Enfoque Santa Marta 11

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ENFOQUE SANTA MARTA

SÃO LEOPOLDO / RS OUTUBRO / NOVEMBRO DE 2018

EDIÇÃO

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DANIELA GONZATTO

A VILA RESISTE IURY RAMOS

LAURA ROLIM

JOSÉ HAMEYER

MORADORES OBTÊM RENDA COM PEQUENAS E PERSISTENTES INICIATIVAS PÁGINA 10

CIDADANIA E AUTOESTIMA A Escola Municipal fortalece e valoriza a comunidade

BRECHÓS GERAM LUCROS Comércio de produtos usados estimula a economia Página 12

ABASTECIMENTO DIFÍCIL CEP inexistente afeta mercados Página 14

Páginas 6 e 7


2. Editorial

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À sua maneira, a Vila se sustenta

aminhando pela Santa Marta, é fácil perceber que o poder aquisitivo da Vila, em sua maioria, é baixo. A 11ª edição do jornal Enfoque quis explorar a fundo como os moradores se sustentam, como sobrevivem nos anos consecutivos de forte crise econômica. Com a precária presença do setor privado e a falta de oportunidade para se ter um trabalho com carteira assinada, a alternativa encontrada para

enfrentar o desemprego foi o trabalho informal. Entre todas as pautas produzidas, nove repórteres percorreram as ruas da Vila e encontraram histórias surpreendentes. Uma delas, a de Joceli Rocha Netto, transborda dedicação, suor e conquistas. Com um empreendimento de mais de 10 anos, a loja de roupas BeraKas Modas vende peças para clientes tanto dentro quanto fora da Santa Marta.

O ramo varejista, contudo, não é o único explorado. A Vila sobrevive a base de costureiras, mecânicos, confeiteiros, e até vendedores de sacolé. A inadimplência, porém, é um problema. A comerciante Sônia Silva é afetada diretamente pela falta de pagamento - o famoso comprar fiado. Mas mesmo causando tais transtornos, é com jogo de cintura, tanto de Sônia quanto da Santa Marta, que o comér-

cio se mantém vivo. Esta edição do Enfoque não deu espaço somente à economia. Os repórteres também conheceram novas vozes. O tradicionalismo gaúcho que está presente na vida dos moradores, representado pela aposentada Nilvana de Melo Fornari. O drama do menino Vitor Gabriel da Silva, que corre risco de perder a visão por conta do estrabismo, a realidade de pessoas que perderam a capacidade de

locomoção e dependem de cadeira de rodas, o papel da Unisinos na oferta de atendimento à saúde do morador e a Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Marta como um dos orgulhos da Vila. Histórias de sobrevivência e superação contadas em 24 páginas, nesta penúltima edição do jornal. MARCELO JANSSEN NATAN CAUDURO DANIELA GONZATTO

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Santa Marta é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Santa Marta, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares e três edições por semestre, é distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo. Edelberto Behs (Coordenador do Curso de Jornalismo): (51) 3591.1122, ramal 1354 / edelbertob@unisinos.br Pedro Luiz S. Osório (Professor responsável): posorio@unisinos.br

EDIÇÃO E REPORTAGEM — Disciplina: Jornalismo Cidadão. Orientação: Pedro Luiz S. Osório. Edição de textos: Franciele Arnold Pereira, Gabriel Appelt Nunes, Marcelo Janssen Neri da Silva, Vitor dos Santos Brandão da Silva, Laura Hahner Nienow e Natan Magri Cauduro. Edição de fotos: Artur Cardoso Colombo. Reportagem: Arthur Menezes de Jesus, Artur Cardoso Colombo, Bibiana Faleiro, Caroline Santos dos Santos Tentardini, Eduarda Bitencourt de Oliveira, Eduarda Guilhermano Rocha, Estephani Luana Richter Gehrke, Franciele Arnold Pereira, Gabriel Appelt Nunes, Iara Jaqueline Baldissera, Laura Hahner Nienow, Lucas Girardi Ott, Marcelo Janssen Neri da Silva, Mariana Artioli de Moraes, Martina Belotto Michaelsen, Natan Magri Cauduro, Nicole Thaís Roth, Paola Pereira Guimarães, Thanise Melo da Silva, Vanessa Dias da Fontoura, Victória Rambo de Lima, Vitor dos Santos Brandão da Silva e William Gonçalves Lima Martins. FOTOGRAFIA — Disciplina: Fotojornalismo. Orientação: Flávio Dutra. Fotos: Aline Grubert, Amanda Krohn, Ângelo Santos, Arthur Eduardo, Bruno Flores, Daniela Gonzatto, Douglas Glier Schutz, Gabriela da Silva, Gustavo Machado, Henrique Abrahao, Iury Ramos, José Hameyer, Juliane Kerschner, Laura Rolim, Leila Donhauser, Lohana Souza, Luciano Pacheco, Mateus Friedrich, Milla Lima, Roberta Alano, Suélen Pereira, Suélen Hammes Rodrigues, Tainara Pietrobelli, Thais Ramirez e Vanessa Wagner. REVISÃO DE PORTUGUÊS — Ensino Propulsor: Professora Maria Helena Albe e monitores Alessandra Redel, Bruna Rodrigues, Lauren Silva e João Carlos Schmitz. ARTE — Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. IMPRESSÃO — Realização: Gráfica UMA / Grupo RBS. Tiragem: 1.000 exemplares. Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: Pedro Gilberto Gomes. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Alsones Balestrin. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente dos Cursos de Graduação: Paula Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


Assistência .3

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A dona de casa Ana Cláudia tira dúvidas sobre a sua saúde e a do pequeno Kauê com a estudante de Medicina Ana Pedrazani Rodrigues

Aprendendo a cuidar da saúde familiar Ana Cláudia de Souza, moradora que recebe visitas dos estudantes do curso de Medicina da Unisinos, passou a dar mais atenção ao seu bem-estar

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na Cláudia de Souza, de 25 anos, é consciente dos cuidados que deve ter com a sua saúde. Dona de casa, a moradora da Rua 5 da Santa Marta sempre consultou com uma ginecologista. Mas, desde que passou a receber as visitas de Anna Pedrazani Rodrigues, estudante de Medicina da Unisinos, seu interesse pela própria saúde foi renovado. Ana, que é hipertensa, teve bebê há poucos meses e, desde que começou a participar do programa da universidade com as famílias do bairro, tem mais curiosidade sobre seu bem-estar. Anna e Ana se veem há seis meses. As visitas da estudante, de 23 anos, aconte-

cem duas vezes por mês, mas nem por isso elas deixam de se comunicar ao longo dos dias. A moradora passou a usar o aplicativo de mensagens WhatsApp para falar com Anna, mesmo fora das visitas. O curso de Medicina da Unisinos leva alunos até o bairro para que acompanhem famílias e pacientes ao longo de um semestre. Ana Cláudia, porém, mantém o contato constante com a estudante do curso, por conta do período em que esteve grávida e também para sanar outras dúvidas. Segundo Ana Cláudia, receber o atendimento da aluna de Medicina foi um incentivo, para que ela fique mais atenta à sua própria saúde. Além disso, a própria gravidez fez com que ela prestasse mais atenção a essas questões. “Na verdade, antes de engravidar, nunca fui de estar indo ao médico. Claro, eu ia na ginecologista, mas não no clíni-

co, por exemplo”, conta. Ana Cláudia de Souza e Diego de Moraes se tornaram os pais do bebê Kaue de Souza de Moraes em 18 de julho deste ano. Ana Cláudia já esteve grávida antes, em 2016, mas acabou perdendo o bebê logo no início da gravidez.

As visitas da aluna de 23 anos acontecem duas vezes por mês, mas nem por isso elas deixam de se comunicar ao longo dos dias: a moradora passou a usar o aplicativo de mensagens WhatsApp para tirar suas dúvidas

Agora, as informações básicas para cuidar da sua saúde e do bebê vêm de Anna. Ana Cláudia conta que é a estudante que a informa sobre campanhas de vacinações, por exemplo. A aluna não pode receitar medicamentos, já que está apenas no segundo semestre do curso. Mas pode orientar a moradora sobre dietas e aconselhar a procurar um médico. “Um dia ela estava com dor de dente. Ela queria saber, se podia tomar chá, e me mandou uma mensagem. Questionei um dentista e lhe respondi”, comenta a estudante.

VISITAS NO BAIRRO

Maria Letícia Ikeda, professora do curso de Medicina que acompanha os alunos nas saídas até o bairro, explica os objetivos do serviço. “Não são visitas como um médico faria para ver alguém doente. Eles vêm para ver as pessoas e suas famílias nos seus

diversos ciclos de vida”. Assim, no primeiro semestre, os alunos devem atender ou uma família com bebês de até mil dias de vida ou uma grávida. No segundo semestre, o foco é a saúde do adulto – no caso da aluna Anna Rodrigues, agora ela se concentra no bem-estar da mãe, não do bebê. No terceiro semestre, a ideia é visitar idosos. “Então, eles conhecem a família, acompanham esse desenvolvimento. Aprendem a manejar algumas ferramentas da medicina de família e comunidade”, esclarece Maria Letícia. A cada final de semestre, as pessoas são questionadas: devem dizer se querem continuar sendo atendidas pelos alunos ou não. No caso das duas “Anas”, Ana Cláudia pediu para continuar recebendo as visitas de Anna Pedrazini Rodrigues. NICOLE ROTH DOUGLAS GLIER SCHÜTZ


4. Saúde

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Problema que vai além da visão Prejudicado pelo estrabismo desde o nascimento, Vitor precisa de procedimento cirúrgico para reverter o quadro e evitar a perda completa da função ocular

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á oito anos, Vitor Gabriel da Silva, 8, sofre com o estrabismo. Causado por um desequilíbrio no músculo ocular, o problema provoca um desvio na visão e falta de coordenação entre os dois olhos. A família, que possui restrições financeiras, espera pelo atendimento na rede pública de saúde, pois sem cirurgia para reverter o quadro, o menino pode perder a visão. Vitor nasceu prematuro de seis meses e ficou internado na maternidade até o primeiro mês de vida. No hospital, a característica diferente nos olhos ainda não era aparente. “Quando ele ganhou alta, veio um especialista aqui, examinou ele e estava tudo normal”, afirma a dona de casa Keila Raquel da Silva, 27, mãe do menino. Ela conta que, seis meses depois, notou o problema nos olhos e consultou um oftalmologista, que diagnos“Eles me deram ticou o estrabismo. Desde então, Keila proo papel e cura atendimento médico para o filho na rede públimandaram eu ca de saúde. No primeiro ir na Secretaria ano de vida do menino, ela buscou consulta no Centro de Saúde, ele Médico Capilé, em São Leficou na fila de opoldo, onde foi encaminhado para a cirurgia. “Eles espera, mas me deram o papel e manaté agora não daram eu ir na Secretaria chamaram” de Saúde, ele ficou na fila de espera, mas até agora Keila Raquel da Silva não chamaram”, declara a Mãe de Vitor mãe. Quanto ao encaminhamento, a validade já venceu e, conforme conta Keila, os médicos que avaliaram o caso afirmaram a possibilidade de perda da visão, se não houver tratamento. Vitor é estudante do Centro Educacional da Associação Beneficente de Resgate e Assistência Educacional (Abrasse), que foi responsável por conseguir uma consulta para o menino no Capilé, neste mês, para iniciar novamente o processo do Sistema Único de Saúde (SUS) até o procedimento cirúrgico. “Pretendo acompanhar ele no dia da consulta”, afirma Valdir Becker, presidente da Abrasse.

ROTINA EM CASA

Na escola, Vitor não apresenta grandes dificuldades na visão. Um dos motivos é que a escrita e a leitura ainda não são estimuladas no nível escolar infantil, como estima Becker. Porém, em casa, as reclamações por parte do pequeno já começaram. “Às vezes, ele se queixa que não está enxergando bem só de um olho”, declara a mãe. Segundo o oftalmologista Augusto Magalhães, crianças com estrabismo desenvolvem uma “supressão” de segunda imagem, o que acarreta na falta ou mau uso de um dos olhos. Na residência simples e pequena, Vitor mora com sua mãe e as três irmãs. Beneficiados com o Programa Bolsa Família, a renda mensal fixa para as despesas da casa soma em 450 reais, valor que Keila afirma ser suficiente. A dona de casa conta que os filhos nunca tiveram contato com o pai Ela também não teve convívio com a figura paterna, e sua mãe, a avó das crianças, faleceu há dois anos. VICTÓRIA LIMA ALINE GRUBERT

Em pouco tempo, Vitor enfrentará dificuldades para continuar lendo


Saúde .5

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Decreto autoriza uso do FGTS na compra de prótese Por não conhecerem seus direitos, moradores da Santa Marta dependem da ajuda de terceiros para a compra de equipamentos

pensão da mãe,que é de 780 reais.O aluguel da casa custa 350. Para ajudar na renda, Elsi trabalhar com o que mais gosta: preparo de salgados e doces. Ficar ao lado da mãe, enquanto ela cozinha, é um dos passatempos favoritos do filho, principalmente pelo cheiro e por conseguir provar tudo. Ele tem um recorde pessoal: conseguiu comer 11 trufas em um único dia. Steffans é otimista. Diz-se já adaptado à cadeira de rodas e, quando se recuperar, deseja voltar para Sapiranga e trabalhar com construção, fazendo obras nas áreas de elétrica e hidráulica. Uma das frases que mais usa é“sem ela (Elsi),eu não faço nada”. Como forma de agradecimento,ele também espera, com a futura independência, diminuir as tarefas diárias atribuídas à mãe,dando a ela mais tempo para si mesma.

