Josefa 3

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edição 3

julho/2018

Revista experimental do Curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre

NAQUELE TEMPO... O que deixa saudade na vida das pessoas?

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A família cresceu e agora a Agex também está no Campus Porto Alegre. A Agência Experimental de Comunicação proporciona aos alunos da Escola da Indústria Criativa uma experiência de estágio na criação de projetos integrados de comunicação. Coberturas jornalísticas Planejamento de comunicação e produção de campanhas publicitárias Desenvolvimento de produtos digitais, sites e redes sociais

ANOS AGEXCOM

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e a conversa inclui o verbo “lembrar”, é muito provável que haja nela muita nostalgia - geralmente um relato entrecortado por suspiros, olhares perdidos ou qualquer outra manifestação física de que escarafunchar as memórias remexe com algo que estava antes adormecido. Mas, afinal, do que sentimos saudade? As pessoas queridas foram lembradas nos papos trocados por um café no Centro de Porto Alegre. A família, principalmente. Tem, por aí, até saudade de alguém que nunca se conheceu, mas que parece um amigo íntimo: o jeito é ser um cover de Michael Jackson pra ter o ídolo por perto – de si de dos outros também. E como não haveria de existir nostalgia de um lugar como o Baronda, em Capão da Canoa? Ou da Toca do Disco, no Bom Fim, em Porto Alegre? Basta ler as histórias desses lugares e das pessoas ligadas a eles para se ver envolvido por essas memórias. Tocar na banda marcial, comer churrasco num avião e andar de trem: aí estão três coisas que despertam lembranças de coisas que pouco se vivencia. A banda do Colégio Júlio de Castilhos, a Varig e a Rede Ferroviária, de fato, parecem inesquecíveis para quem os conhece. O que dizer, então, de uma vida dedicada ao trabalho e que foi interrompida pela aposentadoria? O jeito é fazer como o árbitro e comentarista Carlos Eugênio Simon: se reinventar a partir do que há de mais essencial. Rumo esse que é compartilhado pelo time de futebol que foi pioneiro em muitas coisas, mas que agora se muda da capital para outra cidade e busca recuperar o rumo – o Esporte

Arthur Marques

Cartaaoleitor Clube Cruzeiro. E saudade de coisas não muito boas? Tem até quem queira a volta de uma ditadura civil-militar no país – desejo no mínimo inusitado em se tratando de uma memória sobre tempos de censura e tortura. Enfim, como não sentir saudade? A palavra que não tem tradução para muitas línguas é, no fundo, a romantização da ausência. Nada mais brasileiro do que isso. Everton Cardoso Professor editor

A gaúcha Maria Josefa Barreto Pereira Pinto foi a primeira mulher jornalista brasileira. Mãe, feminista, poeta, escritora e professora, dirigiu dois jornais, sendo proprietária de um – o Belona Irada Contra os Sectários de Momo –, que circulou em Porto Alegre entre 1833 e 1834. Josefa não teve uma vida fácil. Foi abandonada quando nasceu, mais tarde seu marido a deixou e ela viu seus dois filhos morrerem. O nome desta revista é uma homenagem a ela.

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Memórias na praça

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Patriotismo extremo

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Trilhos vazios

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Estrela dos ares

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Reduto do vinil

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Michael para sempre

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Paquera na praia

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Marcha musical

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Último apito

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Cruzeiro à Europa

Arthur Marques

ndice


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PESSOAS

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ra uma manhã de sábado na Praça da Alfândega. Uma mesa branca chamava a atenção de quem passeava por ali. Não vendia um produto mirabolante, tampouco apresentava planos de assinatura. Dois rapazes sentados ofereciam um copo de café pelo preço de alguns minutos de uma história do interessado. O tema era simples: “do que você mais sente falta?”. As mãos firmes de Nilton Lima, um dos primeiros a tomar a iniciativa de sentar ali, seguravam o copo enquanto os olhos negros se concentravam no café. “Tenho saudade é dos tempos inocentes da infância”, pensava alto. Só que simplicidade, apesar de ser o termo adotado por ele, não parece ser o mais correto para descrever sua história. Hoje é estudante de fonoaudiologia, bombeiro e saxofonista. Mas considera-se “de tudo um pouco”. Natural de Porto Velho, Rondônia, cresceu precocemente por conta da exigência do padrasto. Logo aos 14 saiu de casa para não mais voltar. Trabalhando em obras, Desceu pelo mapa do Brasil até chegar ao

UM CAFÉ POR UMA

história 6


Uma praรงa, um repรณrter e as saudades que os passantes carregam Texto e fotos

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PESSOAS

Mato Grosso do Sul. Lá, voltou a estudar. Até passou no Instituto Federal para Fonoaudiologia. Desde menino procurava seu lugar e ali pensava ter encontrado. Contudo, o curso fechou pouco tempo depois. Os professores lhe disseram que o Rio Grande do Sul era muito bom – e que alguns deles seguiriam para Santa Maria. Decidido, arrumou as malas novamente. Dormia em rodoviárias, fazia qualquer coisa para sobreviver. Lembra que, ao ser expulso dos bancos de espera de ônibus, em Campo Mourão, no Paraná, foi encaminhado para um albergue. Lá, dividindo espaço com um deficiente auditivo e um mendigo, conseguiu uma passagem para a capital de Santa Catarina. Em 2009, chegou a Torres, quase 10 anos depois do início de sua odisseia. A infância e inocência já o haviam deixado há muito. Mesmo assim, mantém o otimismo e a persistência inerente a seu ser. Além da formatura, almeja um casamento – ainda sem pretendente. A solidão o incomoda tanto quanto a falta da estrutura familiar que jamais teve. Infância também é a saudade que Doralino Di Souza, um contador de histórias que ali sentou, carrega. Não a dele, mas dos filhos. O primeiro, já com 21 anos, veio quando ele próprio tinha 22. E contou mais cinco até vir a menina. As histórias das crianças lhe foram narradas pela esposa. Não consegue lembrar de muitos momentos cotidianos que presenciou. E gostaria de tê-los de volta. Os óculos intelectuais apontavam para o chão. Em seu rosto, uma expressão pensativa. Doralino é cronista. Junto com outra das tantas pessoas ali de passagem, tentava definir um sentido para saudade. Algo próprio de cada pessoa, pois só é sentido naquela intensidade por ela. E nin8

guém mais. Doralino sorri e, como os outros antes dele, agradece o café e vai-se embora. Talvez abrace os filhos mais forte ao chegar em Igrejinha.

A falta de quem se foi

A morte da mãe trouxe um silêncio difícil de encarar. Não fala sobre si com ninguém desde então

Minutos antes, Anderson Fraga, também bastante jovem, repetia um mantra calejado, mas de grande significado para si: “eu quero, eu posso, eu consigo”. Morador de rua há 10 anos, é rejeitado pela sua família, que o acusa de ser usuário de crack. Anderson jura usar apenas maconha. Veste uma camisa simples, está de banho tomado, traz o cabelo bem cortado e carrega a falta de uma família. Antes de sentar para tomar um café, seguia para a rodoviária porque soube que seu irmão havia sido morto três dias antes, em Tramandaí. Outra dor que tentava enfrentar, junto com a incerteza da vida de sua mãe. Com os braços entre as pernas, diz com um tom natural e um tanto dramático, que já tentara o suicídio. Exibe as cicatrizes que três facadas lhe deixaram no peito, próximo ao coração. Na barriga, um corte enorme rasgou-a por inteiro. Sente saudades de quando suas únicas preocupações eram vencer um jogo de futebol na rua de chão batido em que crescera, em Viamão. Sobrevive com pequenos bicos. O mais longo durou 10 meses, como ajudante no Zaffari. Mas expulso e rejeitado por quem mais queria que o aceitasse, não vê sentido no trabalho. Com pressa, se despede dizendo ainda ter espe-


rança de se reconciliar com a irmã – único elo que restou – e, quem sabe, descobrir que a mãe está viva e esperando por ele. Quem sabe. O trocadilho que a professora do fundamental fazia com seu sobrenome, trocando o “F” pelo “P”, soa como uma profecia. A finitude desse ser tão doce que chamamos de mãe lamentada por Anderson é o mesmo pesar que carrega outro dos passantes da Rua da Praia. Ederson Pizio, de 38 anos, encara esta perda há três. A morte da mãe, que descobriu tardiamente um câncer no pâncreas, trouxe um silêncio difícil de encarar. Não fala sobre si com ninguém desde então. Talvez os óculos tão escuros e as emoções calculadas fossem para disfarçar a falta de um diálogo franco. “Certas coisas não se falam para os amigos”, diz. Os tempos alegres de outrora eram pontuados por confidências nos cafés da tarde com ela, sempre ela, a mãe. De tanto se importar com o que ela pensava, levou um casamento morno. Já não havia mais amor, só

