Enfoque Ocupação Justo 3

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ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO

SÃO LEOPOLDO / RS MAIO/JUNHO DE 2019

EDIÇÃO

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ISMAEL PEREIRA

ILUMINADA PELA SOL MILENA SILOCCHI

HENRIQUE BERGMANN

JULIANA PERUCHINI

A FAMÍLIA PREUSSLER CRIA HÁ SETE ANOS A MENINA SOL, DEIXADA PELA MÃE BIOLÓGICA. E TOMA PROVIDÊNCIAS PARA FORMALIZAR A SUA ADOÇÃO. PÁGINA 7

AMPLIAÇÃO DA TENDA

Iniciativa visa construir mais duas salas no prédio atual. Página 3

EMPREENDEDORES

Moradores contam como é gerir um negócio na Vila. Página 4

HORTA ORGÂNICA EM CASA Plantação dos Prates é sinônimo de entretenimento e saúde. Página 10


2. Editorial

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Os sonhos de uma comunidade

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portunizar um espaço de diálogo aos moradores da Ocupação Justo. Com essa proposta, buscamos desenvolver um jornalismo Cidadão a serviço da comunidade em três edições, tornando público acontecimentos e histórias locais. Mesmo que só por algumas horas nas manhãs de sábado, nós – estudantes de jornalismo da Unisinos – tivemos a oportunidade de viver a rotina da Vila e conhecer mais sobre as pessoas que residem lá.

As dificuldades encontradas pelo caminho não impediram os moradores de conquistar seu espaço dentro da sociedade. Da falta de empregos surgiram empreendedores, donos de comércios, e pessoas que encontraram maneiras alternativas de seguir e até mesmo recomeçar sua vida. Crianças, adolescentes e adultos possuem sonhos. Seja através da música, ingressando no ensino superior e num curso técnico, ou com uma

bola nos pés almejam um amanhã mais digno. Pelas ruas da Ocupação e dos bairros próximos, um morador descobriu na reciclagem o meio para garantir o seu sustento e de familiares. Integrados à Justo. Essa é rápida descrição da família de argentinos cujo destino colocou-a na Justo, por conta das dificuldades enfrentadas no país vizinho. Com muita criatividade, a família Prates, criou uma horta orgânica no quintal

de casa - iniciativa que pode ser implementada pelos demais moradores. Outras simplesmente chegaram lá, sem esperanças, e por meio da bondade e do coração de uma mãe conseguiram um lar para morar. Reforçando a ideia de pertencimento, a Tenda do Encontro passará por uma reestruturação, permitindo que as atividades desenvolvidas sejam feitas com mais qualidade e conforto para os moradores.

Ao longo desta edição, o Enfoque pretende reforçar o significado das palavras luta, abnegação, resiliência e insatisfação vistos em cada pessoa que forma a Justo. No enfrentamento pela regularização judicial, a luta da comunidade se fortifica, para seguir unida na busca por uma vida mais digna. IVAN JÚNIOR LORENZO PANASSOLO LUCAS ALVES JULIANA PERUCHINI

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Ocupação Justo é um jornal experimental dirigido à comunidade da Ocupação Justo, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares e três edições por semestre, é distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo. Professor responsável: Pedro Luiz S. Osório (posorio@unisinos.br)

EDIÇÃO E REPORTAGEM —

Disciplina: Jornalismo Cidadão. Orientação: Pedro Luiz S. Osório. Edição de textos: Ivan de Borba Flôres Júnior, Lorenzo Panassolo e Lucas

Rafael Alves. Edição de fotos: Inajara Pommer Immig. Reportagem: Franciele Arnold Pereira, Guilherme Silva dos Santos, Ivan de Borba Flôres Júnior, Inajara Pommer Immig, João Pedro Chagas Vieira, Khael Silva dos Santos, Lorenzo Panassolo, Lucas Rafael Alves, Maese Daniela Closs, Murilo Dannenberg Martins, Pedro Damasio Hameister e Thaís Lauck.

FOTOGRAFIA —

Disciplina: Fotojornalismo. Orientação: Flávio Dutra. Fotos: Amanda Krohn, Ana Carolina Oliveira, Andressa Morais, Bábiton Leão, Bruna Soares, Gabriel Ferri, Henrique

Bergmann, Henrique Kirch, Ismael Pereira, Johann Macedo, Juliana Peruchini, Matheus Hansen Klauck, Milena Silocchi, Sofia Padilha Gulart, Tynan Barcelos e Vitória Pimentel. Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia.

ARTE — Realização:

IMPRESSÃO — Gráfica UMA / Grupo RBS. Tiragem: 1.000 exemplares.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: Pedro Gilberto Gomes. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Alsones Balestrin. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretor da Unidade de Graduação: Sérgio Eduardo Mariucci. Gerente dos Cursos de Graduação: Paula Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


Comunidade .3

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Unidos para ampliar a Tenda do Encontro Voluntários somam forças para construir um novo espaço fortalecedor da Vila

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a Justo há muitos sonhos e projetos em comum. O maior deles é a regularização das moradias, mas não o único. Entre tantos, está também a ampliação e revitalização da Tenda do Encontro, que fica na rua mais conhecida da Ocupação e leva justamente o seu nome. Construída em 2012, além de proporcionar atividades para crianças, jovens e mulheres, é onde são realizadas reuniões e promoções da comunidade. Atualmente, tudo acontece em um espaço único, a sala multiuso. Além dela há apenas um banheiro, construído em 2016. Agora, o espaço vai ganhar cara nova, através do projeto desenvolvido pelo arquiteto Tomás Culleton, 25 anos, e o antigo morador da Justo, Josimar da Silva, popular “Robô”. Ele prevê a construção de duas salas na parte da frente do prédio atual, compreendendo uma área de 35 m². Uma delas será usada para o Brechó Beneficente; e na outra serão instaladas a sala de informática e a rádio comunitária, novidades na Ocupação. Mais adiante, em uma terceira etapa, estão previstas a construção da cozinha e despensa, nos fundos; e a construção de um telhado, que cobrirá toda a Tenda. Projetada a partir das carências da Ocupação, a ampliação será executada parte por mão de obra contratada e parte sob regime de mutirão. “A ideia central é realizar uma construção de baixo custo, que não interfira nas ações da Tenda e que possa ser executada conforme os recursos disponíveis”, comentou Tomás, explicando também como será a estrutura. “Em geral, ela será mista de concreto armado e madeira roliça, inclusive para o telhado, enquanto as paredes serão de alvenaria rebocada”, completou. Voluntária do local desde que chegou ao Brasil, há cinco anos, a Missionária argentina Mariana Szajbely, 48 anos, destacou que a ampliação beneficiará toda a comunidade. “O brechó facilita o acesso das pessoas a roupas e calçados de baixo custo. Já a sala de informática, além de contribuir na

Moradora da Ocupação, Jucimara é a responsável pelo brechó que arrecadará dinheiro para a obra capacitação dos moradores, ajuda na busca por emprego através da internet; e nos estudos das crianças”, comentou. Mariana também destacou a importância da rádio comunitária, que facilitará a comunicação dentro da Vila.

dentro do Movimento Justo”, comentou Naiton. Conforme o estudante, os Engenheiros Sem Fronteiras também criaram dois canais de doação, para arrecadar recursos: plano de assinatura mensal, que pode ser acessado através do link picpay. me/efsunisinos; ou ainda através de depósito bancário (Banco 748- SICREDI, Agência 0101, Conta 95595-4, CNPJ 22.376.823/0001-59).