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ntrou em vigor, em agosto de 2018, o decreto 9.345.Ele permite que todo trabalhador portador de deficiência (visual,auditiva,motora ou mental) possa usar o dinheiro do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para a compra de próteses e órteses. O decreto integra a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência Estatuto da Pessoa com Deficiência. Para efetuar a compra de um equipamento, é preciso retirar o dinheiro de uma conta vinculada ao FGTS. Dentre as regras exigidas, o trabalhador com deficiência deve comprovar que possui impedimento de longo prazo (estima-se um mínimo de dois anos), de natureza física ou sensorial. O trabalhador também deve,para conseguir o benefício, entregar prescrição e laudo médico assinados pelo responsável pelo tratamento do paciente. Os documentos devem ser enviados a um agente operador do FGTS – agente operador é quem centraliza, mantém e controla as contas dos trabalhadores vinculados. Nesse caso, trata-se da Caixa Econômica Federal. Além do FGTS, existem outras formas legais de adquirir itens como próteses e órteses. Leis mais antigas, porém, menos divulgadas, já garantem esse direito. Duas delas são a portaria MS nº 1.060,do Sistema Único de Saúde (SUS) do Rio Grande do Sul,e a Lei nº 8.213/91 (artigos 89 e 90),do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS.

PRISIONEIRO

CADEIRANTES

Pedro Fernandes Siqueira e Luis Vanderlei Steffans são moradores da Vila Santa Marta.Em comum,ambos utilizam cadeiras de rodas para locomoção. Em 2018, os dois homens completam o primeiro ano como cadeirantes. Pedro, por efeito do tabagismo; Luis devido ao alcoolismo. Em ambos os casos, o vício resultou em problemas de saúde que deixaram sequelas. Pedro e Luis são dois dentre os 45,6 milhões de brasileiros que possuem algum tipo de deficiência. Segundo o Censo Demográfico de 2010 do IBGE, esses milhões representam 23,9% das pessoas deste país. Nem Pedro, nem Luis sabiam da existência de algum dos direitos citados no texto. A dupla ganhou as cadeiras de rodas por intermédio de doações.

OTIMISMO

Luis Vanderlei Steffans tem 45 anos e mora na Vila há um ano. Nasceu em São Leopoldo, mas se considera sapiranguense. Foi na cidade de Sapiranga, no ano passado, em um domingo, que Luis sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Amigos e companheiros de serviço o encontraram na segunda-feira. Ele diz não lembrar o ocorrido, toda a memória se transformou em um borrão.

Luis Steffans foi vítima de um AVC em 2017. Ele vive com a mãe, Elsi Haag, faz um ano Causado pelo alcoolismo,o AVC deixou sequelas graves no cérebro de Steffans. Todos os membros do lado esquerdo do corpo foram paralisados. Ele esteve internado por dez dias no Hospital Sapiranga. Nesse período, recebeu a primeira cadeira de rodas. O laudo médico diz que Luis tem

Pedro Siqueira e Luis Steffans, ambos cadeirantes, não conheciam os direitos referentes à compra de equipamentos

chance de recuperar os movimentos, mas tudo ainda é incerto. Junto da mãe, Elsi Haag,65,mudou para São Leopoldo. Luis faz fisioterapia pelo SUS.Ele conseguiu recuperar parcialmente o movimento dos dedos e pé esquerdo. No entanto, não frequenta mais a atividade. Há três meses, uma convulsão repentina gerou um espasmo muito forte no braço direito,quebrando-o na região do ombro. Os exames médicos mostram que o osso ainda não está apto o suficiente para que Luis retome os exercícios fisioterapêuticos. Enquanto ele espera pela melhora do braço direito, o esquerdo continua em um estado vegetativo. Devido a sua condição, Luis está desempregado. A família se sustenta com a

Há sete anos, Pedro Fernandes Siqueira é conhecido na Vila Santa Marta pelo apelido Catarina. É uma referência ao estado de origem dele. Pedro é solteiro, colorado, tem 59 anos e três filhas de criação. Trabalhou a vida toda como marceneiro, sua única profissão. Hoje é aposentado. Já teve problemas sérios com bebida alcoólica, mas seu grande vício é o cigarro. Ele é fumante há mais de 30 anos, mas teve de parar depois que o uso contínuo lhe trouxe complicações. No ano passado,Catarina descobriu um problema na perna esquerda. A nicotina presente no cigarro estava diminuindo a espessura dos vasos sanguíneos. Com isso, as veias da perna entupiram, e a circulação do sangue foi cortada. Pedro passou por uma série de exames e um procedimento cirúrgico, que deixou uma cicatriz da coxa ao abdômen, mas de nada adiantou. A perna estava em processo de gangrena. No dia 12 de outubro de 2017, Catarina teve a perna esquerda amputada. No Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre, ocorreu o procedimento. Catarina ficou internado por quase três meses. Ele lembra o médico comentar que não ter diabetes salvou sua vida. Um ano depois, Pedro usa uma cadeira de rodas comprada e doada por amigos para se locomover.Ele não consegue usar as muletas de madeira que fez para si mesmo.Segundo ele, é muito difícil manter o equilíbrio. Pedro conta que a vida,depois da operação,mudou muito.Tem dificuldades diárias dentro e fora de casa. Depende de ajuda com frequência.“Sem um dedo do pé, tu já é outra pessoa. Imagina sem uma perna?”. Catarina disse ter interesse em adquirir uma prótese mecânica, porém o equipamento foge do orçamento. Na entrada da casa de Catarina, pendurada na parede, há uma gaiola. Dentro dela, um pássaro. Pedro conta que comprou o animal pequenino para ter companhia.“Ele é preso na gaiola e eu na cadeira. Ele canta as lágrimas dele pra mim, eu canto as minhas pra ele”. NATAN CAUDURO TAINARA PIETROBELLI


6. Educação

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União que transforma

Ambiente acolhedor e foco no desenvolvimento humano

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asta percorrer as ruas estreitas e entrar na Escola Municipal Ensino Fundamental Santa Marta para compreender o diferencial do seu ambiente escolar. As paredes contêm imagens relacionadas com a disciplina estudada. Salas de informática organizadas, com mesa extensa para reuniões de grupos. O detalhe está nas cortinas, na sala planejada com cuidado para as aulas de dança. Está no relacionamento dos professores e dos 848 alunos, em cada familiar e morador que contri-

buiu para a escola ir além do espaço de ensino básico. O Enfoque apurou junto do grupo de docentes, que o foco da educação na Vila Santa Marta é a cidadania, o desenvolvimento humano e a autoestima. A preparação ultrapassa os limites da escola e visa o futuro. As falas dos professores são diferentes, mas com os mesmos propósitos, o de mudança. Por isso era necessário sair da acomodação e transformar o espaço onde vivem, lugar que durante tanto tempo foi associado à violência. Dessa forma, docentes se uniram em prol da educação. A escola, criada em 2001,

precisava mudar antes que os índices de criminalidade pudessem alterar a conduta dos alunos. Desde 2011, o colégio contava com projetos como Horta Mãe-da-Terra e Fazendo Um Mundo Melhor, mas só em 2013 sob nova gestão, passaram a acumular títulos e premiações. A direção criou o Fazendo do Conflito uma Oportunidade de Crescimento e Aprendizagem, o CONDADE, com o objetivo de combater a violência do ambiente. O projeto foi apresentado à Secretaria de Educação do município. Por sugestão do órgão público, um grupo de alunos foi criado para debater sobre questões

que interferiam na escola. A partir da integração na Conferência Nacional Infanto-juvenil pelo Meio Ambiente, estudantes são incentivados a pensar em temáticas socioambientais, surge a Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida, a COM-VIDA. Em levantamento, a EMEF descobriu que todas escolas de São Leopoldo são construídas em torno dos arroios, e somente 20% do esgoto é tratado no município. A criação do “Água Viva” em 2014, buscou sensibilizar e diminuir os danos da poluição e contaminação dos resíduos jogados de forma irregular. O movimento de estudantes

e professores permitiu maior aproximação da sociedade, incluindo a Associação de Moradores. Era a primeira vez o colégio seria visto na mídia com boa notícia. No ano de 2013, a Câmara de Vereadores de São Leopoldo aprovou a resolução municipal (CME/CEINC n°014), que estabelece as diretrizes curriculares para educação ambiental no seu sistema de ensino. A normativa garantiu a continuidade de todos projetos, inclusive o movimento “Bairro Melhor”, estendido às questões comunitárias. Em seguida vieram as premiações, com valores revertidos para criação de ecopontos e instala-


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Comunidade e professores trabalham para escola ir além do ensino básico

ções de lixeiras na escola. Novas parcerias foram firmadas e professores passaram a aprimorar sua formação. Em 2015, a partir do COM-VIDA colégio e alunos são convidados a participar do projeto de mestrandos da Universidade de Michigan (EUA), que buscava desenvolver um trabalho de urbanismo em São Leopoldo. Como resultado, a escola recebe um prêmio de US$ 25 mil para implementações e melhorias na Vila. A participação em programas implicou no rendimento escolar de alguns alunos. Pensando nisso, a disciplina de educação científica passa a com-

por a grade curricular de 17 turmas de 5º a 9º ano. Em 2017, as professoras Cris Santos e Sandra Groe viajam ao Peru para participar do Rally Continental Escolas com Futuro Sustentável. A presença no evento rendeu o posto de a única escola brasileira finalista naquela edição. Agora o desafio da EMEF Santa Marta é fomentar o próximo evento que ocorre em 2019. Após tantos anos aprimorando o relacionamento de escola e comunidade, Sandra relembra que “em 2011 as pessoas não gostavam de estar ligadas à Santa Marta, agora o espaço tem grande significado para os seus moradores”.

“Em 2011 as pessoas não gostavam de estar ligadas à Santa Marta, agora o espaço têm grande significado para os seus moradores” Sandra Groe Professora

AVALIAÇÃO IDEB

O último Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), feito pelo Ministério da Educação, demonstra que a Santa Marta possui baixo rendimento educacional quando comparada às demais instituições no município. Apesar do censo escolar avaliar em 3.4, a escola cresceu 21% em relação às demais situadas na localidade. O conhecimento dos alunos é analisado por meio de provas de português e matemática. A evasão escolar e repetências também são consideradas, ambos com índices altos em Santa Marta. Para professoras o Ideb é importante para o país, mas

não contempla a realidade de cada instituição. Muitos dos seus alunos não têm estrutura familiar, outros ajudam a complementar a renda em casa, e os docentes precisam lidar com questões que vão além da sala de aula. “O que nos diferencia aqui é que temos professores sensíveis ao contexto escolar. Nós não podemos cobrar os alunos do mesmo jeito que uma escola central e nem virar as costas para a realidade deles. Independente do índice baixo, já evoluímos muito”, destacou Sandra. THANISE MELO JOSÉ HAMEYER


8. Comunidade

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Criatividade e apoio mútuo marcam a economia local Moradores apostam em empreendimentos locais para ganhar a vida

crescimento de 1,9%, o que representa 437 mil pessoas. No setor privado, há 11,2 milhões de empregados sem carteira de trabalho assinada. Com a pouca oferta de empregos no mercado formal, os moradores do bairro são afetados diariamente por essa realidade. Como forma de reverter esse cenário, a comunidade aposta na criatividade para oferecer novas alternativas de comércio e serviços independentes e, com isso, impulsionar a economia local. O espírito empreendedor dos moradores se encontra nas pequenas iniciativas. Vendedores de sacolé, costureiras, manicures, barbeiros, revendedores de produtos de beleza e lojistas se empenham todos os dias para oferecer um serviço de qualidade e conquistar novos clientes. Além dos autônomos, existem aqueles pequenos comerciantes que, por meio de seus negócios, geram empregos para

