter crises de ataque epilético”, conta. Depois de enfrentar uma depressão profunda e diversas internações psiquiátricas, por volta dos 40 anos, Pommering recebeu a recomendação, como ajuda no tratamento da saúde mental, de realizar atividades e incluir ocupações na rotina. “Ah, pelo menos eu saio de casa um pouco, né?”, declara.

Sem estrutura Lentamente, Ivone Gomes Vieira, 70 anos, moradora da Santa Marta há 11 anos, chega ao portão. Com problemas severos nas pernas e muitas dores, quase nunca faz esse trajeto. “Dificilmente saio de casa. Não vou nem ao mercado! Não consigo caminhar nas ruas porque são irregulares, tenho medo de me machucar”, conta. Pouco se vê de incentivo, na Santa Marta, a atividades para os moradores, tampouco para os idosos, contudo, a falta de estrutura é, com certeza, um dos empecilhos enfrentados por eles. Talvez a tranquilidade da comunidade ou a vizinhança adorada por Ivone seja motivo para que ela, mesmo não executando funções simples, não queira ir embora da Santa Marta. “Eu adoro morar aqui, a vizinhança é muito legal. Não me imagino em outro lugar”, afirma. Aposentada, a antes doméstica oferece seu tempo aos filhos, hoje também moradores da vila. “Antigamente eu ia na igreja, mas agora o que eu faço para me distrair é tudo dentro de casa: crochê, costuras, assistir TV”, conta.

Sem lazer Poucos metros abaixo da casa de dona Ivone, seu Zé trata das galinhas e brinca com os vizinhos. “Isso tudo dá dinheiro, vizinho? Senão, nem quero”, brinca, enquanto chega ao portão. Morador da Santa Marta há 18 anos, José

Rodrigues da Silva (o seu Zé), 65 anos, não lembra a última vez que jogou um carteado. “Ih, faz tempo! Nos reuníamos aqui na frente de casa, passávamos horas e horas jogando”, relata. Também aposentado, seu Zé já foi morador de rua. “Já fiquei na rua pedindo esmola e sacos de comida. Até conseguia 110, 120 reais por mês”, lembra. Dividindo a humilde casa com gatos, cachorros e galinhas, seu Zé conta que parou de jogar baralho por causa de uma briga em um bar. “Antes de sentar na mesa já tinha avisado que não sentava de costas para a rua. Não é que um guri, 14, 15 anos, descarregou a arma em um dos caras que jogavam comigo?”, conta. O crime que não tinha relação com o carteado, deixou um morto, dois feridos e um motivo para seu Zé não participar mais dos jogos. “Como é que não vou parar de jogar, né?”

Seu Zé sente falta do carteado com os amigos

Esquecimento O município de São Leopoldo dispõe do Fundo Municipal do Idoso desde 2004, que tem como função principal “facilitar a captação, o repasse e a aplicação de recursos destinados ao desenvolvimento das ações de atendimento à pessoa idosa no Município de São Leopoldo”. Os recursos arrecadados ficam a encargo do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Idoso (CMDDI). Sendo assim, a destinação dos recursos e a fiscalização dos resultados ficam sob responsabilidade dos integrantes do conselho. Apesar da existência deste auxílio, o que se vê na Santa Marta é a carência de incentivo para os idosos. A julgar pelas pessoas entrevistadas, a terceira idade moradora da vila não tem rotina, não se ocupa, não tem distrações. A canastra não é jogada, o chimarrão não é tomado. Não existem grupos de idosos, tampouco rodas de conversas pela redondeza. A melhor idade sofre de carência. O tão esperado tempo livre agora parece ser um caminho à solidão e ao abandono. Milene Magnus Bruna Bertold

Grupo de idosos da vila vizinha é distração para Ledoina

Danilo sente falta de união na vila

Infraestrutura precária dificulta o transitar de Ivone


14. RELIGIÃO

| ENFOQUE SANTA MARTA | SÃO LEOPOLDO (RS) | MAIO/JUNHO DE 2017

A força da Paróquia A Igreja Católica inspirou o nome da Vila Santa Marta

não pode comparecer.

á mais ou menos 35 anos, numa casa de madeira, iniciaram as missas na comunidade Santa Marta. O padre Orestes Stragliotto fez melhorias na casa de madeira, que era danificada: colocou encanamento, fornos para fazer pães, além de tanques para as pessoas lavarem as roupas e tomarem banho. O nome Santa Marta foi escolhido inspirado no Evangelho. Nesse trecho a bíblia refere-se à Marta: “Marta é aquela mulher que trabalha, enquanto Maria ouve a palavra. Marta acolhe Jesus e também trabalha”. No dia 29 de julho é comemorado o dia da Padroeira Santa Marta na igreja, com um tríduo(missa realizada em três dias consecutivos) e uma confraternização dos fiéis ao final de cada missa. As missas acontecem todos os sábados das 18h às 19h com a presença do Padre Edson André Cunha Tomassim duas vezes por mês. E dos ministros Agenor Kertes e Ilma Santos, quando o pároco

Ilma Santos, moradora há 26 anos da vila, é ministra na Paróquia Santa Marta. Dona de casa, Ilma relata algumas queixas constantes dos paroquianos, como violência doméstica, violência física, assaltos e roubos na localidade. Segundo ela, “muitos fiéis sentiram-se mais fortes quando começaram a frequentar a igreja e sentir Deus presente em suas vidas”. O recinto da Três vezes por igreja é o local ano a comunidade onde a comunidade realiza um galeto, se organiza para a uma rifa e uma prática da catequese festa para arrecadar fundos para a paróquia. Cleci Giehl da Silva, natural da cidade de Planalto, no Paraná, mora há 23 anos na vila, criançada. Verônica é catequista onde ajuda na limpeza, nas há 12 anos. A primeira etapa está festas e reuniões da Igreja. voltada para a primeira comuComunhão e Crisma nhão, as terças-feiras com uma Verônica Ribeiro de Souza, turma de nove alunos para re33 anos, manicure, também na- ceber a eucaristia. E às quintastural da cidade de Planalto, no feiras realiza-se os encontros da Paraná, moradora da vila há 16 preparação para crisma. As aulas anos é a responsável pelos os acontecem das 18h às 19h na ensinamentos da bíblia para a sede da igreja católica.

H

Colaboradores

Na conquista de alunos para as aulas de comunhão e crisma, Verônica tem a ideia de criar um quebra-cabeça. Onde cada aluno recebe um pedaço de papel, o entrega para o celebrante assinar e logo após, a missa, devolve para a catequista. Cada missa que a catequese participa a catequista entrega

uma peça do quebra-cabeça para a criança trazer montado no final do curso, estimulando assim a presença. Uma simples comunidade no meio da vila à espera dos fiéis. Muito aconchegante e receptiva. Mirian Centeno Igor Mallmann

Na melodia das cordas, Santa Marta é ouvida O primeiro contato com a música pode surgir de inúmeras formas. Para Isaias Antunes Maciel, 52 anos, ela esteve presente em sua casa desde que era muito pequeno. Ele ainda guarda com carinho as lembranças de quando o pai estava em casa e ligava o rádio para escutar música gospel, antigamente chamada de hino. Nos finais de semana, a família se encontrava na igreja e cantava louvando a Deus. Para Isaias, música virou sinônimo de família e amor para. Foi através dos cantos religiosos que Isaias educou os quatro filhos em conjunto com a sua mulher, Ester Machado Maciel, 46 anos. Os ensinamentos recebidos de seu pai, João Antunes Maciel, um dos primeiros moradores da vila Santa Marta, falecido há sete anos, foram passados para a geração seguinte. Anderson Machado Maciel, 29 anos, filho do casal, relembra uma das suas memórias mais marcantes que envolve a música e a igreja. “Eu tinha sete

anos. O pai criou o costume de irmos para a igreja e cantarmos com ele. Às vezes, fazíamos isso em casa e passávamos a noite inteira assim. Criamos esse hábito. Não tinha luz, mas a gente cantava”, comenta.

