Enfoque Vila Kédi 8

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Alexsander Machado

Fernando Eifler

gabryela magueta

Um exemplo de superação na luta contra o vício. Página 3

Terreno com proprietário desconhecido gera preocupação. Página 7

Moradores dizem o que pensam sobre preconceito. Página 8

ENFOQUE VILA KÉDI

EDIÇÃO

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gabryela magueta

PORTO ALEGRE / rs MAIO/JUNHO DE 2017

A voz de quem habita Pessoas de todas as idades acumulam histórias que envolvem momentos de apreensão e esperança página 6


2. CRÔNICA

| ENFOQUE VILA KÉDI | PORTO ALEGRE (RS) | MAIO/JUNHO DE 2017

Pequenos que pensam grande

A

curiosidade está estampada nos olhos. As crianças acompanham com o olhar o grupo de futuros jornalistas que chegam na Kédi com seus equipamentos e blocos. Essa é a recepção. Aos poucos, eles começam a acompanhar individualmente o visitante que passa. No início, reagem timidamente aos cumprimentos, mas a curiosidade é maior, eles querem ver o que está escrito e ilustrado no jornal entregue pelos alunos. A partir daí, iniciamos uma conversa que me fez perceber o quanto a Kédi preserva a infância nos moldes antigos. Bolas, caderno de desenho, bonecas e carrinhos. Esses são os brinquedos que eles possuem e o local que mais utilizam para as brincadeiras é a única rua da vila. São crianças que aproveitam a intimidade com os vizinhos e amigos para usar seu espaço, correr, conversar, sentar na frente de casa e desfrutar desses momentos que hoje em dia parecem ser tão distantes de nossas crianças. Ali podemos ver que a comunidade é o local seguro para viver e que o convívio com várias gerações de uma mesma família traz a sensação de que são mais que amigos.

E seus desejos são tão grandiosos quanto o sorriso que eles abrem ao ver a fotografia na câmera. “Vou ser jogador de futebol do Barcelona”, me contou o menino gremista, comedor de bergamota, que havia retornado do treino naquele instante. Já o outro me informa que “irá trabalhar de Camaro”. Diferente dos garotos tagarelas, a menininha introspectiva brinca sentada no degrau de casa com um caderno imaginando ser uma professora. E são nesses momentos que, quem está de fora percebe para onde os sonhos nos levam. Além da capacidade de

RECADO DA REDAÇÃO

Uma Kédi de todos A ruela com entrada pela Avenida Nilo Peçanha, que acolhe pessoas com diferentes personalidades, nos apresenta um cotidiano que por mais que não nos pareça normal é só mais um pequeno ensaio da realidade em que estamos inseridos. A rua sem calçamento, as casas pequenas e modestas, a falta de amparo dos serviços públicos. Infelizmente é essa a realidade do lugar. Mas não é só para as pessoas que residem lá. Quem perde com isso é a sociedade. Perdemos de conhecer as histórias, muitas delas por não ter a oportunidade de estar onde a sociedade julga ser certo. Mas qual seria esse lugar certo? Por mais que queiramos mudanças para a vila, e essa luta é muito justa, pergunto a você, caro leitor: o futuro da Vila Kédi depende de quem? E respondo, a mudança começa pelos moradores, e, caminhando por lá, a gente percebe que isso se faz muito presente. São as crianças que sonham profissões para o seu futuro, são as memórias que a Kédi deixa aos moradores, as oportunidades de uma nova vida por meio da fé, o engajamento dos residentes atentando para a falta de cuidados dos poderes constituídos, as rodas de conversas sobre o preconceito nos dias de hoje e até mesmo as peculiaridades dos talentos daquele lugar. Isso é um início de mudança, isso é estar no lugar certo e por último, é a construção de uma nova geração da Vila Kédi. Como queremos mostrar nesta edição. Boa leitura! Liane Oliveira Editora-chefe

Crianças de várias idades aproveitam a única rua da Kédi para brincar e curtir a infância mudar a realidade em que vivem, os sonhos trazem esperança e movimento para essas crianças. É parte da ingenuidade conservada no meio dessa vila que quase fica escondida pelo grande bairro Bela Vista e sua vida luxuosa. Acima de tudo, a característica mais marcante deles é a força.