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elas ruas não asfaltadas da Santa Marta, a comunidade ergueu uma Vila com marcas de esperança. Acordar cedo todos os dias em busca de oportunidades e melhores condições de vida já virou rotina para moradores que têm como essência a determinação. Essa forte característica pode ser percebida por meio de seus esforços para contornar as dificuldades financeiras e sociais. Assim como no resto do Brasil, as famílias da Santa Marta também estão sentindo os reflexos da crise econômica. Segundo dados do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e do IBGE, há no país 63,4 milhões de inadimplentes e 23,3 milhões de pessoas que trabalham informalmente ou que empreendem por necessidade. Em relação ao mesmo período do ano anterior, houve

outras pessoas. Desta forma, mais do que conseguir pagar as contas do mês, os empreendedores auxiliam seus vizinhos e outros moradores a saírem do saldo negativo. A comunidade da Santa Marta é também rodeada de união e solidariedade. Não é difícil perceber que cada um dos moradores se preocupa em incentivar o comércio local. É comum ouvir que as compras de casa são feitas no próprio bairro, que o corte de cabelo é realizado pela vizinha cabeleireira ou que alguma roupa foi consertada por uma costureira da mesma rua. É dessa forma que a economia da Santa Marta se constrói: pelas mãos de trabalhadores talentosos e moradores apegados à Vila, que fazem questão de apoiar os corajosos empreendedores. BIBIANA FALEIRO MARTINA BELOTTO WILLIAM MARTINS DANIELA GONZATTO

Inadimplência, o rosto da crise Sônia Silva, 44, é aposentada e tem um bazar em uma das peças de sua casa. Ela conta que tem a loja há cinco anos e ter engravidado aos 38 anos de idade incentivou a abrir o pequeno empreendimento . “Eu sempre trabalhei, mas engravidei e tinha que ter repouso, por isso abri a loja. E também queria estar presente na infância da minha filha, que ia nascer. Trabalhar em casa foi uma solução”, conta Sônia. No pequeno bazar, é possível encontrar vários tipos de produtos. Sônia tem a loja como complemento da renda. Entretanto, ela comenta que está difícil manter o comércio, pois tem uma filha pequena e, por isso, não consegue mais viajar para repor o estoque da loja. Além disso, há muita inadimplência dos consumidores. “Não tenho mais como ir buscar as mercadorias em São Paulo e outra dificuldade que encontro são as pessoas que compram e não pagam”, diz Sônia.

Produtos que Sônia vende no bazar montado em uma das peças de sua casa Esse é um dos motivos que faz a aposentada pensar em fechar sua loja em casa e passar a vender diretamente em domicílio. “Na hora de pedir fiado, eu sou muito querida, mas quando vou cobrar, sou a mal-educada, arrogante. Estou querendo fechar a loja e vender diretamente nas casas”, comenta Sônia. Entretanto, a inadimplência não é uma ex-

clusividade dos moradores da Santa Marta. Segundo o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC)há no país 63,4 milhões de inadimplentes.

TRABALHOS PERDIDOS

Ilma da Silva, 73 anos, sofre do mesmo problema. Ela trabalha como costureira e faz peças de crochê e diz que não gosta de cobrar os clientes devedores.

Ilma da Silva, aposentanda, mostra uma das peças de crochê que fez para vender “As pessoas compram e não pagam. Tenho serviços feitos há quase um ano, que não foram pagos ainda. Mas não gosto de cobrar, infelizmente prefiro perder meu trabalho”, comenta Ilma, que é funcionária pública aposentada. Como Ilma tem outra fonte de renda, assim como Sônia, este trabalho informal serve de complemento da

renda para a sua família. Ela trabalha costurando desde os 13 anos e agora, que está aposentada, consegue buscar novos trabalhos. Por exemplo, a manutenção dos coletes da escolinha de futebol da Vila Campina.” Eu lavo e costuro os uniformes das crianças do time”, conta Ilma. WILLIAM MARTINS GABRIELA DA SILVA


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Comunidade .9

Persistência e superação Comércio em portas de casa e pequenos empreendimentos ilustram a economia local, que vive da terra, da criatividade e de recomeços

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olhas verdes e onduladas de uma horta de alface feita de esperança. Na Estrada do Socorro, fica a casa de reabilitação Socorro Vital, onde cerca de 50 pessoas foram acolhidas nas redondezas da Santa Marta. Entre elas, Edenilson Dalla Costa, 38, que durante três dias da semana sai às estradas do bairro para vender verduras ao preço de R$1,00. Há dias em que os bolsos de Edenilson voltam a casa cheios de notas e moedas, as quais ajudam em algumas despesas do lar que, não recebe auxílio do governo.

Um caminho de árvores e terra bem cuidada leva até a horta de Edenilson, à direita da casa de reabilitação. Antes de chegar ao bairro, o homem, que hoje deposita sua fé em Deus, por escolhas erradas se envolveu com álcool e drogas no passado. Casado e com um filho, Edenilson encontrou na plantação a sua terapia.

LUGAR PARA EMPREENDER

No tapete ao pé da porta se lê: Ferragem Agropecuária Renascer. Rações, sementes e outros produtos fazem parte do comércio de Irani de Souza, 46, na lojinha de Santa Marta. Natural de Soledade, trabalhou durante 11 anos em uma fábrica em Campo Bom, antes de se estabelecer no bairro. Hoje, sua esposa, Gabriela da Silva, tra-

balha como empree Mercado DW, que gada doméstica, e Muitos hoje abriga 11 funo filho frequenta a fornecedores cionários. Quando escola. Mas, quando chegou ao bairro não querem não está estudando, com a esposa e os o menino ajuda o entrar na cinco filhos, seus pai nas vendas do Vila para hábitos se reducomércio familiar. ziam à mesa de bar. Irani conta que fazer a Um dia, no entana comunidade é entrega to, ele conheceu a receptiva às novas religião na Igreja, e economias, mas os ela transformou sua fornecedores nem tanto assim. vida. Um dos filhos está se forEle lembra que já quis trazer no- mando em Direito na Unisinos, vos produtos, mas muitos co- e os outros ajudam no comércio merciantes não querem entrar que divide com a esposa. no bairro para fazer a entrega. “Assim fica mais difícil, eles ain- PEQUENOS da têm muito preconceito com COMERCIANTES Santa Marta”, lamenta. As plaquinhas em frente à casa de portões cinzas da Santa MAIS EMPREGOS Marta indicam a venda de sorveNatural de Encruzilhada do tes e sacolés ao preço de R$2,00 e Sul, Arno Freitas Rosa, 49, veio à R$2,50. Era sábado de manhã, e Santa Marta para abrir a Padaria a família de Zenaide Ramos Fer-

Na porta de casa, Zenaide comercializa sorvetes e sacolés para obter renda extra

Alfaces cultivadas na Estrada do Socorro ajudam no sustento da casa de reabilitação onde mora Edenilson

Irani acha que alguns empresários ainda têm preconceito contra a Vila

nandes, 49, preparava o almoço. Natural de Foz do Iguaçu - PR, Zenaide se mudou para Porto Alegre aos 15 anos. Casada e com um filho, nesse tempo trabalhou como gari, bem como em metalúrgica e em empresa calçadista. Depois que se divorciou, conheceu o atual companheiro, Elemar dos Santos Cardoso, morador da Santa Marta. Desde então, a família aumentou e a casa passou a abrigar quatro filhos. Elemar é calderista, e seu trabalho é a fonte de sustento da família. Mas Zenaide quis ajudá-lo com uma renda extra, então, há três anos, começou a vender sorvetes e sacolés na própria residência. Ela também é consultora de produtos de beleza Natura há três meses. BIBIANA FALEIRO LEILA DONHAUSER


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Saberes empreendedores Perfil PAOLA GUIMARÃES

Histórias de membros da comunidade que fazem de pequenos gestos seus ganhos e retornos financeiros

12,50% 0,00%

O

4,17%

empreendedorismo, muitas vezes, não é questão de sonho, mas, simplesmente, de sobrevivência. Para algumas pessoas, a única fonte de renda da família; para outras, um auxílio à renda mensal. Na comunidade Santa Marta, isso não é diferente: alguns moradores trabalham fora da Vila, além de terem ocupações com a economia local. Cleci Alves da Silva, 45 anos, é casada e mãe de dois filhos. Natural da cidade de Planalto, no Paraná, mora na Santa Marta há 25 anos e há cinco produz pães e bolachas caseiras para complementar a renda familiar. Como vigilante do colégio da comunidade, Cleci recebe menos de mil reais mensais por 6 horas diárias. Lembra que “Foi com a produção das bolachinhas e dos pães que eu consegui aumentar a renda da casa”. A família inteira se envolve, desde a produção até a venda dos produtos que Cleci fabrica. A vigilante conta não ter dificuldades na fabricação e venda, mas sonha conseguir aumentar a produção, para

Nível de escolaridade 24 pessoas foram entrevistadas

83,33% Ensino Fundamental Incompleto Ensino Médio Incompleto

Ensino Fundamental Completo Ensino Médio Completo

Salete ensina de graça costura, crochê, tricô e pintura 33,33%

que esta seja a sua principal fonte de renda.

DIVERSIDADE

Salete de Paula Zoris, 54 anos, casada, tem duas filhas e é natural da cidade de Liberato Salzano, que fica na região noroeste do estado. Ela é moradora da Vila há 28 anos e trouxe de berço o aprendizado de costura, crochê, pintura e tricô. Salete chegou a trabalhar em um atelier para conseguir um salário fixo, mas depois optou por ficar em casa, ajudando, assim, na criação das filhas. Enquanto Salete ficava em casa, não deixou de ocupar-se com as costuras. Foi, então, que ela começou a participar do grupo da igreja católica,

onde, ainda hoje, ministra cursos gratuitos para quem quer aprender qualquer um de seus dotes artísticos. Wagner Silveira de Carvalho, 21 anos, solteiro, é natural de São Leopoldo e vive desde que nasceu. Wagner divide a casa com os pais e três irmãs. Hoje, ele trabalha na construção civil e, nas horas vagas, ajuda a mãe na produção de sacolés. Wagner e mãe produzem sacolés há dois anos e tem o ponto de venda em casa, onde os comercializam por R$ 0,80 cada. A ideia é colocar outras guloseimas à venda, como se tivessem um barzinho.

Gênero 24 pessoas foram entrevistadas

66,67% Feminino

Masculino

9,09%

Tipo de empreendimento Encontramos 33 tipos de estabelecimentos

48,48%

42,42%

Empreendimentos comerciais

PAOLA GUIMARÃES THAIS RAMIREZ

Prestação de serviços

Informais

Apoio para os pequenos negócios Alguns moradores da Santa Marta enxergaram, no próprio bairro, uma possibilidade de crescimento para criar renda. Uma parte da economia da Vila é gerada por pequenos empreendedores. O Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) é um dos programas que podem auxiliar nesta jornada. Esse serviço social ajuda quem deseja iniciar, empreender ou aperfeiçoar seus negócios. Com o levantamento de dados realizado pelo Enfoque, foi constatado que o bairro agrega uma diversidade de microempreendimentos. São minimercados, bazares, brechós, salões de beleza, entre outros, que poderiam se interessar por essa opção. Há quase dez anos, Joceli Rocha Netto, 42, proprietária da loja de roupas BeraKas Modas, resolveu começar “di-

reitinho” o seu negócio. “Fiz meu MEI na hora, participei das palestras e reuniões e foi bem tranquilo”, explica. O Microempreendedor Individual (MEI) é para o proprietário de um estabelecimento legalizado, com CNPJ, previdência e assessoria do Sebrae. Joceli garante que esse registro é útil para quem está começando a empreender. “Até pra tu pagar o teu INSS, porque é muito importante isso hoje em dia”, comenta. Para o gerente regional do Sebrae Sinos, Marco Copetti, os microempreendedores da Santa Marta devem dar a atenção necessária aos seus negócios. “A comunidade quer que os estabelecimentos do bairro sejam bem cuidados, com um ambiente convidativo e com produtos disponíveis. O morador não quer ter que

ir até o centro da cidade para isso”, explica. Copetti sugere um atendimento gratuito, que funcione de modo presencial, ou seja, uma assessoria. Um técnico do Sebrae visita o empreendedor e são debatidas as formas de como o empreendimento será conduzido. É uma chance de tirar dúvidas com um especialista. “O cliente só precisa ligar e agendar um horário, para que o apoio aconteça”, informa.