o cuidado de não causar desgosto na família. Seis meses depois da perda, se desfez do compromisso que manteve por 20 anos. O pai também se foi, apenas um ano e meio depois de tudo. Ataque cardíaco. Repentinamente. Ederson parece ter se agarrado ao significado dessa palavra, pois a pronuncia como um murmúrio. Nas voltas da vida, casou-se de novo. O pai chegou a conhecê-la. A filha, que já estava no ventre da esposa quando ele a conheceu, vai começar a ir para a escola. Nem os óculos conseguem esconder a emoção. Num desvio de cabeça, diz precisar ir, sem revelar o destino. Agradece profundamente. Talvez porque, naquela tarde, ele conseguiu falar. É curioso como um ato tão simples se torna tão poderoso e carregado de significado. Renata Veleda é cantora no coral da UFRGS – como anunciava sua camiseta. Com o sorriso educado de quem acabou de conhecer outra pessoa, deixa-se dizer que isso a faz conhecer diversas pessoas. Mas não traz amigos, necessariamente. A saudade que queria expor é de apenas um ano atrás. A avó se fora. As últimas lembranças tentam ser esquecidas como as da avó, que carregava consigo o Alzheimer. Renata mal consegue falar dos detalhes dos almoços de domingo, quando a família se reunia em torno dos avós. O churrasco vinha com as risadas que a mãe de sua mãe provocava. Hoje, só as lembranças daquela casa cheia, pois ninguém volta lá. O motivo é a nova moradora. O avô, aos 74 anos, juntou-se novamente com uma mulher, mais ou menos da mesma idade. A família decidiu que isso era inaceitável, principalmente em tão pouco tempo. Renata tenta oferecer um pouco de compreensão ao velho. Afinal, saber que a pessoa

que sempre a amou e cuidou não tem mais a mínima ideia de quem você é, provoca um sentimento de vazio indescritível. Concluiu que, para o avô, sua esposa já deixara aquela casa muito antes de ter-se ido fisicamente. Entretanto, era justamente a memória – a causa de tudo isso – que não a deixa se reconciliar com ele. “Avós são só aqueles ali”, explica com a voz baixa, quase numa confissão. Já estávamos de saída quando ela quis saber do que as outras pessoas tinham conversado ali naquela mesa no meio da praça. Infância, filhos, mãe, avó. Família. “É, no final, é isso que importa”, suspirou.

OLHAR DO

REPÓRTER

Uma experiência, antes de tudo, humana. Conversar com tantas pessoas diferentes, com histórias distintas, e perceber que a falta mais marcante é daquela pessoa especial. Sejam os pais, filhos, avós, tios ou da reunião de todos eles. É isso que tornou o papel de repórter tão gratificante. Muitas histórias tinham a ver com aquele lugar quase mágico de anos atrás. Mas o que os fazia especiais eram as pessoas que o compunham. Como o assunto era saudade, carrego a certeza de que muito do que foi dito ali, e em grande parte confessado, não era bem a descrição que a pessoa faria na época. Romantizações com o passado são extremamente comuns. E decidi que isso não importava. Afinal, essa não é uma reportagem de dados. São depoimentos que tratam de quem já se foi. E fiquei feliz ao ver que eram tratadas com leveza e otimismo, ao invés de tristeza e lamento. É raro poder conversar sobre a saudade, mesmo com um familiar ou amigo próximo. Aí um assunto tão íntimo e necessário fica no fundo do armário, para ser usado quando estamos sós.

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POLÍTICA

SAUDADES DO

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QUE

vivi

Manifestantes favoráveis à intervenção militar resgatam ideais da ditadura Texto e fotos

Alessandro Sasso

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POLÍTICA

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a tarde ensolarada e quente do domingo, 21 de abril, o garçom Victor Carmelo, de 25 anos, ainda com a roupa que usara para trabalhar, parte rumo à sua moradia após o fim de mais um expediente. Durante o trajeto, o jovem com semblante de poucas horas de sono é abordado por uma senhora que lhe oferece um folheto com a imagem da bandeira do Brasil e solicita: “Aceita o panfleto, querido. Vamos atrás do fim da corrupção”. A manifestante veste uma camiseta com a inscrição “#IntervençãoMilitarJá.” O verso do panfleto diz que não há direita, apenas uma máfia corrupta que governa contra o povo brasileiro. Quanto a isso, Victor se mostra a favor: “Aqui no Brasil todo mundo rouba”. E completa, antes de seguir seu trajeto: “Essa coisa de ditadura militar eu não acho uma boa”. Quem faz a distribuição dos panfletos é Zilá Cardoso, 61 anos, servidora pública aposentada que pertence ao grupo Patriotas da Goethe. “Estudei numa escola técnica do interior em uma época que a gente não se preocupava com a violência nem com o governo. Tudo funcionava bem”, rememora sobre os tempos da Quinta República Brasileira, mais conhecida como ditadura civil-militar. A memória romantizada contrasta com o relatório que a Comissão Nacional da Verdade divulgou em 2014, confirmando mais de 400 mortes e desaparecimentos ligados ao período. Outro integrante do grupo que parece não conhecer a realidade é Jorge Venturini, 65 anos, bancário aposentado que manifesta seu desejo empunhando uma bandeira do Brasil. “Pretendo andar por nossas ruas como antigamente. Sair pra trabalhar tranquilo e voltar com segurança”, afirma o manifestante dos Patriotas, em frente ao Parcão, no bairro Moinhos de Vento. 12

Após uma pausa em sua fala, Jorge ainda faz questão de completar: “Não queremos viver apreendidos em nossos lares sem ter cometido crime algum. Por isso, quero a intervenção”, referindo-se ao período que também tem como marca a perseguição política. Sobre isso, o doutor em História Marco Antônio Villalobos, que dedica seus estudos às ditaduras brasileira e uruguaia, revela uma contradição na fala do patriota. “Essa intervenção representaria o fim da democracia. Acho que é uma boa pergunta para estas pessoas que ficam pedindo a volta da ditadura, se elas poderiam, naquele tempo do qual sentem tanta saudade, realizar um protesto como este sem enfrentarem algum tipo de repressão. Não sei como eles responderiam”, alfineta. Sem nenhuma liderança, os Patriotas afirmam que não são fi-

nanciados por ninguém além deles mesmos e não possuem ligação com nenhum partido. Também explicam ter adotado a Avenida Goethe por ser um local perto de suas residências e com bastante circulação aos domingos, dia da semana mais comum em que realizam ações. “Como eu preciso panfletar, aqui é o local ideal em relação ao fluxo de pessoas”, explica Zilá, mostrando uma pilha de panfletos que guarda com carinho em sua pequena bolsa preta. Nesse material informativo, também é possível ler que Temer estaria finalizando o que FHC, Dilma e Lula supostamente começaram, que seria seguir a agenda do Foro de São Paulo, no qual o objetivo seria de implantar o comunismo através da Pátria Grande, conceito que significa pátria compartilhada em toda América Latina.

Intervencionistas clamam pela tomada do poder pelas Forças Armadas


Mas, para Zilá, a história é outra: “Socorro, Forças Armadas! Acabem com essa roubalheira” Contradições

Além da violência, Zilá mostra que a corrupção e a crise econômica são dois outros aspectos que dão força ao grito que clama por um novo regime militar. “O desenvolvimento nos anos 70 e 80 foi um troço de louco”, referindo-se à época do milagre econômico, acontecido entre 1968 e 1973, quando o PIB do país cresceu 11,1%, segundo o IBGE. “Desde quando eu era adolescente já me chamavam para trabalhar, porque nós estávamos crescendo, e era necessária mão de obra”. Porém, esse crescimento acarretou no forte aumento da desigualdade social no Brasil, conforme mostra o Índice de Gini, medido de 0 a 1 e que quanto mais perto do zero é seu valor, mais igualdade há no país. Em 1960 o número era de 0,5400 e em 1977 marcava 0,6300, segundo o IBGE. Quanto à solução do problema da corrupção, Zilá é categórica. “Vai ser necessário. Chegou num ponto que não tem jeito. O Exército vai ter que fuzilar e não vai ser que nem em 1964, quando deixaram o FHC, Brizola, Zé Dirceu e toda a cambada comunista da época escapar numa boa através da Anistia. Dessa vez vai ser diferente. Agora eles vão fuzilar para não correr risco. Se não, eles vão ficar comandando de fora. Está bem perigoso”. Zilá diz que na época da ditadura as coisas eram diferentes, e não haveria espaço para a corrupção em evidência atualmente. “Num depoimento do Emílio Odebrecht para a Lava Jato, ele contou que tentou subornar um major, e a resposta dele foi colocar um 38 em cima da mesa. Não tinha meio. Nos altos escalões todos eram honestos”. Essa informação circulou pela internet na segunda

