Enfoque São Leopoldo Região Nordeste 3

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ENFOQUE SÃO LEOPOLDO

REGIÃO NORDESTE SÃO LEOPOLDO / RS JULHO DE 2021

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RAFAEL MOREIRA

INSEGURANÇA ALIMENTAR ATINGE REGIÃO

COM A DIMINUIÇÃO DE DOAÇÕES, FAMÍLIAS PROCURAM POR UM DIREITO BÁSICO: ALIMENTAÇÃO. MESMO COM APOIO SOLIDÁRIO, TODA A AJUDA AINDA NÃO SUPRE A DEMANDA DA COMUNIDADE. PRINCIPALMENTE DAS CRIANÇAS Página 3

JOVENS RENOVAM MOVIMENTO DE LUTA POR MORADIA

LEITURA FAZ PARTE DA REGIÃO NORDESTE

SOLIDÃO MATERNA NA PANDEMIA

Líderes da causa têm dado espaço e voz aos jovens com o objetivo de garantir a continuidade da luta com uma juventude forte e engajada

Associações tentam manter o hábito entre crianças e adolescentes através de espaços de leitura e bibliotecas abertas ao público

Dividir para somar. Projeto ‘Papo de Mulher’ foi criado com o objetivo de ser um espaço para as mães debaterem a maternidade em tempos de pandemia

Páginas 6 e 7

Página 8

Página 12


2. Editorial

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Moradores cuidam diariamente da horta comunitária da região Nordeste. É só atravessar a rua para colher alface lisa e crespa, beterraba e couve. Confira detalhes dessa iniciativa na página 4

De histórias e lutas

O

jornal Enfoque tem o propósito de ampliar a voz dos moradores de São Leopoldo, e nesta edição, o movimento não foi diferente. Registramos a batalha contra a fome na região Nordeste do município e o preconceito étnico, religioso e de gênero de quem tem como lar o local. Passamos ainda por uma situação conhecida por muitos brasileiros, a dificuldade de renda e moradia. Mas nem só de dores é feito o Enfoque, pelo contrário, a resistência e alegrias os moradores encontraram espaço nas páginas do jornal, que contou sobre vidas dedicadas a um propósito, de movimentos políticos e culturais, de incentivo ao desenvolvimento de crianças e jovens. De tudo isso é feito o Enfoque. Embarcar neste jornal é poder acompanhar um pouco do dia a dia de quem mora nas comunidades desta região. Ver a dedicação de quem busca o melhor para todos, mesmo em meio às dificuldades que sempre foram muito presentes no local e que se agravaram pela pandemia da Covid-19 (que

já levou mais de 500 mil vidas só no Brasil, desde março de 2020). Porém, a perseverança e a dedicação diária fazem com que os moradores encarem de frente as adversidades. São os frutos e caminhos desse empenho que registramos nesta terceira edição voltada para a Região Nordeste, que fica marcada pela possibilidade de alguns repórteres e nossos fotógrafos conseguirem colocar os pés nestes bairros e conhecer as

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Região Nordeste é um jornal-laboratório dirigido às comunidades dos bairros Rio dos Sinos e Santos Dumont, em São Leopoldo (RS). A publicação tem tiragem de 1 mil exemplares, que são distribuídos gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do curso de Jornalismo da Unisinos (campus de São Leopoldo). | REDAÇÃO | REPORTAGENS – Disciplina: Jornalismo Comunitário e Cidadão. Orientação: Rafael Grohmann (rafaelgrohmann@unisinos. br) e Évilin Matos Campos (evilin.matos.jornal@gmail.com). Repórteres: Amanda Bier, Cristina Bieger, Daniela Gozatto, Douglas Glier, Emerson dos Santos, Gabriel M. Ferri, Gabriel Reis, Giuliano Reis, Henrique Kirch, Kévin Sganzerla, Laura Santos, Laura Rolim, Leonardo Oberherr, Mariana Necchi, Patricia Wisnieski, Vanessa Lourenço e Vitória Pimentel. Editores: Bábiton Leão, Jordana Fioravanti e Juliane Kerschner. IMAGENS – Disciplina: Fotojornalismo. Orientação: Flavio Dutra (flavdutra@unisinos.br). Curadoria e direção: Anderson Dilkin, Arthur Reckziegel, Clarice Almeida, Gabriel Muniz, Gustavo Bays, Mateus Grechi, Rafael Moreira, Rafaella Schardosim e Tayane Rocha. | ARTE | Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. | IMPRESSÃO | Gráfica UMA / Grupo RBS. Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: Pedro Gilberto Gomes. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Alsones Balestrin. Próreitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretor da Unidade de Graduação: Sérgio Eduardo Mariucci. Gerente dos Cursos de Graduação: Paula Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Micael Vier Behs.

instagram.com/jornalenfoqueunisinos

realidades relatadas; após quatro edições inteiramente à distância. O propósito de fazer-se sentir próximo e representado foi o que moveu a produção desta edição. Queremos que tu te vejas aqui. E, por isso, mesmo com o desafio da distância, em muitos casos, não medimos esforços para escutar vocês. Ao longo do semestre, conhecemos um povo forte e determinado. Muitas vezes felizes em meio ao caos. Gente

que tem seu lugar e merece ser escutada. Que precisa ser vista com olhos atentos pelo poder público, para ter condições de desfrutar da qualidade de vida. Foi uma viagem muito interessante. Obrigada Região Nordeste, até a próxima. BABITON DA SILVA LEÃO JORDANA FIORAVANTI ARENHARDT JULIANE KERSCHNER GUSTAVO BAYS

ONDE FICA A REGIÃO NORDESTE SANTOS DUMONT l l BOA VISTA

24.543 habitantes 2º bairro mais populoso

RIO DOS SINOS l l

SCHARLAU

4.705 habitantes 15º bairro mais populoso

ARROIO DA MANTEIGA

TELEFONES ÚTEIS CAMPINA SÃO MIGUEL VICENTINA

FEITORIA SÃO CENTRO JOSÉ FIÃO

PADRE REUS SÃO JOÃO BATISTA

CRISTO REI

PINHEIROS RIO SANTO BRANCO ANDRÉ CAMPESTRE JARDIM AMÉRICA

SANTA TERESA DUQUE DE CAXIAS FAZENDA SÃO BORJA

enfoquesaoleopoldo@gmail.com

Bombeiros 193 Brigada Militar 190 SAMU 192 Polícia Civil 3590 3737 Hospital Centenário 3590 1111 Polícia Rodoviária Federal 3568 2837 3568 2920


Alimentação .3

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Insegurança alimentar assola a região Com diminuição de doações, famílias procuram por um direito básico: a alimentação

(SCFV) e na Escola Comunitária de Educação Infantil (ECEI). Com o isolamento social, a associação permanece aberta apenas nas segundas, quartas e sextas-feiras para o atendimento de dúvidas e demandas. “As famílias nos procuram quase semanalmente em busca de comida”, conta a assistente social do Ammep, Letícia Cidade Silva. As três refeições diárias que eram oferecidas presencialmente foram substituídas por kits de alimentação oriundos do Banco de Alimentos, de parcerias, de doadores anônimos, de empresas privadas, do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), no caso da escola, e do PAA, para os jovens atendidos pelo SCFV. A cada quinze dias, 211 famílias podem ir à instituição retirar seu kit.

O

som da flauta recepciona os recém chegados. A menina de cabelos loiros e enrolados é a responsável pela trilha sonora enquanto suas duas irmãs brincam de cozinhar. Em panelas de brinquedo e potes de isopor, as meninas usam gravetos para mexer a comidinha. Uma brincadeira tão comum na infância ganha um sentido diferente na Ocupação Steigleder: a região é uma das mais afetadas pela insegurança alimentar em São Leopoldo. “É raro encontrar uma família que tenha condições de dar leite e frutas para as crianças aqui”, conta Dantara Katiele Macedo, uma das líderes da ocupação. Além da dificuldade financeira para comprar os produtos, muitos dos moradores não têm - ou perderam - o hábito de comer legumes e vegetais. Isso mudou quando as doações começaram a chegar. Com a ajuda da Rede Solidária, das doações e agora do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), mais de 300 famílias recebem refeições preparadas pelas lideranças da ocupação. A cozinha para o preparo das refeições fica em um galpão de madeira, sede do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), construído pelos braços dos próprios moradores. O local servirá para preparar e distribuir 140 almoços semanais até dezembro de 2021. A ação é feita com verbas do PAA, que distribui kits de alimentação provenientes da agricultura familiar da região. O objetivo do programa é, na verdade, distribuir os kits para cada família, mas a realidade da Steigleder pede medidas diferentes: “O botijão de gás é uma relíquia aqui”, explica Cleber Martins, líder da ocupação. Sem acesso ao gás, a saída é oferecer as refeições já preparadas. Os moradores com filhos, idosos ou catadores de lixo são a prioridade na fila de distribuição dos alimentos. Além dos almoços, aos sábados à noite são oferecidas sopas para toda a comunidade. “Aqui é

Crianças da Ocupação Steigleder brincam de fazer comida

“Acontece das crianças reclamarem de fome” Cristina Moura

Moradora da Ocupação Steigleder

Apesar das dificuldades, a Ocupação Steigleder segue mais viva do que nunca. Uma horta comunitária foi feita em frente ao galpão do MNLM. Mesmo com o frio e as chuvas que alagam as ruas sem iluminação, as hortaliças seguem crescendo fortes e saudáveis - uma representação dessa população que, mesmo desassistida pelo poder público, segue se fortalecendo e lutando pelo seu espaço. As refeições da comunidade são preparadas com alimentos doados tudo contadinho, a nossa realidade é a do povo mais pobre”, diz Cleber, ao contar que a comida é pouca e as famílias dividem entre si o que tem. Moradora da ocupação, Cristina Moura complementa: “Uma vizinha não tinha o que comer. Eu alcancei a nossa bacia de arroz porque sabia que ela tinha crianças em casa”. Ainda assim, as iniciativas para acabar com a fome na região não são suficientes. “Acontece das crianças reclamarem de fome. Uma

menina passou por aqui [no galpão] e perguntou se não tinha nada pra comer. Esquentamos rapidinho uma panela que tinha sobrado do almoço”, comenta Cristina. A fome não atinge apenas os habitantes dessa região da cidade: em 2020, cerca de 19 milhões de pessoas enfrentaram a fome no Brasil, conforme o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Covid. “A pandemia intensificou o problema de uma forma muito rápida e

cruel”, afirma Ana Carolina Mattos, presidente do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Leopoldo (Comsea). Na mesma região, há também organizações da sociedade civil que atuam na proteção social básica. É o caso da Associação Meninos e Meninas de Progresso (Ammep), que antes da pandemia atendia cerca de 300 crianças e adolescentes diariamente no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos

O COMSEA

O Comsea promove assembleias mensais para a discussão de temas relevantes ligados à alimentação. Sempre na terceira terça-feira de cada mês, a sociedade e os representantes do conselho podem se reunir virtualmente para debater. Neste mês, o tema será a segurança alimentar da comunidade indígena Kaingang. Para participar, basta solicitar o link de acesso pelo e-mail comseasaoleopoldo@gmail.com. VITÓRIA PIMENTEL RAFAEL MOREIRA


4. Alimentação

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De muda em muda para um bem maior Cooperação em hortas comunitárias viabilizará alimentação saudável e autonomia alimentar na Nordeste

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asta atravessar a rua para chegar à horta comunitária da região Nordeste de São Leopoldo. Assim indica Vanusa Patrícia Antunes de Sá, 32, que compõe a iniciativa que doará os alimentos ali plantados às famílias mais necessitadas do local. Moradora da Mauá, no bairro Rio dos Sinos, ela informa que a horta comunitária da qual faz parte começou há pouco tempo, em maio deste ano, e que eles têm o cuidado de acompanhar como ela está ficando. “A gente molha todos os dias, de tardezinha. Vem aqui, dá uma olhada. Não é aquele fluxo direto, porque, agora, quem tem que fazer isso é a própria terra. Mas as mudas já estão bem maiores”, comenta. Com mudas recebidas do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), do qual também faz parte, Vanusa explica que plantaram alface lisa Recebidas do MNLM, as mudas das hortas comunitárias servirão às famílias mais necessitadas após a colheita e crespa, beterraba e couve. Ela Em grupos de WhatsApp, conta que são, praticamente, acompanha. “Sinto um orgu- evidencia. Ele explica que alimentar e da retomada de 20 pessoas no grupo. “Todo lho muito grande, porque é todo o cuidado com a horta hábitos alimentares saudá- eles acompanhavam e pasmundo aqui da comunidade prazeroso fazer parte de uma é pelas famílias que recebe- veis. Além disso, tem sido savam orientações e as famívem dar uma olhada”, revela. obra tão linda”, reflete. rão os alimentos. “É em prol uma ferramenta importante lias registravam a produção e Porém, como fica em frente a Vanusa lembra que, quan- disso que nós estamos plan- de articulação e de esforço faziam trocas entre si. Após sua casa, é ela quem adminis- do criaram a horta, as crianças tando ali, que nós pegamos coletivo nas comunidades. isso, Cristiano destaca que tra e está sempre por perto, da comunidade ajudaram a no cabo da enxada e fazemos Ele elucida que a ideia re- passaram a pensar em uma começou principalmente estratégia mais ampliada, regando e cuidando das mu- plantar. Do mesmo modo, elas acontecer”, completa. das. Por ser merendeira esco- estarão lá no dia da colheita No local, ele diz que pre- agora, no período de pan- com a construção de lugares lar e, no momento, não poder dos alimentos. Além da hor- tendem plantar ainda mais, demia, em consequência da nas comunidades, para que prestar esse serviço em função ta, ela revela que estão com o mas, por enquanto, já têm dois real necessidade das famílias o trabalho fosse em conjundas escolas estarem fechadas, projeto de fazer uma pracinha tipos de alface, rúcula e couve. terem acesso a um alimen- to e, a alimentação, direcionada ao coletivo. ela é quem mais tem contato para as crianças no terreno ao Cleber conta que as mudas to de mais qualidade. A expansão também traz Em 2020, começou o procom a horta no dia a dia. lado, com brinquedos de ma- compradas pelo MNLM vieJá aos sábados, o dia em deira, que, a princípio, ganha- ram dentro de bandejinhas, jeto de hortas domiciliares, um viveiro de produção de que há reunião rão para montar das quais tiraram e plantaram em que cada uma das ocupa- mudas, para que possam ter da comunidade, “Sei que é algo o espaço. diretamente na terra. Assim ções organizou coletivos que autonomia em relação a elas é mais fácil dos A iniciativa como Vanusa, ele participa buscavam mudas, compradas e para manter a dinâmica de outros morado- que vai ajudar o de plantio de com a esposa e seus dois fi- pelo Movimento, e levavam distribuição nas hortas dores irem até lá. alimentos não lhos e demonstra grande apre- para produzir em suas casas. miciliares. Ele explica que próximo” Nesses dias, cofunciona, no ço por participar do grupo. Cristiano conta que isso já essa iniciativa foi desenvolmentam sobre o Cleber Martins entanto, ape- “Eu me sinto muito bem por gerou um processo extraordi- vida em outras regiões de São plantio e fazem Integrante do MNLM nas no bairro fazer parte da horta comu- nário de mudança no hábito Leopoldo, bem como em mais uma escala para Rio dos Sinos. nitária, porque eu sei que é cotidiano das pessoas. “Veri- cidades, como Passo Fundo que possam arrumar e limpar o Na ocupação Steigleder, no algo que vai ajudar o próximo ficamos quintais sendo trans- e Porto Alegre. Nelas, com formados e espaços que até experiências diversificadas, espaço. De acordo com ela, os Santos Dumont, o carpinteiro daqui a alguns dias”. então estavam ali, com ma- mas com a mesma ideia de moradores olham de pertinho e integrante do MNLM Cleteriais depositados, que aca- garantir o mínimo de autoe, se tem algum bicho, tiram ber dos Santos Martins, 34, AUTONOMIA baram sendo reaproveitados nomia alimentar, a retomada para que as mudas fiquem também atua na horta de sua ALIMENTAR Para Cristiano Schuma- para a produção de alimento de práticas de cultivo de alibem cuidadas. Em sua famí- região. “Por enquanto, nós telia, seus filhos, uma menina, mos nove participantes. Eu sou cher, 46, da coordenação do na própria moradia”, comuni- mentos e a volta do consumo de 14 anos, e um menino, de o coordenador da horta, junto MNLM, as hortas e a agricul- ca. Segundo ele, por mais que de alimentos saudáveis. nove, igualmente participam desses companheiros. No caso, tura urbana fazem parte de os locais fossem pequenos, DANIELA GONZATTO da iniciativa, assim como seu não tem chefe. É um grupo, uma experiência importan- as pessoas viabilizavam esGUSTAVO BAYS esposo, que normalmente a todos têm direitos iguais”, te de busca de autonomia paço para a produção.


Liderança .5

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Uma vida dedicada ao serviço social Marilene Maia é uma das protagonistas no apoio de lutas pelos direitos básicos das ocupações de São Leopoldo

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cupar, pelo dicionário, é tomar posse de uma propriedade ou lugar, normalmente terras improdutivas. Mas, ocupar também é acompanhado de sinônimos como esquecimento e falta de subsídio do poder público. Nessa realidade, na região nordeste de São Leopoldo, o cenário das ocupações é, na mais otimista das descrições, precário. É nesse contexto, através de estradas de chão estreitas e esburacadas, com lixo a céu aberto, casas construídas sob chão batido, sem condições dignas de moradia, com armários de comida praticamente vazios, Devido à pandemia, Marilene (esquerda) dedica até oito horas ao trabalho nas comunidades sem água potável nas torneiras ou luz elétrica regularizada, que prometimento e o olhar atento da Unisinos através da Rede país, agravadas ainda mais pela Marilene Maia, ou Meni para a quem é marginalizado é o que Solidária São Léo e do Movi- pandemia do coronavírus. São os mais próximos, se dedica ao a torna tão necessária para a mento Nacional de Luta pela crianças sem condições de esserviço social. A buscar alterna- construção da vida em comuni- Moradia, que desde setembro tudo e aprendizado, mulheres tivas e saídas para solucionar dade e para mudar a realidade se constituem em um espaço grávidas sem fazer o pré-natal, e minimizar a precariedade em imposta a muitas famílias. Seu de resistência. Marilene acom- ou com crianças que com 10 que vivem comunidades carac- trabalho, muito além de ensi- panha, além dos residentes em a 12 anos, apesar de estarem terizadas pela ocupação e dis- nar, é aprender com quem tem saúde mental, estagiários em na escola não sabem ler. São serviço social e voluntários que casas que incendeiam após criminadas socialmente. muito a compartilhar. se somaram a esse coletivo. Ao terem feito um fogo de chão, Dos 60 anos de idade, 30 são dedicados à profissão, uma DEDICAÇÃO E todo, contabiliza cerca de 40 a pois não tem gás, e quem já atividade que a caracteriza há TRABALHO CONJUNTO 50 pessoas no trabalho direto e não tinha muita coisa, perde Desde o início da pande- semanal com as comunidades. o que ainda lhe restava. mais tempo do que ela pode “Quando a gente identifica contabilizar. Está inserida nas mia, em 2020, Marilene tem “É bonito ver essa interlocução comunidades desde muito dedicado diariamente cerca de entre as organizações e as co- que cresce o número de ocupanova, e sempre entendeu que a seis a oito horas ao trabalho co- munidades no cotidiano das co- ções urbanas com toda a precamunitário. “No munidades”, completa. riedade, pois não há quaisquer vida comunitária início da pandepossibilidades de políticas púpodia ser fortale- “É bonito ver mia, fiquei muito DESAFIOS E blicas, garantidoras de construcida, se melhor ção de moradias dignas para organizada e ar- essa interlocução preocupada com RECOMPENSAS a situação que “Penso que em meio a esse toda a população. Vamos dando ticulada. “Penso entre as as comunidades cenário que vivemos de tan- conta que os desafios são muito que a gente se faz como gente, organizações e as passariam a ter tas incertezas, um tempo tão grandes e que, em meio a todos por conta de to- difícil, não só pela pandemia, esses desafios, especialmente a como pessoa, das as exigências mas também pelos dualismos, população que vive tudo isso, pelos processos comunidades” de higiene e de pelas descontinuações de vida ainda encontra motivos para sociais cons- Marilene Maia uso de distancia- de forma tão impressionante levantar todo dia e ir a luta, truídos, pelas Assistente social mento. Conhe- no mundo inteiro, são desafios de pensar em alternativas de relações sociais construídas, que vão desde a fa- cendo as dificuldades de aces- revelados na vida de crianças, organização para que juntos mília, a comunidade, o territó- so à água, acesso a recursos, adolescentes, jovens, mulhe- encontrarem saídas para suas rio, o município onde moramos, ambientes muito pequenos, res, homens, idosos, que não dificuldades, que são incansáe cada um desses ambientes sem qualquer possibilidade de tem acesso a garantia de uma veis em acolher universitários tem algumas exigências e al- distanciamento, eu entendi que vida digna, com uma moradia para aprenderem a vida como gumas potencialidades para eu deveria priorizar o meu con- com condições como água, ela é, que experimentam a solise fazermos como cidadão vívio nesses espaços”, explica luz, saneamento, alimento dariedade na sua radicalidade, Meni, que precisou também saudável, sustentável, com pois dividem tudo aquilo que melhor”, comenta Meni. Doutora em Serviço Social, se reorganizar em casa, com nutrientes para o desenvolvi- tem. É muito lindo acompanhar a partilha dos alimentos, até com eixos de estudo e aprofun- sua família, para poder dedi- mento”, comenta Meni. A vida nas ocupações e co- o seio materno é partilhado damento em políticas públicas, car-se ao serviço social. Mas esse trabalho não é munidades pobres revela tristes junto com os cuidados com as gestão social e organização comunitária, Marilene vai muito desenvolvido sozinho, conta realidades sobre uma parcela crianças, as mulheres umas das além do que aprendeu em sua com a ajuda de professores, considerável da população de outras”, explica Meni. “Então, entendo que a formação. A dedicação, o com- alunos, estagiários e egressos São Leopoldo, do estado e do KARINA CAMILLO (CURADORIA DE GUSTAVO BAYS)

vida e a experiência da vida comunitária é uma sementeira que poderia e deveria ser experimentada por toda a sociedade. De ter unidade nos seus processos, nos seus projetos, para que todos possam ter garantidos os seus direitos de viver”, completa.