POR ONDE COMEÇAR

Palestras e oficinas, com explicação de conteúdo, são as sugestões que a assistente técnica do Sebrae, Manoela Krakeker, tem para os microempreendedores. “Indico a oficina ‘Palestra de Sensibilização do MEI’, ela é específica para falar sobre direitos, deveres e obrigações de

quem tem o registro ou que quer se formalizar”, propõe. Essas oficinas são gratuitas, com material incluso e duram apenas três horas. Para microempresas, Manoela recomenda cursos práticos e intensivos de atendimento ao cliente e

Sebrae ENDEREÇO: Sede São Leopoldo - Rua José Bonifácio, 204, Centro. TELEFONE: 0800-570-0800 – das 8h às 19h SITE: sebraers.com.br FACEBOOK: facebook.com/SebraeRSOficial

controle financeiro. O Sebrae dispõe de cursos presenciais e online, com temáticas de administração, que também contemplam uma consultoria de duas horas. Se o proprietário deseja uma assistência personalizada, para organizar o seu negócio, Marco Copetti indica a realização da consultoria. “É um atendimento que será avaliado de acordo com a realidade da empresa do cliente”, salienta. A consultoria é um serviço pago, mas com valores e formas de pagamento acessíveis, para facilitar a vida de micro e pequenos empresários. Inscrições para todos os cursos, palestras e oficinas são realizadas via e-mail ou por telefone, na central de atendimento, sendo elas pagas ou gratuitas. MARIANA ARTIOLI DE MORAES


Comunidade .11

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Moradores criam negócios próprios Nos momentos de adversidade surgem novos talentos e oportunidades

D

iante da instabilidade econômica que todo brasileiro tem enfrentado, existem aqueles que enxergam nessas ocasiões uma chance de inovar. Na Vila Santa Marta não é difícil andar pelas ruas e encontrar histórias de superação. Pessoas que mudaram radicalmente de profissão para se adaptarem à realidade dos dias atuais. Muitas pessoas, que em outra ocasião trabalhavam de carteira assinada, hoje pretendem continuar investindo em seus próprios negócios. É o caso de Wesley Xavier Pereira, 32, ensino médio completo, casado e pai de dois filhos. O último emprego de Wesley durou quatro anos. Ele trabalhava em uma padaria até ser demitido. Para enfrentar a crise, decidiu pôr a mão na massa e iniciar o próprio empreendimento: fazer e vender pães, sonhos e cucas em frente à própria casa. Hoje

Joceli pensou em desistir, mas buscou ajuda as obras da Padaria do Dudu já estão quase concluídas. Suas expectativas para o futuro são ampliar os negócios e gerar empregos. Joceli Rocha Netto, 42, estudou até o 5º ano do ensino fundamental. É casada e tem uma filha. Natural de Roque Gonzales, era dona de casa quando decidiu, há 10 anos, começar a vender roupas. Passou por dificuldades no começo e pensou em desistir, mas com a ajuda do Sebrae deu conti-

nuidade ao projeto e hoje é proprietária da BeraKas Modas – palavra grega, que significam Benção de Deus. Vende para clientes tanto da Vila quanto de fora. Dari Hermes, 52, estudou até o 7°ano do ensino fundamental. Casado, tem três filhos. É natural do Paraná. Atuava como vigilante e a esposa era cozinheira. E foi na cozinha que nasceu a inspiração para o negócio da família. Dari hoje é proprietário da Lancheria

Wesley quer ampliar e gerar empregos do Dari. Já teve sete funcionários, atualmente possui dois, mas os negócios estão a todo o vapor. Leontina Santos da Silva, 60, frequentou a escola até o 6ºano do ensino fundamental. É viúva e mãe de 5 filhos. Já teve uma chácara alugada onde produzia e vendia verduras. Com a morte do esposo, trocou de atividade e há 2 anos possui um brechó. Ela trabalha para complementar a aposentadoria. Gelsi Feijó Vieira, 48, pos-

sui o ensino fundamental incompleto – só até o 4° ano. É casada e tem três filhos. Proprietária do Bazar Silva, ela conta que oito anos atrás largou a roça e se aventurou como vendedora. Tudo começou numa peça de poucos metros quadrados que hoje sustenta a família toda. Enfrentou dificuldades para registrar a empresa devido a muitos impostos e burocracia, explica, Gelsi. IARA BALDISSERA MILLA LIMA

Cresce o trabalho autônomo Durante uma caminhada pela Santa Marta, podemos observar diversos comércios, bazares minimercados e pessoas que trabalham por conta, como costureiras e revendedoras. Esse crescimento no segmento de trabalho autônomo se dá pela atual crise econômica no Brasil. O aumento nos empreendimentos se converte em movimentação econômica para a região. Cleuza Marisete Machado, 47, resolveu iniciar a venda de sacolés como forma de renda secundária. Ela começou após ter que sair do emprego por conta de uma doença grave do marido. Porém, quando o esposo perdeu o benefício de auxílio-doença do INSS, o que era um extra se tornou a única fonte de renda da casa, onde reside com o marido e três dos nove

filhos. Nascida na cidade de Miraguaia, vizinha de Santo Antônio da Patrulha, morou também no bairro Vicentina, mas há nove anos reside na Vila Santa Marta, em São Leopoldo. A dona de casa diz que, para dar certo, é preciso ter sempre novidades e sabores diferentes. Com o lucro das vendas, ela compra mais material para diferenciar a oferta na semana seguinte. A novidade da vez eram os sabores tutti-frutti e melancia. Além disso, para ela é importante ter sempre um sorriso no rosto e tratar os outros com gentileza. Cleuza conta com a assistência dos filhos mais novos, que gostam de ajudar tanto na fabricação quanto no atendimento aos clientes. “Com essa função aqui em casa, eles estão ganhando uma noção de dinheiro, que

Cleuza já possui uma clientela fiel. Faça chuva ou faça sol, os clientes sempre aparecem à procura de novidades antes eles não tinham”, comenta a vendedora. Para o futuro, ela e a filha mais velha têm muitos planos. Querem começar a produzir salgadinhos e bolos de festa para vender por encomenda. “Minha filha vai fazer os cursos para apren-

der a fazer coisas diferentes, para termos bastante diversidade, mas o básico nós já sabemos fazer”, diz. Por outro lado, Floraci da Silva, 44, complementa a renda da família trabalhando como costureira. Casada e com três filhos,

segundo ela, o salário do marido não era suficiente para pagar as despesas da casa. A costura foi a forma de renda encontrada por ela para conseguir dinheiro. Além disso, assim ela poderia continuar cuidando da casa e dos filhos. Autodidata, ela conta que desde criança gostava de ver a avó costurar. Ela, sozinha, tomou a iniciativa de comprar uma máquina e aprender o ofício. Faz 14 anos que costurar, ajustar e consertar roupas são as principais ocupações de Floraci durante o dia. Os clientes são da própria vizinhança. “Para o futuro, eu quero continuar este trabalho pois é o que eu gosto de fazer e já tenho a minha clientela”, finaliza. CAROLINE TENTARDINI DANIELA GONZATTO


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Venda de usados é opção atraente Reforço na renda familiar e consumo consciente

N

a Vila Santa Marta, o que não faltam são trabalhadores. Lá, muitos moradores empreendem e, assim, garantem e aumentam a renda familiar. Um dos ramos que está ganhando força é a venda de artigos e roupas usadas. Darla Ortiz e Eder Ferreira são pais de duas crianças pequenas. Após ter ganho o caçula, Yan, de um ano, Darla ficou desempregada. Para completar a renda de Eder, que trabalha em construção civil, o casal teve a ideia de montar um brique na garagem de casa. Darla, então, ficou responsável por administrar o novo empreendimento. “Começamos a vender só faz um mês e já conseguimos vender muita coisa”, afirma.

Marli, comerciante, apresenta a empresa familiar

PREÇOS BAIXOS

“Começamos a vender só faz um mês e já conseguimos vender muita coisa” Darla Ortiz Comerciante Entre mesas, sofás, geladeira e armários, os itens mais procurados por possíveis compradores são televisores e micro-ondas. O casal também já está se preparando para o verão e, agora, visa investir em ventiladores e climatizadores. Os produtos comercializados pelo brique de Darla, em sua maioria, são adquiridos dos próprios moradores da Santa Marta que desejam se desfazer de algum objeto. “Também compramos coisas pelo facebrique”, conta a empreendedora. Facebrique são grupos no facebook voltados para a compra e venda de artigos usados. Nos dois tipos de aquisição, Darla compra os produtos e depois os revende em seu negócio. O empreendimento funciona de segunda a segunda, na rua 1. Barbeiro há 25 anos, Baltazar Duarte da Silva, 49, mais conhecido como Valter da Barbearia, há um ano também resolveu vender móveis usados para com-

plementar a renda familiar. Valter é proprietário dos estabelecimentos que funcionam no mesmo endereço, na avenida Henrique Bier, nº 4680, antes da ponte. O brique de Valter é um pouco diferente do de Darla. Nele, são comercializados apenas móveis, e alguns vêm diretamente da fábrica. O que acontece é que Valter, paranaense e morador da Santa Marta há 33 anos, além de barbeiro e comerciante, também é marceneiro. Projeta e fabrica móveis para venda. Seu espaço de criação fica junto ao comércio. “Além de ser mais uma renda, eu gosto de trabalhar com móveis. Aí aproveito que tenho esta peça aqui separada da barbearia”, conta o empreendedor. Tanto a loja como a barbearia funcionam o ano todo, de segunda a sábado.

Darla, o filho Yan e o novo empreendimento da família

Barbeiro e marceneiro, Valter passou a ser comerciante também

Nos últimos anos, tem-se falado muito em consumo consciente, principalmente da indústria têxtil. Se, antigamente, os brechós eram associados a roupas velhas e peças retrô, hoje são um atrativo para quem busca vestuário a preços mais baixos. Também no ramo do comércio de produtos usados, Marli Terezinha Rodrigues, de 58 anos, administra um brechó na rua 9. O empreendimento começou há três anos pelas mãos da filha Joseane Rodrigues, quando a família se viu totalmente desempregada, e a jovem teve a ideia de empreender no setor de vestuário. No brechó da família de cinco integrantes são vendidas roupas masculinas e femininas. Calças, blusas, camisetas, vestidos e calçados em geral são algumas das peças disponíveis para compra. “Roupas infantis são mais difíceis de achar, por isso temos poucas opções para venda”, afirma a empreendedora. Marli Terezinha conta que a maioria das roupas comercializadas pelo brechó são adquiridas em feiras de rua do município de São Leopoldo. O estabelecimento funciona durante todo ano, de segunda a sábado. LAURA HAHNER NIENOW IURY RAMOS


Comunidade .13

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A diversidade predomina Formas distintas de iniciativas aquecem a economia do local

Para o futuro, tem o sonho de ampliar o salão.

negócio na Vila Santa Marta é, antes de qualquer coisa, uma expressão da tentativa mais primitiva de sobrevivência. É resultado de marido preso, filho com fome e desemprego, entre outras motivações. Nesse sentido, a maioria feminina das empreendedoras passa longe das retóricas das redes sociais, mas vão bem ao encontro das pautas feministas que alertam (o que na Vila já é óbvio): elas são independentes - e movem este país porque precisam. Com estruturas pequenas, muitas vezes improvisadas, os negócios são tocados quase sempre em família. Como costumam funcionar em casa, recebem ajudas eventuais de filhos, tios, mães e avós. Mas há, também, os casos em que até mesmo empregos formais são gerados. De uma forma ou de outra, costumam representar a única saída.

O Minimercado Nazaré foi inaugurado há dois anos e meio pela Angélica da Silva Correia. A comerciante natural de São Leopoldo, de 33 anos, se lançou ao ramo pela necessidade de botar a comida na mesa dos cinco filhos. Apenas com a terceira série no currículo, viu ali a oportunidade de abandonar a atividade de reciclagem que exercia. De lá pra cá, o empreendimento sobrevive à concorrência dos mercados maiores que o rodeiam, tendo apenas as ajudas de ocasião dos filhos. No terreno ao lado, há um ano, iniciou os trabalhos com a reciclagem, mas estes ficam mais ao cargo de seu companheiro.

HISTÓRIA 3

O

HISTÓRIA 1

Quase ao fim da Rua 3, na casa de número 246, situa-se o Minimercado da Alemoa. Hoje, a “marca” serve mais

Loni revende cosméticos e sonha com a retomada do minimercado como memória e inspiração. No lugar de produtos de alimentação, Loni Christmann, 63, leva agora ao público da Santa Marta os cosméticos da Hinode. “Não tem só coisa cara, como alguns pensam, mas tudo é de muita qualidade”, garante. Ela é natural de Candelária-RS, e estudou apenas até a antiga segunda série do ensino fundamental. Moradora do bairro há 11 anos, Loni tocou em paralelo com o antigo mercado, e segue também em paralelo à venda de cosméticos, a confecção de tapetes com retalhos. Apesar da atividade que se manteve, mantém o sonho

de voltar à sua antiga atividade (trabalhar com o mercado de fato). Mãe de cinco “já formados na vida”, quando aparece a oportunidade, faz faxinas para fora.

