Josefa 5

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dez/2021 Revista experimental do curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre

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A VIDA É A RUA


“J

á sei pra onde vou, eu vou sentir o calor da rua”. A letra da canção do grupo musical Francisco, el Hombre é capaz de sintetizar o sentimento que nos levou à escolha do tema para esta edição. Mesmo que a melodia faça falta para entender o verso em sua vibração, o conjunto de palavras traduz o anseio de muita gente depois de tanto tempo de reclusão e distanciamento em razão da pandemia. E para nós, jornalistas – experientes ou em formação –, isso quis dizer voltar a um ambiente fundamental. Afinal, em nosso caso, sentir esse calor é ter a escuta atenta às pessoas com quem falamos e a percepção sensível dos lugares por onde andamos, mas acima de tudo é termos aquele calor que apenas o ato de sonhar é capaz de dar. Essa, sem dúvida, é a missão de Josefa. No caso da revista que leva esse nome, diz respeito a seu caráter experimental, aventureira e plena de aprendizados para

todos nós que a fazemos. Mas também se trata da mulher à frente de seu tempo que foi a primeira jornalista do Rio Grande do Sul e que nos inspira a cada nova edição. A história dessa personagem e a homenagem que prestamos a ela nos mostram que o mundo muda. E não é este, afinal, o sonho de cada jornalista? Mas muito do aprendizado do que é

Everton Cardoso

Cartaaoleitor

ser repórter tivemos logo no começo do semestre com Guilherme Machado – futuro jornalista que nos deixou no mês de outubro: “para se fazer jornalismo é preciso ter coragem todos os dias”, nos disse ele em um dos encontros. Foi por isso que fizemos questão de levar a adiante o sonho que o Gui, como o chamávamos, não teve tempo de realizar: não só executamos a entrevista que ele planejava fazer e a incluímos na revista, mas a colocamos como destaque de capa pelo que representa em termos jornalísticos. Pauta relevante, expressa o tema desta edição e muito do que sentimos nesse processo. Assim, sempre que bater a saudade teremos esta Josefa, a vida e a rua para nos lembrarem da coragem, do sonho e de por que escolhemos o jornalismo. Everton Cardoso Professor

A gaúcha Maria Josefa Barreto Pereira Pinto foi a primeira mulher jornalista brasileira. Mãe, feminista, poeta, escritora e professora, dirigiu dois jornais, sendo proprietária de um – o Belona Irada Contra os Sectários de Momo –, que circulou em Porto Alegre entre 1833 e 1834. Josefa não teve uma vida fácil. Foi abandonada quando nasceu, mais tarde seu marido a deixou e ela viu seus dois filhos morrerem. O nome desta revista é uma homenagem a ela.

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ndice 4 8 12 18 22 28 32 36 42 46

ENTREVISTA | Valéria Barcellos Abrir portas por dentro ESPORTE A busca pela partida perfeita PRECONCEITO Despetalar das margaridas TRANSPORTE PÚBLICO Da roleta para a rua FOME Um direito urgente VIOLÊNCIA O espaço é público, o corpo não TRABALHO Da ocupação à panificadora ESPAÇOS Espaço vazio, mas cheio de memórias HISTÓRIA Memórias de um quintal histórico CULTURA Em fevereiro tem Carnaval, tem Carnaval?

Bruna Schlisting Machado

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abrir portas

ENTREVISTA | VALÉRIA BARCELLOS

Texto e fotos

Everton Cardoso

Colaboraram Anna Gabryella Magueta e Josiane Skieresinski

“U

POR DENTRO

ma amiga minha, meio mística, meio bruxa, dizia que todo anel que tu põe no dedo indicador significa poder”, diz a cantora Valéria Barcellos sobre o adereço que ela escolheu para compor com um vestido com rostos da artista mexicana Frida Kahlo – tomada como um ícone feminista – e brincos de crochê em forma de flores vermelhas para conceder esta entrevista pessoalmente no Venezianos Pub Café. Com o poder de usar o palco e o microfone, a intérprete diz que usa sua atuação para ser sincera e direta. Mulher trans, se posiciona como uma agente transformadora que nos últimos 15 anos tem se apresentado com frequência na noite porto-alegrense e expandido seus horizontes e seu alcance para fora da capital. Nascida em Santo Ângelo, onde atuava como crooner de uma banda de baile, decidiu mudar-se quando percebeu que a exigência dos companheiros para que se apresentasse com roupas masculinas e a necessidade de usar uma faixa para esconder os seios não mais a agradavam, afinal já havia iniciado seu processo de transição e preferiu viver quem era de forma plena. Na conversa, Valéria Barcellos fala sobre sua carreira, suas lutas e seus sonhos. 4

Josefa | Como poderias sintetizar tua trajetória? Valéria | Durante toda a minha existência pautei a felicidade em ser. Acho que esse foi meu primeiro grande passo em pautar a felicidade em ser, a existência em ser quem sou. Saí de um lugar muito pequeno, racista e misógino pra vir pra um lugar que eu achava que iria ser diferente, mas com o tempo descobri que não era tão diferente assim. Mas, ao mesmo tempo que foi uma imposição, foi bem na hora certa. Porque a minha cabeça naquela época, apesar de ter ainda muitas dúvidas sobre estar fazendo corretamente ou não, é primordial pra pessoa que eu sou hoje. Quando eu vejo as coisas que eu falava em 2005 e as coisas que eu falo hoje, eu penso “meu deus, que bom que tu saiu de Santo Ângelo”. Não consigo mais pensar nas pessoas estando nos lugares, mas, sim, sendo quem elas são nos lugares.

antecipação, mas coisas da minha vida não aconteceram quando eu planejei o amanhã. Elas aconteceram. Muita coisa deu errado, mas todas essas vivências de acontecimentos orgânicos, pra mim, que sou uma mulher trans, são muito valiosas. A cisgeneridade, sabe das problemáticas a partir de uma teoria. Quando a gente pensa nessa problemática e que ela só vai se dissolver daqui a muito tempo, pensar no amanhã se torna muito dolorido. E a gente se torna uma pessoa muito dura. Aprendi que a dureza da vida tem que ser a partir dos planos que tu tem contigo, de querer coisas, mas não de ficar almejando o amanhã. Eu estou num bônus maravilhoso, porque uma mulher trans tem a expectativa de vida de 35 anos e, segundo os estudos da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), uma mulher preta e trans, tem uma expectativa de 25 anos. Olha o bônus que eu estou, gente!

Josefa | Olhando para o futuro, como tu te percebes?

Josefa | Como tu te sentes nesse bônus?

Valéria | Por que a gente tem que ficar olhando pra frente tão antecipadamente? Já sofri muito por

Valéria | Muito privilegiada. Dentro de todos os meus desprivilégios, tenho muito privilégio. Mas, tem


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uma coisa que eu falo sempre sobre privilégio, que eu quero muito que a branquitude e a cisgeneridade entendam: de nada adianta saber que tem privilégios e não fazer nada a partir disso. As pessoas se escondem muito numa frase horrorosa: “não é meu lugar de fala”. Isso me irrita! Esse tipo de frase, na verdade, é só uma maneira de terceirizar os problemas. Vamos pensar juntos: quando não é o teu lugar de fala, mas tu tem o palco, o microfone, por que não vai fazer alguma coisa? Então, pensar no amanhã é antecipar um monte de problema que eu não quero antecipar. Eu quero simplesmente continuar vivendo um dia depois do outro. Alcione tem uma música: “Nada como um dia atrás do outro/ Tenho essa virtude de esperar/ Eu sou maneira, sou de trato, sou faceira/ Mas sou flor que não se cheira/ É melhor…” Josefa | O que desejas para o futuro? Valéria | O que eu gostaria muito desse amanhã é continuar viva. Ou não morrer de uma maneira muito cruel. E também gosto muito de pensar nesse amanhã como um lugar comum para pessoas como eu. A cisgeneridade é tão louca que não consegue nem imaginar um lugar comum. Um lugar comum é a secretária do meu dermatologista, a vendedora da Renner, é a guarda de trânsito trans. Esse é o lugar comum. Que não seja uma coisa “nossa, tem uma pessoa trans ali”, entendeu? Esse é o lugar comum pra mim. Abrir portas por dentro. De nada adianta abrir uma porta. De nada adianta uma pessoa branca abrir uma porta pra mim. Eu quero a pessoa preta do lado de dentro da porta que abre a porta. Abrir portas por dentro é diferente de abrir uma porta por fora. Josefa | O que tu adorarias ver do outro lado dessa porta que tu estás abrindo? Valéria | Muita gente como eu. Parece que eu estou numa categoria 6

à parte, mas estou eu acho. Eu gostaria de ver mais pessoas como eu fora dessa categoria à parte. E simplesmente misturadas com as outras pessoas. Quando eu vim pra cá, nem conseguia imaginar sequer a possibilidade de eu ser essa pessoa que abre essa porta. Eu imaginava que talvez eu nem estivesse aqui, neste ano agora. É por isso que pensar no amanhã é tão esquisito. Porque eu sempre pensei no hoje. Durante muito tempo eu fiquei de olho no ontem, porque o ontem pautou o meu amanhã. O meu amanhã era muito limitado. E hoje o meu amanhã é tão vasto que eu não consigo nem ficar imaginando como ele será. É tanta coisa, tanta possibilidade que eu já nem consigo pensar. Josefa | Nesse tanto de possibilidade qual é a primeira que te vem à mente? Valéria | Vida. Eu sempre vou pensar em ficar viva. Josefa | O que é ficar viva pra ti? Valéria | Eu imaginei meu cachorro e meu gato agora. Ficar sentada no sofá com o cachorro e com o gato dizendo “desce daí”. Eu sempre penso no lugar comum, nessa desglamourização do lugar comum, da vida, do viver. Viver é muito urgente. A gente tem que sugar cada segundo do dia, até fazendo nada. Por que a gente se culpa de não fazer nada? Às vezes o não

fazer nada é bonito. Estar ali parada pensando em alguma coisa, se dar ao luxo de pensar em nada. Pensar esse dia inteiro, de cada minuto do dia, e pensar no nada também e não sentir culpa é muito bom. Josefa | E como é, pra ti, estar fora, na rua? Valéria | Durante muito tempo eu achava que estar fora era o meu lugar, me puseram o pensamento de que era o meu lugar. Era um lugar à parte. Ainda me vejo um pouco nesse lugar, nessa categoria das pessoas trans pretas. É muito louco eu ser a única em muitos lugares. Então, é horroroso ser a única, e eu estou cansada de ser a primeira: ser a primeira a ganhar um troféu, ser a primeira mulher trans... Estar fora é ser a primeira, e eu não quero ser a primeira, eu quero ser mais uma. Josefa | Como é para ti estar em público?


Valéria | Já foi complicado, porque tinha uma regra do “contenha-se”, “não seja”, “não esteja”. Já sublimei isso. Hoje, quando eu chego nos lugares eu já digo “olá, bom dia, olá”, já quebra ali, do tipo, “eu to aqui, entrei aqui, para com isso”. Mas, é claro, eu desenvolvi uma técnica, por exemplo, eu vou num restaurante pela primeira vez, e tem ali um estranhamento da pessoa que vem me atender, a primeira coisa que eu faço é perguntar “qual teu nome” a pessoa fala e eu digo “o meu é Valéria”. Se a pessoa voltar a fazer isso, eu pergunto de novo. Na terceira vez tem palestra sobre identidade de gênero. Josefa | O que é mais difícil para as pessoas entenderem? Valéria | A cisgeneridade não tem fase, a não ser a infância e a adolescência. E por isso ainda não entendeu que não há uma fase, uma maneira. “Ah, primeiro eu sou um gay, depois eu sou um gay afeminado, depois trans…” Existe uma expressão que eu usava muito e que entendi com o passar dos tempos que era um mecanismo de controle. É quando de diz assim: “Valéria é maravilhosa, é uma mulher, só nasceu no corpo errado”. Mas não há erro! Quando se diz que tem alguma coisa de errada com essa pessoa, se quer patologizar. colocando que é uma doença. Faz muito mais sentido pra cisgeneridade. Porque

essas pessoas não conseguem entender que a gente simplesmente é, tal qual eles. A gente precisa aprender a conviver em harmonia. E tem essa coisa das fases, que parece que tem que passar por uma fase, pra inclusive, legitimar a própria existência de pessoas trans. Isso é muito dolorido, parece um jogo: “ah, passou por esse, ganhou, agora vai indo”. Só que tem gente que não consegue chegar, porque o objetivo principal é esse, que não passem todas as fases, que se acabe na metade do caminho, entendeu? A transsexualidade e a transgeneridade não são físicas, não é uma cirurgia plástica que vai me tornar uma pessoa trans, não existe isso. Josefa | Como é teu ativismo? Valéria | Isso veio de uma coisa que aconteceu no dia 30 de agosto de 2015, quando eu fui esfaqueada do nada por um cidadão na Rua da República. Eram 16h e esse senhor

negro, que vinha na direção oposta, me xingou de coisas racistas. Me aproximei dele pra discutir, ele tirou uma chave de fenda e me esfaqueou nas costas. Tinha um monte de gente na rua, até pessoas que eu conhecia, e ninguém fez nada. Ele saiu caminhando como se o direito de estar na rua fosse dele e não meu. A partir disso, senti na pele essa violência, eu vi como era real, porque antes disso era muito verbalizada só no meu imaginário. Eliza Lucinda me disse uma vez: “a gente é um corpo parlamentar, que fala por si, isso já é a militância, isso já é o ativismo”. E a partir disso eu comecei a fazer com que os shows tivessem uma pegada em algum momento que fizesse as pessoas refletirem. Então, sempre vai ter uma canção, uma fala, sempre vai ter alguma coisa que te toque em algum lugar, que não te deixe esquecer que tinha uma mulher trans preta no palco e que ela tava cantando. E no mínimo tu vai querer saber por curiosidade se existem outras, e talvez tu descubra outras. E talvez tu entenda que é muito mais comum do que tu imagina, que está muito mais perto do que tu imagina. Talvez te dê curiosidade de ver essa pessoa. A existência de uma pessoa trans ainda é trabalhar com o talvez. Um amanhã, talvez, a gente não tenha mais o talvez. E foi a partir desse episódio que eu entendi que o simples fato de eu estar nesses lugares me dava uma força para que eu pudesse dizer o que eu bem entendesse. Josefa | O que te ajudou a superar o medo de voltar pra rua? Valéria | A realidade, não tem como ter medo o tempo inteiro. Eu preciso pagar boleto, eu preciso viver. Entendi que o medo era esse mecanismo de controle para me deixar dentro de casa. E eu sou teimosa, se era isso que eles queriam, é claro que eu não ia fazer isso. | dezembro/2021 | 7


ESPORTE

A BUSCA PELA

partida

Grupo de idosos joga dama na praça da Alfândega com os tabuleiros apoiados nos bancos e utilizando as tampinhas de garrafa pet como peças