INFLUÊNCIA PATERNA Isaias foi cercado por uma família de musicistas. Seus pais e os dois irmãos tocavam violão. Tudo que ele sabe sobre o instrumento, aprendeu na Assembleia de Deus. Interessado em se aperfeiçoar, comprou até mais um violão para ensinar a mulher e o filho. Agora, os dois ensaiam e aprendem juntos na varanda de casa, em pleno sábado pela manhã, relembrando os hinos cantados na infância de Anderson e as músicas atuais que ouvem na igreja. Anderson, hoje casado e com uma filha de cinco anos, ressalta que a influência do pai, ao incluir a religiosidade e a música em sua vida desde muito

do máquinas pesadas para a prefeitura. Ester é dona de casa e comemora a mudança dos tempos. “Antes, quando viemos para cá, eu lavava as roupas de joelho na sanga. Não tinha água encanada, não tinha luz, não tinha nada”, relembra. O filho do casal reforça que a história da família foi construída na comunidade. “Nossa família é grande, mas todo mundo mora aqui. Meu avô era uma pessoa muito influente, ele tinha bastante gado, todo mundo gostava dele. E por mais que falassem da vila por aí, a gente sabia que não era isso, por conviver aqui”, frisa Anderson. A família tem um ditado: “o ambiente é a gente quem faz”. E assim eles seguem seus dias, comparecendo na igreja Assembleia de Deus da Santa Marta, louvando a Deus e cantando em comunhão.

Através da igreja, pai e filho desenvolvem o amor pela música e aprendem juntos a tocar violão

cedo. “O meu modo de vida, tudo que eu faço, eu me espelho no pai. Por ele ser trabalhador, por nos levar para a igreja. Hoje em dia eu vejo que somos muito parecidos. Todos os filhos com o pai. E eu sou muito influenciado com essa parte da família”, enfatiza.

Família tradicional Isaias e Ester vieram de

Constantina, que fica a cerca de 378 km de distância de Porto Alegre. Moraram pouco tempo na capital gaúcha. Em 1987, chegaram na Santa Marta, em uma época que a vila se constituía praticamente de mato. Na cidade leopoldense, Isaias conseguiu estabilidade financeira e a possibilidade de crescer profissionalmente, sem nunca pensar em sair da vila. Há mais de 20 anos é funcionário público, operan-

CAROLINA SCHAEFER Estephani Richter


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COMUNICAÇÃO .15

Claudio Lopes (esquerda) lê apenas os classificados. Marli e Ari se informam pelo rádio e televisão. Entre muitos moradores, a internet é o meio mais usado para saber das novidades

Cadê o jornal? Na Santa Marta, somente quem possui assinatura de informativos tem acesso às notícias de forma impressa

I

nformação. Segundo o dicionário, esta palavra significa “ato ou efeito de informar, conjunto de conhecimento sobre alguém ou alguma coisa, conhecimento obtido por alguém”. Algumas das fontes de informação são o rádio, a televisão e o jornal. Porém, o material impresso é algo incomum pelas casas e comércios da Vila Santa Marta. Ao caminhar pela comunidade e entrar nos mercados, bazares e outros locais de venda, verifica-se que nenhum destes ambientes vendia a informação em sua forma impressa. O motivo seria a falta de interesse por parte dos moradores. Conforme o proprietário do supermercado Ziller, José da Silva, até cerca de três anos atrás se vendia o jornal Vale do Sinos (VS), impresso da cidade de São Leopoldo. Apenas 10 exemplares estavam à disposição dos residentes. “Tinha dias que saiam todos os jornais que recebíamos, mas, em média, vendíamos sete. Não tínhamos clientes assíduos, que compravam todo o dia”, relata. Ele é um dos poucos moradores da comunidade

que possui assinatura daquele veículo de comunicação. Outro morador da Santa Marta que recebe diariamente em casa o jornal VS é João Lopes, de 51 anos. Há aproximadamente 15 anos morando na comunidade, ele tem assinatura de jornal há cerca de 10 anos. Do lado de fora de sua residência, sentado e bebendo um chimarrão estava com o rádio ligado, ouvindo músicas gospels, na frequência 97.9, emissora Mais FM de Igrejinha. Enquanto essa rotina acontece, diariamente ele lê o jornal. Questionado sobre o porquê de ler todos os dias o jornal impresso, ele responde na brincadeira: “Ver quantos morreram, né, porque tem bastante tragédia”, relata. Aproveitando a assinatura do jornal de seu irmão, Claudio da Silva Lopes, 47 anos, olhava os classificados. Em busca de um automóvel para comprar, ele releva ter pavor de ler. “Não gosto, não gosto mesmo de ler. Só estou com o jornal em mãos para olhar os valores e anos dos carros. Gosto mais é de ouvir a rádio e ver uma televisão, assistir os telejornais”, comenta.

Na palma das mãos Celular, computador, notebooks, tablets. Vários são

os dispositivos que possuem acesso à internet e oferecem um mundo de possibilidades para obter informação e ficar atento ao universo jornalístico. Na Santa Marta, a predominância dos adolescentes e jovens adultos por obter conhecimentos via celular é nítida. Melissa da Silva, proprietária de um bazar da comunidade é uma delas. Não saindo de perto do celular, ela diz acessar todo tipo de notícia, com exceção das matérias que falam sobre fofocas e cotidiano das celebridades e pessoas famosas. “Durante o dia uso somente o telefone. Vejo principalmente pelo Facebook ou quando mandam algo nos grupos”, fala. Melissa somente assiste televisão no período da noite. Tem preferência pelo Jornal Nacional, da Rede Globo. Após, começa a trocar de canal até achar alguma programação que a interesse. “Antigamente assistia as novelas da Record bastante, que traziam questões religiosas. Hoje não vejo mais esses programas”, diz. Entretanto, assuntos políticos são evitados por ela. “Eu fico estressada e nervosa, agitada com as informações que vão dando. Acabo agindo que nem aquela frase ‘o que os olhos não veem, o coração não sente”, fala.

Quando falamos em rádio e TV, grande parte dos moradores adora as emissoras religiosas. Em televisão, Novo Tempo, assim como a Record com suas novelas bíblicas. Já nas ondas sonoras, a Rádio Feitoria (Sintonia 87.9) e a Mais FM (97.9) são as mais ouvidas. Um casal que afirma esse cenário são a dona Marli Teresinha, de 56 anos, e seu Ari Paulo Rodrigues, de 60 anos. Há 23 anos morando no bairro, gostam da Rádio Feitoria por seu trabalho próximo à comunidade. Com programação musical constante e notícias inclusive da Santa Marta, os dois são ouvintes da emissora. “Outros meios de comunicação nem falam da Santa Marta. As pessoas têm medo daqui, parece”, confessa. Já na TV, a preferência é pelas novelas da Rede Record. “Assistimos os telejornais das 7h15, do meio dia e da noite. Às vezes assistimos a Globo também à noite, o Jornal Nacional”, comenta Marli.

Jornalismo Cidadão Entrar e se inserir dentro da comunidade. Um desafio para os estudantes de Jornalismo da Unisinos, que possuem

como objetivo escrever sobre e para a Santa Marta. Ao final do semestre, três edições do “Enfoque Santa Marta” estão prontos para leitura. Desde março percorrendo os caminhos do local, os resultados começam a aparecer na satisfação por parte dos moradores. Essa é uma prática da universidade que já ocorre há anos, porém, a cada semestre, percorre novas comunidades e bairros com suas peculiaridades. Ari Rodrigues relata que a ação inédita é relevante para velhas e novas gerações de jornalistas. “Os estudantes estão fazendo um trabalho social aqui, conhecendo e mostrando situações que vivemos todos os dias e poucas pessoas de fora não sabem”, fala. Melissa da Silva complementa que o trabalho jornalístico realizado pelos alunos possui diferença de outros veículos. “O Enfoque está dentro da comunidade. Quase ninguém vem até aqui para fazer matéria, quase sempre tudo é por telefone. E por telefone é muito fácil distorcer, falar e dar a informação errada. Depois a cobrança não é em quem fez a matéria, mas em quem deu a entrevista”, relata. Fernanda Fauth Mariana Dambrós


16. ALFABETIZAÇÃO

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Sonho de ler e escrever Moradores lidam com o analfabetismo e sonham em poder se expressar