São crianças que falam de maneira decidida, que sabem o que querem e onde vão chegar. Têm cuidados entre si e tem responsabilidades com a escola. Vivem em comunidade com respeito de quem entende e respeita o espaço do outro. Sabem dividir e ser cidadãos que carregam a consciência do futuro. Não temem a vida. Acho que a gente aprende mais com as crianças do que elas com nós, “adultos”. Quem dera conseguir ter essa pureza nas atitudes e na fala. Quem dera alcançar essa leveza que eles possuem. Por que quando crescemos perdemos essa

ENTRE EM CONTATO

sensibilidade? Nossa fragilidade é ainda maior, pois sabemos o quanto somos inferiores e tentamos amedrontá-las sob a justificativa de que somos mais velhos e merecemos respeito. Ah se fosse possível manter a inocência típica da infância... a realidade hoje seria outra. Infelizmente nossa conversa não durou tanto quanto eu desejava, afinal, eles tinham que continuar a aula com os alunos imaginários e a partida de futebol com os chinelos como goleira. Renata Simmi Amanda Bormida

DATAS DE CIRCULAÇÃO

(51) 3590 1122, ramal 3701

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6 de maio

luizfd@unisinos.br

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27 de maio

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10 de junho

Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Petrópolis – Porto Alegre – RS Cep: 90470 280 – A/C Coordenação do Curso de Jornalismo

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Vila Kédi é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Kédi, em Porto Alegre (RS). Com tiragem de mil exemplares, são publicadas três edições a cada semestre e distribuídas gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre.

CONTEÚDO Disciplina Jornalismo Cidadão Orientação Luiz Antônio Nikão Duarte (texto) e Flávio Dutra (fotografia) Edição geral (chefia) Liane Oliveira Edição de fotografia Renata Simmi Reportagem e edição: Arthur Marques, Liane Oliveira, Lua Kliar, Marina Lehmann, Renata Simmi e Tina Borba Fotografias: Alexsander Machado, Amanda Bormida, Carol Steques, Denilson Flores, Fernanda Romão, Fernando Eifler, Gabryela Magueta, Giulia Godoy, Luiz Silva, Jheine Sieben, Juliana Coin, Luiza Soares, Tainara Mauê e Thiago de Loreto ARTE Realização Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização Marcelo Garcia Diagramação Mariana Matté

IMPRESSÃO Realização Grupo RBS Tiragem 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Petrópolis – Porto Alegre – RS. Cep: 90470 280. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente dos Cursos de Bacharelados e Tecnológicos: Paula Campagnolo. Coordenadora do Curso de Jornalismo: Debora Lapa Gadret.


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GENTE .3

Quase um romance trágico Uma história cheia de dor, mas com final feliz

Para se manter longe do vício, a moradora, cujo nome é preservado, cultiva hábitos religiosos

O

sol tímido acha algumas brechas entre as nuvens para iluminar e aquecer a manhã de sábado na Vila Kédi. No caminho, está ela, correndo, com bolsa e casacos na mão. “Bom trabalho, tia”, diz uma criança que acaricia um cachorro deitado na beira de uma casa. Então o rosto dela se ilumina e um abraço forte aquece mais do que o café passado que aguardava em casa. “Estou atrasada, mas ainda tenho cinco minutos”, apressa ela. A promessa era de cinco minutos, mas a diarista não é mulher de pouca conversa, quem dirá de pouca história. Crescida na Kédi, ela sustentou duas famílias: uma composta por seus filhos e a outra por seus vícios. Foi na adolescência que encontrou nas drogas um escoro para as dificuldades trazidas por uma vida sem condições financeiras e perspectivas para um futuro melhor. A primeira vez aos 17 anos e, a partir dessa experiência, foram 21 anos em volta dos vícios. “Comecei fumando um baseado aqui e outro ali, e sempre bebi. Beber todo mundo bebe, toda hora. Esse é o problema, tem para todo mundo em todo o lugar”, conta. Ela escolheu seguir um caminho delicado, passando pela maconha e chegando ao declínio no pó. “A cocaína te dá um prazer imenso, mas te derruba também. Além de tudo é mais cara”, lembra a diarista. Acompanhada pelo álcool, a cocaína trouxe a decla-

ração de dependência. “Teve um momento que eu vi que eu estava vivendo para isso, como se eu andasse em círculos”. Mesmo que a droga saciasse as suas vontades, ela era obrigada a lidar com as preocupações da sua realidade: trabalho, dinheiro, educação dos filhos e todas as responsabilidades que recaem naturalmente sobre uma mulher. Depois da cocaína, teve consciência de que não poderia mais voltar a ter uma vida normal. “Não via saída. Era viver assim e esperar a morte chegar”, conta. A epidemia do crack não demorou para bater nas portas da Kédi. “O que eu usava não era mais o suficiente para mim, precisava de algo mais forte. Foi quando eu fumei pedra pela primeira vez. Tu esqueces de