que especialmente os mais velhos realmente são carregados por fatores emocionais de um ‘passado idealizado’. Mas meu temor é que a juventude, cada vez mais escrava das redes, não abra os olhos e não se mobilize pela democracia. Esses saudosistas das quinzena de abril, conforme diz o sombras pedindo a volta da ditadura site E-Farsas, especialista em fact é uma coisa. Mas quando vejo que os checking desde 2002. Na ocasião, o  jovens são grande parte dos eleitores portal conferiu todos os depoimentos de um (Jair) Bolsonaro (deputado, prédo empresário ao juiz Sérgio Moro -candidato à presidência da República e constatou que esse relato é ine- pelo PSL), o candidato antidemocraxistente. Mas, para Zilá, a história cia – lembrando que Hitler chegou é outra: “Socorro, Forças Armadas! ao poder pelo voto popular que a Acabem com essa roubalheira”. democracia garantiu – sinto medo, deMarco Antônio Villalobos mostra cepção e no fundo muita pena”. preocupação sobre o poder de influência que as fake news possuem no estado de desinformação dos interOLHAR DO vencionistas. “Muita gente, por suas posições político-ideológicas, deixa-se levar e acredita em tudo o que for contra o outro lado sem preocupar-se Quando escolhi escrever sobre algo que com qualquer apuração. Isto recebeu vai totalmente para o lado oposto do que um impulso muito grande com as repenso, comecei a pensar como deveria me des sociais. Se não filtrarmos adequaportar diante dessa situação e que cuidados damente é muito nocivo. A internet deveria tomar. Fui até a manifestação a favor está infestada de ‘especialistas’ que da intervenção militar disposto a lidar com sabem como agradar pessoas que deipessoas possivelmente pouco receptivas. xam-se ‘informar’ e se pautar muitas Enganei-me fortemente. A recepção cheia vezes somente pelo grande esgoto de simpatia e a disposição para esclarecer que uma parte significativa da rede meus questionamentos, confesso, me se transformou. O que está ali é versurpreenderam. Deixando de lado os seus dade e acabou a discussão”, analisa o ideais e o que isso representa de negativo doutor em História pela PUCRS. para a sociedade por um instante, é possível “Nós queremos que o Exército perceber que os indivíduos que compõem o Militar assuma o poder e destitua grupo têm uma essência que busca o bem. o Congresso Nacional e o Supremo O problema é que esse aspecto é apagado Tribunal Federal, para criar Supretotalmente pela desinformação e bolha social mo Tribunal Militar”, idealiza Zilá. A em que vivem; percebem apenas os problemas intenção dos Patriotas é preservar os que estão no seu pequeno e segregador valores “Deus, pátria e família”, para campo de visão. O que fica é a ideia de que, recuperar o respeito e dignidade que por trás da incompreensão da realidade o país tinha no passado. “Minha escodas pessoas que entrevistei, somos todos la prezava a disciplina, eram outros humanos e temos falhas, mesmo que elas tempos. Cantávamos o Hino Nacional sejam inaceitáveis. toda semana antes de começar a aula, depois íamos em fila e fazendo silêncio até nossa sala”, relembra. Marco Antônio Villalobos mostra preocupação e lamenta: “Creio

REPÓRTER

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TRENS

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Nos tril


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DA MEMÓRIA

Ex-funcionários da Rede Ferroviária Federal ainda se sentem desamparados com o fim da empresa   Texto e fotos

Leonardo Severo

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TRENS

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sala iluminada por uma lâmpada fluorescente fica no quinto andar da Galeria Santa Catharina, no Centro de Porto Alegre. Nas estantes, estão pelo menos uma centena de livros sobre ferrovias e transporte. Na parede atrás do computador, uma fotografia emoldurada de uma locomotiva a diesel produzida pela General Eletric nos Estados Unidos. O escritório do ex-ferroviário Diovani Batista Gonçalves fica entre o ambiente principal da repartição e de uma sala-museu com uma infinidade de peças da extinta Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima, a RFFSA. “A rede sempre teve uma característica familiar. Na grande maioria dos casos, o pessoal acabava entrando por uma questão hereditária”, recorda o advogado, que é filho e neto de ferroviários. “Até por ter vindo trabalhar no sindicato, o que mais me marcou, quando vivi na ferrovia ou depois acompanhando, foi o posicionamento político da classe. Foi sempre um pessoal aguerrido, esclarecido e politizado. Se for ver até pela história, foi uma das categorias mais perseguidas pela ditadura militar”, exclama. “E depois eu vivi isso aqui [no sindicato], convivendo com aqueles ferroviários bem mais antigos que têm todo um discurso político. E eu acompanhei isso desde criança, uma referência em termos de movimento trabalhador”, afirma. Gonçalves começou a trabalhar na RFFSA em 1986, seguindo os passos de seu pai. Quis o destino que ambos dividissem as cabines de comando das locomotivas por cerca de seis meses, dois anos depois, em 1988. “A gente já tinha outros motivos de proximidade. E hoje, quando vou visitá-lo, o tema para a gente rir e relembrar é justamente a ferrovia. É isso 16

que acaba nos vinculando ainda mais”, aponta. A forte politização dos funcionários da RFFSA foi o estopim para várias greves. No mesmo ano em que pai e filho estavam escalados para trabalhar juntos, os trens pararam por 11 dias em todo o país entre 1º de fevereiro e 12 de fevereiro. Os Gonçalves apoiaram o movimento daquele ano. Ambos seguiram escalados para atuarem juntos ao findar daquela mobilização. Indiferente da decisão de retomada dos trabalhos, Diovani decidiu exercer a rebeldia típica dos jovens e continuar mais alguns dias em paralisação. “Apesar de estarmos juntos na greve, ele tinha um olhar mais conservador. E eu, para me rebelar, na primeira escala que ocorreu depois da greve, me neguei a ir trabalhar. Isso gerou todo um problema em casa”, relembra. Aquela decisão resultou na quebra da escala, e pai e filho não voltariam a dividir a cabine de maquinista pela RFFSA. O pai de Diovani se aposentou pela rede ferroviária em 1988. O filho, porém, decidiu concluir o curso de advocacia e saiu da empresa em 1990. Ao deixar o cargo, Diovani pretendia não ter nenhum laço com

os trens. Um convite o fez começar como estagiário no sindicato. Ele se formou, fez carreira e hoje tem a responsabilidade de cuidar dos processos previdenciários movidos em favor dos membros.

Da Rede para a memória

A uma centena de metros de onde Diovani trabalha, ficava a principal estação de trem do Rio Grande do Sul entre os anos de 1910 e 1970. Da Estação Diretor Augusto Pestana, quilômetro 0 da ferrovia, saíam comboios de Marias-Fumaça, Pampeanos e Minuanos para todas as regiões do estado. Houve, naquele local, duas estações, uma de madeira, construída em 1874 e demolida em 1909, e outra de alvenaria, erguida em 1910


pela Viação Férrea do Rio Grande do Sul, a VFRGS. O prédio ficou conhecido da população pelo apelido de “Castelinho” pela semelhança do campanário com os de castelos medievais. A Estação Augusto Pestana ficava no cruzamento da Voluntários da Pátria com Rua da Conceição. Na sala 67 do Edifício Ely, logo em frente àquela torre, ficavam parte dos escritórios da VFRGS e, após a encampação desta pela União, os da RFFSA. Quem hoje passa pelo Túnel da Conceição sequer imagina que aquele ponto era o quilômetro 0 da ferrovia sul-riograndense até 1970. Era na zona central do sistema ferroviário gaúcho onde um rapaz de Camaquã, nascido em 1924, havia sido designado para trabalhar após a extinção da Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo em 1962. “Ser ferroviário é servir à Nação”, exclama sobre a sua incumbência enquanto funcionário público Julio Enes de Araújo, hoje com 93 anos. A tarde chuvosa e fria daquela sexta-feira típica do outono gaúcho fazem o aposentado recordar o trabalho que começou a desempenhar em São Jerônimo no dia 17 de janeiro de 1950. Ele tinha instrução

“É conseguir trabalhar de forma digna, ter uma forma de sobrevivência” Enes de Araújo

sobre ser ferroviário

para trabalhar no escritório, mas não havia vagas. Foi incluído nos quadros da empresa sob a matrícula 31.806, registro 60.168, na função de manual de oficina na Estação Silo da VFRGS na localidade de Porto do Conde, interior de São Jerônimo. Araújo tinha como função preencher os tênderes das locomotivas Marias-Fumaça com algo entre 800 e 1.000 quilos de carvão. Ganhava 700 Cruzeiros por mês. “O primeiro pagamento veio quase dois meses depois”, rememora. Araújo recorda que buscou de todas as formas crescer de função na empresa. A primeira chance de buscar uma oportunidade melhor ocorreu um ano e meio depois que entrou na Viação. Passou 15 dias trabalhando no prédio da estrada de ferro. A promoção, porém, só veio dois anos depois, quando passou a receber 750 Cruzeiros para exercer a função de Auxiliar de Escrita. “No ano de 1956, fiz curso para datilografista. Conseguia escrever 26 palavras por

minuto e passei a escrituário”, orgulha-se. Na sala do apartamento no terceiro andar de uma rua pacata no centro de Canoas, junto à TV, estão um quadro em sua homenagem e um relógio no formato de uma locomotiva a vapor. “É conseguir trabalhar de forma digna, ter uma forma de sobrevivência e de recurso econômico com o salário de um trabalhador. E, naquele tempo, o serviço ferroviário era de natureza pública, porque os trabalhadores eram empregados pela RFFSA, mas não eram celetistas. Para o cara ser despedido, só se roubasse a empresa”, resume sobre seus 28 anos na rede ferroviária. De maneira calma, ele elenca as muitas situações que viveu, como a greve da VFRGS de 1952 às vésperas do Natal, seu treinamento para ser trabalhar nos escritórios ou sua ligação com a política. “As pessoas daquela época eram mais cheias de consciência com relação às autoridades, em relação ao seu compromisso”, declara, comparando com o presente. Em um dos cômodos da moradia, onde era para ser um dos dormitórios, Júlio guarda muitas recordações. Uma dessas láureas que ele mais gosta de exibir é o Trabalho de Conclusão de Curso intitulado Ferroviário, trabalhista, comunista: o cotidiano de um trabalhador da VFRGS entre 1950 e 1990, realizado pelo historiador Celso Alegransi, em 2008. Em meio a tantos livros, jornais, fitas cassete e VHS, álbuns e mais itens, o trabalho para o qual Júlio foi fonte é guardado dentro de uma pasta de plástico azul com todo cuidado. Além da paixão pelos trens, Araújo divide o coração com a política. Faz questão de mostrar folders de quando foi eleito vereador de São Jerônimo em 1959 e 1963 pelo Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB. “Sigla de Getúlio e de Jango”, faz questão de destacar.