ARRECADAÇÃO

Com o projeto finalizado, é hora de buscar recursos para tirar a obra do papel. Um dos valores que será destinado à ampliação é o arrecadado no Brechó Beneficente. Responsável por ele, a moradora Jucimara de Oliveira Flores, de 41 anos, destaca que o mesmo será realizado nas terças e quintas-feiras, das 18h às 20h, a partir de junho. “Tem muitas coisas boas, algumas

“A sala de informática, além de contribuir na capacitação dos moradores, vai ajudar na busca por emprego” Mariana Szajbely Missionária

COMPUTADORES

A maioria dos jovens acessa jogos pelo telefone praticamente novas”, completou, já ansiosa pelo primeiro brechó do ano. Além de roupas e calçados para crianças e adultos, no brechó os moradores também encontram, por exemplo, toalhas de rosto e banho, cobertores e lençóis. “O preço inicial dos cobertores geralmente é R$ 10, e se necessário, a gente baixa a R$ 5”, contou Jucimara. Quem quiser colaborar com doações pode entrar em contato através do (51) 9 9368-3150. Outras iniciativas também estão sendo pensadas para ar-

recadar dinheiro, entre elas o Galeto Beneficente, no dia 2 de junho; a Festa Junina, em 6 de julho; e um Bingo de Integração. Também mobilizados, o estudante de Engenharia Elétrica e membro da Organização Não Governamental (ONG) Engenheiros Sem Fronteiras - Núcleo Unisinos, Naiton Gama, e o morador Balduíno Harchibake, destacam que as ações também são uma maneira de integrar a comunidade. “Queremos trazer os moradores cada vez mais para perto da Tenda, para

Aluna do 4º ano da Escola Estadual General João Borges Fortes, Kethllen dos Anjos, 11 anos, tem acesso a computadores só durante as aulas semanais de informática. Frequentadora assídua da Tenda aos sábados pela manhã, está contente por saber que logo o espaço contará com uma sala de informática. “Gosto de jogar xadrez”, contou, na expectativa de poder ter à disposição um computador mais perto de casa. Por enquanto, quando não está na escola, acessa jogos como xadrez e outros pelo telefone. THAÍS LAUCK JULIANA PERUCHINI


4. Negócios

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Quando empreender vira uma alternativa Moradores encontram na Ocupação oportunidades para abrirem seus estabelecimentos

dia de alguém”, explica. Quanto aos fornecedores, Pedro garante que recebe os mesmos produtos dos principais mercados da região. “O mesmo distribuidor que vai lá a Justo o empreendedoris- faixa, entra aqui”, afirma. mo também se faz presente. Com dificuldades para conseComo alternativa ao desem- guir um emprego especialmente prego, alguns moradores recorrem à devido à falta de endereço fixo, a abertura de estabelecimentos comer- alternativa foi abrir o minimercado. ciais próprios dentro da Ocupação. Pedro conta que a sugestão partiu Com mais de seis mil da esposa. “Ela trabamoradores, não seria “Aqui já é um lhava fazendo faxina exagero considerar a e estava cansada. Foi Justo uma cidade den- ponto reconhecido. então que decidimos tro de São Leopoldo. Não me vejo fora abrir o armazém”, diz. Segundo Números Além deles, os dois fido Censo 2010, úl- desse lugar. Minha lhos do casal auxiliam timo divulgado pelo vida está aqui” no dia a dia do local. IBGE, 189 das 496 Como principal procidades gaúchas pos- Osiel Ramos blema para empreensuem população entre der em uma ocupação, duas mil e cinco mil pessoas. ele aponta a falta de regularização Esse alto número de habitan- da Justo. “Aqui tu é um fantasma. tes praticamente obriga a aber- Eles sabem que tu existe, mas não tura de uma rede de comércio na tem como provar”, aponta. Sem Ocupação. Lancherias, mercados uma conta de água ou luz, não há e oficinas atendem às necessida- como comprovar o endereço para des dos moradores da Justo. Para realizar compra de eletrodoméstiSilvia Medeiros, diarista e morado- cos para o estabelecimento. ra da Justo, o comércio dentro da Vila é melhor que o de fora. “Nos REGULARIZAÇÃO Localizada na entrada da Ocugrandes mercados os produtos são mais caros. Aqui a gente encon- pação, a Auto Mecânica Ramos chama a atenção pela grande estrutura. tra o que quer”, comenta. Diferente dos grandes centros, Sentado no pequeno escritório, Osiel os estabelecimentos são simples. Na Ramos Pereira conta que, no começo, o grande maioria são uma extensão serviço era realizado em um pequeno das casas dos próprios donos. Nas barraco. Aos poucos, com muito trabaprateleiras dos pequenos armazéns lho, o empreendimento foi se desenestão os mais variados produtos. volvendo. Osiel credita o sucesso do Nas oficinas, algumas instaladas local à transparência do trabalho reanas garagens, todos os instrumen- lizado. “Eu trabalho com honestidade. tos necessários para o serviço. Não me escondo nem sinto vergonha Não falta criatividade em meio às de trabalhar aqui”, argumenta. Natural de Rondônia, o mecânidificuldades da Ocupação. co trabalha na área há 25 anos. Em O ARMAZÉM 2006, Osiel obteve o CNPJ para abrir Com fundo laranja e letras bran- a empresa na cidade de Lagoão, no cas, a placa pendurada no portão noroeste gaúcho. Devido a uma renão passa desapercebida. Bastante tração no mercado local, foi obrigado conhecido na Ocupação, o Arma- a desembarcar em São Leopoldo e zém do Pedrão funciona há cerca recomeçar do zero. Com dificuldades de dez anos no mesmo local. Logo para pagar o aluguel e sustentar da na entrada pergunto pelo dono do família, encontrou na Justo uma alterestabelecimento. Atrás do balcão, nativa de moradia e emprego. segurando uma cuia de chimarrão, Osiel não encontra dificuldades Elisângela Ramão, a Elis, diz que para conseguir fornecedores para a o marido está nos fundos. “Posso oficina. Ele conta com o auxílio da entrevistá-lo”?, questiono. “Pode! sogra, que tem endereço reconheQuem sabe aparecendo no jornal cido, para receber os materiais neele fica rico”, brica Elis. cessários à oficina. Segundo o dono Segundo Pedro Müller, mais da mecânica, o sonho é conseguir a conhecido como Pedrão, o bom regularização da área para normalihumor e amizade entre os mora- zar a situação. Apesar disso, afirma dores da Ocupação colaboram para que não se vê trabalhando fora da a boa aceitação que o armazém Justo. “Aqui já é um ponto reconhetem na Justo. Para ele, a quali- cido. Não me vejo fora desse lugar. A dade no atendimento prestado é minha vida está aqui”, afirma. que fideliza o cliente. “Toda vez KHAEL SANTOS que tu chegar aqui, vai me ver HENRIQUE BERGMANN brincado. Isso pode melhorar o

