Enfoque Ocupação Justo 5

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ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO

SÃO LEOPOLDO / RS SETEMBRO / OUTUBRO DE 2019

EDIÇÃO

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ROSANE MOREIRA

LUTA FEMININA PARA MUDAR REALIDADE CRISTINA BIEGER

MICHELI ALVES

SAMANTHA HARRAS

AO FUNDO, A TRAVESSIA DE CONCRETO CONSTRUÍDA PELAS MULHERES DA SANTA MARIA PÁGINA 7

SUSTENTABILIDADE

Coleta de óleo ajuda meio ambiente e gera renda. Página 12

CONSELHO TUTELAR A moradora Celita é uma das candidatas. Página 11

AS LUTAS DE PATRÍCIA

Mãe de quatro filhos, ela fala das dificuldades enfrentadas. Página 15


2. Editorial

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Entre lutas e incertezas A

vanços nos serviços ofertados nas áreas de saúde, assistência social, educação infantil e habitação são alguns dos sonhos daqueles que vivem na Ocupação Justo. Na quinta edição do Enfoque produzido no bairro, são relatadas histórias contando um pouco mais sobre essa realidade.Que, no ponto de vista dos moradores, ainda está longe de sair do papel. Co m d i s t i n t a s o p i n i õ e s s o bre o assunto, os moradores anseiam por realizações e alimentam desejos, tanto pessoais quanto para a Justo como um todo. Em meio aos empecilhos, a comunidade não vive de braços cruzados à espera de novidades. A união das lideranças, ligada à vontade de mudar essa realidade, faz com que diversas ações sejam realizadas no local. É por meio delas que surgem novas possibilidades para mostrar que, mesmo desassistida, a Justo projeta dias melhores e com mais vitórias. Boa leitura! LIANNA KELLY KUNST MATHEUS KLASSMANN GABRIELA BENDER

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Ocupação Justo é um jornal experimental dirigido à comunidade da Ocupação Justo, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares e três edições por semestre, é distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo. Professor responsável: Pedro Luiz S. Osório (posorio@unisinos.br)

EDIÇÃO E REPORTAGEM — Disciplina: Jornalismo Cidadão. Orientação: Pedro Luiz S. Osório. Edição de textos: André Martins, Camila Tempas, César Weiler, Lianna Kelly Kunst, Matheus Klassmann, Renata Garcia e Saimon Bianchini. Edição de fotos: Bruna Flach. Reportagem: André Cardoso, André Martins, Bruna Flach, Camila Tempas, César Weiler, Elias Vargas, Gabriela Stähler, Guilherme Pech, Gustavo Machado, Isabelle de Castro Wrasse, Jacqueline Santos, Ketlin de Siqueira, Letícia Costa, Lianna Kelly Kunst, Luana Rosales, Lucas Lanzoni, Mateus Friedrich, Matheus Klassmann, Matheus N. Vargas, Nagane Raquel Frey, Nínive Girardi, Renata Garcia e Saimon Bianchini. FOTOGRAFIA — Disciplina: Fotojornalismo. Orientação: Beatriz Sallet. Fotos: Amanda Bernardo, Andriele Giroto, Camila Hendler, Cristina Fendler Bieger, Eduarda Freire, Gabriel Garcia, Gabriel Jaeger, Gabriela Bender, Gabrielli Zanfran, Geovana Araujo, Guilherme Lago, Gustavo Fernandes, Jordana Fioravanti, Júlia Möller, Lucas Kominkiewicz da Graça, Luiza Ribeiro Castro, Mariana Carvalho Necchi, Mariluce Lopes Pedroso Veiga, Michele Alves, Nicolas Rodrigues, Nicolas Sampaio, Rosane Teresinha Denke Moreira, Samantha Harras, Vitor Westhauser Ferreira e Vitoria Drehmer.

ARTE — Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. IMPRESSÃO — Gráfica UMA / Grupo RBS. Tiragem: 1.000 exemplares.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: Pedro Gilberto Gomes. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Alsones Balestrin. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretor da Unidade de Graduação: Sérgio Eduardo Mariucci. Gerente dos Cursos de Graduação: Paula Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


Comunidade .3

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Mobilização fortalece a caminhada União dos moradores aumenta a mobilização para o avanço na luta pela moradia

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luta pela regularização da Ocupação Justo, está ganhando reforços. A participação da da comunidade nas Assembleias Gerais, realizadas no dia 27 agosto, logo após a primeira ida do Enfoque à comunidade, e no dia dez de setembro, constituiu um saldo positivo para o movimento. Seja presencialmente ou pelo principal canal de comunicação, o WhatsApp, os moradores estão mobilizados na caminhada pelo direito à moradia digna. Desde o último ato, realizado pela Ocupação no dia 24 de agosto, em frente ao Fórum de São Leopoldo, quando a comunidade se uniu para a audiência com as autoridades, as expectativas aumentaram na localidade. A cooperativa Alto Paraíso, coordenada por Fábio Simplício, 35 anos, foi o palco das Assembleias Gerais que ocorreram no final de agosto e no início de setembro da comunidade. Com o apoio de lideranças como Rodrigo Azevedo, 39, Cristiano Schumacher, do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), e da irmã missionária Mariana Szaljbely, os moradores têm partici-

Mariana Szaljbely, uma liderança na Justo, afirma que a comunidade está mais participativa

pado mais de debates sobre as questões que interessam a todos na Justo. Yago Natanael Machado, 26 anos, é um dos moradores que se informa através do WhatsApp sobre os acontecimentos na Ocupação. Presentes nos últimos encontros, ele acredita em maior interesse por parte dos moradores que não fazem parte das lideranças. “Mesmo com o horário que às vezes bate com a volta do trabalho, vejo o povo mais interessado. Hoje a cooperativa fica lotada. O pessoal que desacreditava, procura ser o mais unido possível para estar sempre por dentro das informações”, conta. Após participar de um dos encontros, João Alberto Corrêa, 52 anos, se mostrou otimista. “As coisas estão andando. Ainda tem um pessoal

“As pessoas ainda não acreditavam na possibilidade de despejo, e agora começaram a se conscientizar. A consciência move para um compromisso” Mariana Szaljbely Missionária

que é um pouco desinteressado, acredita que todo o movimento é muito político. Mas, ao mesmo tempo, a gente vê o povo muito afim de mudar”, enfatiza. Corrêa, que é aposentado, chegou na Justo há pouco mais de três anos. Não sabia da situação. Só sei que hoje quero ficar aqui e lutar para regularizar o que é nosso”, salienta.

PARTICIPAÇÃO

Rodrigo Azevedo, 39 anos, é autônomo e uma das principais lideranças da Ocupação Justo. Na Travessa São Francisco, é ele quem mais fornece informações sobre os principais assuntos da comunidade, engajando até mesmo os moradores que nem sempre podem estar nos encontros. Rodrigo acredita que a participação aumentou consideravelmente desde a audiência pública, realizada no dia 24 de agosto. Rodrigo também comentou sobre a participação dos moradores nas Assembleias Gerais que ocorreram em agosto e setembro. “Tem sido às mil maravilhas. Fábio e eu seguimos sempre convocando o pessoal. Tivemos a oportunidade de debater a necessidade do usucapião, do próprio Reurb, e a importância de estarmos dentro da política, não só aqui dentro, mas a importância de olharmos para a região,

Otimista, João Alberto Corrêa, um dos líderes da rua da Tenda, acredita que a Justo unida consegue muito mais

Fique por dentro O que é Reurb Com o objetivo de solucionar problemas referentes ao território brasileiro, em julho de 2017 foi promulgada a Lei Federal nº 13.465, e, em março de 2018, o Decreto Federal nº 9.310, que dispõem sobre o processo de regularização fundiária urbana, estabelecendo procedimentos e diretrizes a serem seguidas pelos órgãos públicos e por particulares. A legislação criou o Reurb, instrumento jurídico da Regularização Fundiária Urbana. Refere-se a um conjunto de normas gerais que estabelecem as medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais a serem adotadas para a incorporação, ao ordenamento territorial, dos núcleos em situação irregular e sem titulação dos ocupantes. Os pedidos de Reurb podem ser encaminhados pela Defensoria Pública. O que é usucapião Usucapião é o direito que um cidadão adquire em relação à posse de um bem móvel ou imóvel em decorrência do uso do mesmo por um determinado período. O prazo legal para solicitar a posse definitiva pode variar entre cinco e 15 anos. Os pedidos de usucapião podem ser encaminhados pela Defensoria Pública. para o país.”, enfatiza. Para ele, é preciso entender o que acontece não só redor da Ocupação. “É necessário estar por dentro do noticiário nacional, do que acontece na Câmara dos Deputados, no Senado e na presidência. “Hoje tudo é política. Aliás, isso começa dentro de casa. É preciso atuar forte. Precisamos ter essa postura de líderes para permanecermos ativos”, afirma. Representando a Tenda do Encontro nas Assembleias, Mariana Szaljbely também concorda que o envolvimento da comunidade de modo geral tem sido bastante construtivo. “Há mais participação. As pessoas ainda não acre-