N

a Vila Santa Marta, a dificuldade em ler e escrever é a realidade especialmente de pessoas que vieram da roça para São Leopoldo e não puderam dar continuidade aos estudos. O sonho da leitura e da escrita traz indagações sobre como teria sido o futuro e dificulta pequenos atos do dia a dia. Obstáculos como a leitura da bula de remédios e a busca por um emprego melhor são enfrentados por esses moradores da comunidade. Há 20 anos Maria Candiel mora na vila, criou três filhos e hoje trabalha em um frigorífico na cidade de Garibaldi. A senhora de 57 anos faz o percurso de ida e volta da Serra todos os dias, mas a falta de instrução deixa claro aos olhos da profissional a vontade de ir além. “Ia ser muito melhor se eu soubesse ler e escrever, poderia pegar um emprego melhor”, confidencia, mesmo afirmando gostar de seu serviço. Maria é natural do município de Sobradinho e antes de mudar para São Leopoldo deu início aos estudos, mas não conseguiu completá-los. “A aula era longe, e como eu tinha que trabalhar não conseguia aprender”, conta. Hoje ela escreve o próprio nome e diz conhecer metade das letras, ainda que não consiga formar palavras ou frases. No caso dos ônibus que tem que pegar para ir trabalhar, ela diz decorar o nome e assim consegue pegar o veículo certo. A dificuldade na escrita e leitura a faz confundir os remédios que dona Maria toma diariamente. O marido, Ibanez Candiel, conta que existe um sistema para orientar a esposa ao se medicar. “Como ela identifica as letras, nós escrevemos um D para o de diabetes e um C para o de colesterol, assim fica mais fácil na hora de tomar”, afirma. Isto não impediu que a senhora se confundisse ao tomar os medicamentos algumas vezes. O sonho de voltar a estudar está presente nos pensamentos de Maria. Ela pretende dar início a aposentadoria daqui um ano e poderá se dedicar aos estudos na parte da noite. “Hoje eu trabalho no turno noturno então agora não tenho como estudar, mas pretendo fazer isso quando sair de lá”, assegura. Mesmo que tenha interesse em voltar aos estudos, a trabalhadora afirma estar acostumada a não saber ler e nem escrever.

Saúde Dona Carmelinda de Oliveira Schull veio de Três Passos para São Leopoldo quando tinha 17 anos e deixou a realidade do trabalho braçal. Por lá os estudos não fo-

Cirurgia de catarata foi o motivo de Dona Carmelinda perder o interesse em ler e escrever

ram adiante, mas foi uma cirurgia de catarata que tirou a visão do olho esquerdo e fez a senhora de 80 anos desistir de aprender a ler. “Não me interesso mais, estou velha”, desabafa. Apesar da perda da visão, uma das coisas que Carmelinda mais gosta de fazer é cozinhar cucas para o filho e vizinhos. A senhora conta ter estudado por um tempo, mas uma doença do marido, hoje falecido, a impediu de continuar. “Eu uso a impressão digital para praticamente tudo, já que não escrevo”, declara. O filho João Schull, de 46 anos, mora com a mãe e a acompanha dando suporte sempre que preciso. “Não saio sozinha, tenho medo de cair, de assalto e como não enxergo direito preciso de ajuda”, completa dona Carmelinda.

Desafio A história de seu Miguel Ouraldo dos Santos é parecida com a de Dona Carmelinda. O trabalho rural, em Frederico Westphalen, dificultou o acesso à educação. “Uma pessoa tinha que abrir o mato com facão para que fossemos até a aula. Era muito longe”, conta. Hoje ele sabe escrever o próprio nome, mas o conhecimento das letras se limita a isto. Ele afirma não precisar ler e nem escrever, já que o trabalho não exige isto. O casal possui um estabelecimento comercial e, apesar das dificuldades, as contas não são um problema para Miguel. A esposa, Almira Pereira de Souza, de 56 anos, é quem auxilia quando necessário. “Já tentei ensinar ele a ler e escrever, mas não tenho paciência”, conta rindo. Eles também lidam com uma metodologia de identificação de remédios. “Ela corta um pedacinho da caixa para eu saber qual é a que eu devo tomar”, afirma Miguel.

Maria conhece metade das letras mas não consegue uni-las em frases e palavras

Aprendizado

Seu Miguel teve dificuldades ao acompanhar as aulas que ocorreram na Santa Marta

Houve aulas na Santa Marta por um tempo, eram lições dadas para analfabetos tanto na associação como na escola do bairro. Seu Miguel e dona Maria tiveram classes por lá. O senhor conta ter sido difícil por não acompanhar o ritmo de aprendizado. “Quando eu estava entendendo a leitura ou escrita, a professora já começava a passar cálculos, tudo que estava na minha cabeça se confundia”, entristece-se. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada pelo IBGE, em 2016, revelaram que o analfabetismo atinge cerca de 12,9 milhões de pessoas no país. Já no mundo, de acordo com a Unesco, são mais de 700 milhões de adultos que não sabem ler nem escrever. NATÁLIA COLLOR Mainara TORCHETO


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TECNOLOGIA .17

Inclusão digital na Santa Marta Sabrina está sempre conectada nas redes, inclusive para promover sua loja

Maria não tem intimidade com as novas plataformas e aparelhos tecnológicos

O estudante Alan, de 12 anos, já vê a web como ferramenta acadêmica

Uso da internet é pouco explorado na comunidade

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acesso à internet na comunidade Santa Marta é amplo, porém seu uso está mais ligado à comunicação, ao comércio e à troca de produtos e compartilhamento de informações. Grande parte dos moradores não tem muito conhecimento das diversas possibilidade e ferramentas que a web oferece. As redes sociais, como Facebook, fazem parte do dia a dia da população, tanto para interação e divulgação de notícias locais. Atualmente, os dispositivos móveis e as plataformas na web são grandes instrumentos democráticos, garantindo e permitindo a voz à toda a população. O estudante Bruno Cavaleiro Fiuza, de 18 anos, conta que utiliza o aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp para conversar com os familiares mais distantes e trocar notícias com os amigos e colegas. “Eu e o pessoal da Santa Marta trocamos informações e notícias da vila pelo WhatsApp, o sinal aqui é bom”, relata. Fábio Augusto Silveira, de 27

anos é auxiliar de carpintaria, mas tem nos ambientes digitais um negócio, outra fonte de renda, pois administra grupos de vendas e trocas de produtos, tanto no Facebook, quanto no WhatsApp. Sua relação com a internet é diária e intensa, passando grande parte do seu dia conectado ao dispositivo móvel.“Aqui na Vila quase todo mundo já tem acesso. Eu tenho fibra ótica na minha mãe e via rádio na minha casa”, comenta. Junto ao Mercado e Açougue Souza funciona a única Lan House do bairro, que é utilizada principalmente por estudantes para pesquisas, impressões, cópias e trabalhos acadêmicos. A dona do estabelecimento, Raquel dos Reis Borges, de 33 anos, acredita que o acesso à internet facilita a disseminação de informações sobre a situação e os problemas da Santa Marta. A associação de moradores administra um grupo fechado no Facebook, onde compartilham notícias, eventos, fotos ou reclamações.

Novas gerações Entre os moradores mais velhos e os mais jovens há grandes diferenças na relação e a im-

portância que atribuem à web. A doméstica, Maria da Silva, de 48 anos, reside há seis anos na Santa Marta, é natural de Frederico Westphalen, e relata que a internet não faz parte de sua rotina. “Se eu quero saber de uma notícia ou alguma informação eu ligo a TV, escuto o rádio e leio o jornal. Quando preciso de alguma ajuda com meu celular eu peço para meus netos”. Alan dos Santos da Rocha, de 12 anos, estuda na Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Marta, é um dos netos de Maria e ao contrário da avó está totalmente conectado as novas plataformas, dispositivos e aplicativos. Apesar da pouca idade, já tem preocupações sobre o mercado de trabalho e os requisitos mais pedidos, realizando diversos cursos, como Photoshop, Pacote Office, Internet e Windows. Na sua instituição de ensino, os alunos já participam de Iniciação Científica, pesquisas acadêmicas e aulas de informática. Na educação, a internet é uma das grandes auxiliares da sociedade moderna, principalmente para os que nasceram depois dos anos 2000, assim com Alan. Para ele imaginar um mundo

sem as redes e plataformas digitais é algo difícil. “Como a gente faz várias pesquisas seria muito complicado viver sem (referindose à web). Muitas vezes nós não sabemos algo, vamos procurar em sites e por curiosidade acabamos descobrindo novas coisas, é muito legal”, conta. O Bazar e Loja Silva, está localizado na Rua Um, da Santa Marta, e é um dos poucos estabelecimentos comerciais locais que utiliza as mídias digitais para divulgação e comunicação. Na sua Fanpage são ofertados os produtos mais recentes, anunciadas promoções e nela estão informações de contato e endereço. A vendedora e filha do proprietário, Sabrina Feijó, de 21 anos, relata que a criação da página no Facebook trouxe uma melhora nas vendas, pois os consumidores podem conhecer antes as peças disponíveis. “Eu utilizo a internet para tudo, me comunicar, ver notícias, no trabalho, fazer amigos, enfim, é essencial”, disse.