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Bom humor é o segredo para fidelizar clientes, afirma Pedrão

Vindo de Rondônia, Osiel ergueu sua oficina mecânica na Justo


Comunidade .5

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Reciclagem que sustenta Trabalho realizado por Leandro é reconhecido por moradores da região

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oletar materiais recicláveis vem sendo a rotina na vida de Leandro Santana, de 47 anos, há mais de 20 anos. Natural de Santa Maria, o morador da Ocupação Justo trabalha nas ruas da região entre seis e oito horas por dia. Além de contribuir com a parte da sustentabilidade do município, Leandro também garante sua fonte de renda. Arrumando seu carrinho para mais um garimpo pela região, Leandro afirmou que teve dificuldades de encontrar emprego. O catador estudou apenas até a sexta série. “Hoje as empresas colocam o nome das vagas como auxiliar disso, auxiliar daquilo. Parece que essa palavra exige uma maior escolaridade dos candidatos para vagas que antes eram mais fáceis de conseguir”, lamenta. Antes de optar pela reciclagem, o morador trabalhou com carga e descarga em empresas de distribuição de alimentos e como soldador em metalúrgicas. Sua escolaridade não foi suficiente para manter os empregos anteriores, segundo julga.

Leandro trabalha empurrado seu carrinho por oito horas diárias “A gente, que vive dessa maneira não pode escolher muito como ou com o que trabalhar. Em comparação aos meus conhecidos eu até comecei tarde. Meu primeiro emprego, ganhando um salário, foi aos 17 anos”, revela Leandro. Mas foi nas ruas, empurrando seu carrinho e

coletando material reciclável que conseguiu encontrar uma forma de ganhar dinheiro. “A gente vê tanta coisa, tanta gente fazendo coisas erradas por aí, mas eu não quis entrar nessa vida. Preferi fazer apenas coisas boas”, afirma. Foi dessa forma que o trabalhador ficou conhecido pela

região. Leandro acaba recebendo o apoio de diversos moradores, que guardam parte desse material e entregam para ele posteriormente. “Trabalhando nisso eu acabo ganhando muita coisa. Eles separam latinhas e garrafas plásticas para mim. Também ganho alguns móveis e eletrodomésticos”. Parte des-

se material que recebe de doação frequentemente é repassado a outras famílias. Leandro mora sozinho na Ocupação Justo. Por conta de seu trabalho, o morador tem direito a dois terrenos. Antes de se mudar para o local, há quatro anos, morava em Sapucaia do Sul, onde deixou sua família: mãe, tios e sobrinhos. Ele relata que perdeu duas casas e três terrenos na antiga cidade, por causa da violência. “Precisei recomeçar a vida em outro local. Mudar nunca foi o problema para mim. De uma forma ou de outra teria que dar a volta por cima”, declara. Entre plásticos brancos e coloridos, papelão, cobre e metais, Leandro consegue ter um lucro que gira entre R$ 700,00 e R$ 1.000,00 mensais. “O que dá mais lucro são as latinhas”, revela. Tudo que Leandro coleta durante o mês é entregue em uma cooperativa de reciclagem em Sapucaia do Sul. “A gente percebe, enquanto caminha pela rua, o preconceito das pessoas nos olhando. Muitas vezes elas não sabem a razão do nosso trabalho”, conclui. LUCAS RAFAEL ALVES HENRIQUE KIRCH

Argentinos se integram à Ocupação Segundo o IBGE, estima-se que 280 mil estrangeiros moram no Brasil com residência fixa. Esses dados representam apenas 0,4% do total da população brasileira e não computam os venezuelanos abrigados pelo ONU (Organizações das Nações Unidas). Na Ocupação Justo, em São Leopoldo, há uma família que faz parte dessa estatística. Luís Costa dos Santos, 49 anos, e Malva Raquel Salgado, 43 anos são os pais da família com dupla nacionalidade da Ocupação. Eles vivem desde 2013 no local. Na casa onde habitam, residem três adultos e cinco crianças com idades escolares entre seis a seis anos. Lucas José Salgado, 24 anos, é o filho mais velho do casal e único adulto. Falando um “portunhol” marcante, a família mostra suas origens argentinas. A família saiu da pequena

cidade de Apóstoles, na Argentina, pois tinha dificuldade de achar bons empregos. Todos eles trabalhavam numa loja de roupas na Argentina que faliu com a crise. Viajar de carro da Argentina até São Leopoldo demorou em torno de 14 horas. “Eu nunca tinha saído da Argentina, tudo é novo para mim”, conta Malva Raquel. No Brasil, ela é dona de casa, porém na Argentina ela era comerciária. Luís Costa dos Santos é brasileiro, natural de São Nicolau (RS) que se mudara para Argentina aos 19 anos. “Fui atrás de serviço”. “Aqui é bom porque eu consegui emprego rápido” conta dos Santos. Ele trabalha como auxiliar de manutenção de um restaurante. A adaptação no Brasil foi muito boa, segundo eles foram muito bem recebidos. A integração deles com a comunidade local é grande “Nós sempre tentamos ajudar

Com esse documento em mãos, Lucas consegue ficar no Brasil sem tempo limite aqui no bairro. Se tem algum problema nós participamos. Já ajudei a arrumar poste aqui” conta Lucas José. A família ficou separada por quatro meses durante o

processo de mudança. A esposa ficou com a família na Argentina, pois não queria que os filhos perdessem o ano escolar. Todos os integrantes da família têm documentos

brasileiros. “Eu tenho as duas cidadanias. Para entrar na Argentina, uso o documento de lá e para vir para o Brasil, a carteira de identidade daqui” conta a mãe da família. Eles ficaram sabendo do terreno onde moram através de um tio de Luís, mas ignoravam que se tratava de uma ocupação. “Nós viemos para cá e vendemos tudo o que tínhamos na Argentina. Hoje, essa casa é tudo o que eu tenho. Se me tirarem daqui, não sei para onde eu vou. É muito triste essa situação”, afirma Luís. Quando o assunto é futebol a casa fica dividida. Lucas é torcedor do Inter e do Boca, Luís é torcedor do Grêmio, porém tudo ocorre em paz. E no período de copa do mundo todos torcem para o Brasil e para a Argentina. JOÃO PEDRO CHAGAS VIEIRA TYNAN BARCELOS