Rodrigo destaca a força dos moradores e a participação pela moradia digna, bem como a necessária atenção à política

ditavam na possibilidade de despejo, e agora começaram a se conscientizar. Aumentaram as ações na comunidade, e as pessoas entenderam a precariedade da situação. A consciência move as pessoas para um compromisso”, acredita. Mariana ainda destaca o trabalho conjunto dos poderes. “Estamos recebendo apoio por parte da Prefeitura, do executivo e de boa parte do Legislativo, principalmente se tratando dos vereadores. Eles apoiam nossa causa e trabalham em conjunto”, destaca. LETÍCIA COSTA JORDANA FIORAVANTI

Receber notícias no celular permite que Yago e outros moradores se informem sobre as assembleias


4. Comunidade

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Realizações e desejos A visão pessoal de alguns moradores da Ocupação sobre os seus próprios objetivos alcançados e sonhados

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arcio Luiz Baum de Souza vive na Justo há um ano e meio, encostado no INSS após um acidente de carroça quando fraturou o pulso e o pé. O ex-funcionário da Centrais da Abastecimento do RS (Ceasa) conta que um dos seus principais objetivos na vila foi alcançado, mesmo com os problemas que a comunidade está enfrentando na Justiça. “A minha moradia foi a maior das conquistas, pois agora com ela eu não preciso mais sair daqui. Embora todos que moram na Justo tenham a noção que podem perder o espaço em que vivem”, conta. Marcio também comenta uma importante conquista. “Colocar a caixa d’água juntamente com o motor foi muito especial para mim, pois até o verão passado nos precisávamos pegar a água de noite que vinha da rua para encher os baldes. Agora com a caixa na minha casa tudo fica mais fácil para mim e minha família. Seria muito bom se os moradores conseguissem colocar em suas casas também”, complementa. Antes de Marcio terminar as suas declarações, ele deixa claro que algo diferente para o público infantil da comunidade Justo seria muito bem-vindo: “Aqui seria muito bacana se algum político ou alguém da Prefeitura colocasse um local para as crianças brincarem, nem que seja apenas um brinquedo, pois eles não possuem nada aqui”, acrescenta. Henrique Leandro Mittanck vive na Justo há oito anos. Desempregado, 46 anos, ele fala que no momento está trabalhando como pedreiro quando aparece

“Pessoas saem às cinco da manhã para trabalhar amassando barro e não tem onde deixar os filhos, é preciso fazer uma creche para os mais pobres” Joaquim Silveira de Souza Aposentado

Marcio espera que governantes construam um local para as crianças brincarem, pois não há nada para elas na Ocupação

Joaquim reclama da falta de comprometimento da Prefeitura uma oportunidade. “Hoje o mercado de trabalho está complicado, mas eu vou me virando. Como a maioria das pessoas da comunidade, a minha maior conquista aqui dentro foi a minha moradia”, comenta. Vivendo na comunidade desde maio de 2019, Aline Correa, de 36 anos, se mudou para a Justo por conta do marido, o metalúrgico Fernando Siqueira de 37 anos. Nova no local, ela não tem noção de tudo que acontece ou falta, mas tem uma pequena ideia. “É de extrema im-

Henrique está feliz com a sua moradia, mas procura um emprego

portância colocar asfalto e, principalmente, uma escola por perto, pois é muito longe para os moradores levarem os filhos”, afirma. Aposentado, 66 anos, Joaquim Silveira de Souza vive na Justo há cerca de 19 anos. Ele comenta que conquistou a sua moradia, mas para ele isso não pode ser considerado uma grande vitória. “Conseguir morar aqui com casa própria não é uma grande conquista, eu costumo dizer que não conquistei nada na comunidade”, afirma. Para ele, a

Aline gostaria que fosse construída uma escola mais próxima

Justo sofre muito por não ter políticos que ajudem a comunidade e isso acaba afetando todos de maneira negativa. “Falta muita organização aqui, muito por conta da prefeitura”, acredita. Joaquim considera “uma conquista de verdade” o fato de já ter cadastro na Secretaria de Habitação de São Leopoldo. “Eu moro numa parte mais antiga da comunidade, já sou cadastrado há 20 anos e isso me passa uma certa tranquilidade, diferente do pessoal mais novo que está tentando isso”, afirma.

Ele termina comentando que por conta da falta de apoio de políticos os moradores passam por problemas que poderiam ser facilmente resolvidos. Para ele seria importante focar em um local exclusivo para crianças onde os pais possam deixá-las. “Pessoas saem às cinco da manhã para trabalhar amassando barro e não tem onde deixar os filhos, é preciso fazer uma creche para os mais pobres”, finaliza. LUCAS LANZONI GUSTAVO FERNANDES


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Comunidade .5

A Vila se ajuda e fica mais forte Instalação de água, luz e busca por cães perdidos: alguns dos modos de cooperação e apoio

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pessoal se unia por necessidade, a gente foi se ajudando e conseguiu colocar luz e água. Quem não tinha, ajudávamos, não iríamos deixar ninguém sem” relembra. Mesmo com a implementação dos sistemas nas casas, ainda há problemas. O principal motivo é a instabilidade do abastecimento. Há dois meses, nas primeiras horas da manhã, a água repassada aos moradores é escassa, de acordo com Alexandre. O fato deve-se à falta de regularização da comunidade com os órgãos públicos.

s mãos de Eduardo Ribeiro Beaptista, 27 anos, são acostumadas com o trabalho. Elas foram calejadas por cursos preparatórios para atuar num ramo necessário, mas também arriscado, como o da energia elétrica. O jovem estima ter ajudado a “puxar” luz, para mais de 800 residências da Justo. Na sua própria rua, o eletricista “Alemão”, como é conhecido na comunidade, não lembra UNIÃO DISTINTA de alguma casa em que ele não Quem nunca perdeu algo? contribuiu para a iluminação. Na Justo existe uma forma efi“A luz não chegava nem a 100, caz na procura por itens perdi90 watts. Era horrível”, revela dos. Foi o caso de uma família Eduardo ao recordar a preca- da rua Palmeira das Missões, riedade do passado. O con- numa das extremidades da sumo médio no país é de 152 vila. No final do mês de agoswatts por residência. to, notaram o sumiço do novo Natural de Rosário do Sul, integrante da casa: a cadelinha mora na Ocupação há oito Lisi. Quando o pai, Natanael anos, onde constituiu a sua Silva, 27 anos, saiu para trafamília. Durante a semana balhar, por volta das seis da trabalha numa empresa de manhã, a pequenina saiu junto pelo portão comunicação principal, sem visual, mas nos ser notada. O fins de semana, “A gente foi fato preocuou até mesmo se ajudando pou os adultos, após o expemas principaldiente, colabora e conseguiu mente a filha com a instala- colocar luz e água. do casal. ção do recurso Quem não tinha, A mãe, Jesnos lares. Basica Guimarães, sicamente faz ajudávamos, não 25 anos, logo p a r a a j u d a r, iríamos deixar b u s co u u m a cobrando o míforma de locanimo possível, ninguém sem” lizar o animal. solicita apenas Não demorou o necessário Alexandre da Silva muito para para o mate- Morador rial. “Tem gente que não tem receber o auxílio de um vi(condição), as vezes nem me zinho, que postou uma foto pagam. É ruim ficar sem luz, e as informações do caso no eu me coloco muito no lugar grupo de WhatsApp da codas pessoas”, comenta o eletri- munidade. Antes do final da cista. As luvas que o protegem manhã, tudo resolvido: para foram obtidas na troca da co- a felicidade de todos, a calocação de luz na casa de um delinha estava em um colévizinho. Ele garante ter todo gio próximo. “Ela saiu para o material de segurança para estudar”, brinca o pai. Além da “fujona”, que tem poucos realizar os trabalhos. meses de vida e adora um colo, ELETRICIDADE há outro integrante canino Uma das casas que rece- na residência, o Jay, há mais beu o suporte elétrico foi a tempo com a família. de Alexandre Gonçalves da Seja na busca por um caSilva de 30 anos. Quando che- chorro, na instalação de água gou à Ocupação, oriundo da e luz ou na doação de esforços, Cohab de São Leopoldo, há a Ocupação Justo se ajuda. São quase uma década, luz e água mais de 20 anos em que os eram itens escassos. Para ter moradores dividem um pedaço acesso ao líquido, precisava de chão e se unem pela concaminhar um trecho grande quista definitiva dos seus lares, para buscá-la. Então foi feito fortalecidos pela solidariedade um mutirão de trabalho e fi- dos amigos e vizinhos. nanceiro, há alguns anos, entre SAIMON BIANCHINI os próprios moradores, para GABRIELLI ZANFRAN melhorar a vida de todos. “O