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perfeita

Idosos que jogam dama na praça da Alfândega praticam o jogo em cima dos bancos com tampinhas de garrafa pet após a retirada das mesas com tabuleiros do local

E

m meio ao agito do Texto e fotos preta, posicionada estrategicamente entre centro da capital Carol Steques as árvores da praça, eles guardam os maiores gaúcha, na praça da tesouros do grupo: os tabuleiros. Eles abrem Alfândega, com pessoas correndo a caixa no início do dia e fecham somente à noite na para todos os lados atarefadas com hora de ir embora. As vinte e quatro tampinhas de os compromissos do dia a dia, com garrafa pet espalhadas pelas 64 casas do tabuleiro vendedores ambulantes espalhados doze vermelhas de um lado e doze brancas de outro pelo local e músicos fazendo suas - circulam pelos dedos meticulosos dos jogadores. singelas apresentações à espera de Damasceno, 54 anos, é integrante do grupo de idosos uns trocados, encontra-se um gru- que jogam na praça, e frequenta o local há mais de 25 po de idosos jogando damas com anos. Ele foi campeão estadual de damas no torneio reamuita tranquilidade. É neste local lizado em Tramandaí (RS), patrocinado pela Petrobrás, intenso que eles encontram a sua e conta que durante o mandato do prefeito Airton Dipp, calmaria. Porém, a rotina de jogos há 30 anos, foram colocadas oito mesas de jogos com que acontece há mais de 30 anos, tabuleiros pela praça da Alfândega. Após a retirada do com encontro dos amigos e mui- mobiliário, Damasceno se tornou o responsável pelos ta gargalhada, acabou se tornando tabuleiros, e conta que as mesas que foram removidas uma tarefa difícil: há cerca de 10 eram praticamente um ponto turístico na praça e um anos, a prefeitura da cidade reti- local de encontro do grupo. Agora só existem mesas de rou as mesas de jogos do ponto de jogos quase no final do terreno, na rua Sete de Setembro, encontro dos idosos na praça. entre a Caixa Econômica Federal e o Banrisul. Em função disso, eles tiveram “Muitos dos damistas da praça já ficaram velhos e que improvisar para continuar prati- outros acabaram falecendo. Com isso, a dama agora cando o seu jogo favorito. Os bancos não teve sua renovação”, comenta Damasceno, que da praça acabaram virando o palco continua explicando que, com as mesas na praça, para as grandes partidas e as tam- havia em média 40 pessoas jogando diariamente e pinhas de garrafa pet se tornaram os jovens tinham interesse em aprender o jogo. as peças da dama. A cor verde dos assentos se mistura à mesma cor Políticas públicas dos tabuleiros, que ficam apoiados Com muito entusiasmo, os idosos contam que o nos bancos. Dentro de uma caixa vereador Cassiá Carpes trouxe uma esperança: ele está | dezembro/2021 | 9


desenvolvendo um projeto para colocar as mesas no ponto de encontro do grupo de idosos. “Nós queremos dar prioridade e valorização ao jogo de damas, que é muito importante. Nós queremos dar vida à praça. E a vida na praça são as pessoas também”, explica o vereador. Os torneios na praça não são realizados há muitos anos, como comenta Maneco. Em 1996, aconteceu um dos mais marcantes para o grupo, que até hoje é lembrado por eles com muita nostalgia. A competição de jogos de damas foi realizada a céu aberto, no meio da praça - em parceria com a Liga Porto-Alegrense dos Jogos de Dama (APAD) e a Secretaria Municipal do Esporte (SME). Para o torneio, foram colocados diversos mesões com tabuleiros espalhados pela praça, entre as árvores e o agito da Rua dos Andradas. Naquele momento, a praça ficava em silêncio, só para acompanhar as partidas e cada jogada bem pensada dos jogadores. Na época, a liga contava com o apoio da SME, que fornecia bancos e mesas compridas para as partidas. O grupo continua jogando diariamente na praça, mas com poucas expectativas de que o local um dia ainda possa voltar a ser o grande ponto de encontro e de torneios que era antigamente. “A dama que é um lazer, um esporte bacana que a pessoa pratica, foi extinta. Tiraram as mesas e não colocaram mais. O pessoal só quer fazer feira para vender e arrumar dinheiro na praça, para o lazer e entretenimento ninguém pensa em realizar nada”, declara Damasceno.

A importância da dama para os idosos

Existem diferentes tipos de jogos de damas, como a “dama tradicional” e a “dama de cem”. A “dama de cem” é jogada por Hugo Nelson (72 anos), um dos integrantes do grupo de idosos da praça, que também tem grandes recordações dos torneios a céu aberto. Ele explica que a “dama de cem casas”, ou “dama interna10

Há cerca de 10 anos, a prefeitura da Porto Alegre retirou as mesas de jogos do ponto de encontro dos idosos na praça da Alfândega. Mesmo assim, nas horas vagas, o agente comercial Silvio, de 70 anos (à direita), vai para lá praticar o esporte com os amigos

cional”, é jogada principalmente na Alemanha, Inglaterra e Rússia. Esse estilo de jogo de damas é caracterizado por 20 peças para cada jogador e 100 casas no enorme tabuleiro. Diferente do tabuleiro convencional, ele apresenta números salientando a ordem de cada casa. A dama normal, jogada principalmente por hobby, conta com 64 casas no total, sendo 12 peças para cada lado. Hugo, que já foi sete vezes campeão estadual, conheceu o jogo de damas em 1985, através de seu amigo Pedro Melo, que o levou para assistir o campeonato brasileiro de damas no centro

de cultura da rua Ramiro Barcelos e foi quando se apaixonou pelo jogo e virou destaque na dama. Atualmente, por maior conforto, ele prefere jogar na praça de alimentação do Camelódromo e fica revoltado com a situação dos amigos, que acabam tendo que jogar em cima dos bancos. O damista fica feliz com o projeto de Cassiá para a colocação das mesas e o fato de poderem jogar novamente em um local próprio, com dignidade, mas seu olhar demonstra a dúvida de se realmente a promessa será cumprida. “Nós já corremos atrás dos políticos para colocar de novo as mesas onde eles estão jogando. Hoje em dia eles estão jogando em cima dos bancos. Já ouvimos diversas promessas de vereadores sobre a colocação das mesas, mas até hoje não há nada de concreto. Agora tem a promessa de novo do Cassiá Carpes, que vai colocar. Vamos esperar”, comenta Hugo.


OLHAR DA

REPÓRTER

Iraja Carneiro Heckmann, médico geriatra, explica que os grupos de jogos e a socialização são muito importantes na terceira idade. Ele explica que o grupo da praça da Alfândega, além de estimular estratégias e o maior desenvolvimento mental, tem o fato social, pois ali eles vão para se encontrar. Para jogar, claro, mas também falar de política, futebol e jogar conversa fora. “O jogo de damas evita e recupera a parte de esquecimento do idoso. É super importante para eles, além do lazer, é preventivo para evitar esquecimentos”, complementa Copinare Acosta. O presidente da APAD lamenta que a Prefeitura não tenha nenhum local físico para que os torneios voltem a ser realizados de forma presencial. “É um grande custo alugar uma sala ali, e pessoal não tem recurso para alugar uma sala para jogar. O pessoal está aposentado, ganha pouco, já pensamos em todas as alternativas, mas não deu”, explica.

A grande reclamação e indignação do grupo é que faltam políticas públicas voltadas para o lazer, e principalmente, para o idoso. Copinare comenta que a APAD já questionou a prefeitura, e que gostaria muito que fosse disponibilizada a sala multiuso (localizada no parque da Redenção) para os jogos de dama, mas, infelizmente, nada é feito. “Outro lugar que poderíamos usar para damas é o ginásio Tesourinha. Tem sala disponível na parte do fundo do ginásio, que daria para a gente usar como sala de lazer para os idosos. Tanto para o xadrez como para as damas. Se tivesse uma sala para fazer um torneio no Tesourinha, o pessoal ia pra lá”, declara.

A cada nova reportagem acabamos entrando em um universo diferente. No meu caso, acabei conhecendo mais sobre a história dos jogos de damas em Porto Alegre. Quando passava pela praça da Alfândega e via os idosos jogando reunidos nas antigas mesas com tabuleiros, eu jamais ia imaginar as grandes histórias por trás de cada partida. Foi muito legal poder compreender a trajetória de todos eles (como indivíduos e como grupo) a partir dos jogos de damas. Para mim, foi super interessante fazer essa pauta, por diversos motivos particulares. Primeiramente, a minha saúde ainda não permite que eu saia sozinha (ainda mais em locais como o centro), então, por isso, levei meu fiel escudeiro de reportagens: meu vô, de 72 anos, que já me acompanhou em várias matérias sempre de camisa de botão e com os cabelos bem arrumados - igual o do Cebolinha, da Turma da Mônica. A gente caminhava bem devagar, de braços dados, no meio da praça e escutamos as histórias. Quando descobrimos que um dos integrantes - que já havia sido sete vezes campeão estadual de damas - iria jogar a famosa Dama Internacional, na praça de alimentação do Camelódromo, em 30 minutos. Saímos correndo (nos nossos passos, é claro) para ver a partida. Conversamos bastante com ele e depois retornamos para a praça com passos de formiguinha. Mesmo com todos os obstáculos, adorei a experiência no geral. Tanto por conhecer a história daqueles idosos e ter uma visão completamente diferente do que eu tinha antes - que eram pessoas que simplesmente estavam ali porque não tinham pra onde ir. Quanto por conseguir me esforçar da forma como eu pude mesmo com dor e com pontos. Fico feliz por ter feito esta reportagem.

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PRECONCEITO

Da invisibilidade às humilhações, o uniforme laranja que veste garis é visto socialmente como uma roupa sem cor 12

ma DESPE


Texto e fotos

Bruna Schlisting Machado

O

único assento disponível só foi preenchido de formas afoitas e gestos repulsivos naquele ônibus abarrotado de gente. Parte dos passageiros se espremiam e tentavam suportar cerca de 15 km equilibrados em barras de apoio ou balaústres horizontais. Saída do Centro de Porto Alegre no final de uma tarde comercial, a condução freava em paradas lotadas. Seu percurso rumava em direção à vila Quinta do Portal, no bairro Lomba do Pinheiro. A impressão aparente era de que um dos bancos junto ao corredor ficava constantemente desocupado. Mas sentada à janela, a gari Simone Regina da Silva Dávila, 44 anos, quase se deparava com a dança da cadeira. Quando mais alguém entrava no transporte público e percebia a poltrona vazia, a feição de alívio se modificava com o célere encolhimento forçado do corpo ou um salto em distância. O uniforme laranja, vestido sujo, a tornava alvo de vexames, humilhações e um despetalar também no itinerário fora das ruas. “Uma moça sentou do meu lado. O ônibus tava lotado, e ela se alevantou”, relembra Simone com a face já umedecida antes mesmo de pronunciar a primeira palavra. “Sabe por que ela se alevantou? Porque tu tá com roupa de gari”, observou uma passageira de cabelos brancos acomodada em um banco próximo, logo atrás. “Eu só queria saber quanto essa moça ganha. Deve ganhar milhões pra tá se fazendo pra sentar do lado de uma pessoa. Eu tô com a minha roupa suja, mas isso aqui é serviço”, reagiu a trabalhadora que atua há 12 anos na Cootravipa. No soar seguinte, dentro do ônibus, ela manifestou o que está acostumada a fazer: o silêncio. Três décadas antes, nos anos 1990, o cheiro de lixo molhado exalava odores nauseantes por causa do ar estagnado, há sete dias, pela constância das chuvas em Porto Alegre.

rgaridas TALAR DAS

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Tu chegava em casa toda assada, toda suja, toda podre”, conta. “Toma aqui essa sacolinha pra ti”, esticou o braço certa moradora do bairro Moinhos de Vento. “Obrigada!”, respondeu Bete, ao segurar a possibilidade futura de fazer uma boquinha fora do Centro. Na Félix da Cunha, “rua dos burguês”, como menciona, era comum oferecerem pão. Recebia-se o alimento e, estrategicamente posicionado em uma sacolinha amarrada ao carrinho, ele poderia ser consumido quando o estômago se manifestasse faminto. “Mas quando eu ia ver, era pão mofo já. Pão velho. Normalmente, se me ofereciam alguma coisa, tava podre”, revela. Em dias escaldantes, conseguir beber água equivalia à probabilidade de ganhar na Mega-Sena. Quanto mais chique fosse o prédio ou a casa, multiplicava-se a dificuldade de saciar a sede. Os moradores justificavam a negativa com a falta do líquido ou a torneira estragada. “Era mais fácil tu tomar água na vila do que numa dessas casas ou apartamentos”, comenta Bete, atualmente com 57 anos e aposentada, ao rememorar com expressões resignadas o despetalar de se sentir transparente e parecer não existir.

Debaixo da aba de um chapéu

O tempo ainda não se destacava pelo cenário florido e a aguaceira primaveril. Era final de junho e recém se somavam os primeiros dias de inverno. As lixeiras abarrotadas e o amontoado de jornal velho, úmido e fétido externavam a sede do jornal Correio do Povo, na rua Caldas Júnior, no Centro da capital gaúcha. Quando Elisabete da Costa Floriano, àquela época com 28 anos, tentava se deslocar com um carrinho similar a um tonel de óleo de 200 litros, sua força se agarrava à vassoura de cabo marrom para impedir o vômito de sair. O mal-estar não era psicológi14

co, do jeito que ela cogitava como uma forma de amenizar a sensação. Mas era real e se misturava a excrementos de bichos que viviam a marchar pelas ruas. “Quando me botaram no Gasômetro, passei seis dias vomitando. Num ambiente horrível, sujo. O banheiro, um buraco no chão”, recapitula Bete. Naquele tempo, antes de haver as seções da Cootravipa espalhadas pela cidade, a possibilidade de uma gari ter acesso ao uso de sanitários destacava-se de modo precário e riscos insalubres. Assim como continua nos dias atuais, o espaço de tempo concedido às necessidades fisiológicas dos trabalhadores e trabalhadoras nesta função era viabilizado em breves intervalos. Há 30 anos, nos períodos em que Bete Flor, como é conhecida, ficava menstruada, ela continuava menstruada. “Pra tu conseguir trocar o modes [absorvente] não tinha como.