tudo. Tudo se resolve naqueles minutos de euforia”. A família assumiu a criação dos seus filhos. O marido, usuário de cocaína, morreu há pouco menos de nove anos, vítima de um acidente vascular cerebral. Era mais uma queda na vida da usuária, mais um motivo para não querer encarar a realidade sombria que estava vivendo. “Eu não tinha mais vida social, eu não tinha prazer nenhum com meus filhos”, relata. O papel de materno pesou para sua mãe, que não a abandonou e nunca perdeu a esperança. “Eu não podia deixar a minha filha na situação em que ela estava, mesmo sabendo que foi escolha dela. Chegou um momento que vimos que não era uma simples escolha, era uma necessidade”, lembra.

A CURA Frequentadora da Igreja Universal, a mãe insistiu para que a filha se livrasse do vício e buscasse a cura na fé. Com muita perseverança, conseguiu leva-la até a casa de Deus. “Foi lá que eu encontrei a minha salvação”, conta a diarista. Admite que no começo não gostava. Mas, com muita luta, conseguiu abrir um espaço na sua rotina para ouvir as palavras que o pastor tinha para lhe dar. “Ele vinha na minha casa conversar comigo, dizia que eu era uma alma que tinha que ser salva por Deus e que ele estava ali para me ajudar nessa missão”, conta, emocionada. Foi com ajuda da mãe, da igreja e com muita força de

vontade que começou a largar as drogas aos poucos. São três anos e meio longe de qualquer vício, nem cigarro fuma mais: “Até quando as pessoas estão bebendo eu saio de perto, não por medo de recair, mas porque eu tenho um outro espírito agora. Agora minha alma está liberta desses vícios. A real verdade, é que eu estou com espírito de Deus”. Ela conseguiu um emprego como diarista, diz que só pensa em coisas boas, e, pensando nisso, voltou a estudar. Ainda tem muitos sonhos pela frente e serve de exemplo de força e superação para todos que acompanharam a sua trajetória. Lua Kliar Gabryela Magueta

Um lugar de muitos talentos Evanir Mendes dos Santos, de 64 anos, cozinha por amor e vende as refeições para os caddies que trabalham no Porto Alegre Country Club. São cerca de sete refeições diárias, sem ter um cardápio fixo. Evanir cozinha o que está afim, mesmo que a clientela tenha pratos preferidos. “Faço comida caseira mesmo: feijão, arroz, carne assada. Os prediletos são a dobradinha, de mondongo, e o mocotó. No inverno, preparo sopa, para esquentar”, relata. Ela aprendeu a cozinhar com sua mãe e não se imagina trabalhando em outra área.

Na Kédi também mora Carmem da Silva Moraes, de 55 anos, cabeleireira especializada em penteados afro. Carmem é auxiliar de cozinha e aprendeu os penteados com as filhas. No caso delas não é um trabalho formal, mas a demanda é grande. “Nas reuniões de família todos querem mudar o visual”, brinca. O talento presente na cozinha de Evanir e nos penteados de Carmem também está presente no estúdio de tatuagem na “Casa do Passarinho”, de Gael Fernandes, de 36 anos. Ele trabalha com construção civil e sonha em fazer

faculdade de Arquitetura para desenvolver o dom de desenhar. No portão da sua residência, uma plaquinha - feita a mão -, indica a arte da tatuagem e o telefone para que se marque horário. Gael tatua na sala de sua casa mesmo, com máquina profissional e pasta de desenhos para que os clientes façam suas escolhas. Além de tatuador, ele aprendeu desde adolescente a tocar baixo, violão e teclado para acompanhar o pai, que era pastor nos cultos da igreja. Marina Lehmann Giulia Godoy

Carmem é cabeleireira

Evanir cozinha para caddies


4. ESPECIAL

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Olhares sobre U

Tainara Maue

m sábado pela manhã. Aos poucos, os moradores acordam e começam a realizar as atividades dentro da comunidade. Alguns cozinham, enquanto outros conversam. Crianças brincam na rua. O acolhimento dos que ali vivem traz a sensação de estar em casa. Os alunos de fotojornalismo da Unisinos capturaram algumas dessas situações que enchem de vida e demonstram como é o dia a dia na Vila Kédi. Renata Simmi