Alexandre relembra o mutirão feito pelos moradores para colocação de água

Orgulhoso, Eduardo estima ter “puxado” luz em mais de 800 casas


6. Educação

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Um espaço só para elas Local destinado às mulheres oferece aulas de dança, artesanato e oficinas de estudo

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om aulas especializadas do Ensino de Jovens e Adultos (EJA), de dança e de artesanato, a Ocupação Justo agora tem um espaço só para mulheres. Sandra Silva, 34 anos, e que possui especialização em cuidados de crianças de até três anos, reitera a importância do local. “Se dependesse de mim, iria às aulas todos os dias. Agradeço muito ter essa oportunidade aqui dentro, sinto que todas as mulheres se ajudam. Não posso atuar com as crianças porque não sou formada no ensino médio, e por isso quero fazer o EJA. Essas aulas de estudo são muito importantes, e estão me ajudando para conseguir fazer o que mais amo no futuro”, ressalta. Além do espaço, a oficina possui um grupo no WhatsApp, onde se comunicam e noticiam quando irão ocorrer as próximas atividades. Márcia Garileine, 46 anos, é participante assídua das aulas e fará também o curso de Gastronomia, que está sendo ofertado em parceria com o curso de Gastronomia da Unisinos. “Compartilhamos as

Para Sandra, as aulas do EJA estão ajudando a futuramente fazer o que mais ama: cuidar de crianças informações sempre pelo nosso grupo de WhatsApp. Qualquer mulher pode participar, de qualquer idade. Além das aulas, também trocamos experiências, que nos ajudam no nosso dia a dia”, afirma. Sem emprego no momento, Márcia também elogia as aulas de pintura e crochê que a oficina oferece. “É um trabalho que podemos levar adiante, produzindo materiais para vender, podendo ser uma renda extra. Facili-

ta bastante”, finaliza. Presente na Ocupação Justo há cerca de nove anos, a Oficina foi idealizada em parceria com a professora Marília de Maia, da Unisinos, e a Tenda do Encontro. Com a ajuda de voluntárias, decidiram-se organizar um espaço onde as mulheres pudessem se ajudar, ensinando umas as outras, além de se divertirem. Mariana Szajbely, 48 anos, conta que o objetivo é ajudar e dar uma nova esperança ás mulheres da

Márcia é participante assídua e fará também o curso de Gastronomia oferecido pela Unisinos Justo. “É importante ter esse espaço. Contamos com a ajuda de voluntárias que organizam as aulas. Quanto mais mulheres estiverem dispostas, melhor. Com a oficina existindo há tanto tempo, criamos um laço de amizade”, enfatiza. Amanda dos Santos, 20 anos, elogia o trabalho. “A oficina fica aberta um dia da semana, então é difícil conciliar com o trabalho. Mas já vi as organizadoras visitarem as casas, caso alguém não consiga

comparecer. O trabalho feito é muito interessante, todo mundo elogia”, finaliza. A oficina de aprendizado para as mulheres, além dos estudos, proporciona aulas de dança, artesanato e pintura, além de ter um horário específico para uma roda de orações. Está aberta todas as sextas-feiras, das 9h às 11h, com oportunidades também para as crianças. ISABELLE DE CASTRO WRASSE AMANDA BERNARDO

O gaúcho “pau ferro” da Justo João Geraldo da Silveira ou, como é popularmente chamado na Ocupação, seu Geraldo. Vigilante aposentado, é conhecido por todos pelo fato de manter vivas tradições do estado. Como o próprio diz, viver em baixo de um galpão velho, em frente a um fogão campeiro aceso e com água quente para o mate, “essa é a vida que seu Geraldo gosta”. Segundo o morador Reinaldo Schimidt, conhecido por todos como Teco, seu Geraldo é o gaúcho mais “pau ferro” que existe. “O véio tem 84 anos e já deve estar na beira do fogão campeiro”, afirmou Teco quando indagado sobre alguém que mantivesse as tradições do estado na Ocupação. (A expressão “pau ferro” vem de uma árvore cuja madeira é de resistência extrema.) Quem chega no galpão campeiro de seu Geraldo, que Teco ajudou a levantar,

logo já é cumprimentado com um abraço bem bagual e recebe uma generosa cuia de chimarrão. “É uma imensa alegria receber novos amigos aqui, em frente ao meu fogão campeiro para tomar um mate!”, afirma seu Geraldo enquanto já vai alcançando a cuia ao visitante. Nascido na serra gaúcha, em São Francisco de Paula, seu Geraldo diz que cresceu domando potro xucro, tropeando boi brabo, laçando pelos campos a fora e dormindo em galpões. Em 1955, com 18 anos, ele veio para São Leopoldo, onde serviu no 19º Batalhão de Infantaria Motorizada por seis anos. “Me dei bem com a cidade, fiquei por aqui. Mas nunca abandonei a tradição”. O hoje vigilante aposentado comenta que levanta bem cedo, faz fogo no fogão a lenha, esquenta água para o mate e só depois desse ritual é

Seu Geraldo se alegra quando chega alguém para prosear que inicia suas lidas do dia. Foi patrão da invernada campeira do CTG Aparício Silva Rillo. “Depois, montamos nosso próprio Piquete, Os Baguals e Aporreados” diz faceiro,

exibindo sua camisa. Seu Geraldo possui 11 irmãos e, segundo ele, todos bem de vida. “Eles querem que eu more com eles. Mas eu digo não! Eu gosto é de

estar embaixo de um telhado velho, que é a vida que eu gosto e levo”, explica o morador. Com 84 anos de idade, seu Geraldo é muito grato pelo fato de ter vivido tanto e ao grande número de amigos. “Fico faceiro quando aparece um cidadão, que acha as portas do meu galpão véio e se senta para tomar um chimarrão e prosear comigo”. Quando tinha 23 anos, seu Geraldo se casou e, após oito anos, ficou viúvo. Entre as idas e vindas da vida, ele teve muitas companheiras. Hoje está solteiro. “Sou pai de sete filhos: Adrovan, Gervan, Régis, Margarete, Andrés, Matheus e Chaiane, tenho netos e bisnetos. Quem sabe agora que vai começar a esquentar eu arrume outra companheira”, brincou. MATHEUS N. VARGAS VITOR WESTHAUSER FERREIRA


Lideranças .7

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Mulheres buscam uma vida melhor na Santa Maria Movimento feminino que lidera a localidade dentro da Ocupação Justo deseja crescer e se integrar nas mobilizações

de, que atualmente só passa na rua Santa Maria.

MAIS DESAFIOS

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istante do coração da Justo, uma lomba discreta conduz a uma pequena localidade que faz parte da área, a Santa Maria. No acesso, a rua de concreto mostra o resultado do empenho de um grupo de três mulheres líderes da comunidade, que abriga cerca de 100 casas. Elas reivindicam a atenção das demais lideranças da Ocupação. O movimento começou em maio deste ano com a iniciativa da mestre de obras Suely Maria Dorneles, 36 anos, que reivindicava infraestrutura básica, como luz, água, coleta de lixo e um passeio público adequado. A partir dessa necessidade, Suely criou o grupo Santa Maria, junto com a secretária Zislaine Santos dos Santos, 41 anos, e a professora Deise Angelica Teixeira Mello de Lima, 31 anos. O nome da organização refere-se à rua Santa Maria, que dá acesso à localidade e começa no bairro Santa Teresa. A mobilização das mulheres chamou a comunidade para se reunir nas quartas-feiras à noite na casa de Suely. É nesses encontros que são debatidos investimentos e ações para beneficiar as famílias da região, bem como planos futuros e a situação da Ocupação. “Faço o que posso para organizar onde eu moro”, diz Suely. Com atitude e determinação, ela realiza as obras ao seu alcance. “Quando eu falo, eu vou e faço”, enfatiza.