Moradora de um palacete assobradado amarelo, como costuma dizer, em condomínio do bairro Belém Novo, a mais de 20 km do Centro de Porto Alegre, a mulher de estatura média e cabelos cacheados relata que começou a trabalhar na Cootravipa em 1992. Após oito meses na terceirizada, ela foi chamada para ocupar a vaga como funcionária pública por meio de concurso que já havia realizado. Os anos primários foram debaixo da aba de um chapéu. Não apenas houve o impacto das amigas, como pessoas próximas a desconheciam na rua ou viravam o rosto nos momentos uniformizada. Suas tias diziam que, mesmo trabalhadora, não passava de uma coitada. “Tu


é louca?”, questionou, à época, o namorado que em seguida passou a pedir dinheiro emprestado. “Quer deixar de namorar gari? Então segue teu rumo. Eu tenho filho para criar”, respondeu Bete. Durante a varrição das ruas centrais do município, especialmente no entorno do Largo Glênio Peres, entre o Chalé da Praça XV, o Mercado Público e as inúmeras bancas de frutas, o despetalar é igualmente explícito. Desde as 4 horas da madrugada, quando desperta e em seguida sobe no ônibus de ida, Simone se prepara para abraçar um turno das 7h30 às 16h30 em uma área disposta a 20 dos seus 2.434 colegas. Com 1,50 m e os braços ativos, a lixeira amarela com rodas é guiada pelas pernas curtas desde o número 464 da avenida Farrapos

até o destino do local de varrição. Ela caminha cerca de 6 km, todos os dias, apenas somando os passos de idas e voltas da seção Centro da “Vipa”, como carinhosamente chama, ao Largo Glênio Peres. “Perdão! Não foi minha intenção encostar a vassoura no teu pé,” desculpou-se Simone. “Mas eu vou é chamar a polícia agora!”, errou uma moça que aguardava o ônibus na parada lotada em que Simone fazia a sua rotineira varrição. “Como é que é? Ela não te assaltou. Não te fez nada”, falou uma senhora que testemunhou a cena. “Quando tiro o uniforme, as pessoas me tratam de uma forma diferente. Elas te cumprimentam”, narra. Apesar disso, Simone explica, com o olhar declinado, que prefere varrer quietinha, mas sem

perder a simpatia. Há momentos em que o espaço a céu aberto é comprimido pelas centenas de transeuntes no âmago de Porto Alegre. Calçadas e ruas desaparecem em meio a pés apressados. Resíduos chegam a transbordar ou são pisoteados no chão. Aproximar a vassoura de alguém pode ser o motivo de a leveza do verbo “encostar” ser injustamente alterado para a agressividade do verbo “bater”. Os pedidos gentis de licença ou os sinceros de desculpas são desprezados por uma surdez universal. Como se fingissem não ouvir e tampouco ver a ostentação de um tecido inteiro laranja sinalizando o corpo da gari. A recepção e a amizade são calorosas com fruteiros, papeleiros e pessoas em situação de rua, que, segundo Simone, o que eles também têm dos outros são as costas. Mesmo os colegas de profissão em cargos superiores, nomeados no meio como chefes-capatazes, eram abusadores. “Todos os convites eu negava. Às vezes, algumas cediam por um leite, uma coisa. Mas não é porque tu vai varrer rua que tu tem que dar pra eles”, lastima Bete, ao recordar tanto despetalar. Também por conta dos movimentos repetitivos e o

Bete Flor, 57 anos, ainda guarda a calça e o boné laranjas de quando apresentava o Monólogo da Margarida em instituições públicas e privadas

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pulso lesionado, ela pendurou a vassoura em 1995. Trabalhou em diversos setores do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), até ser convidada a estrelar o “Monólogo da Margarida” em 2000. Como em São Paulo as garis são chamadas de margaridas, a ideia do monólogo surgiu para ser apresentada em escolas e instituições públicas e privadas. Durante três anos, e por aproximadamente 20 minutos, Bete expressava com gestos e palavras as dificuldades, percalços e preconceitos vividos por ela e todas as mulheres margaridas.

-qualificada e subalterna. Como se aquele uniforme laranja tivesse uma não-cor, aguçasse os efeitos da invisibilidade e subtraísse a individualidade e a personalidade dos garis. “Cores emitem sinais, indicam circunstâncias, ocorrências e orientam previsões. Nuvens claras e escuras, que sinalizam contraste entre certa leveza e algum peso, apontam menor ou maior probabilidade de chuva”, exemplifica o Uniformiza-se antes de vestir doutor. Mas referente aos garis, Antes da ideia de uniforme, introduz Fernan- ele receia dizer que, se neles as do Braga da Costa, existe um encadeamento dos cores não se realizam como tal, processos históricos em que esses sujeitos já foram é porque são humanos desumatomados como uniformizados no que se refere às nizados e tomados socialmente suas subjetividades e dignidade humana. “Você não como um cabide qualquer. trata com dignidade, episodicamente, alguém que A Lei Áurea foi assinada em não considera digno”, elucida o doutor em 1888. Teoricamente, ela é A gari Simone psicologia pela Universidade de São Pau- Regina caminha considerada o documento lo (USP). Para compor sua dissertação de cerca de 6 km, que extinguiu a escravimestrado e tese de doutorado, Costa desem- todos os dias, dão no Brasil. Mas para penhou a função de gari por cerca de uma apenas da Costa, chamar o encarredécada. A ideia foi realizar uma observação seção Centro da gado de “capataz”, assim Cootravipa até participante das atividades desenvolvidas o seu local de como isso somado a oupor esses trabalhadores. Ele investigou uma varrição, no Largo tros episódios de assédio, forma de trabalho considerada como não- Glênio Peres demonstra uma herança

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óbvia da sociedade escravista. Especificamente no país, houve a falsa transição do trabalho escravo para aquilo que se convencionou chamar de trabalho assalariado. Desde o final do século XIX, aos cidadãos juridicamente libertos pouco foi garantido. Uma das consequências foi o afastamento dos negros da educação formal ou de alguma forma de treinamento técnico. “A gente sai de uma escravidão não paga, para uma paga. Mas ainda assim escravidão se você considerar as dimensões psicológicas, e também o fato de que, com o restrito salário que essas pessoas recebem, a condição de vida não é muito diferente daquilo que um escravo tinha”, define o psicólogo. Ele sublinha que os garis estão, inevitavelmente, em situação quase como de um cachorro de rua. No geral, não têm onde fazer suas refeições, um banheiro para utilizar, ou qualquer ponto de apoio. A cultura dos assédios e humilhações sobre os corpos das mulheres garis já está


resiliente na vida delas. As trabalhadoras ignoram as situações. Por vezes, o olhar voltado para o chão faz suas estruturas físicas se movimentarem apenas pela companhia de uma pá ou daquele utensílio de cabo comprido, grosso e de cerdas volumosas e largas. Apesar de todos os relatos e acontecimentos soarem como comuns, o profissional traz à baila os ensinamentos do autor, educador e também psicólogo Pierre Weil. Conforme Costa, que inclusive participa de projetos levando magistrados a experimentarem um dia de gari ou como outros profissionais invisibilizados pela sociedade, Weil batizou essas ocorrências como normose. Acontece, porém, serem eventos neuróticos e adoecidos. Enquanto na superfície prática da realidade encaram-se as problemáticas como normais, na definição teórica do autor essa normalidade não existe. No lugar dela está aquilo que avaliou traduzir como uma considerada normose social.

OLHAR DA

REPÓRTER

Se não compusessem as ruas, estes espaços seriam expressos com significados de vazios. Mas o mais interessante disso tudo, é que mesmo com as ruas cheias e compostas pelas gentes todas, há seres humanos de extrema relevância que passam despercebidos e são atropelados por quem os atravessam. Como se fosse considerado normal não enxergá-los, porque criou-se o hábito de eles não serem percebidos. Se eu perguntasse, hoje, quantas garis você viu ou cumprimentou, provavelmente você não saberia dizer. Até uma fonte entrevistada, mas não utilizada na matéria, a mim me relatou que nunca viu uma gari pelas ruas de Porto Alegre. Foi por esta razão que escolhi um tema tão pertinente. As mulheres garis cumprem uma função social mesmo àqueles que as desprezam, humilham e assediam. Inclusive, dentro do próprio meio ou entre familiares que não aceitam o serviço. Por isso, conversei com Bete Flor por cerca de três horas, na casa dela. Já Simone Regina, eu a acompanhei durante um intervalo de almoço, na sessão Centro da Cootravipa. Por fim, caminhei junto com Simone até seu local de varrição, a observei e fotografei. Assim como tantas, Bete e Simone são duas mulheres que precisam ter suas histórias conhecidas para se quebrar a girândola do preconceito e a então relatada normose social.

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TRANSPORTE PÚBLICO

DA ROLETA

para a rua 18


Projeto de lei aprovado pela câmara de vereadores de Porto Alegre coloca em risco a profissão de cobradores na capital Texto e fotos

Luã Fontoura

E

m pouco tempo, enche o ônibus no centro da cidade com destino ao bairro da Agronomia. A catraca gira pela última vez, o motorista liga o carro, o motor começa a fazer barulho, e surge, lá na frente, uma voz feminina, de tonalidade aguda avisando que a hora chegou. As portas podem ser fechadas e que é o momento de partir. Ela está usando alpargatas cinzas, camisa azul, calça preta, amunhequeira no pulso esquerdo tapando meia tatuagem que leva nomes entrelaçados em batimentos cardíacos acompanhados de corações vermelhos. Está sentada no ponto mais alto e na melhor poltrona do ônibus e parece uma espécie de comandante, controlando quem passa para o outro lado, recebendo notas e moedas, sinalizando quem desce, de sua janela controlando o trânsito. E não menos importante: de olho em tudo que acontece, sem perder atenção um instante. Fernanda Hansen, de 45 anos, é formada em curso técnico de engenharia elétrica, mas não pode seguir por ter de parar sua faculdade. Decidiu então por fazer concurso para entrar na Carris, onde trabalha há mais de 20 anos como cobradora. Depois de quase metade de sua vida trabalhando dentro do ônibus, ela define a profissão como fundamental: “Imagina o motorista ter que cobrar, dar informações, avisar os passageiros onde

descer, ter que ajudar sozinho um cadeirante a embarcar? Agora tu imaginas fazer isso tudo sozinho, nos horários de maior movimento das nossas linhas? É praticamente impossível sem o cobrador, e querem a extinção da profissão”. Aos poucos, de parada em parada, o número de passageiros aumenta, não há mais espaço para que seja possível sentar-se, e os passageiros em pé a escondem, já não é possível de a enxergar, e sim, apenas de a escutar. Entre tráfegos e trânsito lento, entre pontos e destinos, questões na sua maioria com respostas, nem sempre a viagem é cercada de tranquilidade. No fim da linha, antes da última corrida do dia, é ameaçada por uma mulher loira: “Vou ligar pra tua empresa e reclamar”. Sem tempo a perder, antes de recomeçar, olha pela janela e diz: “Podem começar a passar”.

Extinção precoce

Carlos Muller, de 52 anos, é cobrador há 23 anos, e desde 2014 exerce função de secretário geral do Sindicato dos Rodoviários de Porto Alegre (STETPOA). Segundo Muller, como é conhecido, o sindicato já sabia que a qualquer momento a proposta que prevê a extinção gradativa de cobradores de ônibus na Capital seria votada na Câmara de Vereadores e que aprovariam o projeto, porém, acredita que este não é o momento para

que ocorra. “Primeiro para que se consiga ter transporte coletivo sem cobrador é necessário um preparo, e hoje, a estrutura do transporte de Porto Alegre não é sugestiva, a população não está adaptada para que isso aconteça. Então, sabíamos que isso viria a acontecer, mas entendemos que foi de maneira precoce, entendemos que este projeto deve ir além do ano de 2026”, avalia. Sobre os motivos que levaram à aprovação do projeto, e de quem viria a fazer a cobrança das passagens, para ele, tudo ainda está muito vago, não houve no projeto apresentado essa definição, e faz uma comparação com o transporte público da região metropolitana. “Nós do sindicato sempre questionamos isso nas reuniões. Há um sistema para isso? Se existe, não mostraram para nós. Começaram este projeto de cima para baixo, primeiro deveriam tirar o cobrador, para depois ver como ficaria. O que a gente entende é que eles estão apegados na diminuição do valor da tarifa. Fizeram isso nos ônibus da região metropolitana, tiraram os cobradores, e a tarifa não diminui, pelo contrário, aumentou”, manifesta. Ainda sobre os motivos que podem ter levado à aprovação, o professor e pesquisador da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Cláudio Mazzilli analisa uma série de fatores. “Não podemos deixar de registrar que todo o serviço de transporte público de Porto Alegre é ruim, e que também a passagem é muito cara. Temos frotas com muitas deficiências, frotas que não cumprem com as demandas, como ar-condicionado, limpeza e conforto. A passagem no valor de R$4,80 é muito cara”. O professor também comenta sobre a proposta de cursos apresentadas no projeto, que visa o aproveitamento dos cobradores em outras funções: “Parece que vão ser fornecidos cursos de formação. Seria interessante buscarem se autodescobrir, mas assim, pensarem | dezembro/2021 | 19


muito bem se querem Fernanda em cursos gratuitos. Uma optar por plano de de- frente ao símbolo parceria da Carris com missão ou não. Isso fica da Carris, onde o Sest/Senat, além disbem claro, e de ver as trabalha há 20 anos so, tenho visto muitos como cobradora, condições financeiras.” momentos antes colegas de volta aos esBom, e Fernanda? de entrar para tudos, se formando, busDepois de todos estes bater o ponto cando por conta própria anos, nunca pensou no uma qualificação, então, que é ser cobradora, mas vê a em- tudo depende de cada um”. presa onde trabalha preocupada Ali, depois de tantas idas e vine dando oportunidades para seus das diz que se sente feliz: “A única funcionários. “Não sei como será coisa que eu sei é que gosto do que no futuro, mas a Carris tem ofere- faço. Foi trabalhando como cobracido aos cobradores chance de se dora da Carris que conquistei meus profissionalizar como motorista, sonhos”. Além disso, fala que as por exemplo. Eles disponibilizam amizades que fez durante todos aulas para aqueles que já possuem a esses anos de empresa são muicarteira de habilitação da categoria to importantes para ela. “Ganhei D e querem adquirir prática, e no amigos que hoje posso dizer que meu caso, para quem quer ter a são meus familiares, trouxe peschance de conseguir se habilitar soas maravilhosas para a minha na categoria. Nós fomos sorteados vida”. Ela é apenas uma das pouco para tirar carteira, com todos os mais de 2.600 pessoas que traba20

lham como cobradores na cidade de Porto Alegre e que a partir da data da aprovação do projeto, não sabem como será o seu futuro. A aprovação da extinção gradativa de cobradores de ônibus na capital se deu no dia 1 de setembro por 21 votos a favor e 12 contra. Segundo a Prefeitura de Porto Alegre, a medida faz parte de um dos principais projetos do governo para reduzir o custo da passagem de ônibus na cidade. Inicialmente será permitido às empresas as viagens sem cobrador, diariamente, entre 22h e 4h. A mudança deve ser gradativa ao longo dos próximos quatro anos, até 31 de dezembro de 2025, com a não reposição de vaga para cobrador pelas empresas nos casos de rescisão do contrato por iniciativa do trabalhador, despedida por justa causa, aposentadoria, fa-


lecimento e interrupção ou suspensão do contrato de trabalho. No último dia 23 de novembro, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, sancionou o projeto de extinção gradativa da função de cobrador no sistema de transporte público da capital. A sanção foi publicada em edição extra do Diário Oficial da cidade. Lá atrás, faz o sinal e desce no fim da linha o passageiro restante, e junto dele, o final do expediente. É hora de ajeitar o material de trabalho para a próxima jornada. Fecham-se as janelas, são somados os valores recebidos, se anota o total de quantas vezes a catraca girou. Carro na garagem, ponto batido, chega o momento de ir para casa, para apenas algumas horas depois, mais uma vez, a rotina ser repetida.