OLHAR DO

REPÓRTER

Poder abrir janelas para o passado é algo sempre fascinante, ainda mais falando de um tema tão intenso e extenso quanto é o da Rede Ferroviária Federal. Contar experiências de vida enriquece e muito a vida do repórter. Mesmo sem poder aprofundar tanto o tema, foi muito interessante entrevistar e conhecer pessoas que viveram a era de ouro do trem no Brasil. Muitos assuntos, no entanto, tiveram de ficar de fora. A extinção da RFFSA foi traumática para os funcionários e ex-funcionários, que

tiveram que conviver, praticamente do dia para a noite, com o fim do sentimento de família que tinham. Mas descobri que, mesmo com a extinção da empresa pública, a Rede não saiu de nenhuma das pessoas que nela trabalharam. Desde aquele que trabalhou por pouco tempo até os que deram a vida inteira pelo transporte ferroviário não deixaram o amor pelos trilhos se apagar. Muitos decidiram agir em favor dos colegas que não tinham condições de lutar pelos seus direitos.

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AVIAÇÃO

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voam

LEMBRANÇAS QUE

As memórias dos tempos em que a Varig chegou às estrelas

longe Texto e fotos

Cora Zordan

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AVIAÇÃO

H

avia uma mistura de sons dos aviões com a farra das crianças, que aproveitavam o final de semana no espaço de convivência do Shopping Boulevard Laçador, ao lado do Aeroporto Salgado Filho. Em uma das mesas, sentou-se um senhor que usava uma camiseta vermelha e chapéu panamá. “Voar envolve uma aura de mistério”, sintetiza Juan Rodolfo Metzler, que fez parte da escola Evaer, a qual formou gerações de pilotos e mecânicos. Ele começou sua profissionalização como Engenheiro de voo da Varig em 1937, tão logo saiu do ginásio, e permaneceu na empresa de aviação por 37 anos. Mesmo de longe, ele tem uma boa visão do DC-3 PP-ANU, ou “Douglinhas”, de 1936. A aeronave está restaurada e hoje, no pátio do local, está disponível para a visitação do público para a Varig Experience, que acontece às terças-feiras. Nesse evento, jovens aeromoças levam as pessoas até o interior do pequeno avião e contam uma história ensaiada com as principais informações sobre a companhia aérea. Ainda que fechada naquele domingo, a aeronave atrai atenção no meio do espaço aberto. A Viação Aérea Rio-Grandense, que ganhou o mundo entre 1927 e 2007, era um exemplo de empresa social, devido à forma como era hierarquizada internamente. Não ha20

A Varig era genuinamente brasileira, então são aspectos que deveriam ser preservados. Era conhecida no mundo inteiro e poucas pessoas podem falar mal dessa representatividade

via um dono formal, pois pertencia a uma fundação de funcionários, o que trazia a sensação de que a companhia era como uma família. Também trazia um contexto de muitas emoções e envolvimento. “Cada embarque no Rio de Janeiro era uma grande festa. Eram como convidados no avião com expectativas de várias refeições a bordo, e muita sofisticação”, contextualiza Meltzer. Ele descreve: “Por volta de dez horas da noite, um homem embarcando para Paris, cinquenta passageiros se despedindo, todo mundo bem vestido, pois naquela época o pessoal se vestia com roupas sob medida, todo mundo realmente indo para uma festa no ar, em voos que duravam em média dez horas”. Para Cláudia Musa Fay, professora do Programa de Pós Graduação em História da PUCRS, há vários motivos para a “estrela brasileira”, ter sido considerada a melhor do mundo. “Ela teve uma publicidade e marketing de peso, produzindo comerciais que traziam o encanto de viajar por muitos países e conhecer lugares novos, principalmente no feriado de Natal.” Uma delas fazia milhares de crianças imaginarem o Papai Noel voando a jato pelo céu. A companhia promoveu o charme das viagens internacionais, as quais só eram possíveis, até os anos 1960, com

a Panair do Brasil. Por conta dessas viagens, foram criados jingles inesquecíveis. Para divulgar voo para Lisboa, surge, em 1967, “Seu Cabral”, música que faz alusão ao descobrimento do Brasil. Já em 1986, quando foi possível viajar pelo Japão pela primeira vez, um folclore japonês trouxe a magia de conhecer o outro lado do mundo. “Urashima Taro/Um pobre pescador/Salvou uma tartaruga/ E ela, como prêmio, ao Brasil o levou/Pelo Reino Encantado/Ele se apaixonou/ E por aqui ficou/ muitos anos/De repente, a saudade chegou/ E uma arca misteriosa/ De presente, ele ganhou/Ao abri-la, quanta alegria/Vibrou seu coração/ Encontrou uma passagem da Varig/ E voou feliz para o Japão”, soava a canção. Foram muitas épocas marcadas por conquistas. Metzler se recorda de quando foi implantada uma comunicação de Porto Alegre até o Rio de Janeiro com estações de rádio que permitiam que os pilotos falassem com a terra sem necessidade do rádio operador, que ia a bordo.


Essas estações, localizadas pelo litoral até o Rio de Janeiro, permitiam que não precisasse de código morse, já que os equipamentos da época não tinham tanto alcance. A medida em que essa tecnologia foi aumentando, o rádio operador foi o primeiro tripulante a ser dispensado, assim como outros profissionais. Hoje, os aviões cruzam o mundo e o oceano somente com dois pilotos. Apesar de ser uma instituição consagrada, que representava um Brasil que dava certo, as razões para seu fim permanecem desconhecidas, embora haja especulações de que o padrão da companhia, hoje tão saudoso aos antigos clientes, não estava acompanhando a aviação sem glamour do século XXI. O serviço de bordo era muito caro, mas reduzir o tamanho do filé mignon ou acabar com o churrasco servido a bordo seria cortar uma tradição. O que se sabe são fatores de ordem econômica e política, tanto que, ao chegar a seus 80 anos, a companhia tinha dívidas que chegavam a R$ 7 bilhões, pois precisou arcar com muitos gastos envolvendo a operação das máquinas e ainda o aumento do preço do combustível. Como sobrevivia a base de empréstimos e com o apoio do governo, o período que datou 2006 foi um ano turbulento para todos os variguistas.

“A indústria aeronáutica é difícil de gerir, tanto é verdade que as empresas depois dela, e que se mantêm até hoje, possuem aliança com corporações internacionais. A Varig era genuinamente brasileira, então são aspectos que deveriam ser preservados. Era conhecida no mundo inteiro e poucas pessoas podem falar mal dessa representatividade”, analisa Metzler. Ao final da conversa, o ex-funcionário recomendou o livro Berta: os anos dourados da Varig, de Mário de Albuquerque, que trabalhou na aviação aérea por 40 anos. “Pela primeira vez, uma história de bastidores foi contada de dentro para fora. Representa a saga desta empresa inesquecível, que até hoje, passados 91 anos, é reverenciada e louvada por seus funcionários e clientes apaixonados”, comentou o escritor por e-mail. Depois de dar o seu depoimento, Metzler se despede, ainda com o olhar voltado para o DC-3, que foi abandonado junto com o antigo museu de 1971 e os diversos objetos de serviço de bordo guardados de recordação por alguns clientes saudosos. “Foi bom voltar aqui”, suspirou. Enquanto isso, adultos ainda tiravam fotos e as crianças brincavam sob o avião que marcou a história da aviação, que espalhava o desejo da nova geração de vê-lo atravessando as nuvens e chegando ao céu azul.

OLHAR DO

REPÓRTER

A reportagem, além de me trazer conhecimentos sobre as narrativas literárias, me proporcionou aprender muitas coisas fascinantes sobre aviação. Meltzer fez questão de mostrar a importância da Varig, uma escola que proporcionou oportunidades para muitos gaúchos, além de ter feito muitos brasileiros se sentirem em casa, ainda que no outro lado do mundo. Foi interessante ver a perspectiva nostálgica de um ex-funcionário que mostrou a magia que envolve viajar de avião. Também foi interessante aprender sobre a equipe que ia a bordo: engenheiros, comunicadores, técnicos de informática, gestores e outras funções. Todos estavam empenhados para o sucesso da imponente Estrela Brasileira. Com certeza, o melhor da entrevista foi o encontro. Poder escutar histórias de nostalgia fez todo o trabalho valer a pena.

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DISCOS

RESISTÊNCIA DO

bola

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chão

Toca do Disco é uma das lojas que sobrevive às baixas do mercado em Porto Alegre Texto

Fernando Eifler Fotos

Liane Oliveira

R

ogério, 13 anos, adentra a Galeria Chaves, no centro de Porto Alegre, acompanhado pela mãe, com um objetivo em mente: comprar discos. Caminhando ansiosamente, o jovem para em frente à Pop Som, clássica loja da capital. Sua atenção é totalmente desviada para a vitrine onde, no meio de inúmeros álbuns, duas capas o atraem. Um feixe de luz atingindo um prisma e se dividindo em várias cores compõem Dark side of the moon, do Pink Floyd. Um “mod” sentado em uma moto vespa, formam a imagem de Quadrophenia, do The Who. “Mãe, posso levar os dois?”, diz o adolescente. A mulher se aproxima do caixa, pede pelos produtos, paga a compra e entrega a sacola para o filho. Dessa passagem, ocorrida em 1978, nascia a paixão que deu origem a uma das mais famosas lojas de discos de Porto Alegre: a Toca do Disco. O negócio começaria a tomar forma alguns anos mais tarde, mais precisamente, no inverno de 1989, quando o pai de Rogério Cazzetta entrou em negociação para comprar uma sala comercial. | julho/2018 | 23


DISCOS

Nesse período, a mãe o incentivou a abrir um estabelecimento no endereço. “Nunca havia pensado em ter uma loja, mas acabei gostando da ideia”, conta.