TRABALHO COLETIVO

Uma grande intervenção da equipe mudou a realidade de quem transita pelo acesso principal da Santa Maria: a construção do caminho de pedra e cascalho. A obra canalizou a sanga que atravessa a área. Antes, a passagem sobre as águas era um tronco e estava em estado precário. Na estrada havia crateras e não descia caminhão ou táxi. Em dias de chuva, o barro tomava conta da lomba. A dificuldade também era grande para construir as casas dos moradores, já que nenhum caminhão de madeireira conseguia descer e atravessar o caminho, antes da

Ponte que unifica a área é uma das maiores conquistas do grupo que mobiliza a região

Idealizadora do movimento, Suely se empenha para trabalhar pela comunidade construção da ponte. A obra, que proporcionou segurança à passagem e o trânsito de veículos, é uma grande conquista, segundo a diarista Maria Ivonete da Silva Santos, 54 anos, que é dona da casa mais antiga da localidade, morando lá desde 2008. “Antes, ali era só um corredorzinho”, relata. Ela acrescenta: “A gente quer morar

“A gente tem bastante projetos, mas é preciso que o povo esteja unido para realizá-los” Zislaine Santos dos Santos integrante do grupo Santa Maria

Zislaine lembra que a obra ainda está em arrumação, mas já é um grande avanço

em um local bom, melhor, estruturado, que passe o carteiro, que venha o caminhão de lixo, que tenha uma área de lazer para as crianças jogarem bola ou andarem de bicicleta”. A construção da passagem, de acordo com Zislaine, foi um processo longo e demorado, que levou quase dois anos. “Foram várias tentativas de arrumar e arrecadar dinheiro. Foi passado brita e rolo compressor em um período e não adiantou de nada”, conta. Conforme ela, a obra ainda está em processo de arrumação, mas já é um grande avanço. “Com a ponte, agora podemos pedir desde um simples lanche [por motoboy], um rancho para aqueles que não têm carro ou até uma ambulância em caso de uma emer-

gência”, comemora Deise. Outra grande realização é a instalação de postes de energia elétrica pelas ruas da pequena área. Destacando esta realização, Suely indaga: “Eu penso nas famílias que estão aqui, nas crianças. Se cortarem a nossa luz, como vamos ficar?”. Uma outra ação do grupo buscou identificar os caminhos da localidade, denominando todas as ruas com nomes de praias, com direito a placas indicativas, e numerando todas as casas. A identidade das vias de chão batido, que não possuíam nenhum sinal de referência, é um passo importante para a esperada regularização fundiária do local, considera Suely. A próxima etapa do grupo é trazer a coleta de lixo orgânico para dentro da localida-

Uma queixa por parte das líderes da Santa Maria é a falta de engajamento dos demais moradores no movimento. “Na primeira reunião, vieram 30 pessoas. Hoje vêm quatro ou cinco”, lamenta Suely. Além de trazer a coleta de lixo orgânico, a construção de uma praça para as crianças, a realização de oficinas de reforço escolar, artesanatos e esportes, e o asfaltamento estão entre os planos futuros para a localidade.“A gente tem bastante projetos, mas é preciso que o povo esteja unido para realizá-los”, comenta Zislaine. As coordenadoras pretendem ainda adquirir um espaço na própria Santa Maria onde possam realizar as reuniões, a exemplo da Tenda do Encontro. Um local de recreação para as crianças não ficarem pelas ruas também está em projeto. “Sonho de toda professora”, comenta Deise. Para arrecadar fundos, as organizadoras realizam galetos, brechós e rifas, com sorteios de cestas, além de festividades, como a festa de São João e o Natal. “Graças a Deus e ao esforço de quem não desiste junto comigo vamos melhorando nossa situação aos poucos, com nosso próprio dinheiro, com nossa própria mão de obra”, destaca Deise. Ela explica que o grupo também já apelou por ajuda ao poder público há dois anos, mas não obteve retorno. O último Natal, lembra Deise, ocorreu em seu pátio e contou com brincadeiras, comida e presentes, obtidos por doações, e fizeram a alegria de cerca de 100 crianças da comunidade. “Não tenho muito a oferecer, mas com o pouco que tenho, tento me doar por completo,principalmente por causa das inúmeras crianças que moram aqui”, completa. O movimento também clama por visibilidade e integração com a Cooperativa Ocupacional Sem Fins Lucrativos Alto Paraíso. Para as comandantes do grupo, há uma distância e falta de diálogo entre as comunidades, que, segundo elas, se fortaleceriam se trabalhassem em conjunto. “Gostaria que a Alto Paraíso visse a realidade daqui e participasse de uma reunião nossa”, afirma Suely. GUILHERME PECH ROSANE MOREIRA


8. Saúde

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Atendimento quinzenal não supre as demandas da Justo São poucas as consultas oferecidas e moradores precisam se deslocar para unidades de bairros próximos

“Precisamos de um posto de saúde aqui na Ocupação”, é o apelo de Neves quando questionado sobre o que mais faz falta para a comunidade. No momento da entrevista, o morador se encaminhava para levar demandas, de habitação e pavimentação, aos líderes da Cooperativa Alto Paraíso. A situação evidencia que os problemas não estão só na saúde, mas, também envolvendo o quesito deslocamento nos casos de urgência.

N

ão é de se ficar plenamente satisfeito com a Saúde Pública, quando se é induzido a ter apenas dois dias no mês disponíveis para consultas médicas. É o que acontece dentro da Ocupação Justo. Os moradores da comunidade precisam aguardar o “Ônibus da Saúde”, duas vezes por mês, às segundas-feiras, para receber atendimento. Ele estaciona em frente a Cooperativa Alto Paraíso e recebe quem aguarda uma consulta, para atender maiores necessidades. Em frente à Cooperativa fica o bar da família de seu Valdemar Preusller, 53 anos. O comerciante dá informações detalhadas sobre a operação do ônibus na localidade e afirma que o serviço é de qualidade. “Ele fica de uma e meia, até as quatro horas da tarde, mais ou menos”, explica o morador, com pressa de atender os clientes. Valdemar ainda conclui que, apesar do bom atendimento, são só 12 consultas disponíveis por visita.

AVANÇOS

Valdemar acompanha de perto as movimentações dos atendimentos

“Precisamos de um posto de saúde aqui na Ocupação”

UNIÃO

Preusller conta que por consequência dos poucos horários de consulta oferecidos para o atendimento, a solidariedade se torna necessária. “Semana passada aconteceu. Uma senhora idosa precisava e não tinha a ficha, aí um outro senhor que mora aqui perto cedeu o lugar para ela”, explicou. O comerciante usa o ônibus com a finalidade de aferir a pressão arterial e obter receitas para uso de medicações controladas. O veículo que atende os moradores vem sempre com um médico clínico geral, dois enfermeiros e um dentista. Os profissionais atendem apenas os adultos. As crianças precisam ser encaminhadas para outras unidades. Valdemar afirmou que, não tendo urgência, as crianças são encaminhadas para o Posto de Saúde da rua Mauá. Em casos mais graves e de emergência, os encaminhamentos acontecem à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do bairro Scharlau, em São Leopoldo. O morador acredita ser a mais acessível devido a rapidez no fluxo de trânsito das ruas. As histórias de dificuldades com a saúde se multiplicam pela Ocupação. Uma delas é relatada por Vanderli Neves, 42 anos. “Uma senhora idosa precisou, quando teve um mal súbito. Demoraram para levar ela ao atendimento e a saúde dela piorou”, relatou Neves, trabalhador da construção civil. Ele ainda ressaltou que utiliza algumas vezes o ônibus, mas quando realmente precisa, acaba optando por outras unidades de saúde fora da Justo.

Contudo, o ônibus trouxe alguns confortos aos moradores da Justo. É o caso do reciclador Moises Silveira de Melo, 37 anos, que tem mais perto de casa a fonte de seus remédios. Precisando de receita para conseguir os medicamentos antidepressivos que consome, sua saga se tornou bem menos cansativa com o veículo da saúde. “Antes do ônibus, eu tinha que ir ao Centro de Assistência Psicossocial (CAPS) de bicicleta”, explica Melo, calculando em cerca de 30 minutos o trajeto que não precisa mais percorrer.

Vanderli Neves Construtor

Vanderli é testemunha das dificuldades de deslocamento dos vizinhos

Moises afirma que ficou com a vida mais fácil com a presença do médico

O responsável pela organização da ida do ônibus para a Ocupação é Fábio Simplício, 35 anos. O presidente da Cooperativa afirma escutar elogios dos moradores quanto a qualidade do atendimento dado pelos profissionais de saúde. Contudo, a ideia é de que se tenha mais consultas disponíveis para os ocupantes. Grupos do aplicativo de mensagens WhatsApp servem para propagar a dia em que o veículo da saúde estará na Justo. Intitulados “Movimento Justo” e “Doações, vendas e trocas da Justo”, duas vezes por mês eles recebem o aviso de Simplício. Há uma perspectiva de aumento no número de atendimentos para a Ocupação, conforme afirma o organizador. Tudo depende de uma decisão da Secretaria de Saúde de São Leopoldo, que deve repassar vagas de outra localidade para a Justo. Quanto ao acréscimo de um médico pediatra na equipe do ônibus, a situação está mais longe de acontecer. Porém, Fábio afirma que o Posto de Saúde da Vila Duque, próximo da Ocupação, recentemente passou a contar com um profissional desta especialidade. CÉSAR WEILER GUILHERME LAGO


Economia .9

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Investir é construir a casa e fortalecer os negócios Moradores contam que é praticamente impossível pensar em outro tipo de investimento