OLHAR DO

REPÓRTER

Passando pela primeira experiência de desenvolver uma reportagem literária, ter de acompanhar a personagem principal do meu texto no seu trabalho foi uma novidade, mas também teve desafios. Das vezes que a acompanhei, percebi expressões de Fernanda que mostraram o seu humor no dia, variando entre tons de felicidade com tons de raiva. Entrevistá-la nestes dias de humor variado foi um desafio, por algum momento imaginar que por qualquer descuido, a entrevistada não quisesse mais fazer parte da matéria. Conforme nossas conversas foram caminhando, pude perceber que Fernanda, por mais que tenha sua profissão a risco, não deixaria isso lhe derrubar, até mesmo ontem dissera que está à procura de uma nova função dentro da Carris. Conforme relatos do Secretário Geral

do Sindicato dos Rodoviários, o momento para a retirada dos cobradores dos Ônibus em Porto Alegre não é o ideal, mas se já se sabia que isso viria a acontecer, porque não foi feito um preparo e/ou aviso prévio? Fica a impressão de que a STETPOA defende o que lhes convém, e não o que deveriam defender. O secretário me diz que o povo ainda não está preparado para andar em ônibus sem cobradores (onde preparado lê-se não sabe se portar), e este mesmo secretário me diz, na mesma entrevista, que nas ruas, o povo pensa que o sindicato não está ao lado deles, mas que na verdade, eles estão sim também defendendo o povo. Até mesmo Fernanda, além de outras cobradoras no qual tive contato rápido, alertaram que a STETPOA parece não defender o que eles propõem, o mesmo que senti ao entrevistá-los.

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FOME

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urgente UM DIREITO

Fome é classificada como a maior calamidade social e atinge mais de 10 milhões de brasileiros Texto e fotos

Gabryela Magueta

O

prato do dia tem feijão preto, massa parafuso com molho vermelho e salsinha e farinha de mandioca com ervilhas e batata palha, junto com um talher de plástico. Vanessa, moradora de rua de 55 anos de cabelos pouco grisalhos e olhos castanhos é uma senhora frágil e delicada em seus gestos que se senta nos bancos próximos, abre sua marmita com cuidado e bebe o copo d’água rapidamente. É nítido que ela tem sede. Vanessa sorri, diz que está cansada e prepara-se para comer. O que ela mais gosta de comer (quando há o que comer) é um prato de feijão e carne, alimentos recomendados pelo Guia alimentar para a população brasileira. Vanessa não consome carne faz semanas e diz que come frutas quando lhe oferecem na rua ou as encontra pelo chão. “Infelizmente, eu não como bem, como eu gostaria. Eu sinto fome todos os dias”, diz. Segundo o dado mais recente do IBGE, da “Pesquisa de orçamentos familiares (POF) 2017-2018: Análise da segurança alimentar no Brasil”, cerca de 10,3 milhões de pessoas moravam em domicílios com insegurança alimentar grave — o grau mais severo entre três relacionados à privação de alimentos, aquele que pode levar à fome. O número não é o maior da série (medida em 2004, 2009 e 2013), mas mostra inversão da queda que vinha ocorrendo. Em 2013, em torno de 7,2 milhões estavam nessa situação. Vanessa conta que hoje tem mais do que quando era uma menina, no interior do Estado, em São Borja. “Era preciso trabalhar em troca de comida. Antes eu comia migalhas e o que a minha família podia me dar. Hoje tô sozinha”. Ela relembra, com os olhos em lágrimas, que, nos tempos mais difíceis, se sentia mal e fraca ao não comer como deveria

e não tomava água de qualidade. “Moça, você percebeu o quanto eu bebo água!? Eu não tinha água. Eu lembro que meu pai trazia feijão pra casa. Da comida, a minha mãe fazia caldo de feijão e eu e meus irmãos a gente comia com farinha. Era o que a gente tinha. Quando eu era mais moça, eu comia miúdos com banana”, relembra. Vanessa frequenta o PF das Ruas no viaduto Imperatriz Dona Leopoldina – conhecido como “Brooklyn”, no cruzamento da avenida João Pessoa com a rua Sarmento Leite, no Centro de Porto Alegre. Quando acontecem as ações do projeto, são instalados espaços para alimentação, barbearia, confecção de documentos, acesso a projetos e programas de inclusão social. A ajuda é para todos que têm fome, incluindo pensionistas menos afortunados, jovens pobres e moradores de rua. As marmitas são servidas em pratos de alumínio e, acompanhadas de um copo de suco ou água, levadas a uma grande mesa para sua distribuição.

Identidade e dignidade

“Tudo que é alimento é vestido de um sentido sociocultural extre| dezembro/2021 | 23


mamente importante. É tradição, é invenção humana, criação culinária. Precisamos criar uma cultura que veja o direito à alimentação como um direito soberano! É um direito soberano”, afirma Marilia Veríssimo Veronese, docente e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Unisinos. Ela reforça a ideia da alimentação como forma de cultura, identidade e de um direito básico coletivo. Há inúmeras pessoas no viaduto porto-alegrense, dos mais jovens aos mais velhos. Existem dois aspectos importantes e comuns entre eles: a fome e o gosto pela carne. Todos sentem a mesma falta e as palavras churrasco e carne estão presentes em suas falas. Para a nutricionista Giullia de Lima e Silva, o consumo de carne como uma característica, sobretudo, tradicional e cultural e emocional deve 24

ser levado em consideração quando se olha para aqueles que estão passando fome. “No Rio Grande do Sul, o consumo de carnes é ainda maior pelas nossas tradições. Isso acompanha o consumo de ovos e de frango, porque são fontes de proteínas mais baratas e, paralelo a isso, o número de vegetarianos cresceu. Não só pela preocupação com o planeta, o consumo de água e consciência ao meio ambiente e aos animais mas, pela falta de recursos financeiros para comprar carnes e proteínas de origem animal. É muito importante entender que existem inúmeras influências; as culturais, sociais e pessoais, ligadas à alimentação, essencialmente as influências familiares. Onde, normalmente, desde crianças vemos nossos pais se alimentando, o que eles colocam nas nossas mesas e a oferta de alimentos. Isso pode definir como serão nossas preferências alimentares quando formos adultos. Para nós, profissionais da saúde, é primordial entendermos todo este contexto por trás da alimentação de alguém”, explana. Colaboradores do PF das Ruas servem marmita composta por feijão preto, massa parafuso com molho vermelho e salsinha e farinha de mandioca com ervilhas e batata palha

Rose Carvalho, uma das coordenadoras do PF das Ruas, destaca o que vê comumente em seu trabalho: as condições das famílias, um prato de comida como forma de dignidade, as passagens pelo sistema prisional e a esfera do desemprego. “Muitas famílias entram em contato comigo para saberem onde seus filhos estão. Mas, muitas vezes, o filho enxerga a mãe e ‘se manda’ porque tem vergonha. Tenho relatos que, por exemplo, ‘Quando saí de casa, me tornei outra pessoa. Tive que me prostituir, me vender na rua para poder sobreviver, pra poder comer’”, comenta. E acrescenta: “Por exemplo, a dificuldade de tirar fotos pessoais é enorme! Muitos têm vergonha, porque não querem se expor, falar seus nomes verdadeiros, expor as suas famílias e alguns deles já tiveram passagem pelo sistema prisional e querem


simplesmente seguir com suas vidas. Tem de tudo aqui”, diz. “Até mesmo professores universitários, que falam mais de um idioma e estavam desempregados e eram os provedores da sua casa chegam aqui para pedir comida e até mesmo deixam seus currículos para a gente distribuir de alguma forma. Existem muitas pessoas com faculdade, profissões e com a pandemia o perfil mudou”, explica. A fala da coordenadora reflete os recentes dados divulgados de acordo com estudo do IBGE. Na população de 207,1 milhões de habitantes em 2017-2018, 122,2 milhões eram moradores em domicílios com segurança alimentar, enquanto 84,9 milhões moravam aqueles com alguma insegurança alimentar, assim distribuídos: 56 milhões em domicílios com insegurança alimentar leve, 18,6 milhões em domicílios

com insegurança alimentar moderada e 10,3 milhões de pessoas residentes em domicílios com insegurança alimentar grave. Segundo o relatório Desemprego, pobreza e fome no Brasil em tempos de pandemia por Covid-19 divulgado pela SciElo, no terceiro trimestre de 2020, havia 13,7 milhões de pessoas sem trabalho (14,6% da população com 14 anos ou mais), com um aumento de 3 milhões de pessoas em janeiro de 2021. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) também identificou o crescimento do desemprego, atingindo 13,7% da população em julho de 2020 e justificado pela retração das atividades no mercado de trabalho devido à pandemia. “O nível de instrução deles está maior, mas acabaram perdendo seus empregos e consequentemente suas condições

[financeiras]. Assim, quem está na rua perde sua dignidade, seus valores e seus princípios. As pessoas mudam quando estão nas ruas”, conclui Rose. João, 41 anos, é dessas pessoas que estão desempregadas: “Eu como em alguns lugares. Tô há mais de dez anos nas ruas”. Encontro João em minha segunda visita ao Centro e percebo uma agitação muito grande da parte dele. João chega rapidamente à fila de entrega de quentinhas e separa um lugar para conversarmos. Pergunto sobre suas memórias mais antigas ao comer com seus pais ou amigos e ele conta com um meio sorriso delicado. “Desde pequeno tenho dificuldades para comer. Vim de uma família muito humilde da Bahia. Vim pro Sul com um primo meu e moro em Viamão. Num dia bom, a minha mãe tentava dar alguma coisa pra vizinha. A gente comia batata, farofa e manga. Mal tinha o que comer. O que tinha era festa”, afirma. Os pratos são organizados em Para Mariana Petracco, nutrigrandes mesas cionista e promotora em saúde da montadas população negra pela Secretaria sob o viaduto Municipal de Saúde, temos que enImperatriz Dona tender que a fome tem origem social Leopoldina, em Porto Alegre e política. “Vivemos uma estrutura

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Homens reunidos se alimentam na escadaria da escola da UFRGS, próximos à Praça Argentina

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permeada pelo racismo que acaba dificultando e privando certas populações do acesso à alimentação adequada e saudável e a existência de uma manutenção desse sistema racista também. Não podemos ver só a alimentação como uma escolha individual, como força de vontade. Temos que levar em consideração a educação, o ambiente de trabalho, as condições de vida, o desemprego, a qualidade dos recursos básicos como água e esgoto”.

Insegurança alimentar

“Temos que pensar também no nutricídio, que é uma forma genocídio através da alimentação”, destaca a nutricionista. A expressão, que tem como sinônimo o genocídio alimentar, foi criada pelo norte-americano Llaila Afrika, médico e autor do livro Nutricide: The Nutritional Destruction of the Black Race, considerado uma das autoridades mundiais em saúde e nutrição. “A fome tem origem social e política, então ela é sustentada pelas desigualdades sociais, junto com uma renda insuficiente e com a questão do monopólio da agricultura de exportação. Existe uma ausência de um plano de combate à insegurança alimentar e nutricional no país hoje. Quem tem fome, tem pressa”, finaliza Mariana. “A segurança alimentar é um dos principais termômetros para medir a dignidade, a responsabilidade de um país e de sua gestão pública”, diz a professora Marilia Veríssimo, que indica que o quadro de insegurança alimentar do Brasil em 2021 permanece. “O que esperar de um país que investe no seu setor industrial, na diversificação de sua economia e retrocede em outros setores? A fome é a maior calamidade social, como tratou Josué de Castro, médico e ativista político brasileiro e autor das obras Geografia da Fome e Geopolítica da Fome. A fome é funcional. Mantém a sociedade como está e o status quo é favorável para alguns atores sociais, os poderosos. Por isso

a questão se perpetua, portanto, a criação da agenda pública em torno do problema da fome é fundamental”, destaca Marília. Miguel, 77 anos, aposentado e pensionista, relata que frequenta as distribuições de comidas pela cidade de Porto Alegre há mais de dez anos. Aos sábados, vai até o PF das Ruas e durante a semana vai até o Bandejão na Travessa das Voluntários. “Sou morador do Bom Jesus e venho todo sábado comer aqui. Como massa, feijão, arroz, às vezes tem um franguinho, mas não é sempre, e tem salsicha. Eu não tenho frescura com comida, não sou exigente. Sou aposentado, ganho pouco [1 salário-mínimo] e pago aluguel. Então, eu almoço onde tem lugar. Quando posso, eu faço uma comidinha em casa. Mas tá ruim, tá bem difícil”. Sobre seu dia a dia, ele diz que há muito passa por dificuldades e que se alimenta do jeito que é possível. “É diferente tu ver um velho de olho azul e bem-vestido comendo uma quentinha debaixo do viaduto, mas eu estou aqui. Todos temos uma dificuldade. Hoje em dia, meu maior desafio é pagar minhas contas. Passo neces-

sidade como muitas pessoas que vêm comer aqui”, diz. Ele veste uma camisa de algodão branca com detalhes em azul, calça de linho cinza e sapatos escuros. O jovem de 26 anos de barba e olhos escuros brilhantes que faz peças em metal maleável se chama Antônio e traz consigo três sacolas com seu material de trabalho e um casaco vermelho em seus braços conta que está nas ruas há três meses e que saiu de casa por conta de brigas de família e da dificuldade em arrumar um emprego. “Eu tinha uns bicos aí, mas não deu certo. Na pandemia, tudo piorou. Faz pouco tempo que eu tô nas ruas, não consegui um emprego e, a partir disso, eu tô passando fome. Tô trabalhando pelas ruas da Redenção e do Centro e procurando um emprego de carteira assinada. Em casa, eu não tinha muito acesso a comida também. É dolorido”. O IBGE ainda não mediu o impacto da pandemia de covid-19 na segurança alimentar, mas o cenário é alarmante. A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) divulgou no início do ano a estimativa de que 19 milhões de brasileiros enfrentaram a fome em dezembro de 2020, a pior condição que atinge 116,8 milhões de brasileiros na insegurança alimentar. Os resultados deste inquérito alertam que “Toda a sociedade brasileira, bem como os/as gestores(as) públicos(as), para a natureza urgente e imprescindível de ações e políticas públicas efetivas que, respeitadas as restrições impostas pela crise sanitária que se agrava no Brasil, auxiliem os grupos populacionais mais vulnerabilizados e promovam a Segurança Alimentar e Nutricional.”