HISTÓRIA 2

A porto alegrense Viviane Flores administra, na Rua 9, um mercadinho sem nome e um salão de beleza igualmente não batizado. Os dois novos empreendimentos deram lugar ao antigo bazar que ocupava o local em 2016. A empreendedora tem 29 anos, ensino fundamental completo, e toca os dois negócios sem funcionários

HISTÓRIA 4

Sueli Vargas da Costa mora na Rua 9. A bela casa, numerada por 243, é também o local em que arruma peças de roupa com suas habilidades na costura. O domínio da atividade vem desde a época de criança, quando morava em Liberato Salzano, cidade em que nasceu. Casada “há muito”, mudou-se para a San-

ta Marta com o marido atrás de oportunidade há 13 anos, quando passou a transformar o talento em dinheiro.

HISTÓRIA 5

Josiane Rodrigues tem 29 anos e ensino médio completo. Natural de São Leopoldo, ela se gaba por ter aberto o primeiro brechó do bairro, três anos atrás. Casada e mãe recente, conta com as ajudas eventuais da mãe e do irmão. Vê na sua atividade, como desafios principais, a necessidade de constante pesquisa, ampliação do conhecimento e organização.

HISTÓRIA 6

Marizane Marques tem 32 anos, dos quais 19 dedicou ao trabalho com estética. Criada como profissional nos salões da vida, a cabeleireira estudou até a sexta série e tem três filhos. Natural de Porto Lucena-RS, empreende no local há cinco anos e considera um trunfo ser “a única nas redondezas”. “O negócio é cobrar pouco e ganhar na quantidade. Mas tá muito difícil com essa crise, o dinheiro não gira”, comenta. ARTHUR MENEZES MATEUS FRIEDRICH

Entusiasmo e autonomia Po r v i v e r e m e m u m bairro mais afastado do centro da cidade, alguns moradores da Vila Santa Marta optam por gerir seu próprio negócio sem a necessidade de sair de casa. Os trabalhadores com quem o Jornal Enfoque conversou começaram a vida de autônomo para conseguir pagar as contas. Mas apostam na prosperidade do empreendimento.

PORTÕES E GRADES

Para empreender na Santa Marta, até uma garagem pode servir de escritório. O morador Valdori de Paula, 42, é especialista no ramo metalúrgico e comanda sua própria serralheria na residência onde vive. Começou há cerca de 15 anos, e foca no conserto de portões e grades, principalmente de casas, mercados, padarias

e demais estabelecimentos da própria Vila. O serralheiro conta que é procurado com frequência pelos vizinhos. “Quando os moradores precisam desses serviços, eles me procuram, seja uma solda na bicicleta, no carrinho de mão, uma coisa ou outra sempre me chamam”, revela Valdori. Pai de quatro filhos, Valdori dá conta de toda a demanda sozinho e se orgulha da qualidade do trabalho prestado. “Qualquer problema que dá nos telhados, nas grades ou nos portões da Vila é comigo”, afirma o profissional.

RECICLANDO EM CASA

Quem passa em frente à casa de Valdir Machado logo nota a barulheira que vem do pátio da residência. Morador da Santa Marta há nove anos, o empreende-

Valdori transformou parte de sua residência em ambiente de trabalho dor gere, junto à sua esposa, Marilei Passinei, uma empresa de reaproveitamento de materiais recicláveis, a MP Plásticos. No local, o casal e mais quatro funcionários recebem PETs, placas de poliestireno (PS), PVC e demais tipos de plástico

para dar o acabamento final antes de enviar as peças para que as empresas reutilizem o produto. Machado revela que gosta de trabalhar em casa, pois assim pode ficar sempre perto de sua família. “Antes eu trabalhava com obra e era

tudo mais corrido, sempre estava longe, tinha que estar sempre na função”, conta. Como os negócios vão bem, o casal dono do empreendimento sonha em reformar o espaço para isolar o barulho e evitar que os vizinhos se incomodem com isso. A MP Plásticos também busca dar oportunidades para os demais moradores da Vila, seja para os catadores, seja para os funcionários. Machado considera que nos tempos atuais, com os altos índices de desemprego e criminalidade, ter a possibilidade de empregar alguém é um diferencial. “Eles não ganham muito, mas serve pra sobreviver, pra manter suas contas em dia, pra poder comer e pra dar o melhor pros filhos”, diz. VITOR BRANDÃO LUCIANO PACHECO


14. Comunidade

ENFOQUE SANTA MARTA | SÃO LEOPOLDO (RS) | OUTUBRO / NOVEMBRO DE 2018

Falta de um CEP dificulta o abastecimento dos mercados Por que a Vila não tem CEP?

Enfrentando obstáculos na entrega dos produtos, comerciantes se empenham para manter as prateleiras abastecidas

Em 1989, surgia a Vila Santa Marta. Resultado de ocupação de terras abandonadas, as primeiras ruas foram abertas pelos próprios moradores. Até hoje, o local não é regularizado. Por ser visto como área irregular pelo governo, o bairro não possui um Código de Endereço Postal (CEP). As ruas não têm placas sinalizando por onde se está passando. Os nomes das ruas são variados, sendo, em grande maioria, identificados por numerações, o que causa confusões com outros bairros da cidade. Desta forma, a ausência de um CEP correto causa diversos obstáculos aos moradores desde a fundação da Vila, há quase 30 anos.

I

r ao supermercado para fazer as compras de casa é uma tarefa comum do cotidiano. Esse hábito é mantido também entre os moradores da Santa Marta. No próprio bairro, diversos mercados abrem as portas, todos os dias, para receber os clientes. Entretanto, manter as prateleiras abastecidas de produtos é um desafio para os comerciantes. Os problemas causados pela ausência de um Código de Endereço Postal (CEP) interferem no abastecimento dos mercados. Para enfrentar esse desafio, os proprietários dos estabelecimentos precisam se virar. Muitas vezes, eles acabam buscando as mercadorias encomendadas. Proprietário de um dos maiores mercados do bairro, José Alves da Silva, de 52 anos, é exemplo de esforço para poder oferecer os itens procurados pelos clientes da Santa Marta. Desde que abriu o Supermercado Ziller, há 13 anos, José sente diariamente os desafios causados pela ausência de um endereço registrado. “Os fornecedores até entregam, mas é uma briga. Encomendar é tranquilo, o problema é receber. O CEP sempre foi um problema, mas, desde que abri aqui, complicou ainda mais, porque sinto a dificuldade no recebimento das compras”, afirma. Para contornar as dificuldades e conseguir manter as prateleiras cheias de produtos, o comerciante busca algumas mercadorias diretamente nos fornecedores. “Alguma coisa a gente chega a buscar, principalmente as hortaliças e frutas, que estragam mais rápido. Mas tem que correr atrás”, conta. Grande parte das encomendas que chegam até o mercado de José são entregues por antigos fornecedores. “Alguns já conhecem aqui, sabem onde fica, porque compramos há bastante tempo. Mas, se jogar nosso endereço no Google, aparece em outras cidades”, comenta. Assim como José, Daniel Pereira de Souza, de 52 anos, também passa por desafios na hora de abastecer seu estabelecimento. Proprietário do Mercado e Açougue Souza há 20 anos, ele conta que a maioria das entregas é feita por distri-

Moradores reclamam da dificuldade em encontrar frutas e verduras frescas nos mercados

Moradora da Vila há 17 anos, Leci costuma fazer as compras no bairro buidores antigos. “Nada chega aqui, só conta de luz e água. O que chega é de fornecedores que já conhecem, mas conseguir novos é complicado”, ressalta. Outros itens, entretanto, são buscados com os fornecedores para evitar atrasos. “Tem coisas que é mais rápido se buscar direto com eles”, completa.

POUCO HORTIFRUTI

Os desafios enfrentados pelos comerciantes acabam sendo sentidos também pelos moradores da Vila, que passam dificuldades para comprar alguns produtos,

Proprietário do Supermercado Ziller há 13 anos, José vai até os fornecedores

principalmente no setor hortifruti. Moradora da Santa Marta há 17 anos, Leci Hermes, de 49 anos, sempre teve o hábito de fazer suas compras no bairro. Entretanto, há algum tempo, não tem mais encontrado frutas e verduras nos mercados. “É difícil achar legumes e frutas frescos, e aqui no bairro só tem uma fruteira, que fica longe da minha casa. Nesse sentido acaba sendo complicado”, conta. Para a costureira Regina de Lima, de 28 anos, a compra de hortaliças e frutas também é um desafio. Conforme ela, não

“Alguma coisa a gente chega a buscar, principalmente as hortaliças e frutas, que estragam mais rápido. Mas tem que correr atrás” José Alves da Silva Comerciante

há muita variedade nos mercados da Vila. “Acabo comprando sempre dos caminhões de frutas e verduras que passam pela Vila duas vezes por semana. Eles normalmente têm opções mais frescas”, relata. Tia de Regina, Rosane Pereira, de 52 anos, sente a mesma dificuldade. “Aqui os produtos não são tão frescos. Nos caminhões, eles têm mais variedade, mais quantidade e preços mais baratos”, destaca. Já para Ismael Soares da Cunha, de 32 anos, existe pouca variedades nos alimentos das padarias e, também, em alguns itens de limpeza. “Acho que a parte da padaria deixa um pouco a desejar, nem sempre tem variedade. E tem alguns produtos de limpeza que a gente não encontra aqui na Vila. Eu acabo fazendo um rancho, todo o mês, em algum atacadão, justamente por encontrar mais coisas”, afirma. Apesar de nem sempre encontrarem todos os produtos que procuram, os moradores da Vila afirmam que o esforço dos comerciantes para trazer as mercadorias ao bairro tem dado conta da demanda.“No mais,tem de tudo por aqui. Quase não precisamos sair para comprar em outros lugares”, avalia Leci. Para a grande maioria, os estabelecimentos da Santa Marta fornecem todos os produtos necessários. “Até o rancho conseguimos fazer no bairro. Os mercados fazem boas promoções, e só algumas coisas que não achamos”, acrescenta Regina. MARTINA BELOTTO LAURA ROLIM


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Política .15

Sem representação no Legislativo, as reivindicações são prejudicadas Mesmo com grande colégio eleitoral, Vila Santa Marta não consegue eleger políticos locais

P

avimentação, saneamento básico e recolhimento do lixo são alguns dos problemas que a Vila Santa Marta enfrenta diariamente, e que poderiam ser resolvidos mais rapidamente com a voz de um representante no Legislativo Municipal e Estadual. Apesar de possuir um grande colégio eleitoral, o bairro ainda sofre para eleger representantes no poder público municipal. Nos últimos anos, somente três moradores da comunidade dispuseram seus nomes para concorrer em pleitos municipais. Para a presidente da Associação de Moradores, Dilce Maria Rosa, 41 anos, a falta de representatividade na política dificulta o desenvolvimento do bairro. “Aqui os políticos aparecem em época de eleição, mas não concretizam o que a gente necessita. Desde que a Vila Santa Marta se estabeleceu, quase nada foi feito”, conta. Mesmo com a cobrança recorrente da Associação de Moradores, não há resultado efetivo nas demandas da comunidade. “Seria muito mais fácil resolver se tivéssemos um vereador ou deputado preocupado com nossas demandas”, comenta a presidente.