Tainara Maue

Tainara Maue

Tainara Maue

Alexsander Machado


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re o cotidiano

Jheine Sieben

Alexsander Machado

LUIZ SILVA

Thiago De Loreto


6. COMUNIDADE

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Lembranças da Kédi Moradores reúnem histórias que retratam sua vivência e trazem à tona velhos problemas

T

oda a comunidade é feita pelas pessoas que nela habitam. Seus moradores possuem lembranças felizes e também algumas tristes. Recordá-las é sempre necessário. Algumas trazem problemas a serem discutidos novamente, outras são doces lembranças. Em datas comemorativas, aVila Kédi costuma receber o auxílio de algumas pessoas, com os alimentos, refrigerantes e decorações para as festas. “Uma boa lembrança que tenho foi do dia das crianças do ano passado. Nessa data, algumas pessoas que passavam pela Nilo Peçanha paravam e descarregavam sacolas com brinquedos de dentro de seus carros. Isso fez o dia das crianças inesquecível. Ver os olhos das crianças brilhando, com um brinquedo nas mãos é de emocionar qualquer um”, relembra Fabiano Oliveira, pai do pequeno Rômulo, de 3 anos. Nenhum lugar é feito apenas

com histórias engraçadas e felizes. Mas nas horas difíceis, é na própria comunidade que se encontra o amparo. Como conta Angela da Silva: “Em uma madrugada do ano passado, a vila acordou assustada com um cheiro muito forte de queimado. Meus netos entraram em casa correndo, dizendo que a casa do vizinho estava pegando fogo. Na época, ele tinha problema, e não conseguia se locomover sozinho, foi então que o pessoal da vila arrombou a porta e conseguiu retirá-lo da casa. Quando os bombeiros chegaram, nós já tínhamos apagado o fogo há muito tempo”. Dentro da Vila existem pequenos atletas que representam a Kédi em torneios de Porto Alegre, inclusive levantando troféus.“O que nós mais gostamos de fazer é jogar bola. Ganhamos o título do Torneio da Vila Kédi no ano de 2015, Léo foi o nosso goleador naquele campeonato”, diz Iago, que se vê no futuro como jogador do Barcelona. “Essa é a minha história preferida, porque nós ganhamos”. Segundo os moradores, a Prefeitura deixa a desejar em serviços

na Kédi. Consideram que há necessidades que nunca foram atendidas. O que leva muitos moradores a se arriscarem, fazendo reparos por sua conta e risco.“Esta árvore cresce cada vez mais, e com a seca do verão, começam a cair seus galhos em cima do meu telhado. Por isso às vezes preciso encher a casa de baldes, porque aumentou muito o número de goteiras. Nós já pedimos para que a prefeitura retire esta árvore, ela está toda rachada, durmo preocupada com medo que ela caia em cima das nossas casas”, relata Angela Maria Vargas. Os aniversários são sempre muito festejados pelos moradores da comunidade. Alguns, inclusive, se tornam tão grandiosos, que se torna necessário prolongar a festa. “Costumo sempre fazer festa aqui, comemoro no dia 9 de maio, junto com meus primos que fazem nos dias próximos ao meu. Nós temos um salão e organizamos o encontro para as festas pelo WhatsApp. Até convidamos pessoas de fora daqui. Na primeira vez que fizemos as comemorações juntos, bombou tanto, que a gente resolveu fazer mais dois meses seguidos. Não

Apesar de pequena, a Vila possui vários casos que estão presentes na memória dos que ali vivem

organizei para ganhar presente, só pela zoeira. Nas nossas festas não falta funk nem pagode”, comenta Galstem dos Santos. O problema mais relatado pelos moradores é a falta de saneamento e as doenças que aparecem como consequências dessa situação.“Eu vivo triste, este terreno atrás da minha casa tem esgoto a céu aberto, e quem é dono desta área não corta grama, nem se preocupa com quem mora aqui. Nós já tentamos entrar em contato com quem é dono do terreno, mas eles se negam, dizem que não é sua responsabilidade. Faz 23 anos que nós pedimos que a prefeitura também tome algum tipo de providência, mas nunca fomos ouvidos. Com isso, nós começamos a pegar algumas doenças, eu por exemplo tenho psoríase”, lamenta Claudina Martins. Assim como tem atletas no futebol, a Kédi também possui um futuro grande jogador de tênis, que mostra, satisfeito, o troféu de sua última conquista. “A história que mais me marcou aqui dentro da vila, foi quando eu ganhei o Torneio Campo Bom de Tênis. O