OLHAR DA

REPÓRTER

Escrever uma matéria sobre a fome em meio à pandemia e à crise sanitária foi desafiador. Eu estava lá, próxima de pessoas que eu não tinha ideia como estavam vivendo e se cuidando. O tema, para mim em particular, foi algo muito importante. Presenciar a fome é como um soco no estômago e um nó na garganta. Dilacerante. Ouvir e enxergar com os meus próprios olhos o que é a fome, mesmo que por pouco tempo, me causou uma sensação desconfortável. A reportagem me proporcionou conhecer pessoas, algumas mais dispostas que outras para conversar comigo e tudo foi compreendido. Entender que a fome está ao nosso lado, está perto, está ao sair de casa. A fome é uma questão de saúde pública, política e de dignidade. Escrever sobre as lembranças de dor e ver a satisfação de quem se alimenta não tem preço. Percebi que dois de meus entrevistados estavam prestes a chorar. Abrir a geladeira nunca se tornou uma lição tão grande.

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VIOLÊNCIA

o corpo

O ESPAÇO É PÚBLICO, De acordo com o Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva, 81% das mulheres já sofreram violência em seus deslocamentos pela cidade.

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Texto

Jessica Montanha

E

ra um começo de noite quando, como em diversos outros dias, Lorena Ifé vestiu a sua “roupa de academia” para a sua habitual atividade física, a caminhada. O local escolhido era o de sempre, perto de sua residência, mais precisamente na Avenida Anita Garibaldi localizada no bairro Federação, em Salvador, na Bahia. A Garibaldi, como popularmente é chamado o logradouro, conta com um canal no canteiro central, onde também há ciclovia, pista de corrida e caminhada. A baiana conta que estava fazendo a caminhada pela calçada da Garibaldi e que a violação partiu de um homem em um caminhão, daqueles que levam carros apreendidos em blitz. “Gostosa”, gritou o homem. “Naquele momento me subiu muita raiva, muita raiva”, relembra Lorena. “Aí eu fui correndo procurar uma pedra, porque a minha intenção era voltar e rumar a pedra nele. Aí depois eu fiquei pensando nas coisas que poderiam ser causadas e que ninguém iria querer saber o que esse cara falou”, completa o relato com desânimo. O que aconteceu com Lorena não deve ser encarado como um caso pontual e esporádico. Isso também serve para a sua reação, de preferir não se manifestar, por receio que ninguém fosse acreditar. Por isso, Ester Rodrigues, psicóloga que atende no Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Cram), localizado em Porto Alegre (RS), ressalta que os impactos que as violências sexuais causam na vida das mulheres são profundos e persistentes, e que o primeiro atendimento feito à vítima seja sensível e receptível, em decorrência do possível processo de fragilidade pelo qual foi submetida. “Importante o acolhimento do relato e o não julgamento”, enfatiza. Raiva, medo, nojo, sensação de impotência e invisibilidade são sentimentos frequentes no relato de Lorena. Depois dessa violação, a baiana confessa que não consegue sair para fazer a sua caminhada cotidiana. “Nem tenho direito disso”, reflete. “Me sinto muito vulnerável. Nesse dia até chorei, chorei de raiva. E desde esse dia eu não consegui voltar a caminhar. Não consigo mais voltar a caminhar”, desabafa. Durante a sua confidência, é perceptível o peso da angústia do que é ser mulher no Brasil. Infelizmente, esse relato coincide com a realidade de muitas mulheres de outras regiões do país. Na percepção de Lorena, “os homens não sabem os seus limites”. Conforme os dados da pesquisa Percepções sobre segurança das mulheres nos deslocamentos pela cidade, promovida pelo Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva e divulgada em outubro de 2021, 81% das mulheres já sofreram violência em seus deslocamentos pela cidade. Ou seja, a cada 10 mulheres pelo menos 8 não se sentem seguras nas ruas. Portanto, do momento em que saem de casa até retornarem, as mulheres brasileiras são do grupo mais vulnerável a sofrer uma violência nas ruas: 69% das mulheres já foram alvo de

Alex Rocha / PMPA

não

Quando se trata de uma mulher, o direito de ir e vir não se estabelece igualmente no Brasil já que a liberdade é diariamente impedida | dezembro/2021 | 29


Rodrigo Ziebell / SSPRS

olhares insistentes e can- O Rio Grande da mulher e antidiscrimitadas inconvenientes ao do Sul tem natório, a culpabilização se deslocarem pela cidade, 23 Delegacias da vítima é uma questão 35% já sofreram impor- Especializadas de que é ventilada na maioria Atendimento à tunação/assédio sexual Mulher (Deams), dos casos de importunae 67% das mulheres ne- que são unidades ção sexual. “Se faz urgengras relataram ter passado da Polícia Civil te uma mudança cultural por situações de racismo focadas em ações na nossa sociedade, de quando estavam a pé. de prevenção, maneira a desconstruir apuração, Lorena ressalta que investigação e a ideia de que a vítima já sofreu outros assédios encaminhamento pode, de algum modo, que, inclusive, acontece- legal dos crimes provocar a agressão soram em plena luz do dia. frida”, explica. Ainda de Apesar de estar realizando uma acordo com Jéssica, são de extrema prática esportiva e para isso, obvia- importância campanhas de consmente, ser necessário o uso de uma cientização que ressaltem que a roupa específica, se sente pressio- vestimenta ou o comportamento nada em não usar certos tipos de da mulher nunca serão justificavestuários. “Tem dias que eu penso tivas para a conduta do agressor. assim: ‘ah, queria sair com essa rou- “Principalmente em relação às mupa’. Mas não vou sair, não... porque lheres negras, que historicamente com certeza vou ser assediada”, re- sofrem com a hipersexualização lata. O turno do dia e o quesito rou- de seus corpos”, ressalta. pa, são aspectos que normalmente Assim como com outras mulhesão apontados pelo senso comum, res, a importunação sexual sofrida como motivadores de assédio. por Lorena não será a primeira e Para a advogada Jéssica Silva muito menos a última. Em uma oude Oliveira, especialista em direito tra vez, Lorena estava “treinando” 30

em um espaço público na capital baiana, e ali perto tinha um rapaz em um posto de gasolina. Segundo a vítima, ao que tudo indicava, ele trabalhava no posto. E lá estava ele, “olhando fixamente” para ela. Apesar dos olhares, seguiu no local, mas como estava sozinha e ao perceber que o homem estava com a intenção de atravessar a rua para se aproximar dela, saiu rapidamente dali: “Eu sentia que não era seguro”. Mesmo nada sendo verbalizado, apenas pelo olhar de um homem foi possível se sentir invadida e insegura.

Machismo estrutural

O crime de importunação sexual, definido pela denominada Lei de Importunação Sexual (Lei 13.718/18), criada em setembro de 2018, se configura como crime independentemente se houver ou não contato físico. A advogada civilista Jéssica explica que o crime de importunação sexual é a “prática de ato libidinoso contra alguém e sem sua anuência, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia, ou seja, o próprio desejo, ou de terceiros, configura o crime de importunação sexual”. “A pena aplicada é de reclusão de um a cinco anos, se o ato não constituir crime mais grave, conforme estabelece o art. 215-A do Código Penal”, completa a advogada. De acordo com a delegada adjunta da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) de Porto Alegre, Alice Jantsch Fernandes, essa mudança legislativa tomou força em razão de um caso especí-


fico, ocorrido em 2017, em que um homem ejaculou em uma mulher dentro de um ônibus na Avenida Paulista, no Centro de São Paulo (SP). “Essa lei veio para tutelar de forma mais eficiente a dignidade sexual da pessoa”, enfatiza a delegada. Apesar de a lei existir há três anos, Lorena explica que nunca realizou denúncia às autoridades competentes, até pela falta de conhecimento da lei na época e pelo motivo de não conseguir identificar os autores dos crimes. “É tudo muito rápido”, comenta. Além da falta de conhecimento da Lei de Importunação Sexual, segundo a delegada Alice, uma das principais causas está atrelada às questões culturais, como o machismo. “Algumas mulheres têm vergonha de contar a respeito dos fatos, elas não querem ver a sua intimidade sexual mais devassada ainda por meio de um processo, de que outras pessoas tomem conhecimento disso, do fato ocorrido. Também tem a questão que muitas delas acham que não vão ser acreditadas pelo que estão narrando, é uma questão de machismo mesmo da nossa sociedade. É uma questão bem delicada e que tem que ser abordada de uma forma diferenciada pelos profissionais que atendem essas vítimas”, explica Alice. Por essa razão, a subnotificação de casos de crimes sexuais é altíssima. Segundo a delegada Alice, fala-se que em torno de apenas 35% dos crimes chegam ao conhecimento das autoridades competentes. “É um percentual bastante baixo que chega ao nosso conhecimento e que pode ser investigado”, comenta. Conforme os dados obtidos pela Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP/RS), desde o início da criação da Lei de Importunação Sexual, o estado gaúcho recebeu em torno de 3 mil registros de crimes de importunação sexual. Números considerados baixos por especialistas no assunto. Segundo a advogada Jéssica, a criação da Lei de Importunação Sexual com pena de reclusão já

pode ser considerada um grande avanço. “Antes da promulgação da Lei, a conduta era considerada como contravenção penal, sendo punida apenas com multa”, ressalta. “Sem dúvidas a Lei veio para dar mais segurança às mulheres, principalmente em espaços com maior incidência de assédio, como no transporte público, por exemplo. Além de uma responsabilização mais compatível com a extensão da agressão”, enfatiza a advogada. Nessa mesma linha, a delegada Alice comenta que a lei se mostra um verdadeiro avanço, já que antigamente esse tipo de crime “era tutelado de uma forma insuficiente” e que “agora temos uma pena de prisão que inclusive cabe prisão preventiva”. “Inegavelmente, isso é um avanço”, reforça a delegada.

Combate à violência

Independentemente dos progressos, a delegada Alice e a advogada Jéssica também concordam que ainda há um longo caminho a ser percorrido em nome da luta contra a violência de gênero e que se trata de um problema socialmente estrutural. “Acredito que um dos maiores desafios é a mudança comportamental da sociedade como um todo, uma vez que o cerne da lei é justamente uma das condutas resultantes do machismo estrutural, ou seja, a violência contra a mulher”, analisa Jéssica. Segundo a delegada Alice, ainda há muitos desafios para a Lei de Importunação Sexual, mas que o principal desafio é a mudança cultural acerca da igualdade gênero. “Do respeito dos uns aos outros, mudança essa que é promovida pela sociedade como um todo”, explica. “A nossa atuação como Polícia Civil, como sistema de percepção penal, atinge apenas uma parte disso”, completa a delegada. Apesar de o Brasil ser um país omisso com a vida das mulheres, é evidente que só será possível uma mudança favorável quando a sociedade agir em conjunto. Uma das medidas possíveis é, conforme conta a advogada Jéssica, a que tomou o

time de futebol brasileiro Atlético Mineiro, que incentivou os torcedores a denunciarem, durante os jogos do clube, condutas que caracterizassem o crime de importunação sexual. “Esse movimento aconteceu logo após três vítimas registrarem denúncia de casos ocorridos dentro do estádio do Atlético-MG. Tal iniciativa do clube só revela o quanto é necessário investir em campanhas de conscientização nesses espaços majoritariamente ocupados por homens, de maneira a torná-los mais seguros ao público feminino”, exemplifica Jéssica. Na opinião da delegada Alice existem outros recursos de promoção ao combate da violência de gênero, “precisamos de toda uma questão de conscientização, desde as escolas, os meios de comunicação, as empresas, os empregadores, de forma de promover uma mudança de cultura. É o único jeito que poderá ser falado de forma eficiente a questão de crimes sexuais e violência de gênero”. A delegada enfatiza que as vítimas que sofreram alguma situação de crime sexual não se deixem levar pela vergonha ou pelo medo do descredito. “A gente precisa que vocês venham até nós e nos contêm. Não só por vocês, para que vejam o agressor recebendo uma punição, mas para também para todas as outras mulheres que possam vir a ser vítimas. É uma responsabilidade, não só individual, mas para com a coletividade a denúncia sobre estes crimes”, ressalta.

OLHAR DA

REPÓRTER

Ao determinamos a rua como tema da edição, pensei logo na restrição de liberdade que nós, mulheres, temos ao circular em espaços e vias públicas pelas cidades. O livre-arbítrio, coincidência ou não, é um substantivo masculino e não pertence às mulheres. O direito à liberdade de locomoção no Brasil, conforme consta na Constituição Federal, só é válido em tempos de paz, podendo ser impedido esse exercício caso seja decretado Estado de Sítio. Irônico, pois ser mulher nesse país equivale a viver em um estado de guerra civil permanente. Não há tempos de paz para as mulheres. Portanto, por meio dessa reportagem, busquei como objetivo escancarar essa realidade tão cruel pela qual passamos diariamente. Ao falar de Lorena, falamos de muitas. Entretanto, apesar das estatísticas apontarem ser muito comum de as mulheres sofrerem importunação sexual, conseguir o depoimento de uma vítima foi a maior dificuldade durante a construção dessa reportagem. É triste e revoltante que precisamos de uma lei que diga que temos o direito de ir e vir, mas devemos denunciar essa violação de nossos espaços e dos nossos corpos.

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TRABALHO

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DA OCUPAÇÃO À

Coletivo Amada Massa gera renda à população de rua em Porto Alegre

panifi cadora Texto e fotos

Denilson Flores

P

assava o meio-dia e trinta quando cheguei a padaria para a primeira visita na casa transformada em panificadora. Ao lado direito de quem entra está a bancada em inox, forno, formas, um longo armário com mantimentos e um fogão industrial ao fundo, onde um dos colaboradores fazia o almoço: arroz, feijão, carne com molho. Acredito que tinha salada, mas não reparei, não é algo que me chama a atenção, mas o aroma que vinha das panelas estava maravilhoso e muito atrativo. Os apoiadores almoçam lá mesmo, na cozinha ou sentados no pátio em meio à reunião. Do lado esquerdo havia dois quadros – um branco e outro pardo daqueles em que se postam folhas com alfinetes, o primeiro com a escala de trabalho semanal e no segundo uma folha com os contatos da Amada Massa, formas de pagamento – transferência bancária, PIX, aplicativo Papayas – e uma reportagem do Diário Gaúcho com a história da panificadora. O coletivo Amada Massa é um projeto organizado e desenvolvido por pessoas em situação de vulnerabilidade social que visa a geração de renda através da produção e venda de pães, pizzas – panetones

dependendo da época - aos seus associados e clientes da padaria. Esses alimentos são feitos com ingredientes veganos e fermentação natural, como visto na segunda visita, em que os trabalhadores já tinham duas sacas de beterraba para a base de um dos pães da semana.