“Um dos maiores exemplos da necessidade de obter uma cadeira no poder público, é a falta de contribuição dos moradores que residem no local Um dos maiores exemplos da necessidade de obter uma cadeira no poder público, é a falta de contribuição dos moradores que residem no local. Como ainda há um impasse quanto a área verde e propriedades pessoais que foram vendidas em lotes, quem reside na localidade não realiza o pagamento do Imposto Territorial Ur-

Marcelino Moreira, candidato que deseja representar a comunidade

Moradores como Joel Pedroso votam em candidatos que conhecem a Vila

bano (IPTU). Esta falta de contribuição acaba diminuindo os investimentos da Prefeitura Municipal direcionados ao bairro. Além de integrante e fundador da associação, Vilson Prestes, 75 anos, já colocou seu nome à disposição para ser o parlamentar que iria representar a comunidade local na Câmara de Vereadores. “Já ouviu aquela expressão ‘santo de casa não faz milagre’? Aqui foi assim. Eu fiz mais votos fora do que aqui no bairro, que ajudei a construir”, explica. Em 2018, a população que lá reside conta com dois candidatos a deputado estadual, na esperança de possibilitar maior facilidade em resolver as principais demandas da localidade. Os votos no bairro se dividem, em grande parte, para o petista Nestor Schwwertner, do PT, e para o pastor do PRB, Marcelino Moreira. Com placas e anúncios, fica evidente que alguns moradores entendem a importância de eleger um candidato que os represente. “Se eles não fizerem por nós, quem vai fazer? Os outros só vem em época de campanha. Por isso acredito que podemos votar em quem é daqui”, salienta o catador de material reciclável, Joel Pedroso dos Santos, 55 anos. Aos 57 anos, Marcelino Moreira, foi o vereador mais votado no colégio eleitoral da Vila, e foi vereador suplente, assumindo o cargo por alguns dias na Câmara de Vereadores. Candidato a deputado estadual, o pastor tem como objetivo obter recursos para realizar a pavimentação do bairro. “Eu entrei para a política para ajudar minha comunidade, quero contribuir com melhores condições de vida para quem mora aqui”, afirma. Mesmo não residindo na Vila, o candidato representa diversos eleitores do local. “Apoio ele porque o conheço. Sei que se nós aqui do bairro precisarmos de um vereador ou deputado, ele vai nos atender”, justifica a esteticista Márcia da Silva, 45 anos. EDUARDA ROCHA VANESSA WAGNER


16. Família

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Dividir tarefas, assunto irresolvido Moradores contam como lidam com a participação nas atividades de casa

pronto”, diz, repetindo o que o pai dizia ao sair de casa para trabalhar.

ortemente associado às mulheres, o trabalho doméstico e o papel dos homens neste assunto são um debate constante. Seja por uma cultura familiar, ou devido ao meio que vivem, a responsabilidade de ambos os sexos nas atividades relacionadas à casa ainda é confusa. Mesmo em casos onde existe a separação das tarefas doméstica, tendo o homem como “provedor”, enquanto a mulher é denominada “dona de casa”, ou em ocasiões onde a forma de compartilhamento ganha espaço, as mulheres são protagonistas nos cuidados do lar. Ainda que haja maior abertura de alguns homens para a realização dessas tarefas, a palavra “ajudar” toma o lugar da palavra realizar. Em uma tentativa de se colocarem dentro deste papel, realizam isto a partir da cobrança de outra pessoa, quando, na verdade, todos que vivem no lar são protagonistas desta história. Sendo assim, quatro moradores do bairro contaram ao Enfoque sobre o que fazem, ou não, para estabelecer um protagonismo nas tarefas de casa e minimizarem este estigma. Um destes homens é Sidney Dorneles, 37, que mora com a esposa, as duas filhas e o cunhado, há 18 anos na Vila. Oriundo de São Luiz Gonzaga, município da região noroeste do estado, Dorneles trabalha em uma empresa de embalagem plástica. Ele afirma que a esposa é dona de casa e, ao ser perguntado sobre o papel do homem no trabalho doméstico, diz nunca ter parado para pensar sobre isso. Mesmo nunca tendo refletido, deixa claro que os serviços ligados à casa são de responsabilidade da esposa, enquanto ele realiza as tarefas ligadas ao pátio. “Eu digo pra ela, a cozinha e a casa é contigo; meu negócio é o serviço lá fora”, acrescenta. Dorneles explica que isso vem de uma cultura familiar, “meu pai dizia para minha mãe que ia se virar fora de casa, enquanto a mulher, minha mãe, cuidava da casa. Quando eu chegar, pelo menos o almoço tem que estar

Apesar da ideia de separar as tarefas ligadas à casa, apresentada por Dorneles, isso não é um consenso. Pedro Rotta, 52, mora na Vila com a atual esposa e a filha dela. Segundo ele, “assumimos as responsabilidades juntos”. Acrescenta ainda que isso faz parte e é uma consequência de se relacionar com outra pessoa. Rotta conta que a esposa, há nove anos, recebia auxílio do INSS e, há pouco tempo, perdeu este auxílio, voltando ao serviço. Já ele, apesar de aposentado, ainda trabalha como vigilante para complementar a renda da família e, tendo folga em alguns dias da semana, pode se dedicar mais a ajudar. Sendo

F

COMPARTILHANDO

assim, com os dois passando mais tempo dentro de casa e convivendo, Rotta explica que é necessário haver este companheirismo. Outro homem que acredita na necessidade de auxílio nas atividades domésticas é Carlos Henrique Prestes dos Santos, 21. Ele nasceu na comunidade e mora com o pai e com a mãe na Vila. Carlos explica que está desempregado, e com a mãe dona de casa e o pai trabalhando fora, sente-se na responsabilidade de ajudar no serviço doméstico. “Como

“Quando eu chegar, pelo menos o almoço tem que estar pronto” Sidney Dorneles Operário

eu estou desempregado, eu ajudo lavando o carro, varrendo a calçada, limpando dentro de casa, lavando a louça”, afirma. Sobre a idealização do homem dono de casa e o auxílio dado à mulher, ele afirma que é o mínimo a ser feito. “Minha mãe já cozinha, lava a roupa, então o mínimo que eu posso fazer é lavar a louça”. Essa relação de participação nos afazeres da casa vem desde pequeno, conta Carlos. Ele explica que, no começo, ainda criança, foi orientado a secar a louça e, conforme foi crescendo, começou a lavá-la. Apesar disso, ele reconhece que essa participação não é algo comum e admite, “normalmente as responsabilidades do homem dentro de casa não são discutidas”. Assim como Carlos, o morador Wilson Zoia, 64,

conhecido na Vila como Zeca da reciclagem, também caracteriza a não discussão das responsabilidades do homem em casa como um problema. Zeca diz que é viúvo há 6 anos. Quando casou, a esposa era inteiramente dona de casa e ele a ajudava muito pouco. “Quando ela morreu, sofri muito. A única coisa que sei cozinhar é churrasco; agora, outras coisas sei muito por cima”, lamenta Zeca. Sobre a discussão deste assunto em casa, ele explica que essa relação era algo muito natural para eles e admiti nunca nem ter discutido isso antes. “Ela era muito boa cozinheira e eu preferia não me meter. Ela perguntava pra mim o que eu queria comer, eu dizia, e ela ia fazer”, relembra o Zeca. ARTUR COLOMBO BRUNO FLORES

Zeca afirma que sabe cozinhar muito pouco e, desde o falecimento da esposa, prefere comer fora de casa

Carlos diz que o papel do homem nas atividades domésticas não é discutido em rodas de conversa com os amigos

Dorneles explica que, depois de casar, tem ficado mais em casa, mas traz de família a imagem do homem como provedor

A esposa de Pedro afirma que o marido é solícito e ajuda nas tarefas domésticas


Crenças .17

ENFOQUE SANTA MARTA | SÃO LEOPOLDO (RS) | OUTUBRO / NOVEMBRO DE 2018

Uma tradição que busca a cura As benzedeiras, ou rezadeiras, possuem habilidades e saberes que misturam dom, solidariedade e ofício

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ão em benzedeiras que muitas pessoas depositam a confiança e a fé na cura. A benzedura é uma herança que perpassa gerações ou vem em forma de dom. No passado, a prática era desenvolvida especialmente para atender à comunidade, onde o médico demora a ir. A crença é tão forte que não importa a distância para quem quer ser benzido pelas mãos dessas mulheres. Na Vila Santa Marta residiam cinco delas. Atualmente, contam com apenas duas: uma se dedica às crianças, e a outra, inevitavelmente, precisou interromper a prática. De família católica, no município de Soledade, Maria Vieira, 65, recorda que a mãe arrumava as roupas dela e dos irmãos no sábado para, no dia seguinte, irem à igreja. Foi vendo à avó e ouvindo a madrinha do filho rezar que aprendeu a curar gente. Com água benta, trazida do Santuário Padre Reus, e arruda, crianças são benzidas ali, dentro da sua casa. Dor de dente, de ouvido e, insônia são atendidas por ela. Se o resultado não vem, aconselha a ir ao médico. Cerca de duas crianças são benzidas por semana, e, de vez em quando, alguém volta em busca de oração. “Ontem veio uma de Torres que não dormia. Me trouxeram pra benzer antes do sol descer. Hoje vou saber se deu certo”, comenta Maria. Ao perceber alguém que precisa de benzedura, de longe, ela reza. Com riso tímido, diz ficar contente quando vê passar a pessoa que foi ajudada pela sua oração. Sem cobrança e sem trocas, é pelo bem do outro que ela trabalha. Sem frequentar a igreja com a mesma intensidade de antes, Maria prefere estar junto da sua santinha em casa. “Eu não faço críticas às outras religiões. Para mim, é tudo igual, pois Deus é um só”, declara. Ela acredita que, se a pessoa se curou dentro daquela igreja, ela segue se sentindo bem lá”. Tal compreensão foi ensi-

Helena conta que o ofício de benzedeira só deixou lembranças boas

roça, como se refere, não dava mais lucro. A saúde do marido necessitava de maiores cuidados, e, bastou que os filhos viessem para São Leopoldo para ela e o marido se mudarem de vez para a Santa Marta. Conhecida na Vila, se diz mais popular que João Preto, entidade dos cultos de umbanda. Já completaram três anos que um glaucoma se desenvolveu no olho direito e afeta o esquerdo. A idade avançada também contribuiu para se aposentar da profissão que, segundo ela, foi determinada por ordem divina. “Essa coisa de benzimento mexe muito com a gente. Se não se defender, passa pra ti”. Helena confessa que, entre um sonho e outro, ainda se vê benzendo. Hoje, suas atividades são voltadas aos seus pequenos netos. O benzimento, feito com as mãos, já atenderam mais de dez pessoas em um só dia.

UMA CULTURA ANCESTRAL

Maria é quem benze algumas das crianças da Vila Santa Marta nada por sua mãe, ainda quando criança, e ela faz questão de carregar consigo pelo resto da vida.

O DOM DA CURA

Foi em casa, aos vinte anos de idade, na cidade de Tenente Portela, que a benzedeira Helena Carvalho,77, compreendeu seu papel na terra. Para ela, soa engraçado ter descoberto o dom num dia e, no outro, pessoas virem para serem benzidas. Conta ainda que o poder de Deus a dominou e que foi

Nossa Senhora de Fátima quem lhe permitiu benzer. Na época, o padre e o curandeiro da cidade a tranquilizaram, ao dizerem que aquilo nada tinha a ver com o mal, mas sim com o bem. Já completaram três. Ainda no interior, recorda de quase não trabalhar mais:, só benzia as pessoas que a procuravam. “Nunca cobrei. Se quisessem me dar, aceitava. Se não, tava bom igual”. Em meio a tantas memórias, conta que não têm história ruim. São só lembranças boas. A

“Eu não faço críticas às outras religiões. Para mim é tudo igual, pois Deus é um só.” Maria Vieira Benzedeira

Para cada mal, há um tipo de reza, de objeto e de cuidado especial, associado a ele, à hora da benzedura. O costume requer a presença do sol, pois é ele quem ilumina a todos e leva embora o que têm de ruim. A prática em crianças exige menos das benzedeiras. “Em adultos, é necessária força maior, divina”, acrescenta Dona Helena. As religiões são diferentes, seus efeitos de cura vêm de povos distintos, como de brancos, negros e indígenas. Em cada saber há uma forma de benzer, seja com chás de ervas, com banhos e benzimentos ou com rezas e cantos. A tradição é típica do catolicismo e foi se mesclando a outras religiões, como a espírita. Com o passar do tempo, a prática enfraqueceu. Pouco se sabe sobre novas benzedeiras, e tanto Maria quanto Helena afirmam que o ofício deixará de existir em breve. Os motivos são variados: seja pelos horários inconvenientes, pela falta de interesse das gerações atuais ou pelo preconceito de outras religiões e agentes de saúde. THANISE MELO HENRIQUE ABRAHAO


18. Lazer

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Videogame: diversão para todas as idades Crianças e jovens dividem o tempo de lazer entre o futebol na quadra da comunidade e os jogos eletrônicos

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studos recentes apontam que o Brasil tem 66,3 milhões de jogadores de videogame, os quais movimentam R$ 4,1 bilhões de reais por ano. Isso coloca nosso país como o 13° maior mercado do mundo. Os games estão entre as principais atividades dos adolescentes, jovens e adultos do país: cerca de 82% da população, entre 13 e 59 anos, costuma se divertir com algum tipo de jogo eletrônico. Seguindo essa tendência, a Santa Marta também possui seus jogadores de carteirinha. De olho nessa febre virtual, Graziele Lapuenta da Silva da Cruz, 30 anos, resolveu instalar, em seu pequeno mercadinho ao lado de casa, dois aparelhos: Um Xbox 360 e um Playstation 2. Colocados no local há dois meses, eles são hoje a única alternativa de diversão eletrônica da Santa Marta, para quem não possui um aparelho para jogar em casa. Ao custo de dois reais a hora, as opções disponíveis limitam-se ao GTA (simulador de realidade), Street Fighter (luta), Pro Evolution Soccer (futebol) e corrida de carros. Segundo a comerciante, o maior movimento vem das crianças mais novas durante os fins de semana.