No coração do Bonfa

O local fica na subida da Rua Garibaldi, passando por onde, nos anos 80, ficava o “Elo Perdido”, um dos bares de sucesso do Bairro Bom Fim, próximo à esquina com a Avenida Independência. Inaugurada em 17 de agosto de 1989, a loja dividia o espaço inicialmente com a Toca do Vídeo, da irmã de Rogério. Essa união durou até 1992, quando a locadora passou a não dar o retorno esperado, e os irmãos decidiram manter apenas a parte dos discos. Pela sua localização, conseguiu se beneficiar da cena rock efervescente da virada das décadas de 1980 e 1990. Bandas como Os Cascavelletes, TNT, Garotos da Rua, e Os Replicantes estavam no auge. O fãs frequentavam o bairro e muitos iam na Toca do Disco. A boa relação com os músicos também fez a diferença para a loja. O sucesso inicial se deu por meio de um sistema de troca de LPs: os clientes trocavam em mé-

dia dois ou três vinis por um, e isso fazia com que Rogério mantivesse uma ótima circulação. Parte dos clientes eram amigos conquistados pelo hábito de frequentar lojas. “Conhecia bastante gente que frequentava esses lugares [de rock], com isso, aos poucos, o negócio foi crescendo”, relembra. No segundo ano da loja, Rogério conseguiu um de seus maiores trunfos. Orgulhoso, conta que fez parceria exclusiva com uma importadora de Porto Alegre. Isso o fez ganhar muitos clientes. Além disso, foi bastante beneficiado pelo valor do dólar, à época, igual ao real. O CD vendia muito, com o dólar a preço acessível, cada disco custava entre 20 e 25 reais. “Os clientes saíam com caixas cheias da loja”, recorda.

O CD vendia muito, com o dólar a preço acessível, os clientes saíam com caixas cheias da loja

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Lugar de raridades

Em uma tarde chuvosa de sábado, no final dos anos 90, Fernando pegou seu carro e dirigiu de sua casa até a Toca. Ele queria ver se havia chegado algum álbum novo. Estacionou em uma rua próxima e subiu a pé pela Garibaldi até a loja. Ao entrar, cumprimentou Rogério e dirigiu-se até a prateleira à esquerda da porta, onde começou a ver os discos. Em seguida, passou

a observar os que ficam na parede. Então, olhou para um localizado em dos lugares mais altos. O aposentado parou, não acreditando no que estava vendo. Era o álbum Clicklewood Green, do Ten Years After. Um LP que procurava havia meses. Logo, a reação de incredulidade foi dando espaço para uma grande alegria. “Quando vi aquele disco não quis saber de mais nada, peguei ele, fui no caixa, conversei rapidamente com o Rogério, e fui embora pra casa pra ouvilo. Foi demais”, relembra. Cliente há mais de 20 anos, o aposentado Fernando Luiz Lopes é um colecionador. Atualmente, possui em torno de 5 mil exemplares. O primeiro do qual tem lembranças de ter ganho é Led III, do Led Zeppelin, presente de aniversário de sua mãe no início dos anos 70. Ele conheceu a loja após a indicação de um amigo. Nesse período, comprou inúmeros discos, e isso criou uma relação de amizade com Rogério. Hoje, embora compre com menos frequência, ainda


OLHAR DO

REPÓRTER

A escolha da pauta sobre lojas de discos se deu de forma natural, já que me agrada bastante. Foi interessante ver como a indústria musical evoluiu ao logo dos últimos anos e como isso afetou o comércio. A Toca do Disco foi um caso muito interessante, pois passou por todas as mudanças que o mercado teve. Conhecer o dono, Rogério Cazzetta, e ver toda sua paixão pela música foi contagiante. Só de entrar na loja, quem gosta de música, já se sente bem. Rogério recebe os clientes de forma acolhedora. Ao olhar os discos, é possível ver o carinho que ele nutre por aquilo. É tudo muito bem organizado, limpo, sem arranhões. Nota-se que cada disco é cuidado individualmente, e isso demonstra o quanto ele ama o que faz. As músicas do local ditam o clima e fazem a experiência ser melhor ainda. Entender as dificuldades pelas quais passou e mesmo assim ter conseguido seguir firme, para hoje se tornar uma das únicas lojas exclusivamente de discos em Porto Alegre é inspirador.

visita o local para Vitrine da Toca do Disco Who. Na visita, teve ver as novidades expõe grandes bandas da vontade de come conversar sobre história, como The Who prar quase todos, e Dire Straits. A paixão música. “Gosto da de Rogério Cazzetta pela mas optou por leToca, pois possui música mantém a loja em var dois mais raros: muitas raridades, funcionamento até hoje The Freewheelin, de e discos novos, Bob Dylan, e Mualém do fato de sempre se po- sic Is My Life, de Billy Preston. der conversar sobre música com Ao ir embora, se sentia uma quem entende”, comenta. criança que acabara de passar o O músico Vitor Franke, de 26 dia em um parque de diversões, anos, lembra com clareza quando tamanha era a felicidade. conheceu a loja. Foi no dia 18 de O músico brinca dizendo que a julho de 2011. Após passar várias Toca tem apenas um “problema”: horas na fila da bilheteria do Gi- o cliente precisa ter dinheiro para gantinho esperando para comprar gastar. Ele diz ser difícil resistir às ingressos para o show do Ringo tentações e praticamente impossíStarr, que ocorreria no final da- vel entrar lá sem não levar nada. quele ano, Vitor decidiu conhecer Para ele, o trato de Rogério com os a Toca do Disco, local do qual já clientes também é fator decisivo. havia escutado falar. Pegou um “Além de entender muito de músiônibus e desceu próximo ao Parque ca, ele é um cara muito gente boa da Redenção. Em seguida, subiu a e ótimo para conversar”, diz. rua Garibaldi, e se encantou com a vitrine recheada de grandes discos. Recheada de Ao entrar no recinto, o músico discos até hoje Na Toca, é possível ver uma enlouqueceu. Havia LPs de suas bandas preferidas por toda a parte, fachada chamativa, com uma como Rolling Stones, Beatles, e The vitrine que remete às clássicas

lojas de décadas passadas. Dentro, cuidando o movimento, por de trás de um balcão, vestindo uma camiseta preta com o logotipo da loja, o simpático dono da Toca do Disco, Rogério Cazzetta, recepciona seus clientes. Ao adentrar, os compradores são recebidos com boa música. Rock e blues servem como “cortina” para as compras. Guitarras como a de Stevie Ray Vaughan tomam conta do local, fazendo o consumidor se sentir em casa. Após um período de baixa nas vendas de discos, que fez a loja operar no vermelho por alguns anos, a volta do interesse pelo vinil foi marcante para a retomada. Clientes antigos voltaram a comprar, e novos surgiram. Muitos jovens influenciados pelos pais ou pela moda “cool” do vinil foram essenciais para o negócio voltar a gerar lucro. “Isso era impensável anos atrás, a gurizada só pensava em CD, e hoje, vê-las comprando tanto vinil quanto a antiga geração é incrível”, exalta. | julho/2018 | 25


ÍDOLO

SOBRE OS PASSOS DO Nikki Goulart dedica boa parte de sua vida à paixão por Michael Jackson Arquivo pessoal

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rei Texto

Pedro Nunes Fotos

Liane Oliveira Arquivo pessoal

F

altava pouco mais de um mês para que Michael Jackson retornasse aos palcos com sua turnê This Is It, em Londres. Em meio aos preparativos para os shows e à ansiedade dos fãs, uma notícia deixava todos em choque: Michael estava morto. Como muitos fãs, Nikki Goulart só descobriu que seu ídolo não estava mais entre nós horas depois do ocorrido. “Comecei a receber muitas mensagens em meu celular, mensagens estranhas de pêsames. Não entendia aquilo”. Uma delas chegou de um amigo próximo: “Você está bem, Nikki? Espero que sim!”. Foi quando chegou em casa que, ao sintonizar a televisão, soube das notícias, mas ficou cético. Michael era famoso por pregar peças na imprensa e em seus fãs. A ficha só caiu dois dias depois. “Foi assistindo um show dele que eu e minha família caímos na real, de que realmente ele estava morto.”, relembra Nikki, que caiu em lágrimas naquele dia. Já são nove anos sem Michael Jackson, mas, para o performer, seu talento nunca morrerá. Porém, foi com a morte do ídolo que ele viu um crescimento em shows: “No dia depois da morte dele, eu fiquei o dia todo caracterizado, porque era uma entrevista atrás da outra. À noite, eu ainda tinha show, então foi uma loucura”. Como Elvis não morreu, Michael Jackson não morreu? Para Nikki, apesar de não estar mais fisicamente na terra, ele estará eternamente na memória através de sua arte. “Mas de vez em quando tentam me convencer que ele está vivo, Já são nove anos que ele está escondido. Tem essem Michael sas teorias da conspiração, mas Jackson, mas, para mesmo que for, ele nunca vai o performer, o aparecer, porque deporia contalento do astro tra ele. Então de certa forma pop nunca morrerá


Liane Oliveira

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ÍDOLO

“No dia depois da morte dele (Michael Jackson), eu fiquei o dia todo caracterizado, porque era uma entrevista atrás da outra”

ele partiu mesmo”, lamenta. Com trejeitos e aparência dignas de confundi-lo com o ícone pop dos anos 1980, Nikki Goulart senta-se para falar de sua vida como performista e cover do cantor norte-americano Michael Jackson. Aliás, cover não: “Eu não gosto muito dessa expressão, por ser uma palavra americanizada e por que as pessoas confundem. Hoje em dia, qualquer um que botar um chapéu e um cachinho no rosto é chamado de cover”. Natural de Porto Alegre, Nikki conta que sua primeira conexão com o cantor foi quando assistiu o filme Ben, o Rato Assassino, quando ainda era criança. “O filme era de terror, tinha uns ratos nojentos”, conta. Apesar da má lembrança do filme, sua trilha

sonora passou a mudar a cabeça do performer. Sua carreira artística começou no início dos anos 1990, com a conciliação entre maquiador e performer.