6. Maternidade

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As dificuldades de ter sido mãe ainda jovem VITÓRIA PIMENTEL

Mulheres que engravidaram cedo lidaram com temores e inseguranças, mas não desistiram

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uitas mulheres sonham com o dia em que vão se tornar mães, mas não esperam por isso quando ainda são adolescentes ou recém chegaram na idade adulta. Moradoras da Ocupação Justo já se viram diante dessa situação, o que as levou a passar por momentos de medo e preocupação. Felizmente, seja por conta própria ou com muito apoio, elas se descobriram capazes de viver a maternidade e de criar seus filhos, apesar da pouca idade. Marilei Terezinha Padilha, por exemplo, teve seu filho Tiago Padilha Dias com apenas 18 anos. Tendo nascido e crescido em Inhacorá, no norte do estado, ela se mudou para São Leopoldo imaginando que teria a oportunidade de continuar seus estudos. Porém, seus planos foram interrompidos por conta de sua gravidez. Hoje ela está com 48 anos de idade, e o Tiago, 30, e é mãe de mais três meninas: Veridiane, Renata e Ana Paula. Marilei conta que sua gravidez do Tiago foi algo que a deixou muito assustada, além de envergonhada. “Eu tinha muita vergonha de me imaginar entrando numa sala de aula e dizer que eu tinha um filho”, desabafa Marilei. Apesar de nunca ter tido a chance de voltar a estudar, ela não tem se arrepende de ter se tornado mãe ainda jovem. “O nascimento do Tiago e dos meus outros filhos foram as maiores alegrias que eu senti na vida” afirma. Apesar da felicidade, criar seu primeiro filho não foi uma tarefa fácil. Principalmente porque, segundo Marilei, o falecido pai do Tiago não ajudava muito quando o filho era pequeno, embora tenha ficado entusiasmado com a notícia da gravidez. A própria Marilei perdeu boa parte do crescimento de seu primogênito, tendo que trabalhar muito para sustentar sua família. Agora que Tiago está casado, com dois filhos e trabalhando como construtor, ela percebe que todo o esforço valeu muito a pena.

Margarethe não pôde criar seus primeiros filhos, mas agora tem condições de cuidar de Raiani

ANA CAROLINA OLIVEIRA

Ao engravidar de Agatha, Luana precisou lidar com o medo e a preocupação dos pais

PREOCUPAÇÃO

Em contrapartida, Luana Dias, 24 anos, em nenhum momento não se viu obrigada a criar seus dois filhos, Agatha e Arthur, sem o pai deles. Aos 16 anos, Luana deu a luz à Agatha, o primeiro fruto do seu relacionamento com Augusto Nascimento, com quem hoje ela é casada. Inicialmente, a gravidez de Luana gerou grande preocupação, principalmente para seus pais e sogros. O que começou como motivo de incômodo para os pais

de Luana e Augusto, acabou se tornando uma enorme alegria para a família. “Quando contei que estava grávida, a primeira reação dos nossos pais foi perguntar o que íamos fazer, dizer que teríamos que morar juntos, que o Augusto ia precisar trabalhar. Eles ficaram bastante nervosos, e até zangados comigo. Passado o susto, todos eles nos ajudaram muito, e seguem ajudando até hoje” conta Luana. Uma pesquisa do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), divulgada em

2017, mostra que a situação vivida por Luana aos 16 anos não é algo incomum. O Brasil tem a sétima maior taxa de gravidez adolescente da América do Sul, com um índice de 65 gestações para cada mil meninas de 15 a 19 anos, segundo dados referentes ao período de 2006 a 2015. Com 21 anos, veio ao mundo o seu segundo filho, Arthur. Agora já mais experiente na maternidade, dessa vez não houve tanto medo quando ela descobriu a gravidez, embora ela ainda fosse jovem. As responsabilidades maternais a obrigaram a abrir mão de coisas importantes, como seus estudos, que ela ainda não conseguiu retomar. Porém, ela não perdeu as esperanças de um dia voltar a estudar e cursar uma faculdade de Administração.

DIFICULDADES

Se opondo à história de Marilei e Luana, Margarethe Machado, 47 anos, não chegou a ver a maioria dos seus filhos crescendo. Ela própria não foi criada pelos seus pais, que a deixaram com uma família de amigos por não terem

“Os nascimentos dos meus filhos foram as maiores alegrias que eu senti na vida” Marilei Terezinha Padilha condições de cuidar da filha. Então, com apenas 14 anos de idade, ela teve seu primeiro filho, Adriano, que ela deixou para ser criado com a família que cuidou dela. Aos 15 anos, Margarethe engravidou novamente, mas perdeu o bebê no quinto mês de gravidez. Com o passar dos anos, Margarethe teve mais sete filhos depois de Adriano: Suelen, Paulini, Bruno, Rafael, Ediniele, Altair e Raiani. Apenas os dois últimos, de 12 e 9 anos, respectivamente, são criados por ela. Margarethe sabia que não tinha condições de criar seus seis primeiros filhos, então os deixou para serem cuidados por famílias adotivas. PEDRO DAMASIO HAMEISTER ANA CAROLINA OLIVEIRA VITÓRIA PIMENTEL


Adoção .7

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Sol era apenas uma bebê quando começou a fazer parte da vida de Angélica. Hoje, ela tem sete anos

O amor de uma nova família Os Preussler sonham com o reconhecimento legal de uma relação que iniciou há sete anos

Conforme Diva Preussler, um dos momentos mais difíceis para a família aconteceu quando Sol tinha dois anos. A avó biológica materna apareceu na Justo em busca da neta. Mais aternidade é mais do do que apenas para visitá-la. O que uma escolha. É uma motivo da vinda era levá-la de vocação, que se des- volta para Curitiba, terra natal de cobre, muitas vezes, de forma Sol. “Seguraram ela no colo, nos inesperada. Essa é a história de pediram para deixarmos levá-la. Angélica Preussler, 31 anos, e Não deixamos. Outra vez, vieram que há sete, sentiu a emoção com advogado e nos mostraram de ser mãe pela primeira vez. uma carteira cheia de dinheiro, Mas isso não se deu de forma não aceitamos. Não tem dinheiro habitual. Sol, uma bebê então que pague”, afirma Diva. cuidada por ela, foi deixada pela Após esse episódio, Angélica mãe biológica em sua casa. E e Alceu passaram a temer a perda de lá nunca mais saiu. da guarda da filha. Devido a isso, Foi um choque, percepção há quatro anos, o casal entrou de que a mãe com na justiça não retornaria “Deus me deu a com pedido da para buscar a guarda legal de filha. “Como al- oportunidade de Sol. Conforme a guém deixa uma salvar uma vida, família, a situcriança desse ação se arrasta jeito?”, questio- depois me permitiu pela dificuldade na Diva Preuss- gerar outra” de localização ler, 53 anos, avó dos pais biolóadotiva. Apesar Angélica Preussler gicos da menina. do medo e da inAinda assim sensegurança de ter que cuidar de tem-se seguros. “Nosso advogaalguém sem ter tido tempo para do garantiu que isso não é um se preparar, Angélica decidiu problema. Quanto mais o tempo ficar com a menina. Para isso, passa, mais aumenta nossa concontou com o apoio do marido, vivência e mais forte fica nossa Alceu Cardoso, 28 anos, auxiliar causa”, salienta Angélica. de produção, e dos pais Em abril deste ano, mais um