A importância das reuniões

Ainda no primeiro dia, nos fundos da casa, em frente a uma pequena horta, reuniram-se 11 pessoas, em círculo, para conversar sobre as pautas. A primeira, sobre a adesão de novos membros, no qual se comprometem a participar de três reuniões seguidas para fazerem parte da comunidade, era o caso de um novo apoiador que chegava naquele momento – essa é uma regra sagrada na existência do coletivo. Na segunda parte, em discussão acalorada, literalmente, isso porque fazia mais de 25°. Edson Campos opinou sobre a escala da semana e os valores que seriam pagos pelos turnos de trabalho. Nesse momento, os apoiadores faziam a contabilidade de quanto os trabalhadores da semana anterior deveriam receber e o quanto seria pago na semana seguinte, porque nem todos escalados poderiam trabalhar nos três turnos. Assim, o colaborador que fizesse um turno a mais ganharia uma fatia maior. Ao final, o grupo entrou em entendimento. Seguindo a reunião, houve conversa sobre as entregas que são feitas de bicicleta ou de carro, quando algum apoiador dá esse suporte. A Amada Massa possui associados do Clube de Pães que moram longe e o uso do veículo facilita a entrega em pontos de coleta, nas zonas Sul e Norte de Porto Alegre. Assim, os moradores podem retirar seus pães nesses lugares. Em um terceiro momento, os apoiadores

e trabalhadores conversam sobre a produção de pizzas veganas. Nesse trabalho de planejar a produção, a Amada Massa busca comprar os ingredientes em locais com preços mais acessíveis como as famosas feiras de rua e o Mercado Público, como explicou uma das apoiadoras.

Um trabalho e um lar

Duas semanas depois estava novamente na panificadora, agora para conversar com os colaboradores que trabalhavam naquela semana. Ao chegar, o aroma do pão tomava conta da porta da padaria, já havia sido produzida e assada uma dezena de pães. Jones Barbosa, conhecido como Dentinho, o mais “resenha” do trio, na gíria do futebol, é aquele que é o mais engraçado, trabalha na Amada Massa há 3 anos. Iniciou frequentando as reuniões e lembra que esse é um dos pré-requisitos para estar no coletivo. Ele bate a massa dos pães, pesa e novamente bate com farinha de trigo até ficar com o peso correto para levar ao forno e depois sair para a entrega da tarde. Com um sorriso largo, me olha e conta que teve a oportunidade de aprender o ofício com a senhora Ma| dezembro/2021 | 33


Enquanto a primeira produção de pães está no forno. Beiço coloca as formas com massa na caixa de fermentação controlada

dalena, que produzia os pães e distribuía nos encontros semanais que aconteciam em uma ocupação do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgoto) na avenida Loureiro da Silva, próximo à rótula do Gasômetro. Como um dos beneficiados na época, recebia os pães, e depois saía para as vendas, dessa forma obtinha renda. Conforme escala, o trabalho ocorre de segunda a quinta-feira e divide-se em produção e distribuição aos assinantes do Clube de Pães. “A Amada Massa é mais que um projeto e mais que um emprego, significa ter uma profissão, padeiro. É um segundo lar”, conclui Dentinho. Edson Campos, 35 anos, o Beiço, de saída já tentou me ludibriar dizendo que tinha 27 anos. Olho para ele e para o Dentinho e percebo a risada dos dois que estavam frente a frente, um de cada lado da mesa de inox batendo a massa, e assim, continuando com o processo de pesagem. Quando chegava às 500g era colocada nas formas e levads a uma grande caixa de fermentação controlada – e depois para assar, assim que a produção anterior estivesse pronta. Beiço faz parte do projeto desde sua fundação e lembra que nas primeiras reuniões eram distribuídos 14 pães por casal, que depois eram vendidos pelas ruas. “Para a pessoa que 34

mora na rua é difícil de arrumar um trampo. É difícil as pessoas darem oportunidades para nós. Significa a oportunidade de ser dono do próprio negócio”, fala Beiço. Com todas as massas já no forno industrial, nos conta uma história inusitada ocorrida em uma das entregas, quando furou o pneu do carro de um dos apoiadores. Então, um segundo funcionário que estava na padaria teve que se deslocar de bicicleta até a avenida Protásio Alves para ajudar. Como um dos trabalhadores mais antigos do coletivo, comentou sobre uma regra, a mais importante. “A pessoa que faltar três reuniões tem que dar lugar para outra pessoa entrar”, encerra ele. Finalizando nosso papo, Beiço acrescenta que o Coletivo promove ações sociais com moradores de rua e a população afro-indígena, na Cidade Baixa.

Valor simbolizado da autonomia

Para entender melhor como funciona o acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade social, fui até a Aicas (Associação Intercomunitária de Atendimento Social), que possui um projeto voltado a moradores de rua. Lá, são desenvolvidas atividades através da criação de vínculos para encaminhamentos para rede de saúde, assistência jurídica, confecção de documentos, cursos e reinserção no mercado de trabalho. Ao chegar à Aicas, me deparo com uma construção de fachada amarela que se destaca entre outras da mesma rua no Centro Histórico de Porto Alegre. Sou recebido pela educadora social Amanda Porto e pela articuladora social e técnica referência Taiana da Silva para conhecer o trabalho


da Instituição. Em uma sala ampla, com uma grande mesa ao centro, e com distanciamento entre os participantes, iniciamos a conversa. Antes de qualquer resposta, Silva me entregou um folheto contendo a história da Aicas, que está completando 28 anos em 2021. Trabalham com a congregação da Divina Providência, em parceria com a Fasc (Fundação de Assistência Social e Cidadania). Há também três projetos em execução, Ação Rua (abordagem a moradores em situação de rua), SAF Floresta (Serviço de Atendimento Familiar) que faz atendimento aos moradores do bairro e Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculo, com adolescentes de 14 a 17 anos, onde desenvolTaiana da Silva, vem noções de Articuladora Social e Técnica cidadania. Referência Sobre gera(máscara branca) ção de renda, a e Amanda Porto, AICAS tem dois Educadora Social, projetos, o Eixo colaboradoras da Instituição Moradia e o Mais

Dignidade que é uma oficina em que os participantes aprendem a produzir vasos de cimento e recebem auxílio para a venda dos produtos feitos pelas pessoas que estão nesse projeto com duração de 6 a 12 meses. Ao final da conversa com Taiana e a Amanda, lembram que por acompanhar alguns colaboradores do coletivo, no início do projeto, em 2018, a instituição ajudou a Amada Massa com a doação de mesas de inox, liquidificador industrial, e na compra de pães feito através da assinatura do Clube de Pães. Sobre o coletivo, “É um projeto bem importante, é algo que se constituiu, porque trabalha a autonomia do sujeito. Alguns dos colaboradores da Amada Massa já foram ou são nossos atendidos e ver essa construção e evolução deles no coletivo é bem significativo”, fecha Taiana Silva.

Apoio e coletividade

Encerrando com Enio Rocha, 39 anos. Conhecido como Lesmão, fala de uma maneira mais calma,

apesar da voz grave. No dia estava encarregado de cozinhar para quem estava trabalhando, No forno fazia carne assada, salsichão e o arroz já estava pronto, mais uma vez o aroma era muito agradável. Trabalha na padaria desde o início de fevereiro de 2020. Lembrou que durante a pandemia a padaria ficou fechada, “Foi de muita ajuda do Clube de Pães que continuaram pagando a assinatura sem receber o alimento”, revela. Nesse mesmo tempo, fizeram parceria com instituições e ONGs que trabalham com a população de rua, e através de doações produziam e distribuíam lanches, tudo em trabalho voluntário. Ele que já esteve no outro lado, de receber auxílio, e agora pode ajudar diz que é a sensação é ótima. “O Projeto significa um incentivo, e o poder de mudar o rumo da família”, conclui. Lesmão já acompanhava o trabalho desde o tempo da ocupação, mas só procurou muito tempo depois. Participou dois meses das reuniões até que decidiu fazer parte. Destaca o trabalho da “galera do apoio”, aqueles que segundo ele, fazem o trabalho contábil, de comunicação através das redes sociais, e apoio psicológico. “Sem eles o trabalho não funcionaria porque acreditam no projeto”, valoriza Rocha. Sobre o trabalho lembrou que a Amada Massa recebe doações de ingredientes para a produção dos pães, pizzas ou lanches para venda ou distribuição gratuita pelas ruas.

OLHAR DO

REPÓRTER

Construir a reportagem não foi muito fácil, pois o Jornalismo Literário requer um olhar apurado do repórter, algo que preciso trabalhar - ficou muito nítido após a entrega da primeira versão do texto. Talvez tenha esse foco em assuntos relacionados a esportes, principalmente futebol, mas no momento que aceitei a pauta quis um desafio diferente, até porque as pessoas acham que sei falar apenas disso. Algo que às vezes é bom por evitar conversas desinteressantes, principalmente com negacionistas (aliás, desfiz amizades por isso) retornando ao relato. Então, a minha maior dificuldade foi conseguir descrever o sentimento ou algum detalhe, como a postura do entrevistado. Embora todos demonstrassem interesse em participar da matéria. A segunda dificuldade foi conciliar os encontros para as entrevistas devido ao meu horário de trabalho, em dado momento tive que sair cedo ou entrar mais tarde para realizá-las. No entanto, foram experiências muito gratificantes porque sair um pouco do ambiente laboral para conhecer pessoas, conversar, e assim, contar suas histórias é o DNA do repórter. Tais momentos foram de extrema felicidade.

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ESPAÇOS

Texto e fotos

Luiza Heinzelmann Soares

ESPAÇO VAZIO, MAS

cheio de memórias Como o Nova Olaria conquistou um pedaço nas memórias dos frequentadores

H

á mais de 20 anos, enquanto usufruía do espaço musical com diversos CDs expostos de múltiplos gêneros na entrada do cinema Guion, Milton Ribeiro teve sua melhor experiência como frequentador do Nova Olaria. Na época, acompanhado de sua primeira esposa (atualmente, já está no terceiro casamento), o amante do cinema alternativo estava “folheando” a seção de jazz quando, de surpresa, avistou um disco do contrabaixista Charles Mingus. Enquanto degustava o momento, o proprietário do local, Carlos Schmidt, que claramente não conhecia ainda o frequentador, apareceu ao seu lado e ali conversaram um pouco. Ao se despedir do Guion e colocar o CD de volta no local, de repente, o dono do cinema o questionou: “Tu gostasses desse disco?”. Nas palavras de Milton, surpreso, ele afirmou e acrescentou: “É um 36

clássico”. Inesperadamente, recebeu uma proposta: “Pode ficar com ele”. A oferta deixou Milton atônito, por achar que o proprietário pudesse estar o confundindo com alguém, mas não parecia se tratar de um caso de “confusão ideológica”, apenas o dono parecia ter feito um ato de bom grado. Anos depois, Milton e Carlos passariam a conviver diariamente como donos de espaços da galeria, mas nunca mais tocariam no assunto. Até hoje, Milton acredita ter se tratado de um mal-entendido, pois ambos não se conheciam ainda naquela época, mas após duas décadas do ocorrido, o assunto não veio mais à tona. Voltando ao longínquo ano de 1993, o centro comercial foi inaugurado no ponto mais movimentado da Rua Lima e Silva, com uma estética que remete à tipologia habitacional dos imigrantes italianos do início do século, contando com um espaço para cinema e catorze lojas. No auge dos 1990 e início dos

anos 2000, o Nova Olaria vivia sua época de ouro e virou um ponto de encontro para o happy hour do público LGBTQIA+. Ao lado da livraria Bamboletras, a cervejaria era o point para aquele encontro de amigos no finalzinho da tarde de domingo, bebendo madrugada adentro. Milton recorda que as aglomerações se expandiam para além do Olaria, o que ele chama de “invasão gay”, concentrando os arredores do local, até chegar na quadra seguinte.

Uma nova história

O ponto cultural Nova Olaria vai passar por uma reforma daqui nove meses, onde serão construídos, segundo Milton, três prédios no entorno da galeria: um onde está localizada uma academia, ao lado do espaço, um na Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul (Fadergs) e outro na garagem do espaço cultural. Por conta da construção, que vai levar em torno de dois anos para ser finalizada, o proprietário da Bambo-


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letras terá que se reestruturar em um novo estabelecimento. Ao tocar no assunto da reforma, o assíduo leitor se inclina para frente e, mesmo de máscara, é possível perceber que o assunto é algo que o deixa ainda com um certo receio. As incertezas de que o novo local a lhe ser proposto poderá ser bom ou ruim para as vendas, valor de aluguel e movimento são umas das suas preocupações. Apesar do movimento do Nova Olaria estar em declínio já há alguns anos, a livraria e o antigo cinema Guion se tornaram os grandes atrativos do local, por serem os únicos que resistiram à pandemia e se adaptaram, permanecendo abertos até este ano. Vestindo uma camisa social em tom púrpura, Milton relembra dos seus tempos como frequentador do Nova Olaria, antes de se tornar proprietário da Bamboletras, há 30 anos. Na verdade, ele passou a frequentar a galeria por conta do Guion, e consequentemente passou a visitar a livraria, admitindo ter uma relação muito forte com o cinema. Na época, Milton conta que, quando marcava uma sessão de filme com amigos, costumava chegar 45 minutos mais cedo, comprava os ingressos dele e dos companheiros e ficava na livraria apreciando a presença dos livros. Foi a partir dessa admiração pela loja de livros nos tempos de frequentador que Milton, em março de 2018, comprou a Bamboletras. Como era um cliente fiel do local, Ribeiro construiu ao longo dos anos uma amizade com a antiga dona do espaço, Lu Vilella, que facilitou a negociação pela livraria, oferecendo a opção de pagar em parcelas. Se autointitulando como uma “não livraria de Instagram”, a Bamboletras teve que se reinventar com a chegada da pandemia, optando por realizar entregas de livros com encomendas via WhatsApp. Com a pandemia, nas palavras de Ribeiro, a “quebradeira” foi geral.

Todas as lojas foram obrigadas a fechar e foi aos poucos que foram voltando ao atendimento presencial, tornando “um mês sempre melhor que o mês passado”.