UMA VOCAÇÃO, MUITAS MOTIVAÇÕES

O trabalho realizado por Marilene é também de desafios diários, lutas internas e externas para conquistar o que é de direito das comunidades. Ela enfatiza que todos nós, independente da área profissional ou do território onde vivemos, temos o compromisso de cidadania. Segundo ela, sua vocação conta com três motivações: profissão, compromisso como educadora e compromisso ético-cidadão. A profissão de assistente social se constitui para de fato contribuir para que se estabeleçam outros padrões de relacionamento, que estejam centralizados na sociedade e não na economia. “Tenho esse propósito profissional, e que é constitutivo do nosso projeto ético-político, em que a democracia, os direitos sociais, as políticas públicas, a justiça social, a equidade, sejam pilares das nossas construções, independente do espaço onde atuamos”, comenta Meni. Com relação ao seu compromisso como educadora e ético-cidadão, por atuar em uma universidade comprometida com a formação e desenvolvimento humano, voltando seu olhar para a vida nas diferentes dimensões - social, econômico, político, cultural, religioso, interdisciplinar- e encontrando o seu sentindo, em estabelecer uma relação direta com as realidades vividas por todos os segmentos populacionais, organizações. “Penso que esse lugar da vida pulsada e que, ao mesmo tempo, é negada, é um lugar importante para a universidade estar para aprender, contribuir em mudanças radicais. Acabo me dando conta que nunca me distanciei disso, nunca me distanciei do trabalho comunitário”, conclui Marilene. CRISTINA BIEGER KÉVIN SGANZERLA


6. Liderança

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Por sonhos, jovens renovam luta pela moradia Lideranças apontam que a juventude representa a continuação do MNLM

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Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) foi criado há 31 anos, em julho de 1990, no 1º Encontro Nacional dos Movimentos de Moradia, realizado em Goiânia, Goiás. Apesar de a luta por moradia digna estar intrinsecamente ligada ao ser humano, foi somente naquele momento que surgiu, no Brasil, um movimento organizado capaz de unificar as lutas e qualificar a articulação desses movimentos menores em relação ao Governo Federal. Há 31 anos, entretanto, Gabriela Schilling da Silva, 23, Geisiele Severo, 22, e Lucas Schwarzbolt, 21, não eram sequer nascidos. E você pode não saber, mas eles Gabriela (de óculos) em manifestação recente com jovens do MNLM são alguns dos responsáveis pelo fato de o MNLM continu- (FJP), faltavam seis milhões mais recente com a causa, pou- disso, daqui a poucos dias, a ar lutando pelas pessoas que e 355 mil moradias. co mais de oito meses, quando família vai aumentar, Geisienecessitam de moradia. Esses dados vêm para com- o MNLM passou a organizar a le está grávida e o pequeno “Fazemos isso para que provar uma realidade que vi- ocupação da Avenida Mauá. Bernardo vem por aí. mais famílias saiam de baixo sualizamos diariamente nas De acordo com André Luiz, um Apesar de não fazer parte da ponte, para que tenham o grandes cidades: a quebra de dos líderes da ocupação, o es- de nenhuma ação jovem do direito de morar.” É assim que um direito garantido por lei. paço está em funcionamento MNLM, ela já é uma das lideranGabriela explica as motivações Afinal, desde 1988, o direito há nove meses e abriga em ças da ocupação. “Eu me vejo da luta por moradia e da ocupa- à moradia é assegurado pela torno de 75 moradores. lutando junto ao Movimento ção, que passaram a fazer parte Constituição Federal. Assim “O MNLM é um movimento no futuro, lutando por pessoas da sua vida através do relacio- como o direito à moradia dig- que dá esperança”, define Lu- que precisam de uma casa para namento com o pai, Mauro Nu- na é reconhecido na Decla- cas, que se reconectou à luta morar. Viva a luta pela moranes da Silva, um dos represen- ração Universal dos Direitos na Ocupação Mauá. Ele ainda dia!”, finaliza Geisiele. tantes nacionais do MNLM em Humanos desde 1948. não desempenha um papel de São Leopoldo. “Desde que me Gabriela mora atualmente liderança na estrutura inter- DESAFIOS E entendo por gente, ia passear no Loteamento Bom Fim, bair- na do movimento social, mas EXPECTATIVAS Gabriela afirma que a panna casa do meu pai e sempre ro Santos Dumont, na região participa acompanhando os estive com ele Nordeste de São acontecimentos na Ocupação demia e o Governo Bolsonaro acompanhando Leopoldo, área já Mauá. “Lá nós somos uma fa- dificultaram em muito o acesso reuniões e ocu- “O Movimento em processo de mília, não de sangue, mas de à moradia digna. Levantamento do Instituto de Estudos Sopações”, revelou enxerga os regularização coração”, diz o jovem. a jovem. Ela confundiária, trabaLucas fez parte da ocupação cioeconômicos (Inesc) mostrou ta que naquela jovens como lho que também nos primeiros meses, antes da que, a partir de 2019, houve um época não en- o futuro” recebe o auxílio chegada do MNLM, e afirma bloqueio de mais de 90% nas tendia muito do Movimento — que a causa estava quase per- verbas destinadas aos prograbem o que tudo Gabriela Schilling após a ocupação dida. Na visão dele, o apoio mas habitacionais. “Quem está aquilo significa- Integrante do MNLM — e consiste na do Movimento é fundamental na frente dessa luta já conseva, mas que, conescrituração dos para que as pessoas que vivem gue ver o impacto disso ”, desaforme os anos foram passando, terrenos em nome das famílias nas ocupações vençam suas bafa. Afinal, ela lembra que não se aprofundou nas causas do assentadas. Além disso, ela faz lutas pelo direito à moradia se trata apenas de moradia: movimento e entrou na luta. parte da liderança do grupo de digna. “Assim como o MNLM “Já tiramos crianças de den“A moradia é um direito, não jovens do MNLM no município. me ajudou, eu pretendo ajudar tro de valo, gente comendo só um privilégio”, afirma. “O Movimento enxerga os jo- outras pessoas também, para lixo”, contou, ao comentar que, Segundo a Pesquisa Nacio- vens como o futuro”, diz. que possam ter uma opor- para essas famílias, moradia digna traz também melhores nal por Amostra de Domicílios Há poucos quilômetros dali, tunidade”, completa. (PNAD), de 2015, 7,906 milhões na Ocupação Mauá, outros dois Geisiele, que mora com o condições em vários aspecde propriedades desocupadas jovens também apresentam marido, Cristian, e com o filho, tos, como saneamento básico teriam potencial para se tor- grande envolvimento com a Pedro, de apenas quatro anos, e um espaço para que as criannarem moradia no país. Mas luta por moradia digna. Lucas fala por todos os moradores da ças possam estudar. De acordo com a jovem miapesar disso, o Brasil conta conheceu o MNLM há aproxi- Mauá ao definir o sentimento com um déficit habitacional madamente 15 anos, quando ia que carrega após os últimos litante, apesar de não contar alarmante. Em 2015, segun- em manifestações com a mãe, meses. “O MNLM significa com apoio federal ou estadual, do a Fundação João Pinheiro Janaína. Já Geisiele tem relação muito para todos nós.” Além o MNLM seguiu unido e coloGABRIELA SCHILLING / ARQUIVO PESSOAL

cando em prática os projetos no município. “O Movimento foi abandonado pelo Governo Federal, mas segue lutando. Graças a Deus temos apoio municipal, através do nosso prefeito Vanazzi”, afirma. “É surreal ver pessoas, antes necessitadas, morando num espaço digno, que tenha água, luz”. Gabriela entende que o movimento procura por igualdade social e garante que, hoje, milhões de brasileiros estão abrigados por causa dessa luta. “Batalhamos por projetos e por espaços, ocupamos, enfrentamos a polícia, por sonhos”, diz. Durante a pandemia, a jovem confessa que as ações do MNLM foram afetadas e que algumas reuniões passaram a acontecer em ambiente virtual, o que levou à uma queda na participação dos moradores das ocupações, já que falamos, em alguns casos, de pessoas em situação de extrema pobreza. Sobre a relação entre o MNLM e a juventude, Gabriela afirma que os jovens têm seu espaço dentro do movimento. “O Movimento abraça e inclui o jovem nessa luta, prepara-o para ocupar novos espaços de liderança, o que é a minha vontade”, revela. Ela diz que os líderes mais antigos da causa ouvem e entendem os mais novos e que isso constrói uma juventude muito forte e engajada. “Eu me vejo muito mais à frente lutando pelo direito à moradia digna. Me vejo ocupando os novos espaços de liderança, tendo maior lugar de fala”, diz a jovem, ao afirmar que seria importante para o Movimento ter alguém que cresceu nessa luta desempenhando esse papel. Se depender dela, o MNLM vai seguir por mais 30 anos lutando e assegurando o direito à moradia. “A luta pela moradia mudou a minha vida. É algo que veio para ficar”, concluiu. E ela não vai estar sozinha. Geisiele conta que o pequeno Pedro já está aprendendo sobre a importância de lutar pelos seus direitos e espera que o filho faça parte dessa luta no futuro. EMERSON SANTOS LEONARDO OBERHERR


Liderança / Lazer .7

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Movimento busca aproximação com jovens Nos últimos anos, Movimento promoveu debate maior em temas relacionados à juventude

“E

xistem, hoje, vários casais jovens, com menos de 30 anos, liderando ocupações”, afirma Cristiano Schumacher, 46 anos, membro da Direção Nacional do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). Ele é um dos representantes do Movimento em São Leopoldo e vive, atualmente, na Cooperativa Habitacional Bom Fim, localizada no bairro Santos Dumont, na região Nordeste do município. Cristiano lembra que seu engajamento na luta por moradia teve início há mais de 25 anos, quando morou na Ocupação Santa Marta, mas que antes disso já apoiava os movimentos estudantis. De lá para cá, ele teve participação no desenvolvimento de diversas ações do MNLM no Rio Grande do Sul e ajudou o Movimento a se aproximar dos jovens. “Nos últimos anos, especialmente a partir de 2010, temos feito

um debate mais aprofundado nos temas relacionados à juventude, tentando construir cada vez mais lideranças numa faixa etária menor e com a perspectiva de estar envolvendo os jovens na militância política e no engajamento da luta por moradia”, revela. De acordo com o diretor nacional do MNLM, em São Leopoldo há a execução de um trabalho direcionado aos pré-adolescentes e adolescentes por parte do Movimento, no sentido de preparar jovens para a luta por direitos através de atividades culturais e educacionais. Cristiano destaca que essa ação é fundamental na construção de um cidadão pleno de direitos e consciente do seu papel na sociedade. Mas mais do que isso, essa aproximação do MNLM com pautas jovens é importantíssima para que o movimento continue existindo e defendendo a sua principal bandeira, a luta por moradia digna. “O Movimento sempre teve uma dinâmica de trabalho com as famílias, com o objetivo de construção de cidadania, de ser protagonista do processo

Em 2003, Gabriela foi com o pai a uma reunião do MNLM de luta, de reivindicação de seus direitos”, destaca Cristiano. Apesar disso, ele entende que foi preciso criar conexões mais fortes com os jovens e que isso se deu através do debate maior nas questões da cultura e da educação. Para ele, essa é a visão que deve guiar a luta do MNLM. “Nós trabalhamos com a família, e isso inclui os jovens, já que são todos eles, todo o conjunto da família, que vai acampar, que fica debaixo da lona”, completa.