A

forma de investimento dos entrevistados, de modo geral, é na moradia. Empregar dinheiro nas casas e não em produtos financeiros parece trazer mais segurança. Eles afirmam que não conhecem as formas de investimento financeiro, salvo a poupança. Isso ocorre pela necessidade de usar o dinheiro para alimentação e necessidades emergentes, o que faz os ocupantes não terem tempo para pensar nem ao menos na poupança, a maneira é de uso mais comum para a população brasileira fazer o seu dinheiro render de forma segura. Os planejamentos são baseados em suas necessidades e compromissos imediatos. Conversamos com alguns moradores e nenhum deles tem uma poupança ou um planejamento financeiro. Jerry Flores, morador do local e onde tem o empreendimento do qual tira seu sustento, conta que, se conseguisse, economizaria. “Se eu pudesse eu guardaria, mas por mais que ganhamos, nós precisamos gastar em remédios, consultas, coisas para dentro de casa”, a f i r m a o m o r a d o r. A realidade de Jerry na comunidade é semelhante de outros moradores. A dificuldade de fazer um planejamento financeiro se deve também pelo fato de terem que investir em seus próprios negócios. Como ocorre com Scheila, 34 anos, confeiteira, que tem uma padaria dentro da comunidade. O dinheiro para montar o estabeleci-

mento não veio de qualquer investimento. Atualmente, conforme o negócio vai evoluindo Scheila investe, sem ter uma organização a longo prazo. “Eu só penso em melhorar meu estabelecimen-

to”, conta a moradora. A necessidade de usar o dinheiro para a sobrevivência é grande também para outras famílias, como a do casal Raquel Duarte e Carlos Alberto. Desem-

pregados, têm dificuldades para manter o dinheiro ou guardá-lo. Mas questionados sobre onde gostariam de investir, caso sobrasse dinheiro do mês, Carlos não titubeia e conta que inves-

Jerry em seu local de trabalho, a mecânica que o sustenta e é a sua prioridade

“A última coisa que faria é colocar dinheiro no banco, com o dinheiro que ganhamos, só consigo pôr a comida em casa” Jerry Flores Morador

Aristotilde e Valdeci, se pudessem, investiriam em terrenos e habitações

tiria no seu lar: “Quando temos algo, a primeira coisa que pensamos é melhorar a casa, comprar móveis, arrumar a casa e melhorar o que é preciso”. A hipótese de qualquer planejamento para os moradores é incerta pelo fator econômico que afeta o Brasil. Tanto para Jerry e Scheila, que sobrevivem através de seus negócios, quanto o casal Raquel e Carlos, a falta de apoio do governo e uma política que não beneficia o trabalhador de classe mais baixa traz a emergência de viver um dia após o outro. Valdeci Valdez e Aristotilde Moreira, são um casal de moradores da Justo. Eles têm sua casa na comunidade há onze anos. Também estão desempregados e as dificuldades para fazer qualquer economia são enormes. Na opinião deles, no estado que o Brasil está e a dificuldade de arrumar emprego, fica difícil conseguir planejar algo. “Ou tu te alimenta, ou passa fome”, conta Valdeci, que há dez dias foi demitida do seu emprego O casal também fala de forma enfática na hora de escolher um modo de guardar dinheiro: se sobrasse uma quantia considerável, fariam o financiamento de uma casa. Um terreno parece ser a forma mais lucrativa para investir o dinheiro a longo prazo, o que faz brilhar os olhos do morador na hora de falar. “Seria casa, terrenos, é o que mais dá dinheiro hoje. Poupança não dá quase nada”, afirma. Todos os entrevistados mostraram que não têm como pensar em guardar atualmente. Mas o sonho maior é a casa própria e melhorar os seus empreendimentos e negócios. Jerry, que tem sua mecânica dentro da comunidade, conta que não conhece nenhuma forma de guardar dinheiro. Sua mecânica é seu ganha pão e ele só pensa em melhorá-la. “A última coisa que faria é colocar dinheiro no banco, com o dinheiro que nós ganhamos, só consigo pôr a comida em casa”, explica. ANDRÉ MARTINS GABRIEL JAEGER


10. Cuidados pessoais

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Faltam salões de beleza femininos A Vila conta com cabeleireiro apenas para sexo masculino

fixa, mas ressalta que a dificuldade financeira é realmente um grande obstáculo dentro da vila. “Muitas vezes os fregueses não possuem o dinheiro para pagar o corte naquele momento. Eu não cobro muito deles. Ninguém sai daqui sem cortar o cabelo”, relata o barbeiro acrescentando que não quer perder seus clientes. Beto ainda salienta que, com a hipótese dos cidadãos da Justo ganharem a ação judicial, legalizando a comunidade, espera por melhorias no calçamento das ruas, na infraestrutura da luz e da água. Assim, trazendo mais clientes para o seu salão e melhorando a condição de vida da sua família. Além disso, deseja ter a oportunidade de fazer cursos, melhorando o trabalho oferecido à população.

C

ortar e pintar o cabelo, fazer as unhas, as sobrancelhas, ou até mesmo se maquiar é comum entre as mulheres. Além de elevar a autoestima, os cuidados pessoais fazem parte da higiene dos seres humanos. Entretanto, as moradoras da Ocupação Justos encontram grandes dificuldades para ter acesso a esses serviços. Além da falta de salões de beleza na comunidade, a renda das famílias é baixa. De acordo com a doméstica Tatiane Maciel, 33 anos, moradora há 20 anos da Justo, nunca houve um salão feminino dentro da comunidade. “Todo e qualquer serviço que precisamos, fazemos em casa ou procuramos fora do bairro”, revela. Tatiane ainda diz que uma estética feminina movimentaria o bairro. “Apesar da situação financeira ser complicada, o profissional teria uma boa clientela. Quem não gosta de se arrumar às vezes?”, salienta. Para Tatiane e sua mãe Elizabete Cavalcante Jesus, 51 anos, seria um grande ganho a vila ter um espaço que atendesse as necessidades das mulheres. “Me motivaria muito poder ir em um salão de vez em quando, pintar os meus cabelos com alguém

Beto fidelizou clientes nos seis anos em que tem o salão especializado. Hoje sou eu mesma quem tinjo o meu cabelo, ou a minha filha”, declara Elizabete.

PARA ELES

Ademar Gilberto Bueno Dias, 44 anos, é barbeiro há 22 anos, e há seis anos atua na Ocupação Justo. O popular Beto, como gosta de ser chamado, é natural de Ijuí e veio com a sua esposa para São Leopoldo há 26 anos

em busca de trabalho. Sem condições financeiras para atuar e se dedicar somente a sua paixão, que aprendeu na cidade de Porto Alegre em um curso profissionalizante, ele passou por vários empregos, até se estabilizar financeiramente no que realmente o faz feliz. Por meio destes serviços, Beto conseguiu ir economizando, aos poucos foi equipando o seu salão. Ele já considera ter uma clientela

NAGANE RAQUEL FREY ANDRIELE GIROTO

Beto Cabeleireiro Corte masculino adulto: R$ 15,00 Corte masculino infantil: R$ 12,00 Aparar / raspar a barba: R$ 5 a R$ 10,00 Endereço: Rua Ermelindo Varnieri, 57 (nº antigo) – Ocupação Justo

Futuro incerto é a maior preocupação Para as 2500 famílias da Ocupação Justo, as residências em que vivem são consideradas mais do que casas. Os lares e comércios construídos ao longo desses 20 anos da Justo abrigam pessoas que alimentam a esperança de receber do poder público o direito constitucional à moradia. Mas a assombração do despejo afeta a rotina dessas famílias. No Beco C encontramos a família da auxiliar de limpeza Viviane Alves, 39 anos. A moradora precisou desmanchar a residência, que não apresentava boas condições de moradia. Até novembro, a família de Viviane pretende construir uma nova casa, mas enfrenta dificuldades financeiras e teme ser despejada. Atualmente, estão morando em lares emprestados pelos amigos. “ A casa que morávamos estava quase caindo em nossas cabeças e quando chovia a água entra-

A nova moradia da família Alves será construída no número 174 do Beco C va pelo teto”, lamenta. O filho de Viviane, Bernardo, 15 anos, destaca que a Ocupação é ótima para se viver e não gostaria de morar em outro local. “Meus pais querem construir uma casa nova, mas não queríamos ter ela pronta e acabar sendo despejados. A gente não

Derli e Maria têm loja desde 2015 e vendem roupas nos bairros de São Leopoldo

dorme de preocupação. Aqui não é do jeito que a gente sonha, mas podemos transformar esse lugar no jeito que a gente quer”, acredita. Também vivendo no Beco C, Leonilda Dias Boava, 73 anos, e a filha Deloni, 49 anos, moram no mesmo terreno, mas em casas separa-

das. Como se não bastasse a preocupação de não ter onde morar caso seja despejada, Leonilda conta que ainda sofre de depressão. “Com muitas preocupações por causa do despejo, eu também não esqueço a morte do meu marido. Em um ano perdi minha mãe, marido e genro”, conta.