País conectado Como é possível perceber, o uso da internet na Santa Marta está mais restrito à e comu-

nicação, do que ao lazer ou ao estudo. Além disso, é mais fácil encontrar smartphones do que computadores, retratando a realidade nacional. No ano de 2016 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou um estudo avaliando o uso de celulares. De acordo com a pesquisa, dispositivos móveis superam o uso de computadores no país, sendo, a principal fonte de acesso à internet. Dados obtidos em 2015, pelo TIC Domicílios, que mede os hábitos da população brasileira em relação às tecnologias de informação e de comunicação, mostra que 58% da população brasileira usa a internet. O total de internautas chegou há 102 milhões, enquanto em 2014 era de 95,4 milhões. Outro dado importante da pesquisa revela que cerca de 30 milhões de domicílios das classes C, D e E estão desconectados, representando a metade de domicílios brasileiros. Nas classes D e E apenas 16% estão conectados à Internet, e na área rural a proporção é de 22%. Thamyres Tomazini JÚLIA MACIEL


18. ESPORTE

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Remadas para o futuro Projeto oferece aulas de Canoagem para alunos de escolas públicas de São Leopoldo

N

a Santa Marta, são poucas as opções de lazer para os jovens. Claro, há pouco foi inaugurada uma quadra poliesportiva associação de moradores. Mas ainda falta um campo de futebol de grama para o time da vila treinar, por exemplo. Entretanto, desde 2005, graças ao Projeto Canoagem na Escola, eles tem uma ótima opção de divertimento. Quer dizer, para alguns o esporte aquático deixou de ser mero passatempo. Gilson Siduoski Napiwoski, criado na Santa Marta, vive intensamente essa realidade. Atualmente, o programa é mantido pela Secretaria Municipal de Educação (SMED). Ele oferece aulas de canoagem para 120 alunos que provavelmente nunca teriam contato com o esporte. Um caiaque profissional custa, por exemplo, cerca de R$ 5 mil. Os estudantes, todos da rede pública, remam no turno inverso de suas aulas no Rio dos Sinos, duas vezes por semana. Os da Escola Santa Marta praticam o esporte nas terças e quintas. Um ônibus da prefeitura busca os jovens“caiaqueiros”em seus colégios. Coordenadora do projeto desde 2006, Daniela Maioli explica que originalmente apenas alunos de escolas municipais poderiam se inscrever. “Teoricamente, não deveríamos aceitar estudantes da rede estadual, mas não sabemos dizer não”, brinca ela. Graças a grande procura, exceções são abertas. Mais dois professores de educação física, cedidos da SMED, auxiliam a coordenadora: Kátia Regina Roth e Sandro Cardoso. É preciso ser disciplinado para participar do Canoagem das Escolas. Daniela brinca que a rotina dos alunos é quase como num quartel. Para frequentar as aulas, os alunos tem de manter uma bom rendimento escolar. Além disso, devem manter a frequência no colégio. Durante as aulas, os alunos auxiliam na organização e limpeza da sede e recebem noções de ecologia e preservação do meio ambiente.

Exemplos Gilson, hoje com 18 anos, começou a remar com 10, quando estudava no Colégio Santa Marta. Hoje, o guri rema cinco dias por semana nas águas do Rio dos Sinos. Como se formou no Ensino Médio, ele não faz mais parte do projeto. Mas é um dos atletas da Associação Leopoldense de Ecologia e Canoagem (Aleca),

Há mais de 10 anos, estudantes de São Leopoldo aprendem lições de vida remando no Rio dos Sinos. O projeto, que exige boas notas escolares dos inscritos, forma jovens mais responsáveis e até profissionais da canoagem

Nível profissional

criada dentro do Canoagem na Escola. Assim como outros da equipe, ele participa de competições do circuito nacional. Atleta confederado, participou quatro vezes do Campeonato Brasileiro de Canoagem Velocidade e Paracanoagem, em Curitiba. Humilde, Gilson destaca a trajetória de outro colega da associação.“O William foi longe, pegou 3º lugar no barco individual em 2015”, contou sobre a participação do amigo na competição nacional. Junto de Elieser da Luz e Agatha Cristina Carvalho, William estagiou na seleção nacional de canoagem devido aos seus resultados em 2015. Agatha, aliás, foi com a seleção no campeonato SulAmericano de canoagem e trouxe medalhas. William Gabriel Batista, tem

17 anos e também treina cinco dias por semana. Antes de cair no rio com um caiaque, ele não ia bem na escola, e em casa também não ajudava muito. Mas a determinação e a disciplina, resultado da convivência do projeto, fez o guri criar foco. Hoje, ele destina cinco dias de sua semana ao esporte aquático. “William é um dos meus exemplos”, conta Daniela. Competidor confederado, recebe um auxílio do governo federal para competir, através do Bolsa Atleta, assim como Gilson.

Início O projeto nasceu como uma iniciativa da Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica (CGTE). Todas as cidades onde

a empresa energética está presente, receberam o projeto. As primeiras remadas foram dadas em 2004, na cidade de Candiota, interior do Rio Grande do Sul. No ano seguinte, São Leopoldo, Porto Alegre e São Jerônimo receberam o projeto. Entretanto, não durou tanto tempo sob a batuta da empresa. No primeiro ano, a CGTE foi responsável pelo projeto em São Leopoldo. Mas iriam interromper o programa. Acreditando na sua importância, o prefeito Ary Vanazzi, em 2006, decidiu manté-lo, agora como um projeto da SMED. Foi neste ano que Daniela Maioli passou a coordenar o Canoagem nas Escolas. Cargo ainda ocupado por ela. Ela também é quem acompanha os alunos em competições fora da cidade.

As remadas do Canoagem na Escolas levaram vários alunos longe. Em pouco tempo, alguns dos “caiaqueiros” do projeto já se destacavam - a ponto de competir nacionalmente. Porém, não havia equipe oficial quem os repressem. Como lembra Sandro Cardoso, os remadores são leopoldenses competiam pela cidade de Gravataí. Para contemplar esses atletas, foi criada a Associação Leopoldense de Ecologia e Canoagem. O que, segundo Sandro, gera um gasto anual considerável só para manter o registro. Vários membros da Aleca são atletas confederados, ou seja, são associados à Confederação Brasileira de Canoagem. Resumidamente, são profissionais que podem participar de competições oficiais e participar do ranking nacional da modalidade. Inclusive, podem competir nas seletivas para as Olimpíadas ou dos Jogos Pan-Americanos, por exemplo. O acompanhamento dos caiaqueiros da associação é completo. Além dos auxilio dos professores, formados em educação física, o emocional e a alimentação dos membros da equipe também são levados a sério. Uma psicóloga e uma nutricionista atendem voluntariamente, toda semana, os jovens atletas do projeto, como apoio da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. DEIVID DUARTE JOÃO ROSA


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Educação .19

Preocupação com o ambiente motiva estudantes Professoras criaram comissão na escola para que alunos discutam e realizem ações socioambientais

C

onhecer as principais espécies de animais e de plantas, saber como eles se alimentam e se reproduzem, entender a importância da água e do solo. Esses são apenas algumas das questões sobre o meio ambiente que os alunos aprendem nas aulas de ciências durante o ensino básico. Mas na Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Marta, a experiência vai mais longe e os estudantes podem colocar em prática tudo o que aprendem nas salas de aula. É o que oportuniza a Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida na Escola, ou Com-Vida, como é chamada pelos participantes. Organizado por duas professoras da instituição, Cristina Santos e Sandra Grohe, o projeto acontece no contraturno escolar e conta com a participação de cerca de 30 estudantes, que se reúnem todas as sextas-feiras para planejar ações socioambientais a serem realizadas por eles. Segundo a professora Cristina Santos, 38, fundadora e articuladora do Com-Vida, o projeto surgiu em 2013, durante a IV Conferência Nacional Infantojuvenil pelo Meio Ambiente, iniciativa do Ministério da Educação. “O objetivo era discutir com os alunos e a comunidade os problemas da escola e da Vila Santa Marta”, conta. Ela então fomentou a criação de uma comissão formada pela comunidade escolar e os moradores, onde poderiam identificar problemas e trabalhar na busca por soluções.