M

passo foi dado nesta direção. A família fora chamada para uma conversa com promotores de justiça. O objetivo era averiguar como estavam os cuidados com Sol, além de descobrir se ela tinha interesse de viver com a família biológica. Quem respondeu foi a própria menina. “Não quis. Gosto daqui, da minha família”, recorda Sol, ao falar sobre o episódio.

COMO TUDO COMEÇOU

Angélica é casada com Alceu Carvalho há nove anos. Naturais de Candelária, desde 2011 residem na Justo. Um ano depois, conhecerem a Sol. A menina era deixada com frequência sob os cuidados de outra senhora que residia na Ocupação, até que Angélica começou a atuar como cuidadora da criança, então com menos de um ano. A mãe biológica, dependente química, deixava a criança cada vez mais tempo na Ocupação. Até que decidiu deixá-la lá. Ainda no começo, no terceiro dia com a família, Sol teve um mal-estar e foi levada às pressas para o hospital. Segundo constatado pelos médicos, a fragilidade da saúde dela era causada por desnutrição e intoxicação por drogas, uma herança de sua mãe biológica. Porém, só quem sabia

disso era Angélica, e a polícia foi chamada para averiguar o caso. Ela teve que prestar depoimento, fazer um boletim de ocorrência e assinar um termo de responsabilidade. Após conseguir comprovar sua inocência, Angélica aproximou-se ainda mais de sua filha. O que no início era uma sensação de compaixão pelos maus tratos a que Sol era exposta, transformou-se em carinho e amor de mãe. Angélica conta que uma das ocasiões que mais marcou sua relação materna com Sol aconteceu há dois anos. O episódio foi a primeira apresentação da filha na creche na qual frequentava, justamente homenageando o Dia das Mães. “Chorei muito. Foi uma peça de canto, com a música “Amor, I Love You”, recorda. Além de Sol, o casal tem um filho biológico de três anos, Bryan Carvalho. Ao adotar a menina, Angélica pensava que não podia engravidar. “Fiz exames e tratamentos, até que fui presenteada com o Bryan”, conta. Hoje, sente-se iluminada. “Costumo dizer que Deus me deu a oportunidade de salvar uma vida, depois me permitiu gerar outra”.

PEQUENA ESTRELA

Sol estuda durante à tarde.

Na escola, gosta das aulas de matemática e das brincadeiras com os colegas. Em casa, os pais dividem-se para cuidar dela e de Bryan. Angélica trabalha no turno diurno, Alceu no noturno. Mas é com a mãe que Sol demonstra ter uma sintonia amais especial. Enquanto Angélica conta dos gostos da filha, por comidas como hambúrgueres e pizzas, a menina interrompe. “Olha quem gosta de pizza”, e aponta para a mãe. Ambas riem, em uníssono. O que parece ser um acontecimento banal, mostra a simbiose criada entre as duas. Apesar da timidez, Sol faz questão de participar das conversas, tendo resposta para todas as perguntas. Quando o assunto é sobre sua adoção e a família que a acolheu, ela não hesita. Porém, o que ama falar, é como ocupa seu tempo livre. “Gosto de brincar, assistir desenhos e subir em árvores”, revela. A prática, aliás, que tem tudo a ver com o que a menina diz ser seu sonho. “Quero ser soldada, do exército”, conta. “Quero ser soldada porque elas sobem em árvores”, afirma, sorrindo. MURILO DANNENBERG ISMAEL PEREIRA


8. Esporte

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Fã de Messi e Neymar, Mateus Dias, 16 anos, vai jogar este ano no Clube Esportivo Aimoré, de São Leopoldo. O irmão, João Vitor (abaixo, de boné), 13 anos, e os amigos Altair da Silva (de bermuda com listras), 12 anos, e Samuel Oliveira, 13 anos, também querem ser futebolistas profissionais

Sonho de jogar futebol Crianças da Justo desejam se tornarem atletas do esporte

T

Além dos irmãos Dias, Altair da Silva, de 12 anos e Samuel Oliveira, de 13 anos também compartilham o sonho de se tornarem jogadores profissionais de futebol. Altair inclusive fará um teste no Aimoré este ano para tentar entrar nas categorias de base do clube. “Se eu não correr atrás do que eu quero, ninguém mais vai correr atrás por mim”, afirma o menino. Para eles, o futebol é muito mais do que apenas diversão. O esporte é uma possibilidade palpável de mudar a realidade em que vivem. De não mudar somente a sua vida, mas a de seus familiares e vizinhos. É a chance de fazer algo grande e ser reconhecido por isso.

ransformar o futebol em suas profissões, fazer o que gostam, jogar num grande clube e mudar suas realidades junto da de suas famílias. Esses são os principais motivos a fazer com que crianças da Ocupação Justo sonhem em ser jogadores de futebol. Morador da Ocupação desde criança, Mateus Dias, de 16 anos, possui esse sonho. Ele mora com a mãe Deloni Dias, com a vó Leonilda Dias e com o irmão mais novo, João Vitor. O irmão, de 13 anos, também sonha em ser jogador de futebol, mas reconhece que Mateus está ENSINAMENTOS mais próximo de realizar esse objetivo. Crianças moradoras da Ocupação “Sempre acompanho os jogos dele, ele que gostam do esporte participam do joga muito bem”, afirma João. projeto “Gol da Virada”. Ele tem como Mateus, que jogava futebol no projeto objetivo transformar a vida de todos os “Gol da Virada” (matéria sobre o projeto participantes através do futebol, dos pode ser lida na 2ª edição do Enfoque estudos e da reflexão religiosa. Nesse Justo), já passou pelas categorias de base projeto, o esporte não é apenas incendo Clube Esportivo Aimoré. Na época, tivado como profissão, mas é usado há dois anos, ele acabou não ficando no também como ferramenta de socialiclube em decorrência das aulas, porém zação das crianças participantes. Os campos do “Gol da foi chamado novamente para jogar no Aimoré este “Se eu não correr Virada”, o que fica atrás da Tenda, a rua ou em ano. “Tenho o sonho de qualquer outro espaço se ser jogador de futebol. Sou atrás do que eu transforma num ambiente fã do Messi e do Neymar. quero, ninguém perfeito para os meninos Me inspiro neles para jopraticarem o esporte. Atragar bola”, afirma Mateus. mais vai correr vés do futebol se conheFutebol arte é o que atrai atrás por mim” ceram e se tornaram amios meninos da Ocupação. gos. Altair e Mateus não se Todos admiram muito os Altair da Silva desgrudam e passam o dia dribles, os chutes de fora da área em direção ao gol e as firulas. jogando bola. “Eu e o Mateus estamos “É isso que dá a alegria para o futebol”, sempre juntos e estamos sempre com diz Mateus Dias. Alisson Hernandes, uma bola”, conta Altair. O esporte trouxe professor do projeto em que Mateus para essas crianças diversas amizades, jogava, observou potencial no menino ensinou a trabalhar em equipe e inse convidou ele para jogar no seu time taurou a esperança de um dia ser bemde várzea da cidade de São Leopoldo. -sucedido fazendo o que gosta. Segundo o professor, o menino vem se GUILHERME SANTOS destacando e tem chances reais de se torBRUNA SOARES nar logo um jogador profissional.