SOBRE A INICIATIVA

Cristiano Schumacher assegura que o MNLM se consolidou também como ferramenta importante na defesa da reforma urbana, dos direitos sociais, na organização das comunidades contra os despejos e na luta por conquistas na infraestrutura urbana. Ele afirma que a capacidade do Movimento de lutar pelas pessoas em tantas frentes é sempre respondida com gratidão e com a promessa de defesa dos

Os games na Nordeste Nem só de trabalho vive o ser humano. Ainda mais nesses tempos. E os games também são uma forma de lazer na região Nordeste. Tainã Rodrigues, 14, moradora do bairro Rio dos Sinos, em São Leopoldo, não tem o costume de jogar diariamente, mas utiliza os jogos, mais especificamente o Free Fire (jogo de ação-aventura em mapa aberto), para se divertir e socializar com os amigos através do chat de voz. “Essa distração foi muito importante, principalmente no período de isolamento social, no qual sair e ver os amigos não era uma opção”, comenta. O principal jogo é o Free Fire, game de ação-aventura em mapa aberto. Segundo a Pesquisa Ga-

mes Brasil (PGB), publicada no início de 2021, 72% dos brasileiros têm o costume de jogar. Destes, 41,6% têm o celular como principal plataforma. Na última década, os smartphones popularizaram-se no país. Com isso, os desenvolvedores de jogos passaram a olhar mais para esse mercado. Além disso, pode ser mais barato jogar pelo celular do que comprar um computador ou um console, aquele equipamento dedicado aos games. Marcelo Lopes, 22, auxiliar de produção, morador da Vila Brás, também ressalta a boa relação custo-benefício do celular para jogar. “Eu jogo no celular pelo baixo custo que precisa para rodar os jogos, sendo esse quase

Freefire foi o jogo mais baixado em 2020 nulo, as vezes dependendo só de uma conexão com a internet. Então raramente gasto em algo a mais”, diz. O jovem atualmente foca nos jogos MOBA (Arena de batalha multijogador) e MMO (Jogo Multijogador Online em Massa). “Os consoles e jogos desenvolvem funções motoras e de raciocínio no

REUNIÃO DO MNLM: GABRIELA SCHILLING / ARQUIVO PESSOAL

nosso corpo e mente, relação que já foi estudada na psicologia. Além disso, são uma terapia, uma forma de escapar da realidade, mesmo que por alguns minutos”, conta Marcelo, que joga desde os 6 anos.

CAMPEONATOS

A participação em cam-

direitos do próximo. “Mesmo depois de termos ocupações consolidadas, quando há a tendência de desmobilização por conta dos objetivos alcançados, a gente percebe que a passagem do MNLM pela história das pessoas construiu cidadãos e cidadãs capazes de participar de reuniões, discutir seus interesses e os interesses da comunidade”, reitera. Ele entende que essa é a parte que o Movimento toma na luta por moradia, a de forjar pessoas preparadas, que vivenciaram lutas e que continuarão contribuindo com a mobilização na sociedade e com a defesa do direito à moradia digna. É esse caminho que aguarda Gabriela Schilling da Silva, Geisiele Severo e Lucas Schwarzbolt, jovens que foram abraçados pela causa e vêm trilhando um caminho de liderança no Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e nas comunidades leopoldenses. EMERSON SANTOS LEONARDO OBERHERR

peonatos não é descartada por Tainã e Marcelo, que possuem interesse futuro no segmento. “Sim, eu sempre quis ter uma chance” disse Tainã. “Eu jogo de forma casual mas fico de olho em possibilidades de entrar no modo competitivo algum dia, tenho vontade de participar de campeonatos”, afirma Marcelo. Free Fire, o jogo mais baixado na Play Store em 2020, possui o campeonato Taça das Favelas, que é disputado por comunidades do país inteiro e organizado pela Central Única das Favelas (CUFA) e pela Garena, empresa responsável pelo desenvolvimento do jogo. A competição tem como premiação 30 mil reais, mostrando que os jogos mobile vieram para ficar e para todo mundo. GABRIEL M FERRI MATEUS GRECHI


8. Lazer

ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | REGIÃO NORDESTE | JULHO DE 2021

Hábito de leitura se fortalece na região Cresce número de pessoas que buscam uma opção de entretenimento nos livros durante a pandemia

N

o último ano, lives, entrevistas e repórteres trabalhando de casa tiveram como plano de fundo estantes de livros. Com a pandemia e a necessidade de ficar em casa, os brasileiros retomaram o hábito da leitura. Uma pesquisa da empresa de monitoramento de livros digitais, Bookwire Brasil, revelou que as vendas duplicaram no período de quarentena. Já a Retratos da Leitura no Brasil mostrou que, apenas em abril de 2020, o movimento em sites de sebos e livrarias cresceu 50%. Alheio a esses números e à importância da leitura, o Governo Federal segue com a proposta de taxação de livros. O projeto que foi enviado ao Congresso em julho do ano passado prevê aumento de 12% nas obras literárias. A justificativa é de que “famílias com renda de até dois salários mínimos não consomem livros não-didáticos e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos”. Na contramão do que o Governo acredita ser a realidade, os dados da Retratos da Leitura no Brasil mostram que a faixa que mais parou de investir em livros, desde 2015, foi justamente a que recebe mais de dez salários mínimos, de 82% para 70%.

Contrariando as pesquisas, crianças da Steigleder se reúnem para uma manhã de leitura

“Todos livros que li até o momento me encantaram” Ana Júlia Rossauer

Moradora do Santos Dumont

DISTRIBUINDO CONHECIMENTO

Na Vila Brás, região Nordeste de São Leopoldo, a Associação de Moradores mostra que a leitura ainda faz parte do dia a dia da comunidade. De acordo com a diretora, Marilda Matheus, o local possui uma biblioteca com livros de todos os tipos, incluindo infantis e didáticos. A diretoria, que atua voluntariamente, batalha para manter o local funcionando, já que é sem fins lucrativos e não possui ninguém atendendo de forma permanente na sede. Na região, a Associação Meninos e Meninas de Progresso (Ammep), promove a leitura para as crianças e jo-

Em casa, Ana Júlia reserva um período do seu tempo para colocar a leitura em dia vens da comunidade. Segundo a psicóloga Jheine Boardmann, a instituição tem o hábito de promover a leitura. “Nós temos biblioteca e espaços de leitura aqui na Ammep. Atendemos o público de crianças a partir de 4 anos e jovens de até 17 anos incompletos”, relata. Jheine também conta que a instituição, no dia 11 de junho, realizou uma entrega

de livros. "Essa iniciativa é pontual, mas entregamos kits de livros para as crianças da comunidade", explica.

LEITURA PARA TODOS

A jovem Ana Júlia Angler Rossauer, de 20 anos, mora no bairro Santos Dumont, na região Nordeste, e mantém o hábito de leitura vivo. Ela conta que o incentivo da fa-

mília e da escola foram importantes para gostar de ler. “Em casa, foi por meio de leituras infantis e por contato com revistas, jornais, encartes de lojas e livros de diversos tipos. Na escola, foram os trabalhos e atividades com visita de autores”, explica. Durante a pandemia, Ana Júlia chegou a ler 10 livros a mais do que antes do período

de isolamento. Sobre os títulos preferidos, ela não consegue escolher. “É difícil, todos livros que li até o momento, de um jeito ou de outro, me encantaram. O que posso é citar autores que gosto de ler. Paulo Freire, Anne Frank, Leisa Rayven, Myriam Rawick e John Green são alguns deles”, contou. A jovem, que adquire os livros em sebos e na biblioteca da escola na qual trabalha, acredita que eles não são acessíveis a todos. "Comprar em uma livraria, um novo, é caro. Preferir o usado, como eu costumo fazer, ou trocar os que já li não se torna tão caro. Mas muita gente não tem essa condição para comprar um livro", afirma. DOUGLAS GLIER GABRIEL MUNIZ ARTHUR RECKZIEGEL


Lazer .9

ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | REGIÃO NORDESTE | JULHO DE 2021

O papel transformador da contação de histórias Coletivo Carolina de Jesus promove ações educativas e culturais com crianças do Loteamento Padre Orestes

com 19 voluntários, de diferentes áreas e profissões, que dividem as tarefas e os gastos.Apesar do momento pandêmico,que deixa tudo mais difícil, Paloma destaca que o grupo está muito empenhado em envolver a comunidade. “Devido à pandemia, não estamos conseguindo chegar nos lugares e nas pessoas da forma que a gente gostaria,então está sendo um desafio fazer com que a comunidade se sinta parte do Coletivo. É um trabalho diário, de persistência. Aos pouquinhos, vamos construindo esse projeto tão bonito,que nasceu dessa ideia de que juntos e juntas podemos mudar o que precisa ser mudado por uma sociedade mais justa, de iguais”, conclui.