LIVRE ADESÃO O projeto, de acordo com Cristina, é de livre adesão. O requisito é ter no mínimo nove anos e estar cursando a partir do quarto ano, além de ter disponibilidade para participar das reuniões semanais que ocorrem no contraturno. São nesses encontros que os alunos planejam atividades para melhorar a qualidade de vida na escola e na

vizinhança, e um grupo se candidata para realizá-las. Uma das crianças envolvidas com o projeto é a estudante do 6º ano Larissa Schneider Pagano, 12 anos. Ela conta que sempre quis participar do Com-Vida e faz de tudo para não perder nenhuma das reuniões.“Eu gosto muito de participar do projeto porque a gente aprende muito lá”, relata. Ela também costuma aplicar em casa tudo o que as professoras

ensinam nos encontros. Dentre as coisas que aprendeu, ela destaca a separação do lixo seco e orgânico e o descarte correto do óleo de cozinha, seus temas preferidos. “O projeto De Olho No Óleo foi muito legal porque aprendemos a separar o óleo de cozinha e, em vez de jogar fora, a gente faz sabão ecológico”, relata. O projeto, aliás, rendeu à Larissa outra experiência marcante, no ano

passado: participar da Motic, uma mostra de trabalhos tecnológicos e inovadores da rede pública de ensino de São Leopoldo. Lá, ela e outros colegas puderam explicar a iniciativa e conscientizar os visitantes sobre problemas ambientais. Vizinha de Larissa, a estudante Karolina da Silva Lopes, 11 anos, também está no 6º ano e adora participar do Com-Vida. Para ela, o mais legal de tudo é

Larissa participa de todas as ações ambientais do grupo e deixa orgulhosos os pais, Agnaldo e Marilaine

quando eles fazem fiscalizações nas salas de aula, ensinando aos outros alunos da escola sobre a importância de temas como a reciclagem e a coleta seletiva. “Acho que é muito importante a gente separar o lixo, porque assim o mundo não fica tão poluído”, conta ela, que também gosta de cuidar dos canteiros de flores e temperos plantados por ela e a mãe em casa.

Bons resultados Para os pais de Larissa, o vigilante Agnaldo Pagano, 47, e a dona-de-casa Marilaine Schneider, 36, é um orgulho ver a filha tão dedicada à causa ambiental. Eles afirmam que desde bem pequena ela sempre demonstrou interesse pelo assunto, ajudando o pai a separar o lixo em casa e a cuidar dos três gatos e dois cachorros da família. Aos seis anos, contam, ela dizia para todo mundo que queria ser Presidente da República, para mudar as leis em defesa aos animais. Hoje, a menina sonha em ser veterinária. Enquanto não tem idade para realizar esse desejo, Larissa pretende continuar envolvida com as ações do Com-Vida, pelo menos até concluir o ensino fundamental. Para ela, algumas iniciativas merecem mais atenção, como a preservação do Rio dos Sinos e do próprio Arroio da Manteiga, que corre no bairro. “Se as pessoas não jogassem lixo na nossa água, não precisaria passar por tanta coisa para que ela ficasse limpa”, considera. Para a professora Cristina, o impacto positivo da Comissão é percebido justamente nessa dedicação dos alunos. Ela conta que, desde a criação do projeto, todos passaram a opinar mais e, consequentemente, a cuidar mais do espaço da escola, além, é claro, de terem mais preocupação com as plantas, os animais e as pessoas. “Numa comunidade tão carente de tudo, ter um espaço onde os alunos podem se expressar, podem construir juntos soluções para os problemas que eles mesmos identificam, faz com que eles se sintam importantes e valorizados e, a partir daí, tenham mais prazer em estar na escola e isso pode ajudar a diminuir a evasão escolar”, opina. Mel Quincozes Luciana Abdu


20. PERSONAGEM

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Sobrevivendo às intempéries De maneira natural e simples Moisés vaga pelas ruas em busca de seu alimento. E alegra os moradores da comunidade

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casebre situado nos fundos do terreno vizinho ao n°314 da Rua Um abriga a história de uma figura considerada por muitos como “patrimônio” a Santa Marta. Moisés Nunes Batista encontra-se, segundo o relato de parentes, aos 58 anos de idade. O homem, que é conhecido por todos da comunidade por onde vaga diariamente em busca de sua alimentação, advinda da doação de moradores e familiares. A moradia improvisada com remendos de madeira revela a precariedade da situação na qual Moisés se encontra – o pátio grande é abrigo de galinhas, gatos, cães e animais que emergem do matagal localizado nos fundos do casebre. É dentro desse mato que corre o riacho, de onde segundo moradores, Moisés retira a água que consome. Após inicialmente relutar em conversar conosco, Moisés

dispôs-se a engrenar assunto falando das condições do clima. “Com a chuva não dá. É ruim”. Revelou, ainda, preferir o sol, onde “as coisas ficam menos grudentas”. Trajando roupas rasgadas, sujas, o homem chama a atenção por sua aparência. Na cabeça o boné, cuja aba curva esconde o olhar.

A barba e cabelos longos, já grisalhos, denunciam a ação do tempo sobre ele.. Já na rua, estávamos acompanhando Moisés. Ele se deslocava para buscar o alimento que alguém lhe havia prometido. Foi quando nos questionou sobre a possibilidade de alcançar-

mos alguma comida, diante da negativa preferiu seguir viagem sozinho. “Vou trabalhar lá no Zé. Vocês não podem ir”. E assim despediu-se e seguiu. Constatamos então, que aquele era um dia em que Moisés não estava muito a fim de papo. Como já havíamos sido avisados,

Ele vive isolado, recebe os cuidados dos habitantes da Vila, mas às vezes se irrita com todos

o homem sofre de uma instabilidade de humor. Jane Gigoletti Antunes, 38 anos é sobrinha de Moisés, ela relata que a condição atual do homem é fruto de uma doença mental. A mesma também acometeu seu pai. “Ele vagava pelas ruas, ao contrário do Moisés, que sempre está naquela esquina”. Ainda segundo Jane, Moisés é geralmente pacífico, mas sofre de uma instabilidade, e ocasionalmente mostra sinais de violência. “A família tentou por diversas vezes ajudá-lo, mas ele não aceita. Principalmente quando tentamos dar banho”. A doença de Moisés se manifestou perto dele completar seus 25 anos. Jane lembra o episódio quando numa reunião de família o homem começou a engolir ossos e sobras do almoço, em movimentos frenéticos. “Eu ainda era pequena, mais aquilo ficou na lembrança”. Antes desse episódio, Moisés, apresentava comportamento normal, vivendo com sua esposa e três filhos. Alessandro Garcia Saskia Ebenrite

Clube ameaça moradores da Santa Marta de despejo Na Santa Marta os moradores temem pela sua segurança desde 2014. A comunidade da rua que se localiza atrás da Associação dos moradores do bairro vêm enfrentando sérios problemas com o clube que se diz dono das terras e quer a desocupação. Trata-se da Associação Caça e Tiro localizada atrás da referida rua, que não tem identificação. O clube já faz parte de São Leopoldo há dez anos é usado para o treinamento de militares e também para sócios que desejam praticar tiro. Celio Andrade é morador da Santa Marta há mais de dez anos e reside em sua casa na rua há mais de sete anos. Ele conta que acompanhou todo o crescimento da rua. Desde o início quando ainda tinha poucas casas,

e quando ainda era só vegetação no local. ‘’ Sempre morei aqui, construí minha casa e hoje luto, para manter ela aqui, ninguém pode nos tirar’’. diz ele. Conforme os moradores, o advogado que cuida do processo de desocupação da área, e os ajuda, a rua mencionada não é identificada e não possui cep, assim como várias outras do bairro. Portanto é muito difícil saber quem realmente é o proprietário das terras. Ainda conforme os moradores, o advogado está em uma busca de mais de três anos, para saber informações e ter acesso a documentos para obter as respostas e dar andamento ao processo. A voz da comunidade é Debora Dias. Ela é quem bus-

ca ajuda e recorre aos advogados e procuradores. Informa-se das situações que acontecem no Fórum e repassa as notícias aos vizinhos. Mora há três anos na Santa Marta. É ela também quem ajuda o grupo de moradores a reunir documentos para comprovar que eles têm direito de permanecer no local. E ainda diz que já estão encaminhando tudo com o poder público para que isso seja solucionado o quanto antes. ‘’ São terrenos adquiridos há mais de dez anos, vizinhos e familiares se uniram para lutar por seus direitos’’, afirma. Para a prefeitura de São Leopoldo, desvendar essas áreas de terras ainda é um mistério. Pois não possui identificação

Os vizinhos da rua lutam unidos para não perder as moradias

em lugar algum. E sempre que é procurado pelo nome da rua no fórum, identificam como se não fosse pertencente ao bairro da Santa Marta.