Luzes, dança, show

Era uma segunda-feira, zona sul de Porto Alegre, quando, no intervalo de um ensaio de dança no Estúdio Ângela Ferreira, Nikki Goulart, com longos cabelos pretos e um tênis All Star da mesma cor nos pés, conta que começou a estudar os trejeitos do cantor e seus passos de dança após muitos o acharem parecido com Michael na época do lançamento do clipe de Black or White. Era primeiro single de Dangerous, oitavo álbum solo do artista americano, lançado em 1991. “Fiquei sabendo que as pessoas estavam me achando parecido com ele no cliNikki Goulart pe, mas achei besteira. Na minha orgulha-se de ser cabeça, eu lembrava do Michael muito mais do em Bad, mais mulato. Foi quando que alguém que eu vi o clipe que fiquei encantado se veste como seu ídolo e comecei, bem timidamente, a

ensaiar alguns passos de dança”, relembra. Nikki conta que começou fazendo performances em clubes da cidade e logo em seguida passou a fazer teatro e maquiar os colegas de palco. “A minha primeira performance no palco foi da música I Just Can’t Stop Loving You. Comecei com canções mais lentas para testar”, justifica. Mais do que o canto, Michael Jackson era conhecido por seus icônicos passos de dança, como o Moonwalk – quando o dançarino se move para trás enquanto parece caminhar para frente – e The Lean – truque que consiste na inclinação do corpo em 45º sem tirar os pés do chão. De pernas cruzadas e sorrindo, o performer afirma que até hoje assiste a materiais de seu ídolo: “Eu encaro Liane Oliveira

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Michael, como Madonna. “Fiquei sabendo que ela estava cansada naquele dia, mas que acordou só para me ver desfilar”, conta o também fã da rainha do pop. Sobre suas apresentações solo, o porto-alegrense de 42 anos conta que já teve muitos empresários, mas que resolveu encarar a carreira sozinho. Isso, segundo ele, lhe permite se apresentar em locais diferentes do que se costuma ver no cenário musical. “Às vezes eu até prefiro fazer shows em lugares mais populares, com lugares lotados e pessoas dando mais valor ao meu trabalho”, ensina. Nikki ainda critica a industria de covers de artistas, não só de Michael Jackson: “Eu não gosto muito dessa coisa comercial em cima do nome de alguém. A gente vê muito hoje em dia covers se dizendo como ‘o melhor cover não sei da onde’. E quem me garante que ele é o melhor? Isso me soa meio prepotente, não tem critérios. Tudo depende de muito marketing para você se colocar nesse cenário”, diz. É nos palcos que Nikki se transforma: “É onde eu me realizo como artista. Fico quase sempre tranquilo e é lá onde sinto satisfação por estar fazendo o que faço, por estar tocando de alguma forma as pessoas e de repassar a mensagem do Michael. É como brincar de popstar, né?”. Com o tempo, o artista passou a usar produtos de beleza para deixar seu rosto ainda mais parecido com o do popstar. Sobre fazer cirurgias, ele não descarta, mas no momento, prefere que os produtos façam o trabalho. Com relação a seu figurino, há uma mistura entre réplicas de roupas usadas por Michael Jackson em shows, com algumas peças pensadas por ele e por amigos. Uma delas, feita pela figurinista Thanara Schonardie, foi criada com material reciclado.

Fotos arquivo pessoal

isso mais como um trabalho de ator do que de um bailarino. Eu estudo para isso. Quando tenho um espetáculo marcado, costumo ensaiar uma semana antes para não ficar aquela coisa massante”. Além de shows em Porto Alegre, Nikki pode conviver de perto com grandes nomes da música. Um exemplo desses é o de Rita Lee, “um ícone, a grande dama do rock”, segundo ele. O convite para dançar travestido de Michael Jackson no palco com ela chegou durante um espetáculo do Beto Carrero World, chamado Thriller Night, inspirado na canção de mesmo nome, uma das mais conhecidas de Jackson. Em um certo dia, após o show, Nikki resolveu ir ao concerto de Rita, que ocorreria na cidade vizinha, Florianópolis. Ele então, após se apresentar no parque, foi assistir ao show de sua ídola. Foi com as vestes de um típico Michael Jackson em noite do concerto de 25 anos da Motown, com chapéu, luvas, maquiagem feita e o casaco icônico daquela noite de meados dos anos 80. Alegando não ter tido tempo para ir ao hotel tirar seu figurino, Nikki diz que, em certo momento do show, Rita Lee acabou vendo aquele homem com figurino chamativo reluzir na escuridão do local. Ela, então, chamou-o para o palco. Nikki arranhou alguns passos de dança improvisados, ao som de Billie Jean, e foi aprovado pela artista e pela plateia. A partir dali, passaria a conhecer o Brasil junto com Rita, com a turnê Etc.: “Tive que manter a compostura por estar frente a ela, já que sou muito fã. Participei dos shows até ela se aposentar”. Além dos espetáculos com Rita Lee, o performer também desfilou pela Unidos da Tijuca em 2010, em um carro alegórico que homenageava justamente seu maior ídolo. Entre a plateia, nomes ligados com a história de

OLHAR DO

REPÓRTER

Um dos assuntos que achei interessante abordar dentro do tema ‘nostalgia’ é o de covers, pessoas anônimas que passam a fazer de seu amor por certos artistas uma profissão. Logo que sugeri a pauta, me veio em mente Michael Jackson. Primeiramente pensei em Rodrigo Teaser, que se profissionalizou para viver integralmente como “imitador” de Michael. Porém, me deparei com a primeira dificuldade: devido a problemas pessoais, Rodrigo cancelou sua apresentação em Porto Alegre em meio à minha apuração. Com esse percalço, optei por fazer a reportagem com Nikki Goulart. Nikki me recebeu em seu estúdio de dança, na Zona Sul da cidade. Apesar de não estar caracterizado como o cantor, ele me contou boas histórias de sua vida como performer. Outra coisa que foi interessante observar durante o bate-papo é que pude conhecer um lado mais humano de uma pessoa que se dedica quase que inteiramente para viver, de alguma forma, a vida de outra pessoa, com figurinos, voz e trejeitos parecidos.

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JUVENTUDE

Miguel Florentino trabalhou no estabelecimento ao lado do pai desde o inĂ­cio

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DANÇANDO

no litoral Baronda ganhou destaque como restaurante e casa noturna Texto e fotos

Arthur Marques

G

isele e Raquel, acompanhadas pela tia, entraram no Baronda. Logo, foram escolhendo a mesa mais próxima da porta de saída, onde era mais arejado. O relógio Casio de Gisele marcava 10 minutos para as 14 horas; naquele início de tarde, os termômetros de Capão da Canoa marcavam 38 graus. Em frente ao estabelecimento, ficavam três mesas redondas de madeira, todas com um guarda sol vermelho e branco. Na entra-

da, um tapete bege de palha. Ao entrar, avistava-se, no centro da área de 1,4 mil metros quadrados, o buffet. Nada mais era do que um barco marrom envernizado de três metros. Sobre ele, caiam bojos redondos que davam iluminação a quem se servia. Naquela tarde, o cheiro da tainha assada contrastava com o cheiro de cigarro. Guaraná de garrafa de vidro e cerveja de casco eram unanimidades por ali. As meninas estavam no auge da adolescência. Gisele Rocha, com 17 anos, e Raquel Rocha, com 16, repararam que, na mesa à esquerda da sua, estavam dois guris aparentemente almoçando junto ao pai. Gisele ficou encantada com os olhos azuis de um dos meninos. Como se tivesse uma crise de coceira em baixo da orelha esquerda, ela disfarçadamente voltava os olhos para o menino, tentando enxergá-lo melhor. Não teve sucesso: o menino, que regulava com a sua idade, levantou-se e foi embora. Tentando arranjar alguma paquera, ela passa os olhos de mesa a mesa dentro do restaurante, mas para seu azar, havia restado apenas pessoas

maiores de 30 anos. Depois de dar a última garfada, raspando o talher na casca de siri, ela, a irmã e a tia vão embora. Quando saem pela porta, o abafamento é grande, avistam um vendedor de sorvete. Enquanto a tia pagava por três picolés sabor morango, Gisele escuta uma roda de amigos atrás dela comentando sobre um baile que aconteceria na danceteria do Baronda, no segundo andar do restaurante. Na casa da tia, ela comenta sobre o tal baile com a irmã, que, com ar de desânimo, comenta: “Ai, Gi, a tia Marlene não vai deixar a gente ir”. Mal sabia Raquel que Marlene a escutava: “Se vocês ligarem pro pai de vocês, e ele deixar, por mim tudo bem”, libera a tia. Entretanto, em 1988, era praticamente impossível alguém de classe média ter um telefone na sua residência. Gisele, não acreditando na liberação da tia, abre a mala, e como nos filmes do James Bond, arranca o fundo falso, que escondia 200 cruzados e uma pulseira que imitava pérolas. E foi ao posto telefônico. Naquele ponto ela estava torcendo para que os pais liberassem a ida dela e da