A

leitura e a arte podem transformar vidas. É nisso que aposta o Coletivo Carolina de Jesus, iniciativa independente que promove contação de histórias, rodas de conversa, brincadeiras, oficinas de desenho e distribuição de lanches para as crianças que vivem no Loteamento Padre Orestes, no bairro Santos Dumont, em São Leopoldo. Fundado no final de 2020, em meio à pandemia, o projeto nasceu com o objetivo de oferecer um espaço pedagógico e cultural para os moradores da região. O local também conta com biblioteca comunitária, brechó e grupo de mulheres. Segundo Paloma Daudt, 32 anos, professora da rede pública de Campo Bom e Nova Santa Rita e integrante do Coletivo,o projeto é recente, mas já conquistou os pequenos.“Entramos na comunidade num momento muito crítico, em que as crianças estão longe da escola há mais de um ano, então elas sentem a necessidade de estarem lá. Muitas já se referem ao projeto como ‘a escolinha’ e na hora de ir embora querem ficar mais”,conta Paloma.Atualmente, devido à necessidade do distanciamento social, as atividades estão acontecendo apenas nas segundas-feiras. “Espero que a gente consiga passar logo por esse momento difícil para ir ampliando o nosso trabalho e o número de pessoas engajadas”, salienta. Ainda,de acordo com Paloma, apesar de pouco tempo de projeto, o Coletivo tem se mostrado importante na vida da comunidade.“Além das crianças estarem longe da escola, outro fator que vemos muito forte é a desigualdade social. Ela vem permeada de muitas questões, como da fome, da pobreza e também da falta de acesso às informações e ao conhecimento. A gente não esperava que fosse tão presente, mas a desigualdade se coloca muito para nós”, relata. Paloma comenta ainda sobre a importância da leitura com as crianças, principalmente nesse momento em que muitas estão sem aula. “O contato com a literatura é essencial. Hoje, a maioria das crianças que vão no Coletivo não são alfabetizadas, inclusive algumas

O IMPACTO DOS PROJETOS SOCIAIS

Crianças participam das oficinas disponibilizadas pelo Coletivo Social Carolina de Jesus tem 12 anos e ainda não sabem A história do Coletivo ainda nas coisas, mas que vão fazer a ler e escrever, então já estamos tem muitas lutas pela frente e diferença na vida das crianças e pensando em como trabalhar isso objetivos traçados para trazer a dos adultos”, conta Eveli. com elas também”, revela. comunidade ainda mais para o Para as duas, não há dúvida, o Outro ponto destacado por projeto.“Por enquanto, por causa projeto já deu mais certo do que Paloma é que, no momento da da pandemia,estamos começando elas imaginavam. Apesar de ter hora do conto, muitas crianças se devagar, mas, além da contação sido fundado em 2020, a primeira identificam nas histórias e fazem de histórias, a ideia também é fa- ação envolvendo a comunidade associações com suas próprias vi- zer terapia com as crianças com ocorreu, efetivamente, em maio, vências. “A gente a ajuda da Maíra como relembra Paloma. “A pricostuma selecio- “Espero que a Morelle, psicólo- meira atividade que a gente fez nar livros e matega que atua com foi no dia 1º de maio,uma ação no riais que tenham a gente consiga a gente no proje- dia dos trabalhadores, para que a ver com a realidato. A Bruna Stei- comunidade pudesse conhecer o passar logo por de deles para que ner Assmann, espaço. Neste dia, também distripossamos debater. esse momento que é dentista, buímos cachorro quente, foi bem Durante as oficitambém está bem legal, e a partir disso começamos nas, por exemplo, difícil” envolvida com o as oficinas nas segundas, então temos pouca par- Paloma Daudt Coletivo, então a isso tem um mês. É um tempo ticipação de me- Professora gente planeja dar bastante curto, mas já estamos ninas porque noraulas sobre hi- contentes com os resultados”, malmente as mais velhas precisam giene bucal. Também queremos ressalta.“No dia 24 de maio, tamficar em casa cuidando dos irmãos. trabalhar questões sobre o meio bém realizamos uma ação com Por isso, sempre falamos sobre ambiente,ensinar a separação cor- os rapazes do grupo Terra Arte esse assunto nas rodas de conversa reta do lixo, e com as mulheres Trabalhadora que fizeram grafites e abordamos temas como igual- ainda vamos formar um grupo nos muros do Coletivo. Esse modade de gênero”, enfatiza. para falar sobre machismo e vio- mento foi muito bacana porque as Para Eveli Morbach, 50 anos, lência. Tudo isso está em pauta, artes foram construídas junto com autônoma e também voluntária tem várias atividades que ainda as crianças”, frisa Paloma. do Coletivo, o projeto tem sido queremos realizar. São pequeAtualmente, o Coletivo conta bem aceito, principalmente pelas crianças. “No momento, são 12 crianças que estão vindo com frequência.Durante a contação de histórias elas conversam, trocam experiências e vivências do dia a Interessados em contribuir com o Coletivo Carolina de Jesus podem entrar dia. A gente também sempre reem contato pelo telefone (51) 98162 1601. Dentre as principais cebe as crianças com lanches.Elas necessidades estão alimentos, livros, tintas, cabides, mesas, cadeiras e gelaesperam por isso. É um lugar que deira. Mais informações também podem ser obtidas através do Facebook tem muita fome, muito frio. Nem Coletivo Carolina de Jesus ou do Instagram @coletivocarolinadejesus. todos estão nessa situação, mas a sl. O projeto fica na Rua Cora Coralina, Nº 1145, Loteamento Padre Orestes, maioria está e a gente vê que os rebairro Santos Dumont. cursos são precários”, diz.

Saiba como ajudar o Coletivo

PALOMA DAUDT / ARQUIVO PESSOAL (CURADORIA DE RAFAELLA SCHARDOSIM)

No último ano, com o início da pandemia, muitos moradores da região foram afetados pelo desemprego, fome e diversos outros problemas socioeconômicos. De acordo com a coordenadora do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) da Região Nordeste, Nilmara Dias, os projetos sociais acabam tendo um papel muito pontual dentro das comunidades da região.“Aqui na Região Nordeste há muita carência, principalmente agora, com a pandemia, se intensificou ainda mais. É uma região que não possui indústrias, então o pessoal tem que sair daqui para conseguir emprego, o que muitas vezes fica mais difícil pela questão da locomoção.O município faz o que pode para dar assistência às comunidades, mas falta muita ajuda do Governo do Estado e Federal.Então os projetos sociais desempenham uma função essencial aqui”, explica. Para Nilmara, com as crianças há mais de um ano longe das escolas, projetos como o Coletivo Carolina de Jesus são fundamentais por incentivarem a socialização. “A gente tinha vários projetos de teatro e de dança que eram praticados nas escolas, mas, com a necessidade do distanciamento social, a maioria desses projetos tiveram que parar. Isso teve um impacto muito grande na vida das pessoas, principalmente das crianças que ficaram mais sozinhas, então os projetos sociais acabam suprindo essa falta de interação que se perdeu na pandemia”, finaliza. AMANDA BIER LAURA SANTOS


10. Iniciativas

ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | REGIÃO NORDESTE | JULHO DE 2021

Óleo de cozinha é essencial durante pandemia Iniciativa proporciona higiene, renda e preservação do meio ambiente aos leopoldenses

nal. Falo isso pois utilizo em minhas atividades domésticas e estou completamente satisfeita”, analisa.

ALTERNATIVA SUSTENTÁVEL

U

m dos principais métodos de combate à Covid-19 é a higiene. Sabendo que nem todas pessoas possuem condições de comprar itens de limpeza, um grupo de moradores da Ocupação Steigleder, região Nordeste de São Leopoldo, assumiu o compromisso de arrecadar óleo de cozinha para produzir barras de sabão caseiro. Desde o início da pandemia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem orientado que, para evitar a disseminação do novo coronavírus, é necessário o uso de máscara, distanciamento social e entre outros cuidados, é preciso lavar as mãos com frequência - com água e sabão ou usar álcool em gel sempre que necessário. Na tentativa de economizar com produtos industriais, moradores da ocupação têm buscado alternativas para garantir a higiene, além de combater a propagação do vírus. Nesse sentido, o espírito de empatia e amor ao próximo ecoa na Steigleder. A moradora Gislaine Garcia da Silva, 31 anos, conta que além da questão de higiene, a arrecadação contribui com o meio ambiente. “Nesta iniciativa, ajudamos a salvar a natureza e dar um destino correto para os restos de óleo de cozinha”, afirma. Visto que o produto é altamente poluente, podendo prejudicar água, solo e, até mesmo, atmosfera. Após mais de um ano do início da pandemia no Brasil, o coronavírus segue impondo desafios para a sociedade. Mesmo com mais de 25 mil pessoas vacinadas com a segunda dose em São Leopoldo, a orientação é continuar com os métodos de prevenção. Sendo assim, lideranças da ocupação seguem engajadas e focadas quando o assunto é “dar tchau pro vírus”. A ideia surgiu no início do mês de maio deste ano após especialistas da saúde alertarem para uma possível terceira onda. “Juntamos uma força-tarefa na busca pelo bem

Laine é a responsável pela arrecadação de óleo de cozinha para produção de sabão

Sabão é produzido dentro da comunidade a partir das doações de óleo de todos. Os sabões vendidos o vírus da pele. E no procesgeram renda para a Coope- so no qual o envelope viral rativa, já o material doado se dissolve, o vírus morre, contribui para a questão m e t a f o r i c a m e n t e . A ocupação sanitária da reSteigleder, no gião Nordeste”, bairro Santos conta Gislaine. O espírito de Dumont, em São O sabão ca- empatia e amor Leopoldo, conta seiro traz consigo um fator ao próximo ecoa com cerca de 230 famílias que modecisivo na luta na Steigleder ram à beira do contra o novo coronavírus. Segundo estudos Rio do Sinos e não possuem realizados por especialistas acesso a serviços básicos. Os da saúde, quando lava-se a residentes recebem apoio mão, a barra saneante solta do Movimento Nacional de

Luta por Moradia (MNLM) para desenvolvimento de projetos, regularização e acesso a direitos sociais. A residente da ocupação Jaqueline dos Santos Rodrigues, 37 anos, possui em sua casa um ponto de coleta para o óleo de cozinha. Além dele, há dois outros locais na Rua Dom Feliciano e no Galpão da Ocupação. “Para as pessoas que trazem o seu óleo usado, a gente recompensa com amostras do sabão caseiro. O qual é maravilhoso por si-

Na maioria dos casos, o óleo de cozinha usado em residências, bares e restaurantes é jogado no ralo da pia ou nos vasos sanitários. Além disso, há circunstâncias em que o produto é colocado em recipientes vedados e descartados no lixo orgânico comum. Entretanto, esses atos incentivam a contaminação do meio ambiente. Por sinal, o sabão produzido graças ao empenho dos moradores da Ocupação Steigleder é de ótima qualidade. Segundo o ocupante Carlos Dirani de Paula, 34 anos, o saneante caseiro é de ótima qualidade e possui diferenciais. “Uso o produto e tenho total direito de expressar minha opinião. Simplesmente dispensa comentários em relação aos materiais de higiene industriais. Todo mundo que utilizou disse que limpa muito bem”, destaca. Na fórmula do sabão, há um ingrediente que merece uma atenção redobrada: a soda cáustica. O caráter prejudicial deste produto está no contato com a pele e os olhos, e no uso ou descarte direto no meio ambiente ou esgoto. Porém, em reação com o óleo de cozinha, ele transforma-se em glicerina. “Tudo há uma dosagem certa e equilibrada. Com o sabão não é diferente. Ele é ideal para lavar louças, roupas e, até mesmo, um hidratante corporal. É até engraçado pensar que limpo minhas camisas com um material que contém o óleo que fritei pastéis”, reforça Carlos. Após encher os galões de óleo, o material é enviado à Cooperativa Mundo Mais Limpo. Formada por um grupo de mulheres residentes da Ocupação Justo, o objetivo do negócio é reaproveitar o produto usado para fabricar saneantes. Logo, proporcionando higiene, gerando renda e, ao mesmo tempo, contribuindo com a sustentabilidade do planeta. HENRIQUE KIRCH ARTHUR RECKZIEGEL GABRIEL MUNIZ


Iniciativas .11

ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | REGIÃO NORDESTE | JULHO DE 2021

Por um inverno mais quente Em São Leopoldo, roupas masculinas e infantis são as mais necessitadas no banco do agasalho

O

inverno só começa no dia 21 de junho, mas, as baixas temperaturas já podem ser sentidas no estado desde o outono. Todos os anos, as campanhas do agasalho se intensificam nesse período, e contam com a solidariedade do povo gaúcho para aquecer o inverno de quem mais precisa. Em São Leopoldo, desde o dia 19 de maio, vários pontos de coleta, distribuídos pela cidade, entraram para a campanha e já estão recebendo doações. Elas serão concentradas no Banco Municipal do Agasalho da cidade, localizado na sala 14 do Ginásio Municipal Celso Morbach, avenida Dom João Becker, nº 213, sala 14, onde também é feita a retirada de roupas, cobertores e calçados por parte da população. Segundo Francine Lucchese Dutra, gestora do núcleo do banco do agasalho, para acessar as roupas, basta ter um documento de identificação. “Caso a pessoa ou família tenha cadastro único do Bolsa Família, é possível um responsável fazer a retirada para todos os membros que estejam incluídos nesse cadastro”, explica.