meu patrocinador, o Instituto de Tênis, me ajudou a ir até a cidade. Quando retornei, me esperava uma grande festa”, conta Leonardo Pacheco de Oliveira, fã do tenista Novak Djokovic. Dentro da igreja católica existente na entrada da Vila Kédi, pela Avenida Nilo Peçanha, quase todas as semanas são distribuídos alimentos, agasalhos e materiais escolares. Mas quem organizava essas doações semanais faleceu, o que, além de entristecer os moradores, trouxe a pergunta: conseguiremos doações? – como narra Maurício Torres, encarregado pela manutenção do pequeno tempo: “A Dona Carmen Ribeiro costuma dar sopa para os moradores. No Natal, distribuía brinquedos para as crianças e ajudava com roupas e agasalhos. Com sua morte, no ano passado, pensamos que ninguém mais iria nos ajudar. Mas vieram mais três pessoas em nosso apoio: outra Carmen, mais a Bete e a Meri. Quase todas as quartas- feiras elas distribuem ranchos”. Arthur Marques Denilson Flores


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comunidade .7

Claudina Martins se mostra apreensiva com o lixo acumulado e o desdém dos donos da área

Quase dois anos de abandono Terreno com esgoto a céu aberto gera preocupação com a saúde

N

a casa 223, Claudina chama a atenção da equipe de repórteres do Jornal Enfoque. “Vem aqui, moça, quero mostrar uma coisa para vocês”. O problema que Claudina Martins indica é o embate com uma rede de supermercados, que seria a proprietária do terreno localizado aos fundos da Vila Kédi. O Enfoque Vila Kédi registrou, em maio de 2016, a situação do extenso local, que parece abandonado, de fato. A moradora reclama que há mais de um ano ninguém dá satisfação. O lixo se acumula no entorno da vila e a tubulação de esgoto já não dá mais conta. “Faz

10 anos que eu cuido aqui. Depois que meu esposo faleceu, eu continuei a cuidar. A rede dava em torno de R$ 250,00 para eu fazer a manutenção do local, mas faz quase dois anos que não recebo mais nada deles e não tenho recursos financeiros para cuidar”, reclama. Co n fo r m e C l a u d i n a , o máximo que “eles ainda fazem é cor tar a grama” do local, mas num espaço de tempo onde o mato cresce muito e gera perigo aos moradores. “Nesse mato tem até cobra, tem tudo quanto é bicho, é perigoso para as crianças. Na casa da minha guria já encontramos até cobra vinda desse mato”, pondera. Ela comenta que além de fazer a manutenção no terreno, cuidava para não avançarem as casas

para o espaço e que isso era um dos acordos feitos com a rede. “Já me incomodei tanto com isso”. O local, insalubre para moradores, está transmitindo doenças. Claudina conta que está com psoríase, uma infecção associada ao sistema imunológico. “Agora estou com isso e é só eu ficar nervosa que essas manchas aparecem”, comenta. Para Ângela Maria Vargas, esse problema vem se estendendo há muito tempo e está preocupando os moradores no entorno. Ela abre sua residência à reportagem, mostrando da janela a situação do esgoto e lixo que fica acumulado logo atrás. “No verão não dá para aguentar, devido aos bichos que se proliferam. Tenho que ficar com as janelas fe-

chadas, por causa desse esgoto. Tem muito bicho aqui”, explica, argumentando: “Se esse terreno não é da rede, como eles dizem, então vou ocupar esse espaço”. Em reuniões com representantes dos moradores da localidade, a rede tem informado que não é responsável pelo terreno. A próxima e

última audiência está agendada para o dia 4 de setembro, os moradores aguardam ansiosos para que a situação seja resolvida imediatamente, pois conforme a comunidade está difícil conviver com esses problemas. Liane Oliveira Fernando Eifler

A quem pertence? A reportagem do Enfoque entrou em contato com os possíveis responsáveis pelo terreno que fica no entorno da Vila Kédi. A rede de supermercados, a quem os moradores atribuem a posse, diz que esse imóvel não lhe pertence. Conforme as informações apuradas com uma fonte que pede para não ser identificada, existe a possibilidade de uma construtora comprar o terreno. Com esse objetivo, algumas pessoas estariam trabalhando com os trâmites que envolvem processos desse tipo.