Lucas mantém o hábito de jogar videogame desde criança

MINECRAFT: A FEBRE

ANOS DE PRÁTICA

Jogador veterano, Lucas Barbosa da Rocha, 24 anos, começou a tomar gosto pelos games ainda criança, com o Playstation 1.Atualmente, possui um Playstation 2, presente do irmão mais velho. Seu jogo favorito é o FIFA, mas também gosta de jogos de corrida e luta. O jovem, que mora sozinho em uma pequena casa na rua principal da Vila, costuma

Quando está em casa, o garoto passa a maior parte do tempo assistindo a vídeos de outros jogadores, construindo e destruindo coisas no mundo de lego virtual

Lan house improvisada no mercadinho de Graziele diverte os pequenos jogar quase todos os dias.“Daqui um tempo, pretendo comprar um videogame mais moderno, o problema é que ainda está muito caro para mim. Por enquanto, ainda me divirto com meu ‘play 2’ velho de guerra”, relata.

Mesmo com um aparelho defasado para os padrões atuais, Lucas sempre procura ver as avaliações dos jogos na internet antes de comprá-los no mercado informal. Quase todas as tardes, um vendedor de CDs,

DVDs e jogos monta seu estande em frente ao maior mercado da Vila, principalmente aos sábados. É ali que são vendidos, até sob encomenda, a maioria dos jogos que proporcionam diversão aos moradores locais.

Gustavo de Souza da Silveira, de 8 anos, é fã do game Minecraft. O menino já chegou até a gravar um vídeo desbravando o jogo e o colocou no youtube. Quando está em casa, o garoto passa a maior parte do tempo assistindo a vídeos de outros jogadores, construindo e destruindo coisas no mundo de lego virtual. Questionado sobre os canais de que mais gosta, Gustavo já tem o nome dos youtubers na ponta da língua e os cita como se fossem entes queridos. “Meus favoritos são Pac e Mike, EduKof, Portuga, Febatista, Nery e Flakes Power”, aponta. Jogador de um Xbox 360, console da Microsoft, não é só Minecraft que interessa o menino. “Adoro PES 2018 (futebol) e GTA”, afirma empolgado. Gustavo também alimenta o sonho de participar de eventos focados em games e cultura nerd. “Quando for mais velho, gostaria muito de poder ir a algum festival de jogos, conhecer e tirar fotos com meus youtubers favoritos”, conta. LUCAS GIRARDI OTT AMANDA KROHN


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Arte .19

Inspiração para os mais novos Mateus Greff Xamã ensina o grafite na Casa de Cultura Hip Hop Dona Flora, em Esteio

tina, o espaço em Esteio foi conquistado com muita luta. Desde 2011, os fundadores realizaram consultas populares e conversas com a Prefeitura, além de promover uma mobilização na Câmara de Vereadores para reivindicar, com sucesso, a aprovação da semana da cultura hip hop. Após cinco anos de tentativas de parceria com o poder público municipal, o movimento conheceu a pessoa que faltava para concretizar o sonho: a Dona Flora. Foi ela quem cedeu a posse do imóvel, em fevereiro de 2017, através de um contrato de comodato.

Q

uem chega ao bairro Santa Marta, em São Leopoldo, logo depara o desenho de um grande pássaro azul grafitado na parede externa de um estabelecimento, assinado por “Xamã”. Autor da obra e artista desde muito jovem, Mateus Greff sentiu que poderia fazer de seu trabalho um método educacional após ser convidado, em 2009, pela escola da Vila a participar do projeto “Escola Aberta”, quando teve a oportunidade de ensinar o grafite aos alunos. Desde então, o grafiteiro, que na época tinha ensino fundamental incompleto, resolveu retomar os estudos e hoje é licenciado em Artes Visuais. Com tamanho conhecimento teórico e prático da arte de rua, Xamã afirma que, nos anos seguintes, teve o prazer de ensinar o grafite em quase todas as escolas de São Leopoldo. Nesse período, o artista conheceu muitas pessoas ligadas ao Hip Hop e descobriu, anos mais tarde, que estava surgindo um espaço focado nessa cultura na cidade metropolitana de Esteio e não hesitou em conhecer o projeto. “Com a Casa, voltei a ter ânimo com a militância social, pois vi que no projeto aqui era possível fazer coisas maiores”, conta. Por mais que remeta apenas a um gênero musical, a cultura hip hop é explorada pela Casa com foco nas áreas da juventude e dos direitos humanos, visando à educação. Para isso, as atividades são divididas e geridas por DJs, MCs, Bboys, Bgirls e escritores e escritoras de Grafite, como é o caso de Mateus. “É difícil a pessoa não gostar de nenhum dos elementos que formam a cultura hip hop. Ou ela gosta de dançar ou gosta de música, de discotecar, de cantar ou de pintar”, conta o Coordenador Geral e Administrativo da Associação da Cultura Hip Hop de Esteio, Geovane Neves. Inspirado no Centro Cultural Hip Hop de Diadema, em São Paulo, o primeiro do gênero na América La-

O grafite ganha espaço como manifestação artística voltada aos direitos humanos

“Todos os dias, eles aprendem comigo e eu aprendo muito com eles também, isso é a verdadeira educação” Mateus Xamã Artista

Cada espaço livre nas paredes serve perfeitamente de painel para grafitar

Mateus Xamã mostra aos aprendizes como aperfeiçoar o desenho

Após descobrir o projeto, Mateus Xamã resolveu ajudar na construção da casa e, em 2018, foi contratado como educador das oficinas de grafite. Com ele, os aprendizes são instruídos não somente a aperfeiçoar os traços feitos com a tinta spray, mas também a cultivar valores sociais de educação. “Aprendemos tanto a técnica e a cultura (do Hip Hop), quanto a conviver em harmonia aqui dentro”, conta Alice Canello, que entrou no projeto por conta de sua paixão pela dança, mas acabou descobrindo seu gosto pelas demais atividades. Já com bastante experiência no ensino da arte, Xamã admite que ainda pensa em criar um projeto parecido com o espaço cultural de Esteio na Vila Santa Marta, onde tudo teve início. O sonho antigo ganha ainda mais força pelo prazer do grafiteiro em lecionar para os mais jovens. “Todos os dias, eles aprendem comigo e eu aprendo muito com eles também, isso é a verdadeira educação”, afirma Mateus. VITOR BRANDÃO


20. Arte

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Vozes da Santa Marta Moradores encontram nas igrejas espaços para espalhar música e canto pelo bairro

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lisangela Zorzi, em seus 17 anos de vida, sempre soube que o dia iria acabar em música quando a família do pai se reunia. Criada entre os acordes de gaita nos churrascos de domingo, a menina não poderia escapar do meio musical. Assim, aos 12 anos, o violão entrou na sua vida e, ainda hoje, é uma forma de ampliar seus sentimentos e pensamentos. Atualmente, ela toca e canta todos os sábados na igreja católica. Desse modo, Elisangela é a representação de boa parte da comunidade musical da Santa Marta, que encontra nos espaços religiosos um local para a cultura musical. Independentemente da religião, a igreja, hoje, representa um polo de músicos que encontram, nos cantos religiosos, uma forma de se expressar e viver a sua fé. Perto de Elisangela, uma história de amor e ligação com a música também se encontra na casa de Roberto Carlos dos Santos. Roberto já foi cantor profissional e trabalhava em festas, bailes e bares. Hoje, aos 46 anos, ele é pastor da igreja evangélica Deus que Liberta, e

a musicalidade se tornou uma forma de reforçar sua crença. A história dele inicia no antigo rádio do pai com as modas sertanejas de raiz e, agora, é repassada para os filhos que também cantam e tocam. Para Roberto, a música não é o motivo principal para que um cantor vá aos cultos, mas sim o seu credo. “Hoje, a música é o comprimento da minha fé e a

extensão daquilo que eu vivo dentro da igreja”, explica ele. Os instrumentos e a voz também são matéria importante no contexto familiar de Roberto. Ele canta junto com a esposa e filhos e acredita no poder da música de aproximar as pessoas, inclusive as que vivem na mesma casa. A menina Elisangela Zorzi comprova tal fato com sua vivência, pois, além da família do pai, sua irmã

mais velha, Elisiane, foi quem a incentivou a iniciar uma trajetória no meio musical. Tanto para Roberto quanto para Elisangela a melodia representa uma forma de conexão com seus pensamentos e sua fé. “As músicas parecem que ampliam o que eu estou pensando. As ideias fluem melhor. Eu me sinto mais leve depois de cantar e tocar”, afirma Elisangela. Para ela, as

Elisangela Zorzi já não vê a música como futuro profissional, mas como hobby

canções favoritas são aquelas que trazem realidades e histórias em suas letras. Dentro da pasta de plástico escuro, as cifras das celebrações das missas se misturam com bandas, como Legião Urbana e o cantor Raul Seixas, a quem ela admira. O dedilhar no violão expressa todo o cuidado que Elisangela tem com a musicalidade e com o instrumento. Apesar do amor, a rotina apressada que une trabalho, o curso de magistério e os compromissos do dia a dia acabaram deixando o lado musical em seus hobbies. Se, na infância, ela almejava viver de música, hoje, os planos mudaram, e o sonho é a psicologia. Entretanto, enquanto o curso universitário não chega, a jovem cantora aproveita o violão da escola onde trabalha para cantar com os pequenos de 2 e 3 anos que formam a turma em que leciona. Roberto, assim como Elisangela não tem mais pretensões de viver profissionalmente de música. Para ambos, ela representa um plano de fundo de sua trajetória de vida, sempre presente, mas não ocupando o espaço principal. Os dois compartilham o sentimento que verso e melodia nunca sairão de suas vidas. EDUARDA BITENCOURT LOHANA SOUZA

De olho nas telenovelas Acessíveis a todos os públicos através do sinal da TV aberta, há quem diga que as novelas influenciam no cotidiano das pessoas. Exibidas desde a década de 1950, as obras passaram por inúmeras mudanças ao longo dos anos, mas sempre foram fonte de informação, polêmica, novidade e entretenimento. Na Vila Santa Marta, não é diferente. A dona de casa Michele da Silva, 28 anos, é como boa parte da população brasileira. Um de seus passatempos preferidos é assistir a novelas, em especial as de gênero infantil, junto à família. Mãe de seis filhos, ela conta que, acompanhada da pequena Kallyandra, de sete anos, mergulha na trama de “As aventuras de Poliana”, exibida pelo SBT às 20h50, desde maio deste ano. Michele relata que o horário da novela é sagrado. “Organizo a casa, faço o jantar, deixo tudo preparado para ver”, conta

a doméstica. A dona de casa salienta que adora conversar com a família, no dia seguinte, sobre o capítulo a que assistiu. Ela revela que não perde nenhum episódio e que gosta de pesquisar na internet sobre o resumo do próximo episódio. A auxiliar de limpeza Tereza Lopes, 64, diz que gosta de todas as obras produzidas pela Rede Globo atualmente, mas a sua preferida é a do horário nobre da emissora: “Segundo Sol”. “Entre novela e filme, eu prefiro novela. Se eu tô fazendo a janta no horário dela, eu fico da cozinha pra sala, da sala pra cozinha”, declara em meio a risos. Tereza, que é viúva e mãe de quatro filhos, desfruta a companhia da filha mais nova, Cássia Lopes, para assistir a sua história favorita. Ela afirma que as novelas trazem muitas coisas boas que acontecem de verdade, mas também algumas muito ruins, que não deveriam

Tereza Lopes e sua filha Cássia não perdem um capítulo da trama de “Segundo Sol” acontecer, geralmente com a personagem principal.

PROGRAMA DE CASAL

Já na casa do metalúrgico José Carlos Carvalho, 54 anos, e da dona de casa Ângela dos Santos, 44, assistir à novela “Segundo Sol” é um programa que eles

fazem a dois. Segundo Ângela, é o companheiro quem assiste com mais frequência, porém ele se defende, dizendo que gosta de ver, porque as novelas mostram a realidade e o cotidiano. Conforme o metalúrgico, a hora em que assistem à novela é o momento no qual estão

juntos. “Eu trabalho muito, então é o horário disponível pra gente”, conta. Eles relatam que não buscam informar-se sobre o capítulo do dia, pois preferem a surpresa. Por esse motivo, às vezes, não deixam de assistir à trama, ou perdem um pouco da história. O casal afirma que as novelas ensinam muitas coisas erradas. Mas, para Ângela, elas também mostram a realidade, principalmente sobre temas como violência, racismo e homossexualidade. Porém, apesar de gostar de acompanhar a obra atual, seu tipo de enredo preferido é o de época. “Eu gostava muito da primeira versão de ‘Sinhá Moça’, com a Lucélia Santos. Tinha mais mato, mais imagens da roça, não tinha tantos efeitos especiais”, relembra a moradora. VANESSA FONTOURA GUSTAVO MACHADO


Cultura .21

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A história de um feriado Comemorar a Semana Farroupilha faz parte da tradição do Rio Grande do Sul, mas é importante saber o contexto do conflito que o originou

A

Revolução Farroupilha é motivo de celebração e orgulho para o povo gaúcho, e na Vila Santa Marta não é diferente. Todo ano diversos moradores celebram a data mais importante do Rio Grande do Sul. Apesar da comemoração geral, poucos

sabem as causas e o contexto do conflito, exceto que serve como modelo até hoje para a cultura gaúcha. Entre 1835 e 1845, ocorreu a Guerra dos Farrapos, uma série de batalhas travadas entre o governo imperial brasileiro e os separatistas da Província de São Pedro (RS). É considerada uma das revoltas mais extensas da história do Brasil. Uma medida alfandegária federal reduzia os impostos sobre produtos estrangeiros que chegavam ao Brasil. Esses víveres, como charque e

couro, eram a principal fonte de produção e renda da província gaúcha. Com a redução das taxas, ficou mais barato importar dos países platinos do que comprar do sul. Essa medida causou insatisfação da elite estancieira, e foi estopim da revolta contra o Império. Portanto, a principal causa da revolução foi econômica, não ideológica. O início do conflito se deu em 20 de setembro de 1835, quando tropas separatistas lideradas por Gomes Jardim e Onofre Pires tomaram Porto

Alegre. Em 11 de setembro de 1836, o general Netto proclamou a República Rio-Grandense, após a batalha do Seival, onde as tropas sulistas impuseram uma pesada derrota aos imperiais. Após uma década de de lutas, em 1845 foi assinada a Paz do Poncho Verde, assinalando o fim da guerra.