Conflitos O barulho dos tiros é o que menos incomoda os moradores da rua. Pois eles já passaram por situações ruins, em relação ao clube de Caça e Tiro. Francisco dos Santos já vive há três anos na Santa Marta e des-

de que chegou acompanha esse conflito. No início de 2014 eles receberam uma ordem de despejo, solicitada pela Associação Caça e Tiro. ‘’Sorte a nossa é que na ordem de despejo a rua estava com o nome errado e não precisamos sair das nossas casas”,conta o morador. O processo ainda está em andamento no fórum e moradores e representantes do clube aguardam audiência. Amanda Cunha lucas Schardong


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HABITAÇÃO .21

Chegou a hora de se mudar? Movidos pelo desejo de encontrar novas oportunidades, moradores colocam suas casas à venda

D

urante o trajeto percorrido pela vila Santa Marta, é possível contar 25 casas à venda. Há moradias boas, de material, pintadas e bem decoradas. Outras são mais humildes, de alvenaria, sem pintura, com portão frágil, já desgastados do tempo. Os valores dos imóveis variam. Os mais simples podem ser adquiridos por 15 mil reais. Já os mais caros, em torno de 80, 100 mil reais. Alguns estão com a documentação em dia, água encanada e luz regularizada. Mas o contrário também acontece. O que levaria esse grande número de moradores a buscar um novo lar? Segundo Enilda Terezinha Gonçalves, residente há 11 anos na Santa Mar ta, o objetivo é encontrar um lugar melhor para ela e os filhos crescerem. “Quero ir para um cantinho só nosso, maior, mais limpinho”, relata ela. A casa d e a p rox i m a d a m e nte 4 0 metros quadrados é habitada por 10 pessoas. Enilda é a chefe da família.

Veio para o bairro porque um primo havia lhe dito que as oportunidades de trabalho eram muitas. Sem ter encontrado um, seguiu entre uma faxina e outra. “Eu vim para cá porque me prometeram novas possibilidades. Mas não encontrei elas. Quero voltar para Porto Alegre, de

onde sou, ter uma casinha sem precisar pagar aluguel. Minha casa e a documentação foram feitas de acordo com a justiça e só isso já vale bastante”, diz ela. Alguns moradores gostam do bairro, mas querem se mudar para ter mais sossego, como é o caso de seu Hen-

rique de Camargo, 74 anos. A casa, regularizada e com as contas em dia, o fez feliz durante os vinte anos em que ali residiu. “Quero ir para um lugar mais calmo, com mais segurança. Quero envelhecer em paz, cuidando dos animais no campo”, destaca ele. Para isso, seu Henrique

Apesar de gostar da vila, muitos procuram um novo lugar para viver

precisa vender a casa de cinco cômodos. O investimento é de 80 mil reais e a garantia de um imóvel dentro dos padrões exigidos pela prefeitura da cidade. “Nunca fui de fazer nada errado. Sempre optei pelo justo, dentro da Lei. Sempre tive o nome limpo, não seria agora, com essa idade que iria manchar meu nome”, relata Camargo.

Aluguel não é opção Para os moradores, essa não é uma vantagem. Eles querem o dinheiro em mãos, em sua quantia total. “Eu só posso ir para a minha terra quando vender e tiver o dinheiro”, relata Henrique. Em contrapartida, imobiliárias locais vêm o crescimento das ofertas por casas de aluguel. A gerente de venda de imóveis da Clarel Imobiliária, Claudia Bender, relata que o locatário procura por imóveis mais em conta. “O número de casas para alugar cresceu consideravelmente no último ano e tudo isso devido às necessidades financeiras. Vender ficou mais difícil e alugar mais fácil”, conta ela. Júlia Flores ISABELLE CASTRO

Dificuldade na venda de imóveis Para quem não pode se dar ao luxo de anunciar a sua propriedade em uma imobiliária, o jeito é apelar à tradicional placa de “vende-se”. A cada quadra da vila Santa Marta, pelo menos uma casa ostenta o dizer, manuscrito sobre um simples pedaço de madeira. Páginas de brique no Facebook, nas quais se trocam roupas e utensílios domésticos, também têm sido uma alternativa aos que desejam realocar a moradia. Luís André de Lima Lopes, 34 anos, construiu a residência com a ajuda do pai. Faz 22 anos que o auxiliar de manutenção mora no local. Desde 2015, porém, decidiu que deixaria a vizinhança por conta da criminalidade. Ele estava na praia, aproveitando o final de ano, quando o

seu lar foi arrombado e seus pertences levados. Teme pela segurança da filha e esposa e planeja se mudar para Montenegro, onde o restante dos parentes vive. Pede R$ 80 mil pela estrutura, que compreende duas edificações no terreno, mas também aceita trocas. Gente das imediações, como habitantes do bairro São Miguel e do município de Novo Hamburgo, já visitaram o espaço, mas a compra nunca foi efetivada. Lopes conta que lhe ofereceram um apartamento na permuta, mas como o imóvel em questão ainda não estava quitado, decidiu não aceitar a negociação.

Abaixo da média Estatísticas do Indicador

Luís André de Lima Lopes quer deixar a vila por conta da violência local

Nacional de Mercado Imobiliário CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção), retiradas do último relatório de 2016, apresentam um cenário de retração no setor. O período vigente é marco negativo desde o boom imobiliário de 2006, demonstrando praticamente uma paralisação no lançamento de novas ofertas. Dados do último trimestre, no entanto, apontam o crescimento das atividades. De acordo o Índice FipeZap de Preços de Imóveis Anunciados, uma parceria entre a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) e o portal Zap Imóveis, a cotação de venda subiu 30,21% no período de junho de 2012 a abril de 2017. O indicador acompanha a movimenta-

ção do mercado imobiliário em 20 cidades brasileiras. No ano atual, a cifra se mantém estável. O custo médio anunciado em Porto Alegre é de R$ 5.667 por m2. Ai n d a s e g u n d o o s i te Agente Imóvel, que compila ofertas de lançamento, compra e aluguel de imóveis, o valor médio anunciado em São Leopoldo é de R$ 401.714. O levantamento promovido em março de 2017 utilizou de 10.481 amostras para chegar no resultado. A faixa de preço de até R$ 100 mil, estabelecida por moradores do Arroio da Manteiga, é encontrada em anúncios de bairros próximos, feito Vicentina, Scharlau, Rio dos Sinos e Campina. Victória Freire Thaís Lauck


22. TRANSFORMAÇÃO

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A pequena gigante da coleta de resíduos Com quase 25 anos de história, a Cooperesíduos é sinônimo de luta por um futuro melhor na Vila Santa Marta

Dia de folga: esteira da cooperativa parada por causa da chuva que acabou molhando o motor