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Comunidade .9

Educação transforma vida de moradores Histórias de pessoas que, mesmo com dificuldades, estudaram e cresceram

Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). A prova avalia o desempenho dos estudantes ao fim do ensino médio e é utilizada como critério de seleção para bolulheres e Homens da Justo estão sas integrais e parciais no Prouni. Assim, em 2012, ela conquistou uma rompendo barreiras e vivendo uma nova realidade, oportuni- vaga em Enfermagem na Feevale (Fezada pela retomada dos estudos. Alguns deração de Estabelecimentos de Ensino iniciaram lutando por uma vaga no ensino Superior em Novo Hamburgo) pelo prosuperior ou por uma especialização para grama criado em pelo Governo Federal. inserção na área profissional desejada. Josiane faz parte dos mais de 2,47 milhões de estudantes atendidos pelo Outros iniciaram no ensino Prouni até o segundo semestre médio para depois definir o “Não importa de 2018, que tem como critépróximo passo. Independenrios: ser estudante ou ter feito te do local de partida, seme- onde nasceu, lhanças unem suas histórias: se tu estudar e o ensino médio na rede pública ou da rede particular, na condia resignação para seguir e ver ção de bolsista integral. na educação a ferramenta para acreditar, teu Trabalhando no Lar de Lonalmejar um futuro mais digno. futuro pode ga Permanência em Novo HamQuando tinha 30 anos, Carla burgo - desde maio, Josiane tem Baglione, agora com 36, estava mudar” a primeira experiência profisinsatisfeita com a sua vida, o Josiane Borges sional, depois de formada em que motivou a retomada dos estudos. Hoje, é visível a mudança na tra- 19 de janeiro de 2018. Para ela, a educação jetória de Carla. Estudando Administração tem uma capacidade transformadora e torna Unisinos - está no 7º semestre -, ela de- na diferente as pessoas. “Não importa onde senvolve treinamentos de vendas e auxilia nasceu, se tu estudar e acreditar, teu futuro pessoas a encontrar um imóvel para cha- pode mudar”, afirma. Agora, ela aguarda o resultado dos concursos que fez em Gravamarem de lar em uma imobiliária. Com uma rotina cansativa, Carla tra- taí, Sapucaia do Sul e Morro Reuter. balha ao longo do dia e à noite vai para a aula. Bolsista Integral do Programa VIVER DIGNAMENTE “Sempre fiz as provas do Enem, mas Universidade Para Todos (Prouni), do Governo Federal, ela recomenda dedi- nunca conseguia uma boa classificação. cação aos estudos - sempre respeitando Até 2015. Fiz a prova com mais calma, tive o próprio ritmo. “Estudar é ampliar os uma boa nota e consegui a bolsa Prouni”. horizontes. Estou ansiosa por concluir, O relato é de Josias Borges, 32, irmão acho que em um ano me formo, já es- de Josiane, que iniciou a graduação em Matemática, mas trocou de curso no setou planejando um mestrado”, diz. gundo semestre de 2016. Agora, ele cursa DESAFIO ACEITO Tecnologia em Logística, na Unisinos, e Kathuci Rochele dos Passos dos Santos está a dois semestres da formatura. estava há oito anos sem estudar, quanEm fevereiro, Josias foi chamado no do o pai disse para ela: “Se tu passar no concurso prestado em Taquara, para vestibular para fotografia, vou pagar”. ser secretário em uma escola municiComo sempre gostou de fotografar, re- pal, o que fez pensá-lo desistir da grasolveu aproveitar a oportunidade para duação. A motivação para continuar foi graduar-se no curso. Fez a prova e in- “a vontade de ser alguém na vida, ter gressou na graduação de Fotografia da um trabalho e viver dignamente”. Unisinos em 2012. Para ela, concluir o ensino superior, a formatura foi em 9 de PASSO A PASSO março deste ano, significou uma janela Sua vontade era fazer uma especiaaberta: “Não foi a conclusão, mas sim o lização em Instrumentação Cirúrgica. início de um novo ciclo”, comenta. Para tanto, precisaria fazer o curso de Ainda está presente nas lembranças Técnico em Enfermagem. Foi assim que de Kathuci o período na graduação – so- Joelma Jucelia Martins da Silva, 34, inibretudo do convívio com professores e ciou sua relação com a área da saúde. amigos, além das experiências. Uma delas Em setembro de 2018, venceu a primeira é a primeira saída de campo, quando fez etapa, ao concluir a formação no curso registros do Presídio Central, em Porto referido. “Foi uma grande alegria para Alegre. “A pauta era sobre a precariedade mim e para a família”, conta. da infraestrutura e foi para uma matéria Em março deste ano o segundo passo foi do Babélia (um dos jornais experimentais dado, e Joelma começou a especialização produzido pelos estudantes de jorna- em Instrumentação Cirúrgica. “O Curso tem dois meses e meio e capacita para tralismo da universidade)”, recorda. balhar em bloco cirúrgico”, explica. Hoje, OPORTUNIDADE ela é funcionária do Lar Corrente do Bem e Em 2011 Josiane Borges, 30, ficou sabe o que fará depois: “Será uma especiadesempregada, pois o mercado no qual lização em hemodiálise”, garante. trabalhava fechou. Enfrentando dificulIVAN JÚNIOR dades, ela vislumbrou uma oportunidaANDRESSA MORAIS de. Começou a estudar em casa para o

M

Kathuci ainda lembra da primeira saída de campo na Graduação

Enquanto faz uma especialização, Joelma já pensa na próxima

Josiane acredita no potencial transformador da educação


10. Sustentabilidade

ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO | SÃO LEOPOLDO (RS) | MAIO/JUNHO DE 2019