Derli dos Santos, 52 anos, e Maria, 51 anos, vieram morar na Ocupação sem saber que não era legalizada. Quando descobriram decidiram permanecer no local, por ser uma comunidade segura e abrigar pessoas solidárias. “Antes de vir para na Ocupação, nos trabalhávamos como agricultores em Gramado Xavier. Na Justo vimos a oportunidade de trabalhar como sacoleiros e abrir nossa lojinha”, comenta a comerciante. O vendedor ressalta que não gostaria de perder seu lar e comércio. Essa situação faz com que eles não ampliem a loja. “Estamos morando na Ocupação há seis anos, e temos a loja desde 2015. Gostaríamos de permanecer aqui, já fizemos nossa clientela na Justo e região”, afirma. KETLIN DE SIQUEIRA EDUARDA FREIRE SALVADOR


Infância .11

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Às urnas, pelas crianças e jovens Eleições para o Conselho Tutelar podem mudar a realidade dos serviços oferecidos na Justo

mente sem trabalho, Cristiane, que é mãe de David, um menino de dois anos, tem muitas queixas em relação a alguns episódios que acontecem próximo a sua casa. Segundo ela, há jovens e crianças que costumam incomodar no bairro. “A gente só vê o carro do Conselho passando aqui, mas volta e meia pego uma criança tentando machucar meu filho”, reclama. Tanto Cristiane, como Joseval, ainda não definiram em quem votar. “Vamos às urnas para escolher pessoas capazes de mudar essa realidade que costuma nos incomodar”, pontua Joseval.

P

roteger e garantir os direitos de crianças e adolescentes: é essa a principal atribuição de um conselheiro tutelar. A atuação do órgão ligado ao Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e do Adolescente (Comdedica) da Prefeitura de São Leopoldo, no entanto, pode mudar em breve: mais precisamente a partir de janeiro de 2020. Em todos os 5.570 municípios brasileiros, no dia 6 de outubro, domingo, ocorrem as eleições para a escolha de dez novos titulares e suplentes ao cargo de conselheiro. Entre os 48 candidatos e candidatas que estão em campanha no município desde o final do mês de agosto, uma é moradora da Justo. Há quase 15 anos na Ocupação, Celita Nunes do Amaral, 51 anos, é estudante de Assistência Social e está concorrendo ao cargo pela segunda vez. No último pleito, conforme explica, não obteve êxito devido à falta de apoio e dificuldades financeiras. “Na época não consegui nem fazer os santinhos de campanha, mas para essa eleição estou mais preparada. Estou pedindo voto nas redes sociais e pretendo visitar as famílias para conversar e apresentar minhas propostas”, destacou. Celita é funcionária do Instituto Educacional Espírita (IEDE), onde são oferecidos serviços de acolhimento a jovens e crianças. Ela revela que seu maior sonho para a Justo é a ampliação da tenda e que esta possa oferecer mais atividades socioeducativas ás famílias. “Precisamos desse olhar voltado para cá, pois vejo que atualmente temos muita evasão escolar e outros tipos de problemas que poderiam ser solucionados. Por isso, acredito que cada bairro precisaria de um conselheiro”, complementa. Apesar de não haver obrigatoriedade, os amigos Cristiane Terezinha Castro da Silva, 22 anos, e Joseval de Souza, 49, estão pensando em ir votar. Ambos não sabiam a data da eleição e nem que havia uma candidata na Ocupação. Atual-

Davi já sabe em quem votar para dar continuidade à defesa das crianças e dos adolescentes

“Vamos às urnas para escolher pessoas capazes de mudar essa realidade que costuma nos incomodar” Joseval de Souza Morador

Ao lado do pequeno David, Cristiane e Joseval querem mudanças no Conselho Tutelar

Onde votar Local: Escola Amadeu Rossi e na Escola Helena Câmara Horário: das 8h às 17hs. O que levar: título de eleitor e/ou documento oficial com foto.

Celita é a única candidata moradora

O que faz o Conselho Tutelar: Criado no dia 13 de julho de 1990 junto com Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Conselho Tutelar tem como principais atribuições o atendimento às crianças e adolescentes, bem como seus pais ou responsáveis. O órgão também pode promover a execução de suas decisões, inclusive, requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, previdência, serviço social, trabalho e segurança. Além disso, tem o poder de encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência.

A atuação do Conselho, entretanto, gera controvérsias entre os moradores. Morador da Justo faz mais de cinco anos, Davi da Rocha Vargas, 34 anos, também vai votar para eleger os seus representantes no órgão. Ele, contudo, considera que o Conselho faz um trabalho satisfatório no local. “Nunca precisei desse tipo de serviço, mas a gente percebe que havia crianças aqui que não iam para a aula e ficavam perambulando por aí durante o dia”, pontua. Essa realidade, conforme explica, mudou de um tempo para cá e por isso ele está decidido a ir votar. “Quero colaborar para que pessoas capacitadas possam ocupar estes cargos tão importantes para a sociedade”, comenta. Ao lado dos filhos Gustavo, 11 anos, e Maria Luiza, oito meses, ele lembra que se pode votar em até cinco candidatos nesta eleição. “Pretendo apoiar duas pessoas conhecidas da família que já pediram voto para a gente. Até então não sabia que havia candidata aqui no bairro”, complementa, enquanto balança a bebê inquieta em seu colo. MATHEUS KLASSMANN MICHELE ALVES


12. Meio ambiente

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Novidade na Vila: ponto de coleta de óleo Agora, o azeite usado pode ser entregue na Tenda do Encontro. A iniciativa ajuda a preservar a natureza

I

naugurado no início do mês de setembro, dia 7, o ponto de coleta de óleo na Tenda do Encontro é novidade na Ocupação. Grande parte das famílias jogam as sobras de óleo pelos ralos, não imaginando o quão prejudicial essa atitude pode ser ao meio ambiente. O ponto de coleta é uma alternativa que, além de auxiliar na preservação da natureza, também contribui para o trabalho de sete mulheres da Cooperativa Alto Paraíso. A missionária e organizadora do projeto, Mackarena Tapia, 33 anos, explica que a ação da coleta de óleo na Tenda do Encontro foi influenciada pela contaminação do Rio dos Sinos. Vendo a gravidade da poluição em que se encontrava o rio, os organizadores decidiram fazer um trabalho voltado para a preservação do meio ambiente e assim instalar oito pontos de coleta na cidade de São Leopoldo, sendo um deles na Tenda do Encontro.

No tonel, recados sobre a importância do destino correto do óleo de cozinha usado

Engajada, Josiane auxilia na produção de mercadorias a partir do produto recolhido

O concurso Ciclo Verde O Concurso Ciclo Verde Arlanxeo é uma iniciativa da Arlanxeo Brasil, uma empresa produtora de borracha sintética. Objetiva auxiliar no desenvolvimento socioambiental das comunidades que vivem próximas às suas áreas de atuação. Oferece apoio financeiro e técnico para projetos ligados à cultura, educação, ambiente e água. Segundo o site da empresa, desde 2010, 22 projetos receberam o suporte financeiro e técnico da empresa, beneficiando diretamente mais de quatro mil crianças, jovens e adultos.

“Assim a gente entende melhor a situação em que está o meio ambiente e começamos aqui, no nosso espaço, a melhorar esse mundo, que é tão grande” Junior da Rosa dos Santos 11 anos “Primeiro fizemos uma roda de conversa com as crianças, resgatando assuntos como poluição, desperdício e contaminação. Em seguida inauguramos o ponto de coleta da Tenda. Pensamos em realizar essa ação com os pequenos, porque é a melhor possibilidade de engajar as famílias na ação”, afirmou. Para o pequeno Luan Junior da Rosa dos Santos, 11 anos, é grande a importância dessa ação. “Assim a gente entende melhor a situação em que está o meio ambiente e começamos aqui, no nosso espaço, a melhorar esse mundo,

óleo usado. “O que recolhiam naquela época era pouco, mas já dava para produzir alguns materiais de limpeza”, conta. Em 2009 receberam auxílio da Coleta Seletiva, que passou a fornecer para a Cooperativa o óleo recolhido por eles, aumentando o trabalho das integrantes do projeto. “A gente recolhe o óleo nos pontos de coleta e faz a triagem. O que não usamos entregamos para a empresa Coleto, especializada na coleta e transporte de óleo vegetal saturado, de Porto Alegre”, explica. Os produtos fabricados pelas mulheres são vendidos e o lucro é dividido entre elas. “Quando a gente junta o valor, primeiro olhamos quanto tivemos de despesas, pois compramos outros ingredientes necessários para a mistura do sabão. O valor que sobra, considerado nosso lucro, dividimos entre nós”, afirma.

Mundo Mais Limpo Mackarena com Sara e Vitória: crianças são a principal fonte de conscientização das famílias que é tão grande”, disse. Luan, aluno da Escola Amadeu Rossi, participou da inauguração do ponto de coleta, e que após o evento convidou os familiares a também participarem das atividades. “Eu já falei com a minha mãe e ela disse que vai juntar, aí quando estiver com a garrafa cheia eu levo na Tenda”. Como conta, o menino gosta de participar das atividades na Tenda pela aprendizagem proporcionada.