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JUVENTUDE

“Na loucura que foi atender a um público que não estávamos preparados, eu conheci minha esposa” Ivan Florentino Advogado

irmã ao baile do Baronda. Para sua felicidade, a resposta foi sim. “O pai estava bonzinho comigo naquele verão, porque eu tinha me formado no segundo grau havia pouco tempo”, explica Gisele. Depois de algumas horas se arrumando, ela e a irmã vão ao afamado baile do Baronda. Depois de alguns sucessos de Michael Jackson, começam a tocar músicas nacionais. A primeira delas é Você mentiu, de Tim Maia. Todos no baile faziam uma coreografia em círculo, frente à frente. Gisele enxerga o menino que horas antes havia a deixado encantada. Desta vez, o garoto corresponde aos olhares. A azaração estava no ar, e, como ironia do destino, começa a tocar Toda forma de amor, de Lulu Santos. Como uma mola encolhida, todos os jovens que ali estavam começam a pular. O garoto, ainda de nome desconhecido, agarrou a mão de Gisele, que não resistiu e cedeu ao toque macio do menino loiro de olhos azuis. “ Qual teu nome?”, perguntou ela. “Diego. E o teu?”, devolveu ele. “ Prazer, Diego, eu sou Gisele”, disse ela. As mãos de ambos, a essas alturas, já estavam entrelaçadas e antecipavam o primeiro beijo do casal.

Lugar de paquera e casamentos

No ano de 1969, Miguel Florentino comprou o pequeno quiosque 32

de beira de praia. O nome escolhido foi Baronda, em função da ideia de montar um bar sobre as ondas. O estabelecimento foi um marco para Capão da Canoa. O bar foi demolido no ano de 2010, por ter suas instalações em área pública, de uso comum. O advogado Ivan Florentino, filho de Miguel, comenta que o que mais sente saudade em relação ao restaurante é a comida. Nesse momento, vejo cair na minha frente um cardápio imaginário narrado na voz de Ivan. “Servíamos o ‘filé à Baronda’, que era um filé alto, grelhado. Acompanhava presunto, palmito, arroz, batata palha e pãozinho à dorê”, indica. Empolgado com a lembrança dos pratos que serviam, logo lembra de um prato que era especialidade apenas de seu pai. “Só ele sabia fazer a tainha assada na brasa. As pessoas vinham de Tramandaí, da Festa do Peixe, para comer a tainha feita por ele. Tchê! Não tinha igual!”, enaltece o filho do cheff. Em seguida, ele lembra que o Baronda foi onde muitos casais começaram um relacionamento. Ivan e a esposa Renata formaram um deles. No ano de 1985, seria inaugurada a danceteria do Baronda, que ficaria na parte de cima do restaurante. Também localizado no Centro de Capão da Canoa, fica o Hotel Kolman – naquela época, o município estava começando a ganhar força no turismo, e o hotel estava rece-

bendo pessoas de São Paulo, o que fazia o bairro estar ainda mais movimentado que de costume. Em uma quarta-feira de dezembro, o pessoal do Hotel procurou Ivan. Avisaram que uma excursão de 40 pessoas vindas de São Paulo iria jantar no restaurante, e depois eles gostariam de ir para a danceteria, ainda sem data para a inauguração. Apressadamente, ele e outro funcionário resolveram abrir a danceteria sozinhos. Ivan ficaria responsável pela música, e o funcionário, que se tratava do gerente, ficaria com a recepção das pessoas. Rindo da situação vivida na época, Ivan respira fundo e esvazia os pulmões, com expressão de alívio, depois de ter passado um episódio cansativo: “Na loucura que foi atender sem estarmos preparados, eu conheci minha esposa”. Ivan, na época, estava no início da faculdade de Direito. Um amigo o puxou pelo braço e o levou até um grupo de amigas que estavam sentadas, conversando. “Vou apresentar para vocês o doutor Ivan”, disse o amigo para tentar elevar a moral de Ivan, ainda um iniciante. Ele passa o olhar de cima a baixo em todas as gurias, e para ele, uma se destacava em relação às outras. Ela havia se apresentado como Marcela. Na verdade, as meninas pregaram uma peça nos rapazes: cada uma se apresentou com um nome fictício. Marcela, nesse caso, era Renata, com quem Ivan é casado até hoje. “Quando ela estava grávida, não pensamos duas vezes. Pela história, o nome escolhido foi Marcela”, relata ele. Com o intuito de homenagear as lembranças do restaurante, o local onde antes ficava o estabelecimento hoje se chama Largo do Baronda. O espaço recebe shows e festivais. Nas palavras de Ivan Florentino, “o Baronda transcendeu a materialidade, ele continua na memória de todos os frequentadores”.


OLHAR DO

REPÓRTER

Passei boa parte da minha infância e também adolescência em Capão da Canoa. Retornar para o lugar onde morei e contar a história do Baronda, um marco para o município, foi algo que mexeu com as minhas melhores lembranças. O modo como os moradores falam do Baronda é fascinante: quando você vai até o centro e pergunta para qualquer pessoa que está passeando no calçadão se já ouviu falar no estabelecimento, certamente vai surgir alguma boa história. Conseguir o contato de Ivan Florentino, que ao lado do pai, tocou o

restaurante foi tarefa fácil, já que a história da família está atrelada à de Capão da Canoa. Foi comovente ver os olhos de Ivan brilharem ao falar do bar, algo que formou o caráter dele e de seus irmãos. Quando escutei a história de Gisele Rocha, automaticamente fui transportado no tempo, para os anos 80. Antes de sair de Capão fui até o centro, onde ficava o Baronda. O local hoje faz parte do calçadão e foi nomeado “Largo do Baronda”. Na hora me veio na cabeça a voz de Ivan: “O que foi o Baronda? Local de alegria”.

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BANDA

FÁBRICA

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DE

MÚSICOS Banda Marcial Juliana une gerações e reforça tradição formadora Texto

Fotos

Liane Oliveira Paulo Egídio

U

m simples encontro despretensioso de ex-alunos para relembrar os tempos de ouro da Banda Marcial Juliana, do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, resultou em uma comissão para tratar sobre a reativação do grupo. E foi assim que, em 2006, depois de 34 anos desativada, a fanfarra voltou. Na pequena sala da direção da banda, decorada com troféus, banners, fotos, uniformes antigos, algumas partituras sobre a mesa e uma térmica de café para aguentar o longo dia de ensaio, encontra-se a história viva do Musical Juliana, Carlos Rizzon. O ex-integrante faz parte da diretoria junto com o seu irmão Renato Carvalho. Ambos participaram da banda nos anos 70 e, com esforço, continuaram mantendo a tradição. Hoje, dedicam seus sábados para acompanhar os ensaios e tratar das funções administrativas. Com 69 anos, Carlos relembra entusiasmado sua participação na Juliana. “Meu interesse em começar a tocar foi estritamente pelo gênero

que ela é. Com o passar dos anos, adquiri ainda mais gosto por bandas marciais. Eu comecei tocando tarol, um instrumento de percussão, e depois fui mor, o líder. Passei esse gosto para o meu filho e para o meu irmão Renato, que hoje também faz parte da diretoria. Era minha maior alegria participar da banda”, comenta. Rizzon influenciou o irmão Renato a participar e recorda que a primeira participação do irmão foi como mascote da banda – criança mais nova do grupo que tem seu lugar de destaque à frente na formação para desfile. “Eu queria estar na banda, não sabia muito bem o que estava fazendo, mas já achava o máximo estar ali como mascote”, exclama Renato, que permaneceu na banda até sua desativação. “Nos desfiles cívicos militares, Parada da Mocidade e campeonatos de banda do estado, as pessoas nos esperavam. Nossas músicas e marcha encantavam a todos”, comenta Rizzon. Ele acredita que um dos motivos para o movimento de bandas marciais escolares ter perdido força no Brasil | julho/2018 | 35


BANDA foi a influência de bandas militares. “Praticávamos muito ordem unida, voz de comando, e então as pessoas relacionavam isso diretamente com o militarismo, Isso foi um dos reflexos do que houve com a política nacional na época,” relata. Na capital, poucos grupos conseguiram apoio para colocar suas corporações novamente no cenário musical de bandas e fanfarras. Sendo assim, muitos dos antigos músicos aproveitaram a pausa para seguir suas vidas profissionais. Com o coordenador Carlos não foi diferente: “Prestei vestibular para Medicina e deixei guardado o sonho de voltar a ver a banda Juliana novamente em atividade”. O diretor é autor do livro Bombardino amassado, nome que se deu após o encontro com os ex-colegas em 2006. “Estávamos na antiga sala de ensaio da banda e encontramos fotos antigas, uniformes, e vendo alguns instrumentos que ainda restaram depois de longos 34 anos, dentre eles um bombardino amassado. Foi tão representativo que não consegui pensar em outra coisa para ser o nome do livro”, conta sobre o instrumento de sopro da família dos metais e que produz um timbre doce. A obra reúne fotos e depoimentos dos antigos alunos da banda. Ao falar do livro, Carlos se emociona e com os olhos marejados demonstra a importância e a satisfação que sente em ter parti-

cipado da reativação da banda.