Horta orgânica no quintal de casa Iniciativa traz benefícios e pode estimular outras famílias

A

família Prates possui um hábito que une benefícios à saúde e ao meio ambiente no próprio quintal de casa há cerca de três anos. A horta orgânica – protegida por um cercado no fundo da propriedade – é o local onde eles produzem diversos alimentos orgânicos como mamão, banana e couve. E em uma caixa d’água adaptada para a mesma finalidade, são plantados temperos usados nas suas refeições diárias. Segundo o aposentado, Jairo Prates, 69 anos, os alimentos são cultivados pela família para consumo próprio, reduzindo os gastos com alimentação. “Quando eu comecei a preparar a terra para plantar, adicionei esterco de galinha para que o solo ficasse mais forte e saudável. Depois, aos poucos, procurei plantar salsinha, cebolinha, couve e outros produtos sem o uso de nenhum agrotóxico, fazendo que eles sejam n a t u r a i s ”, a f i r m a . Jairo divide as tarefas com sua esposa Dioni Prates, 59 anos. Os dois cuidam da horta orgânica como uma forma de entretenimento e bem-estar, sempre pensando em manter a qualidade dos alimentos. “É uma como se fosse uma terapia para mim cuidar e plantar esses alimentos saudáveis. A gente utiliza uma mistura de vinagre de maçã e água para combater os piolhos e as formigas, tentando eliminar ao máximo o contato desses animais com os produtos” comenta Dioni. Na horta da família Prates, são encontrados uma variedade de alimentos, como, limão, maracujá, banana, couve e mamão. Também, o espaço para o plantio é reservado para a produção de temperos como salsinha, cebolinha e salsão. De acordo com Jairo, a prática do cultivo de orgânico faz com o que os alimentos sejam mais saborosos e saudáveis.

PLANTAÇÃO

Um dos filhos do casal, Jessé Fernando Prates, 30 anos, auxilia os pais no cultivo da horta mesmo não morando na mesma casa. De

Banana, couve e mamão são alguns dos alimentos cultivados pelos Prates desde 2016 no terreno da família

“É como se fosse uma terapia para mim cuidar e plantar esses alimentos saudáveis” Dioni Prates relas e acabam perdendo seu gosto. Por isso, procuramos comprar novas mudas para conseguir alimentos saudáveis e gostosos”, explica.

PRÁTICA

Jairo cuida diariamente da horta familiar acordo com Jairo, ele é fundamental para orientar na produção dos alimentos da família, ainda mais em épocas de baixa temperatura devido ao inverno. “Estamos aguardando o momento em que meu filho diga quais produtos devemos plantar a partir de agora”, declara. De acordo com Jessé, a cha-

ve do sucesso para ter uma horta produtiva é uma terra fertilizada, sempre adicionando adubo e deixando o solo preto. E também, conhecer outras técnicas que só a experiência traz. “Eu já percebi que se a gente ficar replantando as mudas várias vezes, o resultado não é o esperado. As cebolinhas, por exemplo, ficam ama-

Assim como a família Prates, os brasileiros estão aderindo cada vez mais a essa prática que traz diversos benefícios aos praticantes e ao planeta. Segundo o Conselho Brasileiro da Produção Orgânica e Sustentável (Organis), o cultivo desse tipo de alimentos cresce em média 20% por ano no país. Já o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) confirma que 22,5% dos municípios brasileiros possuem ao menos uma produção de horta orgânica. Na Ocupação Justo, os

integrantes da Cooperativa Habitacional Alto Paraíso já pensaram em plantar uma horta orgânica comunitária. Segundo o presidente da organização, Fábio Simplício, o projeto não se desenvolveu porque eles precisam de mais apoio dos moradores. “Já foi trazido para nós a ideia da horta e tem pessoas interessadas no assunto. Mas até agora não conseguimos seguir com a proposta”, declara. Os moradores que quiserem apoiar o projeto, tirar essa ideia do papel e construir uma horta orgânica comunitária na Justo, devem conversar com Fábio. A prática na Ocupação pode fortalecer o convívio entre as pessoas, exercitando a cooperação, o trabalho em equipe e promovendo a saúde como um todo, através de ações educativas que lidam com aspectos ambientais e sociais. E também, incentivar que outros moradores comecem a realizar a atividade em suas próprias residências, construindo um mundo saudável e orgânico. LORENZO PANASSOLO MILENA SILOCCHI


Música .11

ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO | SÃO LEOPOLDO (RS) | XXXXXXXX DE 2019

O que sintoniza a Justo? Em meio a diversidade de culturas, os gostos e opções de entretenimento dos moradores variam de acordo com às gerações

A

ndando pelas ruas da Justo, é possível ouvir diferentes tipos de sons, vindos de conversas, de obras, de passos dentro das casas e principalmente muita música. Este tipo de manifestação sonora representa muito da diversidade de cultura presente na Ocupação.

LAZER E FÉ

Carla Josiane, 42 anos, é evangélica e costuma ouvir emissoras de rádio de sua religião, juntamente com seus cinco filhos. Dona de casa, conta que entre suas preferências de entretenimento estão novelas e filmes. Os filhos, por sua vez, preferem assistir programas no Youtube e jogar videogame. Ao som de música contemporânea, Alessandro de 42 anos se dedicava à construção de um cercado. Trabalha com limpeza pública, e quando está em casa não dispensa uma boa música, sintonizando em seu pequeno rádio estações que tocam músicas contemporâ-

Alessandro ouve rádio enquanto trabalha em casa neas e música evangélica. Na televisão gosta de acompanhar novelas e noticiários. Sentados na frente de casa, estão Joaquim, Aline e amigo ouvindo música e conversando. Aline trabalha com vendas e gosta de música gospel optando por ouvir através da plataforma de vídeos, youtube, para encontrar suas músicas preferidas. Gosta

também de música sertaneja e acompanha as novelas da Rede Globo. Joaquim também se declara noveleiro, porém optando pelas novelas da Rede Record, além do hábito de assistir noticiários pela manhã.