“Eu gosto porque não é só brincar. Mesmo que a gente brinque, a gente também aprende algo novo”, aponta.

SUSTENTABILIDADE

Na Ocupação Justo o ponto de coleta foi colocado recentemente, mas a distribuição dos outros sete pontos de coleta de óleo na cidade de São Leopoldo, pela Cooperativa Mundo Mais Limpo, iniciou em 2017. Integrante do projeto, Josiane

Borges, 31 anos, conta que após participarem do concurso Ciclo Verde (veja box), promovido pela Arlanxeo, uma empresa de borracha sintética com sede em Triunfo, conseguiram colocar a atividade em prática. “Ganhamos o concurso por três anos, e assim tivemos a oportunidade de começar essa ação”. Segundo Josiane, a Cooperativa existe desde 2007, quando as suas integrantes passavam de porta em porta para coletar

A Cooperativa Mundo Mais Limpo é formada por um grupo de mulheres que residem no município de São Leopoldo. Seu objetivo é o de reaproveitar o óleo de cozinha usado, fabricando com ele produtos de limpeza, como sabão. Assim, proporciona trabalho para suas integrantes e ao mesmo tempo, contribui para um mundo melhor e mais limpo. LIANNA KELLY KUNST CRISTINA BIEGER


Segurança .13

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Respeito e sossego Moradores se consideram seguros e destacam a união da comunidade para ter tranquilidade no local

G

rande parte das pessoas que residem na Ocupação afirmam não ter do que reclamar quando o assunto é segurança. Os pais deixam seus filhos brincando no pátio em qualquer horário do dia e viaturas da Polícia raramente são vistas nas ruas. As pessoas dificilmente são incomodadas à noite. Um dos motivos para tal tranquilidade é a união dos moradores e o respeito entre eles. No entanto, a realidade já foi bem diferente, há aproximadamente uma década. O metalúrgico Cláudio da Silva Lira, 41 anos, foi um dos primeiros habitantes da Rua Armelindo Varnieri. “Quando vim morar na Justo, desovavam corpos aqui na redondeza e roubavam carros com frequência. Era só mato e lixo, bem diferente do cenário atual”, relembra o morador, que chegou na ocupação há 10 anos. Lira destaca que o cenário mudou completamente na medida em que as pessoas foram chegando na Ocupa-

A cuidadora Rosane diz que nunca teve problema com insegurança na Ocupação ção. “Era só minha família e o vizinho do lado aqui na rua há uma década. Depois que o pessoal ocupou, ficou muito mais tranquilo. Nunca vi gente entrando nas casas. Medo a gente sempre tem, em qualquer lugar, mas nunca tive problema. É difícil sermos incomodados à noite”, complementa o metalúrgico, que possui dois filhos e não vê problema em deixar os pequenos brincando no pátio. A cuidadora Rosane Si-

Cláudio lembra que, quando chegou na Justo, corpos eram desovados em terrenos baldios queira Quadros, 38 anos, também nunca sentiu insegurança em seus cinco anos residindo na Justo. Mesmo quando precisa se deslocar a pé até o Posto de Saúde durante a madrugada, ela se sente segura. “Sempre foi tranquilo morar aqui, independente do horário. Às vezes, vou ao postinho às 3h, 4h da manhã para pegar ficha. Nunca tive nenhum transtorno ou susto”, declara. Pai de dois filhos, o pedreiro Tiago Dias, 30 anos,

O aposentado Armênio diz que o pessoal é muito unido e que a gurizada é respeitosa

deixa seus carros com as portas destrancadas e os vidros abertos durante a noite. Para ele, a Ocupação é sinônimo de sossego e segurança. “As viaturas da Polícia não passam por aqui todos os dias, mas nem é preciso, porque é muito tranquilo morar na Justo. Nunca tive problemas em relação à segurança”, enfatiza o morador, que reside na comunidade há sete anos. Em muitos lugares, o som alto durante a noite perturba o sono das pessoas. Não é o

que acontece na Justo, garante o aposentado Armênio Pedroso, 57 anos, morador da Travessa 4. “A gurizada coloca som alto às vezes, mas não se estendem muito, e é raro. O pessoal é muito unido na comunidade, é um paraíso morar aqui, sempre foi sossegado. Quem falar mal daqui, tem que apanhar de cinta (risos)”, comenta Pedroso, que chegou na ocupação em 2011. MATEUS FRIEDRICH NICOLAS SAMPAIO

Esforço para viver com o básico Seja pela necessidade de consumir produtos mais acessíveis ou pela praticidade de quem está distante de grandes estabelecimentos, o acesso à cesta básica trouxe para a Justo uma nova maneira de obter itens importantes de alimentação e de limpeza. Atualmente, a comunidade paga em torno de R$ 250 para adquirir o produto. A modalidade da cesta básica foi criada no ano de 1983, por um decreto do governo federal. A composição da cesta básica foi feita a partir de uma pesquisa sobre os hábitos alimentares no Brasil, variando os alimentos de acordo com as possibilidades de cada região. Na Justo, entretanto, a cesta é utilizada para alimentar não somente uma pessoa, mas famílias inteiras. Moradora do bairro há seis anos, Núbia Heldt, 25 anos, conta que os produtos são

Para Edson, a cesta evita desperdício e traz economia comprados para sustento de suas duas filhas e de seu marido. “Temos um costume de comprar refeições pré-prontas durante a semana, já que temos opções que compensam aqui próximas de casa. Mas de qualquer forma, a cesta precisa durar, no mínimo um mês. É im-

portante termos em casa esses alimentos”, comenta. Aos 43 anos, Edson Alves vive há sete anos nos fundos da casa de seus pais, Mara Rosane, 59, e Vilson Alves, 65. Por problemas de saúde do pai, que ficou cego após uma cirurgia de catarata, o filho

resolveu redobrar os cuidados com a família. Edson trabalhava como autônomo e acabou de conseguir um emprego com carteira assinada. Como maneira de ajudar os pais, realiza mensalmente a compra de cestas básicas. Para fazer com que os alimentos durem ainda mais, ele também troca produtos com a família. “Como moro sozinho e passo pouco tempo em casa, às vezes o que me sobra repasso para meus pais. A cesta para mim é ótima, evita o desperdício e se torna mais econômica. Além disso, é o mínimo que posso fazer para

eles. Tenho certeza que, se estou aqui perto deles, é por um motivo maior”, ressalta. Na Justo, a aquisição das cestas básicas é, geralmente, feita de forma diferente. Ao invés de ser adquirida no supermercado, uma empresa visita às residências e vende o produto para a comunidade. Além da comodidade da compra à domicílio, a empresa oferece a opção de parcelamento aos moradores. Uma cesta básica é vendida, em média, por R$ 250. RENATA GARCIA GABRIEL GARCIA

A cesta básica foi criada no ano de 1938 para se tornar uma referência do cálculo do salário mínimo, durante o governo de Getúlio Vargas. A quantidade pode variar de acordo com cada região do país. Em São Leopoldo, conforme o Programa de Proteção e Defesa do Consumidor, as cestas devem conter itens como arroz, feijão, ovos, frango, leite, além de produtos de limpeza e higiene pessoal (papel higiênico, sabonete, creme dental e sabão em pó).


14. Histórias de vida

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Sobrevivendo com pouco CRISTINA BIEGER

Falta de contribuição para a Previdência gera instabilidade financeira e preocupação entre os moradores

N

ORÇAMENTO

Apenas quem sobrevive com R$ 998 ao mês sabe o quão apertada se torna a situ-

Mara cuida do marido, Vilson, que ficou cego, e compra alimentos com a aposentadoria

“Eu até queria trabalhar, mas se souberem dos problemas de saúde que tenho, não me aceitam”

GABRIEL GARCIA

a juventude de Vilson Alves, 65 anos, ter Carteira de Trabalho assinada era a menor de suas preocupações. O que de fato importava quando tinha 17 anos, era garantir o salário mensal para sustento da família através da colheita de arroz e corte de madeira. “Na época não dava bola para carteira assinada”, comenta. Foi aos 30 anos, quando trabalhava como pedreiro, que percebeu a garantia e a segurança financeira para o seu futuro representada através da carteira assinada e passou a contribuir como autônomo. Aposentado há um ano e ao lado da esposa, Mara Rosane, 59 anos, Vilson passa por um momento difícil de sua vida. Em 2016, por conta de uma cirurgia de catarata malsucedida, ele perdeu totalmente a visão. Além disso, em julho deste ano, descobriu um câncer na língua. Por esses motivos, Mara largou o emprego que tinha para cuidar do marido. “Não tinha o que fazer, ele precisa de cuidados e não queríamos que os filhos parassem de trabalhar por isso”, explica. Mara era cozinheira e tinha carteira assinada. A renda extra que garantia por meio do seu salário, agora está sendo substituída pela ajuda dos cinco filhos do casal. Depois que se aposentou, Vilson recebeu um valor pelos anos de pagamento do benefício, desde que o havia encaminhado e, com isso, conseguiram construir a casa onde moram atualmente, na Ocupação Justo. O dinheiro foi suficiente para cobrir os gastos com materiais de construção, mas a mão de obra ficou por conta dos filhos. “Os filhos fazem tudo para nós”, ressalta Mara. Segundo o casal, a maior parte do salário que recebem de aposentadoria é destinado à compra de remédios para Vilson e gás para fazer as refeições. “A sorte é que não pagamos luz nem água, ainda que quiséssemos pagar”, conta Mara. Quanto aos gastos com consultas são arcados pelos Sistema Único de Saúde (SUS), assim como será com a cirurgia de retirada do tumor.