S

ábado nublado, com marcas da chuva da madrugada. Da Associação de Moradores da Vila Santa Marta só se vê o morro e um antigo galpão. Uma caminhada de cerca de dez minutos leva para o local que faz parte da história do bairro. Os caminhões com toneladas de lixo doméstico não param de chegar, mas o trabalho está parado por causa do motor da esteira molhado pela chuva. No local, onde deveriam estar sendo processados cerca de 100 toneladas de resíduos no dia, não há trabalhadores. Os sócios, como são chamados, estão indo para casa mais cedo, enquanto o equipamento não pode ser ligado. Esse contratempo é o motivo que faz a manhã ser calma e permite que os mais de 60 integrantes da Cooperesíduos – sigla para Cooperativa de Catadores de Resíduos e Prestação de Serviços de São Leopoldo, Ltda. Todos os sócios são cotistas e tiram seus vencimentos dos resíduos recicláveis presentes no lixo produzido pelos mais de 214 mil habitantes de São Leopoldo. O grupo é dividido em dois, cerca de 30 na esteira e outros 30 em outras atividades, como prensa e separação. Quem nos recebe na cooperativa é o vice-presidente José Valdir de Carvalho, que conta como ocorre o processo de separação de toneladas de lixo doméstico. Para o local, resume, de segunda a sábado, algo entre 120 toneladas de resíduos são enviadas pelos caminhões da empresa responsável pelo recolhimento. Nas segundas e terças-feiras, o total removido pelas ruas da cidade chega até 150 toneladas. No entanto, o vice-presidente adverte que a esteira usada pela Cooperesíduos, naquele dia parada, anda trabalhando acima das 70 toneladas para que foi projetada. Se sustentando com o que consegue da venda dos materiais separados, a sociedade vive um momento de mudanças e expectativa. Através da direção, todos buscam firmar um novo contrato com a prefeitura de São Leopoldo para que a cooperativa receba remuneração pela tonelada de material reciclado recebido e processado. Hoje, a renda vem somente da venda dos reciclados para empresas que dão destinação adequada

para os produtos. Os valores gerados pela venda dos recicláveis, hoje, não permitem investimentos e nem a manutenção do equipamento existente. Para dar conta do serviço, por exemplo, seria necessário comprar outra esteira do mesmo tamanho da que hoje está instalada no local.

Em espera A época não é a melhor, como reconhece o presidente da associação, João Paulo Lima, há três anos no cargo. O motivo é a saída da empresa parceira que ajudava nos custos.“De uns seis meses para cá, ficou a cargo da cooperativa arcar com a manutenção. E a gente não consegue, a cooperativa não tem condição de realizar. Antes a gente tinha uma empresa que fazia”, lamenta, enquanto torce para que as coisas mudem. Com esse acordo, segundo Lima, além de redução de custos, a prefeitura poderá abrir mais vagas de trabalho na cidade ao permitir a cooperativa comprar outra esteira e, assim, dobrar a capacidade de processamento e o quadro de sócios. “Hoje a gente não consegue segregar tudo por causa da capacidade da nossa esteira e o nosso maquinário está defasado”, afirma João Paulo.“Com o contrato, a

gente pode alavancar o negócio e melhorar aqui.”O acordo ao qual o presidente se refere seria, na verdade, dois. Um para receber o pagamento pela tonelada processada pela cooperativa e outro para que a Prefeitura realize repasses para a manutenção dos equipamentos que acabam por reciclar todo o lixo coletado na cidade.

História de mais de 20 anos A história da Coopersinos remonta ao ano de 1993, com a criação da então Associação dos Trabalhadores Autônomos com Carroças e Carretas de São Leopoldo. O grupo se reuniu para buscar os interesses comuns após a sanção de uma lei que impedia o tráfego dos carroceiros em algumas áreas da cidade, em especial no Centro. No entanto, o grupo demorou mais cinco anos até começar, de fato, suas atividades com a integração de cerca de 80 pessoas. As primeiras ocupações eram a confecção de materiais artesanais produzidos com o que os catadores recolhiam nas ruas. Muitos sócios – a maioria homens –, no entanto, desistiram por achar as atividades “femininas”. Em dezembro daquele ano

foi lançada uma licitação pela Prefeitura de Portão para operar uma usina de reciclagem do município. Os sócios, então, conseguiram vencer o certame e começaram a trabalhar na separação do lixo doméstico. No primeiro mês cada sócio conseguiu tirar R$ 60 de salário. Um mês depois, em fevereiro de 1999, o rendimento chegou aos R$ 130, o equivalente a um salário mínimo na época. Meses depois, já ganhavam tanto quanto um funcionário de uma indústria calçadista. Com o que juntaram na reciclagem e doações, a Cooperesíduos construiu no bairro Arroio da Manteiga, em São Leopoldo, um galpão onde lixo recolhido era processado e, posteriormente, vendido.

Adeus ao lixão O crescimento da cooperativa viabilizou um avanço social e ambiental que é inestimável: a retirada de catadores de lixo de condições precárias do lixão de São Leopoldo. Em julho de 2002, a Cooperesíduos assumiu a usina de reciclagem do município de São Leopoldo e, com a mudança da atividade fim, a associação se expandiu. Centenas de pessoas que se aglomeravam à espera de

um caminhão de lixo para recolher os materiais recicláveis em meio a toneladas de lixo passaram a ser sócias. O trabalho infantil no lixão foi erradicado. Poucos meses depois, a então aluna da Unisinos Celi Beatriz Bartz fez este levantamento histórico dos primeiros dez anos da Cooperesíduos. Quinze anos depois do registro, o número de toneladas processadas cresceu, enquanto o rendimento e o número de sócios caiu. A sociedade, que já chegou em tempos passados a operar em três turnos, 24 horas por dia, hoje possui apenas jornada única. Nem por isso os números do processamento da Cooperesíduos deixam de ser impressionantes. São 16 mil peças inteiras de vidro, a maioria garrafas, processadas por mês; 60 toneladas de PET por semana, uma média de 12 por dia. Por semana, são 780 mil quilos de lixo doméstico processado. Em um mês, o montante chega aos 4 milhões de quilos (4 mil toneladas). Mesmo com um cenário tão adverso, a história e a mudança que a Cooperesíduos implementou na cidade não se apaga. Leonardo Severo Vinícius Emmanuelli


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Empreendedorismo .23

Jovem inicia seu negócio e prospera dentro da Vila Aos 20 anos, Douglas Machado optou pela iniciativa privada na área de consertos motociclísticos, e hoje atende os moradores da Santa Marta

Conforme o mecânico, sua clientela o procura mais aos sábados

N

ascido, criado e morador da Santa Marta, Douglas é um dentreosmoradoresdaVila que possuem o próprio negócio. Com apenas 21 anos, desde os 20 o jovem mecânico mantém seu estabelecimento, a“Matozo Preparações: Moto Peças e Oficina”, no pátio, na frente da sua casa, onde reside com sua esposa, Carolaine Cardoso, de apenas 16 anos. Douglas sempre foi apaixonado por motos e bicicletas. Trabalha nessa área desde os 14 anos, quando foi mecânico pela primeira vez, na Oficina Moura Bike, também na SantaMarta.“Para mim foiuma grande experiência, pois foi onde tudo começou até eu chegar onde estou hoje,queétrabalhandodiretamente commotos”,afirmaDouglas. Aos 18 anos, finalmente ele começou a trabalhar com motos, na Oficina do Djow, que fica no bairro Campina. Lá, ele ganhou mais conhecimentos sobre os processos do seu trabalho. Foi então que, com 20 anos, decidiu ser o dono do próprio

negócio e não depender de horários estabelecendo suas próprias regras de atendimento ao público. Seusobjetivosforamfocadosaté demais profissionalmente durante a adolescência. A obsessão pelo trabalho era tanta, que o mecânico parou de estudar na sexta série.“Talvez eu

possa seguir tendo uma oficina, e ir para um local maior e mais estruturado, para poder aumentar a clientela. Porém, se eu quiser trabalhar de carteira assinada em uma empresa maior, não posso porque o mercado pede, no mínimo, ensino médio”, afirma Douglas Machado.