Outras perspectivas

Mas um pouco mais ao lado do Nova Olaria, mais precisamente umas três lojas da calçada de distância, estava a videolocadora Fox Vídeos. Inaugurada em 1994 e sob comando de Gilberta Ferreira no período de 2002 a 2008, a locadora investia em filmes comerciais e em filmes alternativos, cults, com a mesma temática daqueles que eram passados no cinema Guion, fazendo com que o atraísse o mesmo público. “Eu sempre quis direcionar o público para o cinema alternativo e isso tem muita relação com o público do Olaria, do Guion. Se o filme tava no Guion, eu procurava comprar também”, recorda Gica. E de fato, a videolocadora atraiu não somente os mesmos frequentadores, como também os próprios donos dos estabelecimentos do Nova Olaria. Gilberta, também chamada de Gica, relembra que a primeira proprietária da livraria Bamboletras e os funcionários do restaurante Torre de Pizza, costumavam passar pela Fox Vídeos para conferir os novos lançamentos. Maria de Lourdes, ou como gosta de ser chamada, Lu Vilella, descreve a sua relação com o Nova Olaria como uma “história bonita”, de muita dedicação e carinho. Dois anos após a inauguração do local, quando trabalhava como repórter do canal TVE, no programa da apresentadora Tânia Carvalho, ela fez uma entrevista no cinema Guion com o diretor Valter Salles, que na época estava lançando o filme Terra Estrangeira. Diferentemente do que muitos pensam, a livraria Bamboletras não começou sua jornada no Nova Olaria, mas sim num espaço comercial localizado na Rua da República, a | dezembro/2021 | 39


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duas quadras de distância do atual estabelecimento. Após essa sua primeira visita ao centro comercial, Lu Vilella relembra que foi “amor à primeira vista” e que logo de primeira pensou “minha livraria TEM que ser aqui”, em maiúsculo mesmo. A paixão foi tão intensa pelo conjunto de lojas que ela procurou, no mesmo dia da entrevista no Guion, o administrador do Nova Olaria, completamente decidida: “Cara, é isso aqui que eu quero! Tem um astral a céu aberto”, se referenciando ao fato do local ser uma galeria com vista para o céu. Ela até recebeu propostas para instalar a Bamboletras em shoppings de Porto Alegre, mas recusou os convites por conta da sua relação com o Nova Olaria. A loja se tornou um marco na venda de livros na capital, pois na época, ainda não existiam as mega livrarias localizadas nos shoppings. Foi somente um ano mais tarde, em 1996, que a Bamboletras se instalou no centro comercial, realizando o sonho tão esperado de Lu Vilella. Foram 23 anos à frente do estabelecimento, portanto, a proprietária viveu o que ela chama de “passado glorioso” do Nova Olaria. Segundo Lu, o centro comercial atraía todo tipo de pessoa, caracterizando uma das fases do público como “chinelo Havaiana”, mas principalmente aquele que se identifica com o movimento da esquerda, a maioria sendo professores, universitários, fotógrafos... Os sábados, como ela relembra, eram dias felizes e repletos de abraços, quando aqueles clientes que frequentavam sempre já se tornaram amigos para falarem de tudo um pouco como de literatura, de cinema e política. Apesar de o Nova Olaria ter passado por alguns momentos de crise financeira, com abre e fecha de lojas em períodos curtos de tempo, a livraria nunca passou por essa dificuldade enquanto Lu Vilella era proprietária. “Atra-

vessei muitas quedas do Olaria, mas a Bambo não sofreu”, o que justifica principalmente por conta da grande parcela de público fiel que tinha. A Bamboletras se tornou referência de livros com temáticas infantis e de temáticas LGBTQIA+ no estado. De acordo com Lu, a livraria foi uma pioneira sobre a discussão, onde muitos alunos universitários procuravam o local para utilizar os livros como base de estudos. Já os livros infanto-juvenis atingiam um grande número de vendas durante os meses de maio e julho, o que motivou a proprietária a buscar uma especialização de Literatura Infantil na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Em 2018, o estabelecimento passou a ser administrado por Milton Ribeiro, assim a proprietária encerrava um ciclo que construiu da maneira mais bonita e aproveitada que poderia pedir. “Boas memórias”, “vivemos o melhor a cada dia aqui dentro” e “flashes de coisas boas”, são umas das muitas palavras que Lu Vilella escolheu para relembrar essa fase de sua vida dentro do Nova Olaria. Mesmo morando atualmente em São Paulo, a ex-proprietária está acompanhando as reformas que o espaço comercial tem passado nesses últimos meses, como a venda do cinema Guion. Para ela, as reformas previstas para o ano que vem terão resulta-

OLHAR DA

REPÓRTER

Elaborar uma reportagem sobre o Nova Olaria foi uma atividade que me fez conhecer mais sobre a história do local. Por ser uma frequentadora do espaço por quase a minha vida toda, acompanhar as fontes e cada uma delas trazer uma lembrança diferente em relação ao Nova Olaria me fez observar ele com mais nostalgia e ansiosa pelas novas memórias que ele vai proporcionar a partir da sua reforma. Por conta da pandemia, infelizmente não pude entrevistar algumas fontes pessoalmente para poder colher de mais perto as sensações e sentimentos dos entrevistados, mas a maneira com que me foi relatada as lembranças, fui teletransportada para o momento nostálgico. Visitar o Nova Olaria para a produção das fotos também me fez revisitar as minhas próprias memórias, de uma época que somente uma das lojas era meu point: a livraria Bamboletras. Agora, adulta, ver como o espaço resistiu ao tempo e que irá proporcionar novos momentos para as futuras gerações, foi o que me motivou escrever tal reportagem.

dos muito positivos para o Nova Olaria, como uma espécie de ressurgimento: “O Olaria tem uma alma e uma alma não morre”.

Novas lembranças

Dando início à nova fase do Nova Olaria, a primeira obra a ser realizada foi a da compra do antigo cinema Guion pelo médico Marcelo Tiburi. Apesar de não ter uma alguma relação com o centro comercial como os outros entrevistados, o médico (que sempre teve um grande interesse pela área do cinema), pretende criar boas histórias com o local com a abertura do Cine Grand Café. Com objetivo de dar continuidade ao “DNA” do Guion, a proposta é manter os filmes de arte no local, porém como a estrutura foi expandida para aos arredores do chafariz do Nova Olaria, conta com espaço para convívio e debates sobre o longa destaque do dia. Isso tudo conciliando com filmes mais comerciais, que segundo Tiburi, têm a qualidade reconhecida. O Cine Grand Café é uma proposta para atrair todo tipo de público para o cinema e, consequentemente, para o Nova Olaria. “Será um empreendimento bom para Porto Alegre, por já se tratar de um espaço cultural icônico e preservado”, afirma o médico e novo proprietário do cinema. Diferentemente da situação da Bamboletras, o Cine Grand Café passará por um “estado de hibernação” durante as reformas do Nova Olaria, que tem previsão para ocorrer no segundo semestre de 2022. Como o local terá pouco menos de um ano de funcionamento, Tiburi admite que ele e sua equipe terão que pensar na melhor estratégia para conseguirem se manter ativos durante o período de obras. Mas com grandes expectativas, a ideia é focar na sua inauguração, trazendo novas lembranças e bons momentos para o Nova Olaria. | dezembro/2021 | 41


HISTÓRIA

A Praça Brigadeiro Sampaio e seus muitos significados sintetizam a disputa do espaço público entre diversos grupos sociais

MEMÓRIAS DE UM

quintal hi

C

Texto e fotos Carolina

om as mãos na terra, acocorada em um banquinho, Marivane Anhanha se empenhava em distribuir plantas em um dos oito canteiros do Recanto da Mandala, no canto direito da Praça Brigadeiro Sampaio. Com os cabelos pretos presos em um rabo de cavalo e vestindo roupas confortáveis que davam conta do calor e do trabalho sujo, contava com ajuda de outras mulheres. Rosmari Veadrigo e Nara Pinheiro são vizinhas de Marivane há muito tempo e sua parceria vai muito além das caminhadas ao redor da praça: unem-se pela vontade de melhorar a sua praça, seu quintal. 42

Santos

Ao longo da manhã discutiam sobre o local onde as flores deveriam ser distribuídas. Comentavam entre si como era difícil manter a motivação, algumas semanas antes haviam plantado várias flores em um canteiro próximo ao Museu do Trabalho, mas todo o esforço havia sido em vão, poucos dias depois as flores tinham sumido. Preocupavam-se em colocar ao redor de cada planta uma garrafa de água vazia e cortada para impedir que cachorros urinassem diretamente nas mudas e, quem sabe, desiludir alguém mal-intencionado de furtar a plantação. As flores contrastavam com o

céu cinza, que anunciava uma tempestade. Entre elas copos-de-leite, grama amendoim, flores vermelhas, roxas, rosas e amarelas, todas iam aos poucos colorindo a terra. A doação para o recanto foi feita por empresas parceiras da Prefeitura de Porto Alegre. Cada movimento das vizinhas era acompanhado pelos olhares curiosos das pessoas que andavam pela praça, naquele sábado de manhã, entre eles, uma família: pai, mãe e filho, necessitaram saciar as suas dúvidas. “O que vocês estão fazendo aí?”, perguntou o pai, um homem de seus 40 anos que estava acompanhado de uma criança e uma mulher. Olhavam para as jardineiras empenhadas no trabalho de embelezar a praça. Marivane, nomeada e conhecida como a Prefeita da Praça, prontamente respondeu: “Estamos plantando flores, fazemos parte da Associação de Moradores!”. A resposta fez com que a curiosidade crescesse, apontaram para a


stórico estátua imponente que ocupa a área central da praça e perguntaram: “Qual o nome dessa praça mesmo? Quem é esse?”. Marivane, como se já tivesse repetido muitas vezes as informações, disse: “Aqui é a Praça Brigadeiro Sampaio, esse é o homem que dá o nome à Praça. Ela é a primeira urbanizada de Porto Alegre. Já foi local de encontro de poetas, um ringue de patinação... Vixi, já teve muitos nomes! Inclusive aqui era o Largo da Forca, onde muitos eram enforcados. É por isso que tem aquele Tambor”, falou enquanto apontava para todos os cantos, qual uma verdadeira guia. A Prefeita apaixonada pela praça cita alguns dos muitos usos que o local teve ao longo dos séculos: “Aqui havia o recanto dos poetas e músicos da época, que faziam seus recitais, rodas de poesia e música junto ao coreto (hoje área da mandala). Além disso, se teve aqui o primeiro ringue de patinação, a primeira fonte de água onde os

moradores dos arredores vinham aqui se abastecer”. Realmente é uma praça de muitos “primeiros”.

Nasce o batuque

A pioneira praça de Porto Alegre representa a disputa dos espaços públicos. Em síntese, o local já foi muitos. Em 2010, ela ganhou um novo significado: o Tambor amarelo – a cor representa Oxum, o orixá das águas doces. No chão, pedras vermelhas e pretas, posicionadas pelo Quilombo da Família Silva, e as árvores ao redor, com a cor verde, todos os elementos em conjunto foram pensados para que remetes-

sem a bandeira do Pan-Africanismo (preto, vermelho, amarelo e verde). Ao seu redor estão desenhos em preto e branco encravados. Pedro Vargas foi o historiador envolvido no Museu do Percurso do Negro, uma iniciativa que buscou visibilizar a comunidade afro-brasileira com a instalação de obras de arte em espaços públicos de Porto Alegre. Ele conta que a ideia do Tambor era mostrar a relação de negros com o centro da cidade, adicionando uma visão positivada da história preta no Rio Grande do Sul, sempre resgatada em museus com tom depreciativo, diminuindo a autoestima dos ancestrais que por aqui vivem. Os desenhos ao longo da estrutura remetem aos muitos lados da negritude, como descreve Vargas. “Tem ali os capoeiristas, quilombolas, cavalos, os lanceiros negros da Revolução Farroupilha e escravos de ganho. Incluímos ainda, as cotas para negros nas universidades, representado por adolescentes segurando livros”, detalha. A escolha do instrumento remete à maneira como os escravos se comunicavam na época, por meio do som que ecoava pela vila, a energia contagiante dava vida e os lembrava das suas origens. Seu significado histórico e religioso atravessa gerações afrodescendentes. No dia da inauguração, 11 anos atrás, a solenidade estava cheia, com participantes do movimento negro de Porto Alegre, griôs (indivíduos que têm por vocação preservar e transmitir as histórias, conhecimentos, canções e mitos do seu povo), mulheres vestidas de algodão branco, estampas étnicas e geométricas. Entre todos esses estava Nilo Fejó. O griô de 80 anos se encontrava aos prantos, não conseguia acreditar em seus olhos e repetia em tom emocionado: “Nunca achei que veria isso acontecer”. O resultado dessa luta iniciada nos anos 1990 finalmente se materializava, tomava forma e se desembrulhava na figura do instrumento de percussão. Entre os seminários promovidos, a questão do apaga| dezembro/2021 | 43


mento da narrativa era uma questão recorrente. “A partir disso, começou a se pensar que seria importante ter uma marcação territorial sobre essa questão da presença negra. O Rio Grande do Sul e Santa Catarina são tidos como estados europeus”, aponta Pedro ao contestar a presunção. E segue: “No primeiro censo de Porto Alegre, no século XIX, mais de 50% da população era negra”. Ele conta que a partir do Monumenta, um programa do agora extinto Ministério da Cultura, foi possível começar a inciativa. Entre ter de provar que Porto Alegre era uma cidade histórica e escolher entre tantas ideias se passaram 12 anos até a concretização do sonho conjunto. Dentre os territórios negros da 44

capital, a Praça Brigadeiro Sampaio, tem um passado aterrador. A “pena última” como eram chamados os enforcamentos na época, entre 1821 e 1857, foi o destino de 22 almas, entre elas 16 escravos, sete africanos e nove crioulos. Em sua grande maioria os escravos sentenciados a este horrível fim haviam assassinado seus donos, em um momento em que a raiva tomava conta e as injustiças vinham à tona, revertendo-se em atos extremamente violentos. Um ritual macabro se seguia após a sentença, “O condenado à forca, na primeira parte do ritual, ficava do lado de fora da missa, na Capela da Santa Casa”, explica o historiador Pedro Vargas. Vestindo apenas um roupão, era acompanhado por juízes,

oficiais de Justiça, sacerdotes e irmãos da Santa Casa de Misericórdia, que abriam caminho para um meirinho, responsável por anunciar a sentença e a pregar nos postes. “Todos saiam para as janelas para ver o que estava acontecendo e levavam as crianças. Era um ritual, um espetáculo, um exemplo para a sociedade, simbólico e ritualístico”, comenta Vargas. Toda a teatralização da morte era seguida à risca até o ápice em que o corpo sem vida não pulsasse mais, dependurado por uma corda. O cadáver era recolhido pelos cristãos da Santa Casa, porém a penalização ia para além da morte física já que não era permitido enterrar os condenados com as cerimônias típicas de um velório, sob pena de medidas repressivas. Vargas explica que a ideia do enforcamento vem da inquisição portuguesa, o castigo seria separar a alma do corpo. Tais eventos que se deram por 36 A prefeita da Praça Brigadeiro Sampaio, Marivane Anhanha (à direita), e sua vizinha Rosmari Veadrigo plantam flores no canteiro do Recanto da Mandala


patrono da infantaria militar. Com cavalos e viaturas, militares cujos quartéis se situam nos arredores guardam a praça com olhos de falcão, atentos. É lá que os militares se reúnem. Fazem ensaios da banda, cerimônias solenes e eventos. É comum encontrá-los ensaiando fardados, em fileiras organizadas retumbando o hino nacional, encarando uma bandeira tão grande que é esticada entre três palmeiras.