Olga Delmiria de Azevedo 61 anos

Bianca, mãe da Júlia, está desempregada e vive com o salário mínimo do marido ação financeira de uma família. Quem também passa por essas dificuldades é Bianca Rafaela Lima Nunes, de 19 anos. Ela está desempregada e mora na Ocupação com o marido, Lucas Mateus, 20 anos, e a filha de um ano. De acordo com a jovem, toda a renda que recebem vem do trabalho de Lucas como pedreiro. “Nos dias em que chove ele não vai trabalhar, aí mesmo que ficamos apertados”, conta. O que garante uma folga

no orçamento é o auxílio que o governo oferece através do Programa Bolsa Família, sacado por Bianca. Os R$130 são destinados exclusivamente à alimentação dos três. Mas, de acordo com ela, os produtos estão muito caros, especialmente nos estabelecimentos dentro da Ocupação. Assim, não conseguem comprar muitas coisas com esse valor. Ainda que com o passar dos anos os direitos trabalhistas passem a ser compreendidos

pelos trabalhadores, trabalhar com carteira assinada é algo merecedor de pouca atenção da população jovem. Por outro lado, a contribuição com a Previdência pode significar a tranquilidade e estabilidade financeira, no futuro de muitas pessoas. Assim como o aposentado Vilson, que não via problema em trabalhar sem ter a carteira de trabalho assinada, Lucas também não demonstrava essa preocupação. Mas, segundo Bian-

ca “ele vai começar a pagar como autônomo agora”. No caso de Olga Delmiria Chaves de Azevedo, 61 anos, ter tido a carteira assinada poderia fazer a diferença no aperto que sente todo mês em relação ao seu orçamento. Viúva e mãe de três filhos, ela sobrevive com a pensão que recebe pela morte do marido. Mas, pelos problemas de saúde, precisa gastar boa parte desse dinheiro com medicamentos. Com o que sobra, mal consegue comprar comida. Segundo ela, os filhos a ajudam com doações. Olga trabalhou como doméstica e cuidadora de idosos. Atualmente, não pode mais trabalhar devido a saúde frágil. “Eu até queria trabalhar, mas se souberem dos problemas de saúde que tenho, não me aceitam”, relata. CAMILA TEMPAS CRISTINA BIEGER GABRIEL GARCIA


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Histórias de vida .15

Patrícia teve infecções após a cesárea de Gabriel, filho mais novo. No nascimento de Emanoel, ela fez o parto sozinha

Maternidade desassistida Entre perdas e dificuldades, moradora relata experiências da gestação

“T

ive vários filhos. Alguns eu perdi, com outros eu fiquei”. Patrícia Corrêa de Souza, 42, dona de casa, conhece o prazer e a dor de ser mãe. Além do pequeno Gabriel, que não desgruda de seus braços, e de Emanoel, de quatro anos, ela tem dois filhos adultos – um jovem de 21 e uma moça de 18, frutos do primeiro casamento. Com exceção do mais novo, que está prestes a completar dois anos, todos nasceram de parto normal. Em 13 de dezembro de 2017, Patrícia foi submetida a uma cesárea de emergência no Hospital Centenário, de São Leopoldo. Apesar de ter dilatação suficiente, os médicos recorreram à cirurgia pela posição da criança. “Durante a gravidez, sabia que faria cesárea. Sentia que o bebê estava sentado na minha barriga”, conta. Gabriel nasceu em uma operação realizada às pressas, mas sem complicações aparentes. Os sinais de que algo estava errado começaram a aparecer 24 horas depois, quando o corpo de Patrícia foi tomado pelo inchaço. “Pernas, rosto, pescoço,

tudo estava inchado. Disseram que era normal, efeito da cirurgia”, relembra. Depois de uma semana, Patrícia ganhou alta, mas o inchaço só aumentou. “Quando cheguei em casa, nem no sofá eu conseguia sentar. Parecia que tinha algo dentro da minha barriga”, relata. De início, ela notou bolhas na região dos pontos, mas logo a infecção se espalhou pela barriga. Apesar das dores, a dona de casa só retornou ao hospital após sete dias. “Demorei a procurar ajuda porque achei que fosse normal, nunca tinha feito cesárea”, explica. De volta ao hospital, Patrícia teve ajuda de um anjo da guarda: por coincidência, conheceu uma mulher que se apresentou como funcionária da Defensoria Pública. “Não sei o que ela falou, mas me atenderam ligeirinho. Limparam toda a infecção. Essa mulher foi me ver todos os dias. Levou fralda, levou roupa pra mim, xampu, creme dental”, conta. Depois do tratamento, as duas perderam o contato. Sobre a causa da infecção, Patrícia desconfia que tenham deixado pedaços de gaze dentro dela, mas não há comprovação no laudo médico. Devido ao contato com o corpo da mãe durante o aleitamento, Gabriel também teve complicações e desenvolveu feridas no ros-

to, que foram tratadas pela pediatria do hospital. Patrícia considera a experiência traumatizante e lembra que o parto de Emanoel foi bem mais tranquilo. “Saí do hospital e até limpei a casa”, lembra. Ela conta que ganhou o filho praticamente sozinha. “Quando cheguei no hospital, ele já estava nascendo. Tinha uma menina mais nova gri-

“Demorei a procurar ajuda porque achei que fosse normal, nunca tinha feito cesárea” Patrícia Corrêa de Souza Dona de casa

tando, e eu disse que podiam atender ela primeiro. Sentia dor, mas não achei que ele já fosse nascer”, revela.

ASSISTÊNCIA

No nascimento de Gabriel, o médico reclamou do acompanhamento pré-natal. “Eu disse para ele que falta atendimento aqui no posto, não é sempre que tem ginecologista”, relata Patrícia. Nas últimas gestações, ela não realizou todos os exames necessários. “Eu vou para o hospital só na hora de ganhar mesmo”, confessa. Quando era adolescente, Patrícia viu um dos filhos nascer morto. Ela sofreu uma queda que pode ter comprometido a gestação. Sem vida, o bebê ainda passou três se-

manas na barriga da mãe. “O laudo apontou descolamento da placenta. Mas ele não viveria 15 minutos porque um dos rins estava menor que o outro. Foi Deus que tirou. Se ele sobrevivesse, eu não teria o que fazer”, lamenta. Mais tarde, ela engravidou de novo. “Eu estava com um barrigão. Ganhei no Centenário, tudo numa boa. Mas era uma criança que chorava demais. Só parava de chorar quando eu dava remédio”, comenta. Com pouco tempo de vida, o bebê não resistiu. Patrícia não explica a causa do falecimento, mas diz que sofreu muito com a perda do filho. “Depois do enterro, eu voltei para casa e ouvia o choro dele em todo lugar. Achava que ainda estava vivo. Tive que fazer tratamento psicológico”, emociona-se. Hoje, depois de tantas gestações, Patrícia não pretende ter mais filhos. “Já tenho 42 anos, para mim está bom. Até pelo jeito que vivemos aqui. Não consigo vaga na creche, e as crianças brincam na rua, nessa água de esgoto. O Emanoel fica cheio de alergia. Do jeito que está ficando o mundo, não vale a pena colocar mais criança para sofrer”, conclui. NÍNIVE GIRARDI SAMANTHA HARRAS


ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO

SÃO LEOPOLDO (RS)

EDIÇÃO

SETEMBRO / OUTUBRO DE 2019

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LUIZA CASTRO

Um olhar sobre a esperança

A

esperança por um futuro melhor é algo que comove a todos. E isso não é diferente na Ocupação Justo. O olhar da comunidade sobre a educação e a natureza é uma arte, e fazer esta arte ser notada é o mais desafiador de tudo. O cuidado, a gentileza e o amor são gestos muito nobres; e ver a comunidade combater unida em prol de um mundo melhor é o faz todos e todas capazes de lutar. Lutar pela batalha do outro, pelo meio ambiente, pela educação, pelos animais, pela vida. Lutar para sermos cada vez mais capazes de conquistar sonhos, tantos quanto também a comunidade da Ocupação Justo tanto precisa. BRUNA FLACH

AMANDA BERNARDO

MARILUCE VEIGA

MARILUCE VEIGA

VITORIA DREHMER

AMANDA BERNARDO


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