Grande parte de sua clientela é da própria região da Santa Marta. Mas há também, quem repare suas motos com ele e mora em Portão, cidade vizinha. Seus dias de atendimento é de segunda à sábado, em horário comercial. “O pessoal durante a semana acaba não tendo

tempo de passar aqui, e meu trabalho fica mais pesado no final de semana”, ressalta Douglas. Wagner Goulart, 27, é morador da Santa Marta há 20 anos. Segundo ele, esse tipo de empreendimento é sempre válido dentro da vila, e considera que faltam mais mecânicos na região.“Antigamente tinha mecânica do Moura e a Borracharia do Chico aqui. Agora, só temos a autopeça do Douglas e a mecânica de carros do meu tio, que tem umaboaclientelaaqui na Santa Marta”, afirma Wagner. Para outros jovens que possam se inspirar na história de Douglas, podem buscar auxílio no site do Sebrae www.sebrae. com.br. Lá, é possível encontrar o “Manual do jovem empreendedor”, que funciona como um guia e ajuda a criar e manter sua pequena empresa. Não tem só essas funções, como também possibilita o empreendedor a aprender conceitos e conhecer histórias de empreendedores de sucesso. Rafael Erthal Renan Neves

A turma que prefere andar em duas rodas Para Alcindo Fernando Leal, de 56 anos, a bicicleta se tornou mais do que um meio de transporte. Alcindo utiliza a “magrela” para realizar suas atividades de catador de papelão. Segundo ele, desde sempre teve simpatia pelo uso da bicicleta, mas passou a utilizá-la no trabalho por ser mais prático. Há dois anos ele sai da Santa Marta juntando papelão e vai até o bairro Scharlau, que fica a aproximadamente 10 Km de distância. Para lhe ajudar na tarefa, Alcindo engata uma espécie de “carretinha”, que facilita no transporte do papelão. Antes mesmo de ser catador de papelão, Alcindo tirava seu sustento como servente de obras. Ele conta que preferiu mudar de ramo por conta da lucratividade, pois segundo ele em um dia consegue lucrar até cinquenta reais. A maior re-

clamação que o catador faz é em relação aos buracos nas ruas de Santa Marta, que já causaram prejuízos ao seu trabalho, pois devido aos desníveis os pneus da bicicleta e da carretinha acabam estragando. Mesmo não sendo utilizada como ferramenta principal no sustento, a bicicleta também tem papel decisivo na vida de José Luís dos Santos, industriário de 43 anos. Trabalhador da indústria de produção de plásticos, José conta que utiliza a bicicleta como meio de transporte todos os dias para chegar ao seu trabalho, que fica localizado no bairro Jardim Luciana, São Leopoldo. Após uma vida toda utilizando a bicicleta como meio de transporte, não seria na terceira idade que abandonar a companheira se tornaria uma

opção. Pelo menos é assim com o aposentado José da Silva, de 70 anos. Morador da Vila Santa Marta desde o ano de 1987, o ex-industriário conta que sempre utilizou a bicicleta como meio de deslocamento por se demonstrar mais prática em relação ao uso de ônibus. Natural de Frederico Westphalen, município localizado na região norte do Rio Grande do Sul, José relata que desde os tempos de colônia enxergava a bicicleta como o meio de transporte mais interessante para si. Segundo ele, devido ao fato de se tratar de uma cidade do interior, outros transportes, como carro e ônibus, eram de difícil acesso, obrigando que os trajetos fossem realizados a pé ou com transporte alternativo, como a bicicleta. Nos dias de hoje, José conta

Enfrentando as ruas em mau estado, muitos habitantes da Vila se valem das “magrelas” como meio de transporte

que se utiliza da sua querida companheira por motivos diferentes de outrora. Quando precisa se deslocar até o centro de São Leopoldo, José relata que prefere ir de bicicleta do que usar ônibus. “Com o ôni-

bus tu desce em um ponto do centro e, depois disso, precisa ir caminhando para os lugares que precisa”, relata. Anderson Huber César Weiler


ENFOQUE SANTA MARTA

E

m meio a tantas dificuldades da Vila Santa Marta, seja de violência ou infraestrutura, persistem os sonhos dos três irmãos da família Oliveira. Julia, Vitória e Mateus são jovens repletos de anseios e desejos, assim como os outros que habitam o bairro. Julia de 10 anos é a caçula dos três irmãos. Estudante do 5º ano da Escola Santa Marta, diz passar a maior parte do seu tempo assistindo a vídeos no Youtube. Fã da Dani Russo, uma Youtuber famosa, fala que este é um dos seus maiores entretenimentos. “O que eu mais gosto é procurar tutoriais, principalmente aqueles que ensinam a fazer doces. Também gosto de ver clipes musicais e os meus youtubers preferidos” conta ela animada. Seja deitada ou lavando a louça, ela ama cantar. Mesmo com pouca idade, ajuda sua mãe em quase todos os afazeres domésticos, como dobrar a roupa, lavar a louça e até mesmo limpar a casa. E com a música que ela torna estas responsabilidades mais leves. Ao ser questionada sobre qual a sua matéria preferida, responde rapidamente, que ama o inglês. A professora Liliane - quem dá esta matéria, é a principal motivação para que a cada dia, mela tenha ais vontade em aprender palavras novas. Além disso, Liliane inspira o sonho mais importante da garota: se tornar professora. Mesmo com o sonho de lecionar, Julia alimenta outro que considera muito importante: a melhoria das ruas de sua vila. Hoje ao ir para escola em dias chuvosos, ela e seus primos acabam chegando embarrados e isso causa desconforto.“Não gosto de ir para aula em dias de chuva, pois acabo me sujando de barro e isso nos desmotiva a permanecer na sala”.

MAIO/JUNHO DE 2017

EDIÇÃO

3

Os sonhos da família Oliveira

Vitória busca em seu irmão a inspiração para não desistir da escola

Com apenas 10 anos, Julia sonha em ver uma Santa Marta ainda melhor, para ela e as outras crianças da vila

AS DIFICULDADES DE CONTINUAR OS ESTUDOS Vitória Oliveira de 14 anos é a irmã mais vaidosa. Acorda cedo para poder se arrumar e estudar. Reclama sobre a violência e as drogas, dizendo ser o que menos gosta na vila. “Esse foi o principal motivo que fez com que eu e as minhas primas temporariamente abandonássemos o futebol, nosso esporte preferido”. Mesmo a mãe não a deixando ir até a quadra da vila, nada impediu que o entretenimento das meninas fosse deixado para sempre. Elas se uniram e junto com a ajuda de outros parentes, construíram um campinho nos fundos da casa de sua tia. Isso fez com o que o lazer e a segurança ficassem garantidos. Vitória também conta, que a violência mexe com todos os estudantes, pois hoje ao volta-

SÃO LEOPOLDO (RS)

rem de suas aulas, por vezes participam de episódios, como o ocorrido neste mês – encontraram um corpo abandonado no caminho da escola. “Muitas mães aqui do bairro já perderam seus filhos por envolvimento com drogas e isso faz com que elas deixem a nossa vila”. Logo, logo, a menina deverá procurar uma escola de ensino médio e isso a preocupa. “Hoje não temos escola de ensino médio aqui na vila e isso faz com que muitos moradores desistam de continuar os estudos”. Além da distância, as escolas são violentas. “Os meus irmãos não concluíram o segundo grau por terem dificuldade com transporte. Eu gostaria de não passar pelo mesmo”, conta Vitória. No momento, as escolas

mais próximas de ensino médio ficam apenas no centro e nos bairros Sharlau e Campina, considerados por eles, mais perigosos que a vila em que moram.

A MÚSICA COMO SONHO E ESPERANÇA Mateus, 21 anos, é o irmão mais velho, e serve de exemplo para suas irmãs, que buscam nos estudos ter um futuro melhor. Ele não chegou a concluir o ensino médio, pois na época seus pais mudaram de cidade. “Meu pai recebeu uma proposta de emprego e fomos para Bom Princípio. Depois que voltamos não estudei mais”. Conta o jovem rapaz, que atualmente trabalha na Construsinos fazendo encanamento.

São os estudos que dão esperança para Mateus ter melhores oportunidades profissionais

Mesmo com todas as suas dificuldades e por não ter se formado no ensino médio, é quem mais proporciona nas irmãs, a vontade de estudar. Ele conta as barreiras que enfrentou no campo profissional e o quanto gostaria de ter tido outras oportunidades em sua vida. Apoiado pela namorada, Stephanie Nascimento de 18 anos, que hoje é professora, está se organizando para voltar a estudar. “Namoramos há 7 meses e nos conhecemos através das redes sociais. Ela me apoia muito e me faz ter vontade de voltar a estudar. Hoje temos em comum, a música. Nos cultos eu toco instrumentos e ela canta comigo”. O sonho dele é se tornar pro-

fessor de música, pois sabe o básico de violão, teclado e contrabaixo. Esse gosto veio aos 15 anos, quando viu na igreja em que frequenta, outras pessoas cantando e tocando música gospel, o seu estilo preferido. Nem a violência, a falta de escolas profissionalizantes e as dificuldades de infraestrutura, deixaram com que os sonhos dessa e de outras famílias, se acabem. Mas sim, são estas e outras barreiras que fortalecem os irmãos Oliveira a se unirem e batalharem por um futuro melhor em suas vidas e na vila Santa Marta. Bruna Henssler Fernanda Ochoa


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