Resignificados

anos na velha capital batizaram o espaço como Largo da Forca e entrou no imaginário popular, por muito tempo, como assombrado pelos infortunados.

O outro lado da praça

Sentado em um banco do antigo Largo o aposentado Jorge Simões dos Santos conversava com outro homem, ambos vestiam bermuda, regata e calçavam chinelos. Seu Jorge é morador há 22 anos da Rua dos Andradas. O integrante do Movimento da Consciência Negra relata um fato que o deixa impressionado: sempre que o monumento faz homenagem a Brigadeiro Sampaio, no centro da praça, desperta pichado os soldados do batalhão próximo madrugam esfregando a tinta, não permitem que a sujeira faça morada. A estátua em destaque representa um homem presente em muitas batalhas, de norte a sul do país. Sua bravura em batalha é comemorada pelo exército. Seu êxito na supressão de revoltas populares levou a extermínios em massa, o que lhe rendeu o título de

Pedro Vargas traz um ponto importante para a ressignificação do local. Se ontem era Largo da Forca, “hoje é um local popularmente apropriado como Praça do Tambor”. Na visão do historiador, “as estruturas não são o lugar, elas criam o lugar”, ele é apropriado, visto de uma nova forma, nasce outro. O longevo militar, continua ali, “por uma questão de organização - histórica - do espaço da cidade”, aponta. Ele lembra que historicamente os quartéis sempre ficaram ali e que no centro histórico não são poucas as ruas com nomes de generais. Por isso, o Tambor é um recado de um passado, visto com orgulho por uns e com desdém por outros. É comum encontrarmos pessoas reunidas ao redor do monumento amarelo, ouvindo as histórias do local ou protestando em busca de direitos, com instrumentos e gritos. Quem conhece a história dos dois monumentos – repleta de tristeza e abandonos, mas também amor, despedidas e arte - consegue sentir o atrito e a tensão no ar. Cerca de 60% dos monumentos de Porto Alegre homenageia homens brancos, com modelos de façanhas muito parecidas às de Brigadeiro Sampaio. Vargas arremata a questão da disputa de espaço: “Para mim o que é mais importante é que o Tambor criou esse lugar de fala”. O resultado dessa falta de pertencimento, reconhecimento e representatividade leva ao esquecimento. Não há um lugar, uma rua, uma esquina ou praça nessa cidade que não tenha sido tocada por pés, mãos e sangue negro.

OLHAR DA

REPÓRTER

Moro em frente à Praça Brigadeiro Sampaio e desde a minha mudança, um ano atrás, a curiosidade pelo lugar só aumentou. Meu espanto foi gigante quando descobri que aquela era a primeira praça de Porto Alegre, o mar de histórias que já passaram por ali é interminável. Logo de cara cismei que teria que escrever sobre o lugar. Foram algumas tardes sentada nas sobras das muitas árvores antiquíssimas, a fim de experimentar todos os cantos. Isso era o que conseguia fazer enquanto as tentativas de contato com as fontes eram frustradas. Paciência. Essa foi uma das coisas que mais tive que aprender a ter ao produzir essa reportagem. Aquele momento que as fontes não retornam por semanas, o frio na barriga por não saber se o texto vai nascer. Uma vontade gigantesca de jogar tudo para o alto, só para logo em seguida ter de juntar novamente. Apesar dos pesares, resisti e consegui apurar muitas informações, muitas mesmo. E daí o desafio passou de não ter nenhuma informação, para ter tanta informação e não saber escolher. Mas, agora, como Marivane, me considero uma guia do nosso quintal.

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EM FEVEREIRO TEM CARNAVAL,

CULTURA

tem carnaval? Falta de transparência e incerteza da Prefeitura de Porto Alegre para o carnaval de rua de 2022 afetam os blocos de rua da cidade Texto

Carolina Ambros

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Fotos

Josué Verdejo


P

ara a Escola Bambas da Orgia era apenas mais um dia de ensaio, mas para Vini era o primeiro dia em que ele se encontrava com o seu destino. Neste dia, em meados dos anos 1990, o carnaval deixava de ser uma mera imagem distante da TV de casa, para se tornar a vida de Vini Silva, músico profissional e mestre de bateria. Até hoje Vini se lembra daquela tarde em que viu a bateria tocando a música “Quero Te Encontrar” de Claudinho e Bochecha: “Eu nunca esqueço de ver aquela cena espetacular, aquela coisa gigante, o som muito alto. Eu fiquei impressionado e a partir de então decidi que queria fazer parte disso”. O músico tem essa como sua memória mais marcante com o carnaval. Além da memória afetiva que ele compartilha com muitos brasileiros de assistir o carnaval em casa, ele carrega uma tradição familiar com essa data. Durante os três dias de desfiles, toda a família de Vini se mudava para a sala de estar, onde montavam uma espécie de acampamento com os seus colchões para entrar madrugada adentro assistindo a competição. Ele conta que, como criança, tudo

era muito divertido, mas tudo aquilo já alimentava o seu imaginário carnavalesco. Entretanto, seu contato com a música não se restringia apenas à televisão. Vini tinha vários familiares musicistas e em casa estavam sempre ao lado do eletrodoméstico mais importante: o rádio. Quando a pandemia começou, Vini vivia uma vida profissional plena como músico. Além de ser o mestre de Bateria do Bloco Turucutá, ele trabalhava como professor de música e fazia shows ao longo do ano. A quarentena começou logo após o carnaval de 2020, e naquela altura ninguém poderia prever que se estenderia até o carnaval do ano seguinte. Vini relata que, ao se aproximar do feriado de 2021, não foi grande surpresa para ninguém que passaríamos sem o carnaval. O silêncio estava anunciado. Ele conta que nasceu aos poucos dentro dos musicistas uma sensação de vazio, já que eles passam os meses que antecedem o carnaval envolvidos com ensaios e preparativos: “Não digo que eu sentia tristeza. Tristeza eu sentia pela situação que estava o país com uma crise sanitária. Em relação ao carnaval eu só sentia um vazio”, explica.

Festa adiada

Com 70% da população do Rio Grande do Sul vacinada e a flexibilização dos protocolos de medidas de segurança, o debate sobre o carnaval em 2022 foi fomentado. Estamos a apenas três meses da data e a Prefeitura de Porto Alegre não dá certezas sobre a esperada festa de fevereiro. Enquanto cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, que têm população maior do que a capital gaúcha, já começam a se movimentar, a prefeitura porto-alegrense se recusa a tomar um posicionamento. A população e as pessoas que

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trabalham com o carnaval seguem sem certezas para o futuro. A verdade é que durante toda a pandemia, os blocos de rua de Porto Alegre se posicionaram a favor da decisão de não irem às ruas para proteger seus integrantes e a própria população. Na sua maioria, os integrantes dos blocos de Porto Alegre são pessoas com profissões paralelas, mas há aqueles que vivem exclusivamente da música, como é o caso de Vini, que trabalha no carnaval e no resto do ano com eventos de música que envolvem aglomeração. Atualmente já estão liberados vários eventos com aglomeração limitada, o que leva a população a dar sinais de querer sair para rua e pedir por alguma alternativa para que o carnaval também aconteça. Vini explica que os carnavalescos foram se acostumando e se conformando com a nova realidade, mas que, com o passar do tempo, o sentimento passou a ser o de angústia. Porém, o carnaval é uma tradição brasileira que movimenta o país inteiro. Existe 48

um mercado que se abre durante essa época que vai além das escolas de samba e blocos de rua. O carnaval não é apenas uma festa, não acontece somente no dia do desfile: “Ele envolve muita paixão, muita ancestralidade. Além de fomentar a economia e o turismo, com um mercado frutífero que gira em torno do carnaval, as fantasias, os instrumentos, as cores, a música, e todos os elementos que formam o carnaval são símbolos representativos para a consolidação e perpetuação de uma cultura”. Para Vini, o carnaval é a possibilidade de as pessoas serem o que quiserem. “É a fantasia, a brincadeira, então não ter carnaval, é como tirar de uma criança a possibilidade de ela brincar”, relata o músico.

Passado e presente

Dado o atual cenário, é plausível se perguntar se a prefeitura não quer ou não pode liberar o carnaval. Já que, segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), 100% da População de Porto Alegre está vacinada com pelo menos a primeira dose da vacina, enquanto outras cidades do país ainda não alcançaram essa meta e mesmo assim terão carnaval. A capital gaúcha já está vivenciando flexibilização em diversas áreas. Então, por que não ao carnaval? Mais do que a pandemia nos separa desta celebração. A historiadora Helena Cattani explica que a prefeitura vem em um cabo de guerra com o carnaval de rua já há décadas. Seria a pandemia um agravante conveniente para a prefeitura alargar ainda mais este hiato de carnaval?

Helena revelou um passado carnavalesco de Porto Alegre, que muito pouco se assemelha às duas últimas décadas da capital, que nos anos 60 chegou a ser o 3º maior carnaval do país, perdendo apenas para o Rio de Janeiro e São Paulo. A historiadora explica que, na época, o carnaval movimentava muito a economia da cidade. Durante essa década, um só carnaval recebeu mais de 30 mil turistas uruguaios e argentinos. Isso se dava porque a prefeitura estimulava os turistas que passavam o feriado nas praias de Santa Catarina a incluir em sua rota uma visita ao carnaval da capital gaúcha. Nesse tempo, a festa era bem diferente do que vemos hoje. Atualmente Porto Alegre se torna vazia e silenciosa nos carnavais. Os gaúchos aproveitam a data para ir para praia ou para comemorar o carnaval do Rio de Janeira e nordeste. Paira no ar uma noção de que a cidade não é carnavalesca, noção criada recentemente. Helena conta que até meados dos anos 1970, as escolas de samba


petistas que criou blocos nos bairros, que existem até hoje. Chamado de “Carnaval da Descentralização”, que conta com o Bloco da IAPI, Bloco da Santana, entre outros agrupamentos de bairros. A segunda estrutura são os blocos tradicionais como o Bloco Saldanha, Bloco do Bolinha e Bloco Areal da Baronesa. Existem também os blocos piratas, que são aqueles que não querem depender da prefeitura, assim como os demais blocos, que para acontecer precisam se inscrever através de editais. No início da gestão do ex-prefeito Nelson Marchezan Jr., foi estabelecido um decreto, através da Secretaria de Eventos, que determina que para qualquer atividade com mais de 200 pessoas na rua é preciso pedir autorização. “Os blocos independentes têm uma relação de responsabilidade. E eu posso falar claramente que a Turucutá não vai desfilar, nem sequer ensaiar até ser seguro

iam até as pessoas. Desfilavam pelos bairros, circulavam pela cidade nos coretos, era o chamado “Carnaval de Bairro”. Isso se deu até o final dos anos 1990, quando começou a derrocada do carnaval de rua, que foi deslocado para o Complexo Cultural do Porto Seco, ficando assim afastado da cidade. Essa restrição do carnaval mudou a relação de porto-alegrenses com o carnaval de forma definitiva. A festa oficial ficou restrita a uma área fora do coração da cidade, criando uma sensação de que o carnaval não faz parte da cidade. Isso levou os porto-alegrenses a seguirem a tendência de blocos de rua, que crescia no Rio de Janeiro no início dos anos 2000. Porém, já faz anos que os blocos não são oferecidos pela Prefeitura, atualmente trata-se de uma iniciativa independente, mas que precisa da autorização do poder público municipal para acontecer. Mas de certa forma, os blocos enfrentam resistência da Prefeitura e de parte da população. Historicamente, a elite da cidade sempre comemorou o carnaval, os clubes tradicionais sempre ofereceram festas para os sócios, enquanto o povo comemorava na rua. Por isso, mover o carnaval para o Porto Seco foi uma estratégia de tirá-lo das ruas para não incomodar os moradores. O advogado e produtor do Bloco Turucutá Ian Angeli explica que hoje existem diversas estruturas de blocos em Porto Alegre: o bloco dos descentralizados, que vêm de uma política de descentralização da Prefeitura das gestões Vini Silva no carnaval do Bloco Turucutá em de 2020, na Cidade Baixa

para estarmos juntos no ensaio. E ensaiar com uma bateria não é como ensaiar uma peça de teatro. Existe a questão do som, não dá para ensaiar em qualquer lugar. E onde você ensaiar tem custo, não existe um lugar em Porto Alegre para isso, e se você ensaiar na rua junta muita gente. Então existe uma responsabilidade social”, explica o advogado. Vini Silva tem uma visão otimista para o futuro do carnaval, ele acredita que caso a pandemia ainda não permita a realização do carnaval de rua em Porto Alegre em 2022, sempre vai haver movimentos de ressignificação: “Em 2021, apesar de não ter saído na avenida, ainda assim muita coisa foi feita no Instagram e no YouTube por meio de lives. O samba não vai morrer. Mesmo que não consigamos fazer no presencial, conseguiremos fazer de outra maneira. Eu ainda não sei responder como, mas vai ter carnaval”.

OLHAR DA

REPÓRTER

Em meio a uma pandemia, escrever uma matéria sobre carnaval quando não tem carnaval, pode parecer assustador. Mas assim que comecei a entrar em contato com todas as minhas fontes, uma coisa ficou clara: o espírito carnavalesco estava acesso. Falei com várias pessoas que vivenciam o carnaval de forma intensa, assim como os próprios musicistas e pessoas que trabalham nos blocos de rua. O maior desafio foi a minha desconexão com o carnaval. Foi difícil pensar em perguntas sobre um assunto que eu desconheço. Aos poucos fiquei impressionada e contagiada com a paixão que todos os entrevistados tinham pelo carnaval. Se um texto fosse capaz de traduzir tom de voz, este tom seria de esperança. Parecia que os carnavalescos sabiam de algo que eu não sabia. A cada conversa eu saía com a sensação de que perdi oportunidades de ir ao carnaval de rua durante a vida toda. E ao ouvir a historiadora Helena Cattani senti nostalgia de uma Porto Alegre que eu sequer conheci. Pude sentir o poder e a potência que existem no carnaval. Também foi um grande desafio passar pelo processo de conversar com tantas pessoas e ter que fazer uma seleção enxuta do que colocar no texto, já que existe um limite de palavras. É sempre estranho fazer essa escolha, já que, toda vez que ouço um relato, considero cada palavra importante. Tentei, então, focar na questão histórica e mostrar o que aconteceu com o carnaval da cidade ao longo dos anos, e em paralelo imprimir um sentimento real e humano através de um músico carnavalesco.

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