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Ainda existe racismo no mundo?

erca de 200 famílias dividem alguns poucos metros de uma rua sem asfalto e cheia de árvores, na Vila Kédi. São pessoas altas, baixas, gordas, magras, pardas, negras e brancas; homens, mulheres e crianças, muitas crianças. São pessoas unidas, que se apoiam. Todos conhecem o vizinho do lado e têm algum tipo de opinião sobre ele. Ninguém é obrigado a gostar de todo mundo, mas todo mundo convive com respeito. Racismo não é sobre gostar ou não de alguém, racismo não é sobre não simpatizar ou sobre achar alguém chato ou feio. Racismo não é opinião. Racismo, ensinam os dicionários, é uma “teoria que defende a superioridade de um grupo sobre

outros, baseada num conceito de raça, preconizando a separação destes dentro de um país e/ou o seu extermínio”. Se cada bairro ou vila é uma amostra micro de um cosmos macro, a Vila Kédi não foge à regra. De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): lá dentro, como no Brasil, mais de 50% dos moradores são negros; lá dentro, como no Brasil, os negros têm, em sua maioria, empregos voltados ao ramo da construção e dos serviços domésticos; lá dentro, como no Brasil, dois tipos muito comuns de preconceitos são combinados: o de raça e o de classe. Tina Borba Alexsander Machado

Marilene Dutra de Oliveira, 54 anos Bastante! Meu filho vinha do trabalho e a Brigada barrou ele. Eu perguntei porque estavam fazendo isso, se ele tava voltando do trabalho, eu disse pra eles que era porque ele mora na vila, porque é negro. Eles ficaram quietos. Teve um amigo nosso, que tava indo esperar o ônibus e passou na frente de uma vitrine de uma loja e o segurança chamou a Brigada e fez ele botar a mão na cabeça, porque ele é negro.

Leonardo Pacheco Oliveira, 14 anos Lá onde eu trabalho não tem não, mas quando tem torneio de tênis eu e o meu maninho, a gente se sente triste, porque só têm eu e ele de preto.

Claudina Martins, 67 anos Eu acho que existe. Eu também era racista antes, e a convivência me fez mudar.

Michel Boeira de Menezes, 19 anos Eu acho que não existe.

Evanir dos Santos, 64 anos E como existe! Eu acho que não vai acabar nunca. Mas não me afeta, sou negra, muito obrigada e com muita honra.

Dienifer Muniz Freitas, 13 anos Eu acho uma coisa muito feia. A pessoa clara sempre quer se achar mais.

Tania Rosangela de Jesus Dutra, 47 anos Eu acho que ainda existe bastante, porque tem pessoas que tratam a gente diferente por causa da cor. Porque as pessoas acham que a gente tem que trabalhar e não comer, eu sou diarista e às vezes me dão pão duro para comer, comida requentada sei lá de quantos dias, eu sou pobre mas não estou acostumada a isso não, eu falei: Se a senhora quer me dar isso, não me dá nada então!

Estela Xarão, 52 anos Toda hora tem preconceito. As pessoas não respeitam quem é negro. Aqui na favela não, nós tudo é comunidades, tudo mano, mas fora daqui, sim.

Carmen Lucia da Silva Moraes, 55 anos Acho que tem, com certeza. Eu vejo, eu escuto. Tem branco que é racista sim. Eu amo a minha cor, não trocaria ela por nada, eu tenho orgulho. Mas tem branco racista, sim. Comigo nunca aconteceu, porque se eu vejo uma coisa eu já falo na hora, não deixo para depois.

Paulo Tibiriça Nascimento dos Santos, 57 anos Bah! Preconceito está geral, e é o mundo inteiro que tá assim. E eu tenho que lutar igual, me afetando ou não, não pode se entregar. Por causa da minha cor, porque eu sou pobre, sempre tem um olhar de desconfiança. Mas a gente não pode parar de lutar!

Sindel Micaelli Rosa Medeiros, 19 anos Eu acho que existe. O nosso posto é ali no IAPI. Eu fui ali levar a minha filha para tomar vacina, e ela tava bem bonitinha, toda arrumadinha, e as pessoas brincavam com ela, mas tinha uma mulher lá, com cara de entojada que ficava olhando com cara de nojo pra ela.


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