TUDO É BEM-VINDO

Além das roupas, Francine comenta que também são doados cobertores, brinquedos, utensílios domésticos e calçados. Todas as doações são importantes e ficam disponíveis para a população. Neste ano, a campanha traz um enfoque para as doações Todas as doações de roupas masculinas, infantis e de calçados, são importantes que estão em falta no banco do agasalho. e ficam “Recebemos pouca masculina e disponíveis para roupa muitas vezes essas que recebemos já estão a população rasgadas ou em mau estado. É preciso que ao doar, as pessoas tenham a consciência de que outras pessoas vão usar essas roupas, por isso a importância de estarem em bom estado”, explica Francine. Todos os dias são disponibilizados cobertores e roupas de cama, com um controle por família, e por isso, é estipulada uma quantidade máxima diária para a doação, assim, conseguem manter o estoque e ajudar mais famílias. “Esperamos receber um número bom de roupas e cobertores para suprir o restante da temporada de inverno”, comenta Francine.

OPÇÃO PARA A COMUNIDADE

Além das roupas, o banco do agasalho possui um setor de roupas de festa, que não fica aberto ao público, dependendo de hora marcada para a escolha e empréstimo das roupas. “Até 15 dias antes da festa a roupa já está disponível para a retirada, tendo que ser devolvida até 15 dias após, já lavada”, explica Francine. Essa opção, que não gera custos aos moradores, está disponível para o acesso de todos. Horário de atendimento: de segunda a quinta-feira, das 8h30min às 13h (exceto em dias de muita fila, onde são disponibilizadas 25 fichas para atendimento). CRISTINA BIEGER KÉVIN SGANZERLA

Pontos de entrega de agasalho Hipermercado Bourbon Shopping Rua Primeiro de Março, 821, Centro Datwyler do Brasil Avenida Mauá, 2612, Centro Bioengenharia Avenida São Borja, 1123, Rio Branco Rossi Avenida Mauá, 2250, Centro CRVR Rua Dirceu Elias de Moura, 1550, Arroio da Manteiga Matriz Farmacêutica Rua Primeiro de Março, 575, Centro Unisinos Avenida Unisinos, 950, Cristo Rei Picorrucho Rua Independência, 367, Centro BIG Avenida Imperatriz Leopoldina, 45, São José Secretaria de Desenvolvimento Social Rua São Joaquim, 600, Centro

Semae Rua João Neves da Fontoura, 811, Centro Macromix Avenida João Corrêa, 1827, Centro; e Avenida Thomaz Edison, 2598, Scharlau Rissul Avenida Feitoria, 350, São José e Avenida Parobé, 260, Scharlau Leroy Merlin Avenida Getúlio Vargas, 2450, Cristo Rei La Mafia Rua Marques do Herval, 1133, Centro ACIST-SL Lindolfo Collor, 439, 5° andar, Centro Padaria do Gaúcho Rua Presidente Rosevelt, 621, Centro Academia Bella Forma Rua Honestino Guimarães 274, Campina Della Academia Avenida Feitoria, 523, Rio Branco Academia Metta Rua Graciano Luis Silveira 105, Santa Teresa

Academia Life Fit Club Rua Lindolfo Collor, 341, 2º andar, Centro Academia JT Studio Personal Rua Emílio H Dexheimer, 335, Jardim América Academia Titan Rua David Canabarro, 106, Morro do Espelho Active Academia Rua São Bernardo 79, São Miguel Academia No Pain no Gain Fitness Avenida Henrique Bier, 4519, Arroio da Manteiga Up Fit Avenida Henrique Bier 313, Campina PN Studio Personal e Funcional Avenida João Correa 588, Centro Espaço Tífani Schokal Rua Pery Luis de Freitas, 213, Scharlau New Village Academia Avenida Paulo Uebel, 1027, Campestre


12. Iniciativas

ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | REGIÃO NORDESTE | JULHO DE 2021

Maternidade em tempos de isolamento social Moradoras da Steigleder e organizadoras de iniciativas abordam dificuldades maternas na pandemia

E

m tempos de isolamento social, causado pela pandemia da Covid-19, que desde março de 2020 resultou em mais de 500 mil mortes no Brasil, a população precisou se adaptar a esse “novo normal”. Entre os grupos sociais que mais sofreram com os impactos causados pelas mudanças no dia a dia, estão as mães, afinal elas precisaram reorganizar suas vidas e tentar conciliar a responsabilidade de trabalhar para sustentar a família e a de cuidar e alfabetizar os filhos em tempo integral. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc), 7 milhões de mulheres precisaram abandonar o mercado de trabalho na última quinzena de março de 2020 para atender as demandas domésticas. Afinal, com as escolas e creches fechadas, quem cuiIntegrantes e organizadoras do ‘Papo de Mulher' reunidas após reunião daria dos seus filhos? Além de em muitos casos ções nas regiões periféricas de dários como grupos de costura da fala nos espaços coletivos. perderem a única renda fami- São Leopoldo para debater so- e de distribuição comunitária Jaqueline integra a coordenaliar ou precisarem readequar bre maternidade em tempos de de alimentos para a comuni- ção da Ocupação Steigleder, e o orçamento, as mães foram pandemia, o ‘Papo de Mulher’ dade, que por sua vez, junto em 2019, ela foi a anfitriã de levadas à exaustão. De acor- já marcou presença em mais ao amparo da Rede Solidá- um evento no qual acolheu do com o estudo “O impacto de uma comunidade na cidade, ria São Léo, ganhou o nome Dom Mauro Morelli, o prefeito da pandemia do coronaví- sendo a Steigleder, na região de Sonhos e Sabores. e todas as pessoas presentes rus e do isolamento social: Nordeste do município, a que Cristina também comenta no ato. Pegou o microfone e Examinando indicadores de mais teve encontros. que acredita profundamente motivou outras mulheres a comportamento da criança e Cristina Moura, 36, além no retorno positivo que ‘Papo participarem desta coordeda parentalidade’, realizado de fazer parte do ‘Papo de de Mulher' causou nas comu- nação. Este é o tema presente pela Faculdade de Medicina Mulher’, contribuiu para a nidades através de recordações nos diálogos realizados com as de Ribeirão Preto (FMRP – criação do grupo. “O projeto de relatos positivos de mães lideranças: participação das USP) com apoio da Fundação surgiu através da iminente que estavam enfrentando di- mulheres nos processos de Maria Cecilia necessidade de ficuldades. “Conseguimos dar organização e coordenação”, Souto Vidigal, “Além de mãe, acolher princi- acesso a atendimento pré-na- conta Marilene Maia, mem63% das mães palmente mães tal a mães gestantes que não bro da Rede Solidária São Léo tiveram sinto- era professora e gestantes e lac- tinham condição financeira de e co-coordenadora. mas depressivos tantes que estão pagar”, comenta orgulhosa. na pandemia. psicóloga” em situação de Cristina ressalta que não se MÃE, DONA DE Mais do nunvulnerabilidade. sabe o número exato de pes- CASA E PROFESSORA ca é necessário Gislaine Garcia da Silva O projeto surgiu soas que foram beneficiadas Mãe de cinco filhos, Gislaivoltar o olhar a Moradora da Steigleder através de uma pelo projeto, contudo, sua ne Garcia da Silva, 31, conta essas mulheres reunião no gal- criação gerou extensões que que no início da pandemia foi que têm vivenciado a solidão pão comunitário da comuni- permitiram criar outras ini- bem difícil, porque, além de da maternidade na pande- dade Steigleder”, conta. ciativas solidárias que plu- mãe, era dona de casa, promia. Frente a essa dificuldaApós o sucesso do primeiro ralmente atingiram de forma fessora e psicóloga. “Foi um de, através do programa Rede encontro, mais reuniões foram positiva as comunidades vulne- grande desafio viver esse moSolidária São Leo, que conta marcadas e outras comuni- ráveis de São Leopoldo. mento, sabe? Tendo de estar com o envolvimento da Uni- dades entraram no roteiro, “Observamos a presença sempre juntos e precisando sinos, foi desenvolvido o pro- como a Tancredo, a Vitória e das mulheres nas ocupações achar algo para entreter as jeto ‘Papo de Mulher'. a Redemix. Ao longo das re- como líderes e participantes crianças. Na verdade ainda Visando realizar reuniões uniões, as mães envolvidas das atividades. Elas, no en- é muito difícil, pois a gente semanais com mulheres que decidiram organizar outros tanto, não são a maioria e nem não para nunca e sempre tem são mães e residem em ocupa- projetos comunitários e soli- aquelas que ocupam o poder uma coisa ou outra pra resolARQUIVO DO PROJETO PAPO DE MULHER (CURADORIA DE CLARICE ALMEIDA)

ver ou fazer para eles”. Além disso, Gislaine ainda colabora nos cuidados com os sobrinhos.“Eu ainda estou com três sobrinhas, então estou com oito crianças em casa, com o mais velho tendo 14 anos e os demais ainda pequenos”. Diante dessa situação de dificuldade, a moradora da comunidade Steigleder aproveita para comentar o bem-estar que sentiu durante as reuniões do ‘Papo de Mulher, sempre citando a descontração e o aprendizado constante que todas as mães presentes tinham durante as reuniões, que, segundo ela, seguem acontecendo, mas sem datas fixas. Diante desses relatos podemos ver a força de todas as mães integrantes do projeto ‘Papo de Mulher'. Mesmo com o isolamento social e as mudanças no dia a dia de todos, essas mulheres se mantiveram firmes, mas também buscaram em meio ao caos um grupo de apoio para lidar com a solidão materna resultado da pandemia. GABRIEL REIS


ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | REGIÃO NORDESTE | JULHO DE 2021

Religião .13

Imigrante haitiano encontra esperança na fé Imigrante haitiano, morador de São Leopoldo, Getro Jaial Simon, atribui sua crença à esperança e otimismo que virão

gencial, ao qual mostra-se grato e reforça a importância dessa renda até a retomada sua ocupação formal: “Teria sido bem mais difícil sem, qualquer busca por emprego tornou-se mais complicada fé é uma parte essencial para todos, mesmo na informade Getro Jaial Simon, lidade. O auxílio fez com que imigrante haitiano, de 43 tivéssemos acesso ao básico anos de idade, sendo oito deles até voltar ao meu emprego, em vivendo no Brasil, mais especi- uma transportadora.” ficamente da região Nordeste Completando seu raciocíde São Leopoldo. Pastor evan- nio, lembrou que além da ajugélico demonstra seu otimismo da federal, também recebeu a cada frase, deixando claro ter apoio a nível municipal. relação com a sua crença. “Eles dão atenção, nos Reconhecendo que os tem- acompanham, ouvem e ainda pos são difíceis, com a pande- doaram cestas básicas e auximia de Coronavírus dificultan- liaram na questão do emprego. do a renda, emprego e a vida Sou muito agradecido por toda de muitos, ele lembrou que ajuda recebida”, finaliza. viveu, no Haiti, tempos ainda Quando foi perguntado mais complicados, mas nem sobre o terremoto e se poali perdeu a esperança e fé em deria traçar um paralelo entempos melhores que, segundo tre as situações, ele disse ele, sempre vieram. Getro se re- que esse havia sido o motivo fere ao terremoto que devastou para escolher o Brasil: boa parte do país, com paren“Eu decidi vir para cá depois tes e amigos queridos entre os daquele momento, perdi pesmais de 300 mil mortos. soas queridas, foi muito triste. Com um português já qua- Porém eu sabia que não podese fluente, ele ria simplesmente iniciou seu relato “Deus é nosso desistir, então vim contando como pra cá e a vida mefoi a adaptação coração, porque l h o r o u .” a o s co s t u m e s a gente sabe Sobre ter saubrasileiros, resdade do Haiti, saltando que con- que ele pode foi perceptível o gregava na mesma tom melancólifazer tudo” igreja (Assemco sobre os anos bleia de Deus), Getro Jaial Simon sem ver amigos em sua terra na- Pastor evangélico e familiares, mas tal, sendo esse ressaltou que um facilitador a sua adap- iria apenas visitá-los. tação ao Brasil: “Aqui enfrentamos dificul“Como a religião é igual, dades, altos e baixos, mas geralacabamos nos tornando ra- mente é um país bom de viver e pidamente amigos de muitos agradeço a Deus pelo que tenho. irmãos em Cristo aqui, compar- Penso em visitar meus famitilhando dos mesmos valores e liares, matar a saudade, mas tendo ainda um ponto comum depois voltar”, completa. de encontro onde fazemos reuPara finalizar, pedi para niões para matarmos um pouco que ele falasse sobre preconda saudade do Haiti”. ceitos como xenofobia e raQuestionado qual a im- cismo, negando haver vivido portância de Deus para ele, o primeiro, diz que a questão Getro atribui que isso faz de preconceito racial é noparte da sua essência: tória, porém ele se agarra na “Deus é nosso coração, fé para não abalar-se. porque a gente sabe que ele “Percebo muito, tem pessoa pode fazer tudo, diminuir as boa e pessoa preconceituosa, a dificuldades, por dar bên- fé nos ajuda a ficar bem, supeçãos e lições que levo sem- rar esses momentos. É triste, machuca, mas não deixo que pre comigo”, resume. Quando o tema da entre- me abale”, termina ele com seu vista parte para a pandemia otimismo característico. e as dificuldades, ele contou GIULIANO REIS que perdeu emprego e preciRAFAELLA SCHARDOSIM sou fazer uso do auxílio emer-

A

Getro Jaial é pastor da Congregação Assembleia de Deus


14. Religião

ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | REGIÃO NORDESTE | JULHO DE 2021

Candomblé é a força local da cultura afro-brasileira Há 15 anos, o terreiro Ilê Axé Ojudan é protagonista da tradição religiosa deixada por povos africanos

declarar a sua religião. O Rio Grande do Sul, mesmo como o segundo estado mais branco do país, tem a maior proporção nacional de fiéis às religiões de matriz africana; ficando om a espada de Ogum na frente dos estados da Bahe a benção de Olo- ia e de Pernambuco. rum, como em um O babalorixá Rony D’Oxuraio de Iansã, rasgamos a ma- marê, de 48 anos, viveu grande nhã vermelha” canta o gru- parte de sua vida em cidades po Doces Bárbaros, formado do interior de Santa Catarina pelo icônico quarteto Maria — Rio do Sul, Balneário CamBethânia, Gal Costa, Gilber- boriú, Blumenal — e também to Gil e Caetano Veloso, em já morou em Buenos Aires, na 1976, exaltando e homena- Argentina. Mas foi em 2006 geando os orixás. Ao longo que decidiu voltar para sua de sua trajetória histórica, as cidade natal, São Leopoldo, religiões afro-brasileiras ga- para ficar mais próximo de nharam reconhecimento por sua família materna. “Sou seu protagonismo na preser- de fácil adaptação, mas aqui vação, reinvenção e resistência encontrei alguns obstáculos. da herança africana deixada Me deparei com pessoas que por escravos no Brasil — seja seguem a vida como se fosse através das manifestações mu- uma cartilha, que não aceitam sicais, como o samba, afoxé, o diferente”, diz relembrando maracatu e jongo; nas danças, dos momentos difíceis com a como a capoeira e a congada; adaptação no bairro Rio dos nas artes visuais, com Mes- Sinos. “Fui mal recebido, me tre Didi, Rubem Valentim e olhavam diferente. Já aconteMaria Auxiliadora; na culi- ceu de ter crianças apedrejannária, com o acarajé, bobó do minha casa, de ser chamado de camarão e acaçá. de coisas ruins na rua”. Para Foi em meados de 1890, na contornar os insultos, Rony passagem do século XIX para o se viu sem saída: “Comecei XX, que o candomblé começou a bater de porta em porta o seu desenvolvimento em ter- na vizinhança para explicar ritório brasileiro. Como uma que eu não era uma ameaça, forma de escravos africanos se e que simplesmente estava conectarem com as suas raízes exercendo minha religião forçadamente arrancadas, o respeitosamente no local”, estado da Bahia foi palco prin- conta. O clima de hostilidade cipal para essa foi lentamenreconstrução de te dando lugar “O candomblé é identidade culpara o agradátural, social e o meu tudo. Foi vel: “Conquisreligiosa — que, tei o meu lugar aos poucos, foi onde eu me senti aqui. Não prese espalhando cisei atacar as para o restante recebido e aceito pessoas como do Brasil. Com pelo que eu sou” elas me atacao passar dos ram, porque a anos, o candom- Rony D’Oxumarê nossa riqueza blé adotou e se Babalorixá está no espimisturou com a r i t u a l ”. cultura de diferentes povos, Filho de uma mãe catótanto africanos quanto brasi- lica e de um pai protestanleiros, e a religião atualmente te, a relação de Rony com o é praticada de diversas formas candomblé iniciou ainda na dependendo da região. adolescência. “Conheci a reliEm 2010, o Instituto Brasi- gião aos 17 anos, por meio de leiro de Geografia e Estatística uma amiga. Me encontrei e me (IBGE), que coloca candomblé preenchi, senti uma energia e umbanda na mesma catego- inexplicável que me prende ria, divulgou dados que apon- até os dias de hoje”, explica. tam que somente 0,3% da po- “O candomblé é o meu tudo. pulação é adepta. Acredita-se Foi onde eu me senti recebique esse número seja maior, já do e aceito pelo que eu sou”, que muitos candomblecistas fala com um tom emotivo na e umbandistas preferem não voz. A aceitação foi um sen-

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Babalaxé Marcos Silva participa do rito de folhas

MARCOS SILVA / ARQUIVO PESSOAL (2017/2018)


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ENFOQUE SÃO LEOPOLDO | REGIÃO NORDESTE | JULHO DE 2021

Rony D’Oxumarê é babalorixá do terreiro Ilê Axé Ojudan. À direita, filho-desanto em um momento de oferta ao seu orixá

timento que Rony procurou por muito tempo, principalmente após a descoberta da sua homossexualidade: “Sofri preconceito, ameaças de morte e fui rejeitado por muitos familiares. Senti na religião o carinho e o afeto que faltavam na minha vida”.

ILÊ AXÉ OJUDAN

Desde 2006 na ativa, a casa Ilê Axé Ojudan foi idealizada e fundada por meio do pedido direto do orixá Oxumarê. “Na época, meu pai de santo disse que meu orixá queria uma casa aberta”, recorda. Rony, que até então não tinha nenhuma pretensão de administrar um templo religioso, colocou o orixá e o pedido à prova: “Se ele realmente quer, que me mostre o caminho”. E definitivamente não tardou, alguns dias depois veio o sinal: Foi oferecido um terreno na rua Pitangueiras, que Rony comprou para realizar o pedido. “É uma responsabilidade para a vida toda. A estrutura espiritual é um processo essencial, o terreno tem que estar muito bem preparado para receber pessoas”. Eliane Maria de Vargas, de 51 anos, que é conhecida pelo apelido de “Nani”, acompanhou de perto a compra e a preparação. “Eu já morava aqui [na região], então vi tudo acontecer”, relembra. O laço de amizade entre ela e Rony se formou instantaneamente, já na primeira conversa: “Descobrimos a religião em comum. Isso é raro por aqui”, comenta Nani — se referindo ao grande número de igrejas evangélicas e católicas por toda a região Nordeste. No terreiro, ela marca presença: “Estou sempre lá. Assisto os ri-

tuais, ajudo a servir as comidas típicas e na limpeza”. Há quatro gerações a família de Nani mantém vivas as raízes de religiões afro-brasileiras, seja no candomblé ou na umbanda. Com três filhos, ela também faz questão de continuar com a tradição: “Não conseguem virar as nossas cabeças. Nós resistimos”, conclui. Atualmente, o Ilê Axé