SOM SERTANEJO

O senhor Leonel Saldanha de 63 anos, contagia a Justo com o

som afinado e contagiante vindo da sua gaita. O simpático senhor, aposentado como caminhoneiro, natural de Quaraí, conta que já foi músico. Apaixonado por música tradicional gaúcha e pelos sucessos sertanejos dos anos 90 e 2000, seu Leonel diz que não costuma sintonizar o rádio, pois não gosta muito das músicas atuais. Opta então pelo uso do Youtube onde acha com facilidade suas músicas preferidas. Na televisão, assiste muito a Rede Record onde acompanha notícias e futebol. Com som bem alto vindo de uma casa simples com um jardim cheio de enfeites e flores, Margarete, de 47 anos, mora com os filhos de doze e nove anos. Dona de casa, passa o tempo ouvindo música sertaneja e gauchesca, sempre com o rádio sintonizado em alguma estação de seu gosto. Os filhos gostam mais do estilo funk e costumam ouvir no Youtube, além de assistirem youtubers como Felipe Neto. Na TV a família assiste novelas da Rede Record e jogos de futebol. Enquanto faz faxina, no embalo do cantor capixaba Carlinhos Rocha, Geani dos Santos de 26 anos, natural do Espirito Santo, declara-se fã de música sertaneja. Conta que ouve música o tempo todo, inclusive no trabalho. Entre as

rádios populares ouve as quais mais tocam seu estilo musical, mas prefere ouvir pelo Youtube, livre de propagandas e anúncios de locutores. A dona de casa, Jucimara de Oliveira Flores também aprecia um bom sertanejo. Enquanto ajuda o esposo, Felipe, a espalhar brita pelas ruas para reduzi o barro, o casal está sintonizado em uma estação que toca seu estilo musical. Felipe é caminhoneiro e conta que sua rotina é embalada pelas rádios locais. Aos domingos, quando está em casa, gosta de ouvir música gaúcha. O casal conta que na TV aberta opta por assistir novelas e programas de notícias, mas prefere assistir séries em filmes no Netflix.

JOVENS E O FUNK

Próximo à Tenda do Encontro ouvre-se o alto som vindo da casa dos amigos Guilherme, 18, Tamires, 15 e Jhon Lenon, 21. Ao som do estilo Funk, o dificilmente sintoniza o rádio em alguma estação. Costumam ouvir suas músicas pelo Youtube ampliando o som do celular em uma caixa de som. Não acompanham TV aberta, optando por séries e filmes no Netflix. INA POMMER SOFIA PADILHA GULART

“Aprender música muda o futuro deles” As tardes de terças e quintas-feiras tem sido bastante proveitosas para os adolescentes que participam da oficina de música da Ocupação Justo. O professor, Rafael Evangellio, 28 anos, aprendeu a tocar violão clássico com o seu pai, e instrumentos de cordas no Sindicato dos Músicos do Rio Grande do Sul. “Na oficina, a consciência sociopolítica dos alunos é despertada, possibilitando que vejam sob novos ângulos o ambiente aonde vivem. Aprender música muda o futuro deles”, diz. Violão e percussão são ensinados nas aulas, que acontecem na Tenda do Encontro. O projeto da Justo chama-se Guardiões da Água e é desenvolvido pelo Serviço Municipal de Água e Esgotos (Semae) e pela Secretaria Municipal de Cultura de São Leopoldo (Secult). O educador diz que por meio

das aulas ele busca ocupar os jovens desassistidos pela falta de atividades, e que oficinas educativas são uma forma de mantê-los longes da violência e das drogas. Para o professor, poder transformar os adolescentes em seres humanos melhores é a maior missão que existe no ato de ensinar música. “A oficina busca ensinar cultura e reciclagem para aqueles que têm vontade de aprender”. A reutilização de materiais como latas de alumínio e garrafas pet, para fazer instrumentos musicais, é uma das bases do projeto.

OPORTUNIDADE

Vinícius dos Santos, 14 anos, é um dos seis alunos que participam da oficina. O adolescente, que já tinha um violão em casa, enxergou no projeto a oportunidade de aprender a tocá-lo. Sua mãe,

Vinícius, Heric e Felipe são parceiros na oficina Teresinha de Lourdes dos Santos, diz que para ela, o projeto de música é de grande importância. “Antes Vinicíus passava muito tempo em casa, mexendo no computador. Agora, pelo menos ele está interagindo e aprendendo, o que é bem melhor”. A música faz parte da vida

do menino Heric Gabriel Costa de Moraes desde os seus dois anos de idade. O adolescente iniciou seu aprendizado no curso Vida com Arte, que ocorre na antiga sede da Unisinos, e não parou mais. Hoje ele está com 14 anos, e quando soube sobre as aulas na Justo, decidiu usar suas tardes livres

para aprender mais. Felipe Herbstrith, 13 anos, é aluno da oficina e diz ter sido ele quem convidou seus colegas para participarem do projeto. Antes, o adolescente passava suas tardes sozinho, assistindo TV e jogando. “Sempre tive vontade de aprender música, e agora aproveito melhor o meu tempo, as aulas são t r a n s f o r m a d o r a s ”. Para Felipe, o professor Rafael é tido como inspiração. Heric ressalta admirar o professor, já que além de aprender a tocar os instrumentos, nas aulas também aprendem valores morais como disciplina e respeito. “O professor é bem-humorado, a gente brinca, mas Rafael sempre impõe respeito entre as brincadeiras”. MAESE CLOSS JOHANN MACEDO


ENFOQUE OCUPAÇÃO JUSTO N O trabalho

que veio parar em casa

a Ocupação Justo, um dos problemas mais referidos pelos que ali vivem é a falta de oportunidades de trabalho. Muitos moradores, por não possuírem um endereço regularizado, encontram dificuldades quando buscam um emprego, quando se candidatam às raras e disputadas vagas que encontram disponíveis. Assim, em alguns casos, optam por arriscar abrindo ou investindo em seus próprios negócios. Quanto aos empreendimentos locais, na Justo é possível observar mercados, sa-

SÃO LEOPOLDO (RS) MAIO/JUNHO DE 2019

EDIÇÃO

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lões de beleza, mecânicas, manicures, reciclagens e até mesmo uma cooperativa. Outra característica que chama atenção é que muitos desses negócios são sediados nas próprias residências de seus empreendedores, trazendo o trabalho para dentro de casa. Todos referem um mesmo objetivo, buscar alguma autonomia financeira que lhes dê condição de sustentar melhor as suas vidas. GABRIEL FERRI MATHEUS HANSEN KLAUCK

Pedro Müller, 32 anos. Também conhecido como “Pedrão”, trabalha há mais de 10 anos no seu próprio negócio. Começou juntando sucata para reciclagem mas mudou de ramo e abriu junto com sua esposa o “Armazém do Pedrão” (Ver página 4)

Eugenir Fagundes, 50 anos. Trabalha com construção civil e acredita que o trabalho faz toda a diferença. Usa o espaço de sua casa para guardar as ferramentas e o maquinário de trabalho

Jerry Flores, 55 anos. É mecânico e trabalha em casa. Valoriza muito o seu serviço e deseja ampliar a casa para trazer a família

Miriãn Ribeiro, 25 anos. É manicure e gosta do que faz. Trabalha em casa e atende a domicílio há mais de 8 anos. Aprendeu sozinha praticando e assistindo tutoriais na internet. Tem uma filha, Manuela Ribeiro de Oliveira, 3 anos, que acompanha a mãe no seu trabalho


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