LEGADO GUARANI

Para a maioria dos gaúchos foi a Revolução Farroupilha que moldou a cultura do nosso estado. Mas para o mestre em história pela UFRGS Jocelito

Zalla, foram as guerras guaraníticas (1750-1756) que moldaram a nossa cultura regional. Esta ideia possui mérito, porque esse conflito praticamente definiu os limites atuais do nosso estado. Além disso, a população indígena dos Sete Povos das Missões permaneceu em território português, e suas atividades deixaram legados, como o churrasco e o chimarrão, hoje partes importantes da nossa tradição. GABRIEL NUNES SUÉLEN PEREIRA

MORADORES COMENTAM O VINTE DE SETEMBRO Entre as pessoas entrevistadas, predominam o apreço pelos costumes e o orgulho pelos feitos

SAMIRA FEIJÓ, 15 ANOS, ESTUDANTE DANIEL LOPES, 10 ANOS, ESTUDANTE “Não sei explicar porque tenho orgulho dessa data, só sei que é legal, a gente conversa sobre isso na escola, e eu também gosto de andar a cavalo e me pilchar.”

GESSI FERREIRA, 78 ANOS, APOSENTADA “Eu gosto de comemorar o 20 de setembro, pois fico contente, feliz e com a família reunida, tomando um chimarrão.”

“Eu tenho orgulho do 20 de setembro, acho que é importante para a história do Rio Grande do Sul, é uma data que deve ser sempre guardada e lembrada.”

LUCIMARA TEIER, 40 ANOS, TÉCNICA EM ENFERMAGEM, E TEO OLIVEIRA, 40 ANOS, OPERADOR DE LABORATÓRIO METALÚRGICO “Eu me sinto orgulhosa só pelo fato de ser gaúcha, pela nossa história, as revoluções, pelo nosso estado, que é maravilhoso.” “Acredito que a revolução foi importante para darmos mais valor para nossa cultura, para reforçar a nossa ideia de um povo aguerrido.”

IVANILDA VIGOTI, 45 ANOS, DONA DE CASA “Eu gosto muito da semana Farroupilha, do CTG, e tenho muito orgulho do 20 de setembro. Para mim, é uma alegria poder representar o Rio Grande do Sul através da tradição.”

ROSANE FERREIRA, 42 ANOS, ESTAGIÁRIA/ ESTUDANTE DE PEDAGOGIA “O orgulho do povo gaúcho vem daquela revolução, além de fazer a cultura gaúcha ser muito bonita e rica. Sinto muito orgulho dessa data.”


22. Cultura

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Identidade e hábito familiar Cultivar os costumes gauchescos mantém vivo o tradicionalismo entre as famílias

H

á traços culturais que definem o Rio Grande do Sul. O gauchismo é cultuado em todos os cantos do estado. Na Vila Santa Marta, chimarrão, churrasco, danças e visita ao acampamento farroupilha no dia vinte de setembro é uma das formas que os moradores da região encontram para expressar seu amor pelo Rio Grande. Conforme a dona de casa Cristiane Nunes, 31, manter as tradições de geração em geração é muito importante para conservar a identidade do gaúcho. Elis Regina Machado, 27, conta que toma chimarrão desde muito pequena e considera importante passar esse hábito para os filhos, os quais já seguem os passos da mãe. Assistente de serviços gerais, Elis comenta que é evangélica e, por isso, não gosta de frequentar bailes tradicionalistas. “ A única coisa que tem aqui em casa é churrasco e chimarrão, não costumo ouvir

Nilvana, junto de sua filha mais nova, superou a depressão com as danças e os grupos de amigos músicas gaúchas nem ir a bailes. Além de ser evangélica , também não gosto”, diz Elis. Como se sabe, o gauchismo tem forte presença no estado. Por isso, muitas vezes, quem é adepto, carrega consigo uma intensa paixão pelo Rio Grande do Sul. E esse sentimento se reflete cultivando as tradições. Este é o caso da jovem Ana Carolina de Mattos, 17, que não trabalha nem estuda, e lamenta a situação do país. “

Eu tenho orgulho de ser gaúcha e nojo de ser brasileira. Parece que o Brasil não vai para frente”, comenta Mattos.

MEMÓRIA

Na família da aposentada Nilvana de Melo Fornari, 44, as tradições gaúchas são passadas de geração em geração. Quando pequena, ela sentava ao lado do pai para ouvi-lo tocar violão. Hoje ele está doente, por isso, Nilvana faz de tudo

para que ele se sinta bem, e cultivar as tradições é umas das coisas que o deixa feliz. “Fui no acampamento farroupilha e levei meu pai, que está doente. Por isso, acho muito importante acompanhar ele para fazer as coisas que gosta”, comenta a aposentada. Viúva há dois anos, Nilvana estava depressiva e começou a frequentar o grupo “Amigos para sempre”. Ela comenta que a tradição gaúcha a ajudou a superar a doença, fazendo com que voltasse a praticar coisas simples, como a dança e a se relacionar em grupo. “Nós somos um grupo de homens e mulheres que se reúnem para dançar. Eu amo música gaúcha, e frequentar esses bailes me ajudou a curar a depressão”, diz Nilvana.

“Eu amo música gaúcha, e frequentar esses bailes me ajudou a curar a depressão” Nilvana de Melo Fornari Aposentada

MACHISMO

O machismo ainda faz parte da cultura gaúcha. Por este motivo, Nilvana só conseguiu ter liberdade, dentre outras coisas, ao pôr em prática seu amor pelas tradições, no seu segundo casamento. Ela disse que a mãe nunca permitiu as mulheres da família serem adeptas às tradições. “Lá em casa, a mãe não deixava. Ela dizia, que filha mulher, a gente molha no tanque e seca no fogão”, comenta a viúva. Seu segundo marido faleceu há dois anos, vítima de um infarto. Mas com ele, a aposentada teve a oportunidade de praticar as coisas simples, que muitos gaúchos fazem, como tomar chimarrão, comer o churrasco aos domingos e dançar as músicas tradicionalistas. A aposentada diz que, apesar da falta que o marido faz, está tentando seguir em frente. “Eu amava ele, aproveitamos muito. Era meu companheiro para tudo nesta vida”, lamenta Nilvana. WILLIAM MARTINS GABRIELA DA SILVA

Recordar é viver Fotos trazem nostalgia e nos fazem recordar de bons momentos que tivemos em nossa vida. Com a era digital, ficou muito mais fácil armazenar fotos, o que ao invés de ocupar espaço em casa, ocupam megabytes ou gigabytes de um disco rígido. Mas, na Vila Santa Marta, moradores continuam mantendo seus álbuns, aliando-se às tecnologias para arquivar suas memórias. Mesmo em uma época digital, com um sentimento de esquecimento das fotos físicas, a estima pelas lembranças impressas de uma boa história ou experiência ainda existe. Quando perguntada sobre como guarda suas fotos, a dona de casa Regina Rangel, 47, trouxe logo o álbum de fotos de capa colorida, contendo mais de 20 anos de história. “Meu filho mais novo (21 anos) não tinha nascido

ainda”, diz Rangel aos risos. Natural de Novo Hamburgo, o hábito de imprimir fotos já não está mais presente na vida dela. Só manda revelar fotos em ocasiões especiais. “Eu tenho um sobrinho que trabalha com fotografia, que pega umas (fotos) para ampliar, para dar de presente para minha mãe”, explica Regina. Dos meios digitais também vem inspiração para as pessoas, ainda mais para a professora Adriana Feijó, 31, que criou um painel com o intuito de guardar os registros da filha pequena. “Eu vi no YouTube e achei muito interessante”, ressalta Feijó, exibindo suas fotos no estilo das polaroides. A maneira de Adriana montar suas lembranças foi imprimindo-as de uma semelhante à foto. Mas não é só assim que a professora, natural de Novo Hamburgo, mantém

Regina Rangel mostra os antigos álbuns de foto, que lhe trazem boas lembranças de sua família suas lembranças da pequena Danielly. “Eu tenho de dois, três meses até fechar um ano”, afirma Adriana.

TECNOLOGIA AVANÇA

Não dá para negar: ficou muito mais fácil guardar fotos com o avanço da tecno-

logia. Todo registro de uma vida já pode ser carregado no bolso. No celular do funcionário público Jorge Lopes, 64, se encontram todas as fotos, e ele não tem medo de perdê-las. “O celular é prático para nós vermos mais rápido”, diz funcio-

nário, natural de Venâncio Aires. Ele não tem apego às impressões, mas considera importante guardar consigo os cliques do aparelho celular. “Todas que eu tiro são importantes”, afirma. Aquele frio na barriga de perder fotos especiais já passou pela estudante Bruna Maffessoni Florão, 18, que, ao emprestar um aparelho, teve um grande problema. “Eu perdi as fotos dos meus 15 anos, mas eu consegui recuperar no pendrive, porque pegou vírus”, afirma. Já o pai de Bruna, o pesador Amilton Florão, 41, prefere guardar as fotos fisicamente. “Tu tira uma foto e daqui 10 anos vai ver ela, tu tem guardado”, argumenta Florão, natural de Liberato Salzano, no interior do Estado. MARCELO JANSSEN ARTHUR EDUARDO


ENFOQUE SANTA MARTA | SÃO LEOPOLDO (RS) | OUTUBRO / NOVEMBRO DE 2018

Tradição que vem de berço L

uiz Henrique Rigoti de Paula, 12 anos, é o orgulho da família. Nascido e criado no bairro Santa Marta, em São Leopoldo, ele segue as tradições gaúchas desde os cinco anos de idade. Sua mãe, Ivanilda Rigoti, 45, fica emocionada ao falar do filho caçula, que, como as outras três irmãs, quer fazer faculdade, pois sonha cursar medicina. Para Ivanilda, o menino somente traz alegrias para a família, que valoriza o tradicionalismo gaúcho. Valdori de Paula, pai do jovem, também o incentiva nesse meio. Os pais, muito dedicados, levam Luiz toda terça-feira para dançar no Grupo Tradicionalista Sepé Tiarajú. O jovem participa de rodeios e de outras atividades no local. Recentemente, Luiz recebeu o título de 1º Piá Farroupilha. Faceiro, ele exibe com satisfação o prêmio. “O apoio e o amor da família são fundamentais para o desenvolvimento de um cidadão de bem”, afirma dona Ivanilda, que não mede esforços para ajudar Luiz Henrique a alcançar seus objetivos. DANIELA GONZATTO TAINARA PIETROBELLI

Cultura .23


ENFOQUE SANTA MARTA

SÃO LEOPOLDO (RS) OUTUBRO / NOVEMBRO DE 2018

EDIÇÃO

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JOSÉ HAMEYER

Cadê a calçada? D

ividir espaço com veículos no meio da rua, faz parte do cotidiano de quem vive na Vila Santa Marta. A falta de calçadas obriga os moradores a se arriscarem em meio ao trânsito, problema que se agrava em dias de chuva. Circulando no bairro, observa-se facilmente situações que evidenciam como a falta de local apropriado para o trânsito de pedestres expõe os moradores a situações de risco. É o caso de Teresinha Schmidt, 81 anos, que, precisando usar muletas no seu dia a dia, se arrisca em meio à rua ao lado de sua amiga Mari de Menezes. JOSÉ HAMEYER LUCIANO PACHECO

JOSÉ HAMEYER

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LUCIANO PACHECO

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