Ojudan conta com cerca de 15 pessoas em diferentes funções; que variam entre babalaxé, alabê, axogum, iabassê e iaô. O iaô Rodrigo Krumenauer, de 40 anos, conheceu o terreiro através da extinta rede social Orkut. “Não nasci no candomblé, mas meu interesse pela religião começou por volta de 2005”, relata. Hoje, ele vê a religiosidade como um

porto seguro: “É o que faltava na minha vida. Foi pelo candomblé que posso dizer que encontrei minha paz”. Frequentador do Ilê Axé Ojudan desde 2010, Rodrigo criou uma forte relação com o babalorixá: “Os orixás colocaram Rony em meu caminho para me dar força e entendimento da vida. Posso contar com ele para tudo”. Devido a pandemia do co-

ronavírus, os ritos característicos não ocorrem em sua plena forma: “Por pedidos do orixá Obaluaiê, estamos em um período silencioso. Seguimos com nossos ritos, mas agora sem os tambores, sem as danças e sem as festas”. A casa se mantém aberta para atendimento espiritual de urgência. MARIANA NECCHI

Glossário Doces Bárbaros — Grupo formado para a realização de uma turnê comemorativa dos dez anos de sucesso das carreiras individuais de Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Orixás — Divindades cultuadas no candomblé: Exu, Ogum, Xangô, Iansã, Oxum, Obá, Logunedé, Nanã, Obaluaiê, Ossain, Oxumarê, Iemanjá, Oxalá, Ibeji, Ewá e Oxossi. Olorum — O ser supremo do candomblé: Criador dos orixás, do mundo espiritual e físico, e da humanidade. Mestre Didi: (1917 - 2013) — Salvador, Bahia. Escultor. Vindo de uma família formada por personalidades ligadas à preservação e manutenção das religiões e cultu-

ras africanas no Brasil, as suas esculturas são recriações e interpretações pessoais dos símbolos dos orixás. Além de artista, ele também foi escritor. Rubem Valentim: (1922 - 1991) — Salvador, Bahia. Pintor, escultor, gravurista e professor. Teve como referência as religiões e a cultura afro-brasileira para suas obras com formas geométricas. Maria Auxiliadora: (1935 - 1974) — Campo Belo, Minas Gerais. Pintora. Descendente de escravos, suas obras retratavam o protagonismo negro em situações cotidianas e as tradições religiosas afro-brasileiras. Intolerância religiosa — Com um histórico de perseguição, criminali-

zação e marginalização, as religiões de matriz africana são um símbolo de resistência. Os dados do Disque 100, serviço criado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos em 2011, apontam que as denúncias de intolerância religiosa aumentaram 59% no Brasil em 2019 — A maioria dos relatos foram feitos por praticantes do candomblé e umbanda. Os números podem ser ainda mais expressivos, já que em muitos casos as vítimas não realizam a denúncia por medo de que a violência se repita ou de que o Estado não preste o apoio necessário. Babalorixá — Também chamado popularmente de “pai de santo”, é o sacerdote do candomblé. A sua função na religião é ser o líder e chefe do terreiro — quem consulta ao orixás, joga os búzios, cuida da casa,

RONY D’OXUMARÊ / ARQUIVO PESSOAL (2017/2018)

dos filhos-de-santo e de pessoas para serem atendidas. Babalaxé — Também chamado popularmente de “pai do axé”, é o responsável por distribuir o axé (força mágica e poder dos orixás), cuidar dos objetos dos ritos e zelar o terreiro. Alabê — Encarregado de preservar e tocar os instrumentos musicais sagrados durante os ritos. Axogum — Responsável pelos sacrifícios de animais nos ritos de oferendas aos orixás. Iabassê: Prepara os alimentos sagrados das oferendas. Iaô — Também chamados popularmente de “filhos(as)-de-santo”, entram em transe com os orixás nos ritos.


ENFOQUE SÃO LEOPOLDO

REGIÃO NORDESTE

| JULHO DE 2021 | EDIÇÃO 3

Orgulho e resistência Dançarina e massoterapeuta, Jess Bassani abre sua história de luta cotidiana contra o preconceito

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ou dançarina do grupo Explosão da Dança. Sempre destaco isso porque o grupo é uma parte muito importante da minha vida. A dança significa muito para mim”. Jess Bassani de Campos, de 27 anos, encontrou nas coreografias uma forma livre para poder se expressar e, no grupo, um espaço de pertencimento. Jess é uma mulher trans.Ela já fazia parte do grupo há seis anos, quando iniciou a transição, em 2017, e lembra com carinho do modo como foi acolhida durante o processo. “A dança se tornou um suporte para mim. Eu travo muito com a questão do corpo, dependendo do figurino”. Contudo, ela afirma que se sente bem com o grupo: “inclusão é um valor fundamental do grupo, porque abrange todos os tipos de corpos e não segue um padrão de biotipo”, conta. Com a dança ela ainda encontrou acolhimento: "Morei na casa dos meus amigos do grupo. ela encontrou algo que faltava Cada dia eu dormia na casa de em São Leopoldo — sem ajuda alguém”,relata."Tinha uma famí- profissional, anteriormente, Jess lia que chegava a me acolher de iniciou a hormonização sozinha. domingo a domingo. Acabamos “Passei por sete endocrinoloficando próximos e eu sempre gistas e todos me falaram: ‘eu contava sobre a minha transi- não tenho especialização com ção. Eles me apoiavam dizendo: esse tipo de gente’”, relembra ‘se tua mãe te botar para fora, tu decepcionada por ter enfrentem a nossa casa. Tu não vai ficar tado tantas vezes essa barreira sozinha. Na rua tu não vai mo- da 'negligência' médica. Ela também fala sobre a dirar'”, se emociona ao lembrar do momento marcante, porque um ficuldade de ser trans em São Leopoldo. “Você dos seus maiores não tem o nome medos era não “Passei por sete social respeitado. ter para onde ir. Por causa da endocrinologistas As pessoas não têm a sensibilipandemia, ela e todos me dade de perguntar voltou a morar como você quer com os pais no falaram: ‘eu ser chamada”. Ela bairro Campina, não tenho conta que mesmo mas, por muiapós o tratamento tempo, foi na especialização to hormonal, e o Vila Brás que ela com esse tipo uso de maquiaencontrou refúgem e roupas gio: “No começo de gente” femininas, ainda da transição, fui Bassani era chamada pelo morar sozinha. Jess Mulher trans, dançarina do pronome masculiNão queria contar grupo Explosão da Dança no.“Era um conspara minha família, porque já tinha sido muito trangimento absurdo”. Desde o ano passado, ela tem difícil ‘sair do armário’”. Em 2019, Jess começou a o nome social registrado nos fazer tratamento hormonal documentos e não sofre mais acompanhado, no Ambulató- com este problema. “O nome rio para Atendimento de Saúde é uma questão muito delicada, Integral de Homens e Mulheres não é todo mundo que opta por Trans e Travestis de Porto Ale- fazer alteração. Para mim, era gre (Ambulatório T), na época, uma urgência. Eu não aguentarecém inaugurado no Centro de va mais chegar em um lugar e Saúde Modelo. Ali, além de con- não ser tratada como eu queria”. viver com outras pessoas trans, Movida por esse pensamento,

Durante o período de transição, Jess encontrou apoio e abrigo junto aos amigos da dança, como a Carina ela também se afastou de muita gente que a desrespeitava: “Não aceito mais desrespeito de ninguém. Se eu sei que vai ficar me destratando, eu saio”. Jess reconhece que sua experiência é diferente da maioria das mulheres trans - já que o único contato que ela tinha com essa realidade era pelas histórias de meninas que foram agredidas e expulsas de casa, que tiveram como única saída recorrer ao trabalho sexual para sobreviver. Além do apoio dos pais e amigos, ela pôde estudar e nunca foi discriminada no trabalho de massoterapeuta, que desempenha em uma estética. Estudante de Educação Física

na Universidade do Vale do Rios dos Sinos (Unisinos), a jovem usa as redes sociais como diário de sua vivência e, também, para incentivar e ajudar outras mulheres com histórias como a sua.“Deixo tudo muito aberto, porque eu quero que outras trans possam ver a minha realidade e não tenham o mesmo medo que eu tive”. Com o passar do tempo, Jess criou uma relação agradável com o seu corpo e imagem. “Parei de cobrar tanto as transformações físicas. Passei a mostrar que tudo isso é muito lindo”.

BUSCA POR ASSISTÊNCIA

Como a inclusão em alguns casos ainda parece distante, a

busca por assistência é recorrente. A moradora do bairro Rio dos Sinos, Paola Souzza, de 22 anos, encontrou a segurança que precisava no Grupo de Apoio à Diversidade (Gad).“O suporte que o Gad dá é muito importante porque a comunidade trans nunca é vista como prioridade em nenhum meio social”, destaca. No Gad, mulheres trans e travestis,especialmente aquelas tem como única saída a prostituição, além de moradoras de rua do Vale dos Sinos encontram ajuda na geração de renda alternativa e na inclusão social. Lá elas também têm acesso à doação de alimentos, máscaras, álcool gel, luvas e kits de prevenção à doenças sexualmente transmissíveis.A ONG fica localizada junto à Rodoviária de São Leopoldo, na rua Dom João Becker, 665, Centro. No poder público, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos (Sedhu), localizada no 3° andar da Prefeitura, é responsável pelo atendimento às pessoas trans do município. É possível entrar em contato pelos telefones (51) 22000265 e (51) 2200-0266. Mulheres trans que foram ou são vítimas de violência de gênero podem procurar apoio no Centro Jacobina, serviço que é referência para esses atendimentos na cidade. Ele está localizado na Rua Brasil, 784, Centro, e funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 14h, presencialmente no local, e, das 8h às 17h, pelo número de WhatsApp (51) 9788-3212. O Centro Jacobina oferece apoio psicossocial e jurídico de forma gratuita às mulheres, transexuais ou cisgênero e travestis vítimas de violência.Se você é vítima ou conhece alguém que é,procure apoio e peça ajuda! PATRÍCIA WISNIESKI LAURA ROLIM

Glossário Nome social – É o nome que pessoas transgêneros e travestis preferem ser chamadas, em contraste com o nome oficialmente registrado, que não reflete sua identidade de gênero. Possui a mesma proteção concedida ao nome de registro, garantido pelo Decreto 8727/16.

se adequar ao gênero que ela realmente sente pertencer, podendo se submeter a tratamentos hormonais, cirúrgicos, fonoaudiológicos, entre outros, para transformar suas características nas do gênero desejado.

Hormonização – Terapia que consiste na aplicação de Transexualidade – Refere-se à condição de uma pessoa hormônios masculinos ou femininos para equilibrar o cuja a identidade de gênero diverge do sexo físico biológico. transexual dentro do gênero no qual ele se identifica. Travesti – Pessoa que se identifica com um gênero diferente daquele que lhe foi atribuído ao nascer. Pode-se reconhecer como homem, mulher ou membro de um terceiro gênero ou de um não-gênero como agênera, identidade não binária.

Endocrinologista – Médico que diagnostica e trata doenças relacionadas com os hormônios e o metabolismo. Suas atribuições envolvem desde cuidar de doenças ósseas, como osteoporose, até diabetes e obesidade, passando por tumores que produzem hormônios em excesso e doenças Transição – É o período pelo qual uma pessoa passa para autoimunes que afetam sua formação.

BRUNO ADRIANO


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