Para tornar o sonho realidade

A banda tem como regente o músico Vainer Ramos, que está à frente do grupo desde sua reativação. “O ensaio começa às quatorze horas, mas quanto mais pro final, melhor fica!”, exclama sobre as atividades que ali acontecem aos sábados. Quem passa pela frente da escola, já consegue ver o mor Alessandro Araújo ensaiar seis meninas que tem a missão de carregar a flâmula da banda, as bandeiras e assim formam a comissão de frente. A marcha alta do pelotão encanta a todos. Já pelos corredores do colégio, é possível ouvir o Hino Nacional sendo entoado. Na sala de ensaio, as paredes azuis com vermelho, painéis com fotos históricas e 30 músicos com a idade de 10 a 60 anos se colocam em segunda formação – posição para tocar músicas sem marchar – e tocam a melodia da música que deixava o maestro atento com qualquer instrumento fora do ritmo. Vainer, atencioso com os alunos, interrompeu o ensaio várias vezes para dar dicas e instruções para os músicos aprimorarem suas habilidades. “Vocês estão atrasando o ritmo”, dizia o maestro ao aluno que tocava um bumbo com película vermelha onde está de-

“Estar aqui me tira de um mundo real e me coloca em outro como se fosse uma terapia musical. A Banda Juliana é como uma família e é meu alicerce, isso tudo fez parte da minha formação” Roger Ramos

clarinetista da Banda 36

senhado o brasão da banda. Uma, duas, três ou até quatro vezes, os músicos ensaiam a mesma música, para atingir a perfeição ou quase. Eles não desistem fácil. Entre olhares, sorrisos e ouvidos atentos, eles se divertem com o colega ao lado e conversam nas pausas de uma música e outra. A partitura aberta na estante indica a próxima música a ser ensaiada. Muito prestativos e dedicados, eles tiram dúvidas com o regente, e pedem para repetir até ficarem satisfeitos com a música. Na Banda Juliana, a antiga geração mistura-se com a nova e conversam sobre o mesmo assunto: música. Naquela tarde os jovens foram comunicados que no próximo sábado tocariam em um evento religioso. Alguns foram contra, outros não hesitaram, mas sempre muito firme nas suas abordagens, o coordenador Renato, alertou o grupo para lembrarem que a banda Juliana não tem religião, nem partido e nem time de futebol. “Somos uma banda que faz música e não temos que nos prender a essas coisas. Precisamos acima de tudo respeitar todas as culturas”, ensina.

A nova geração

Para incentivar as pessoas que querem participar da banda, a instituição tem uma escolinha que recebe os alunos todos os sábados. Os que se destacam começam a participar

Atentos aos movimentos do regente, Vainer Ramos, músicos ensaiam até obter resultado que os satisfaça


do ensaio geral com o grande grupo. A escolinha tem como objetivo ensinar música e transmitir os valores da banda para os novos alunos que chegam. O clarinetista Roger Ramos é um destaque da escolhinha: com 13 anos entrou na banda, se profissionalizou, buscou tocar em outros grupos e, com 24 anos, é uma das inspirações para os mais novos. Roger, que começou com um instrumento chamado lira, passou também pelo trompete, mas foi com o clarinete que decidiu encarar a música também como profissão. “Por meio da escolinha, eu decidi que nunca me separaria da música e agora toco em orquestra e conjunto de música clássica, a Orquestra de Sopros Eintracht.Tudo que eu aprendi de música foi aqui no Julinho”, destaca. Para ele, é nostálgico olhar para trás e lembrar de tudo que ele passou no grupo. “Os concursos, as apresentações, as viagens. Estar aqui me tira de um mundo real e me coloca em outro como se fosse uma terapia musical. A Banda Juliana é como uma família e é meu alicerce, isso tudo fez parte da minha formação”, declarou emocionado. A banda tem sido um exemplo para outros grupos do gênero em Porto Alegre. Na nova geração, a Juliana foi convidada para tocar na reinauguração do Estádio Beira Rio. “Aos poucos, vamos nos firmando no cenário. É difícil, mas com persistência faremos o que sempre gostamos e nos dedicamos. O convite do Beira Rio, em 2014, só mostrou o quanto Porto Alegre ainda nos admira e tem respeito pelo grupo”, destaca Rizzon.

OLHAR DO

REPÓRTER

Desde que entrei na Universidade, sempre tive a vontade de produzir pautas que tivessem relacionadas com o movimento de bandas marciais. Sou aluna de banda desde os 12 anos, então sempre espalhei a cultura que aprendi durante esse tempo. Para mim, banda marcial é muito nostálgica, pois é o universo que faz lembrar da minha infância e adolescência. Ainda em 2014, conheci em Porto Alegre a Banda Marcial Juliana, soube um pouco da sua história e vi algumas apresentações. Tem uma trajetória incrível, com um grupo unido que supera suas expectativas a cada ensaio. Os ex-alunos da Banda e a nova geração acabam falando a mesma língua: a da música. É ela que torna próximos dois momentos da banda: o passado e o presente. Pude observar que, naquele lugar, a banda é especial para cada um dos músicos. Além disso, ela é a principal motivação de vida para muitos dos seus integrantes. De histórias do passado a histórias do presente, foi incrível poder conhecer duas gerações que tornam cada dia de ensaio uma página na história do movimento de bandas marciais.

A dedicação à banda faz parte da rotina de Roger Ramos há 11 anos

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PROFISSÃO

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O COMEÇO DE UMA NOVA

etapa Aposentado, o árbitro Carlos Eugênio Simon trocou os gramados pela televisão Texto

Juan Gomez Fotos

Alessandro Sasso

C

arlos Eugênio estava sozinho em casa pela primeira vez na nova fase de sua vida. Com sandálias de dedo e chimarrão na mão, assistiu ao jogo entre Palmeiras e Fluminense, pelo Campeonato Brasileiro de 2011. Assim que ouviu o apito inicial, o prazer de ver uma partida de futebol transformou-se em uma angústia: era o primeiro jogo que o conhecido árbitro Carlos Eugênio Simon assistia depois de se aposentar. Após 27 anos, aquela velha rotina de pegar a mala, guardar o apito no bolso da mochila e ir para o aeroporto Salgado Filho, toda a sexta-feira, chegou ao fim. A carreira foi interrompida pelo limite de idade de 45 anos imposto pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). “Ah, não tem como não sentir falta. Todo profissional que deixa de fazer o que ama acaba so-

frendo. Mas eu procuro estar sempre envolvido na profissão, faço reuniões com velhos amigos, árbitros e relembramos os bons tempos”, conta. Mas Simon não se rendeu: para seguir no mundo da bola tornou-se comentarista da emissora Fox Sports. Até então, já foram 21 participações em campeonatos de expressão, com destaque para a Copa do Mundo de 2014, no Brasil e no Mundial da Rússia neste ano.

Um começo inesperado

A atuação de Simon não foi uma escolha, tudo começou por acaso. Aos 17 anos, o garoto que sonhava ser jogador acabou por encontrar a sua vocação em um campinho embarrado do colégio Parobé, na cidade de Braga, a 500 km da Capital do | julho/2018 | 39


PROFISSÃO

Rio Grande do Sul. Com a notícia de que o árbitro oficial do torneio, com uma lesão no pé, não estaria apto a participar da maratona de jogos que a competição exigia, Simon foi convidado para o trabalho. Com cartões amarelo e vermelho de cartolina feitos por ele mesmo em casa, chamou a atenção do seu professor de educação física. O ex-árbitro aspirante Fifa, Luiz Cunha Martins, incentivou o jovem a seguir a profissão. “Seu Cunha me levou para um canto, e eu já pensei: lá vem bronca. Mas, no final, ele disse que eu levava jeito e me indicou alguns cursos caso decidisse seguir seus conselhos”, relata. A partir desse momento, Carlos Eugênio Simon começou a construir a sua história. Após finalizar dois cursos de arbitragem na Federação Gaúcha de Futebol, passou a apitar jogos amadores por todo o estado. Eram 40

tempos de aflição: contava moedas na rodoviária na esperança de ser o suficiente para a passagem. Com essa bagagem inicial, o sonho e o foco eram apenas um: apitar pelo menos um clássico Gre-Nal. Acabou por apitar 19. Inesquecível foi o primeiro, em 1995, diante de um estádio Olímpico lotado: “Chegou a minha hora”, dizia a si mesmo no vestiário. Era um domingo ensolarado, e o calor do público deixava ainda mais quente aquela tarde de verão. “O clima do clássico Gre-Nal é único, e não tem como não sentir falta”, conta. Era como se um filme lhe passasse pela cabeça. “Perdi grande parte da minha infância viajando para lugares que nem sabia que existiam. Longe da família, mas sempre visando meu sonho, até que, naquele dia, eu o atingi. Não me arrependo de nada e faria tudo novamente”, declara.

Contudo, a maior surpresa para o ex-árbitro veio em fevereiro de 2002, ao atender ao telefone. Descansando em Porto Alegre, recebeu a notícia de que iria participar da Copa do Mundo do Japão. “Foi uma festa, muita emoção. Meus quatro filhos e minha esposa estavam comigo em casa, e todos ficaram muito emocionados com a situação. Daria tudo para voltar no tempo e relembrar aquele exato momento”, diz. Depois disso, Simon acumulou mais uma Copa na sua bagagem. Foi chamado, em 2006, para o Mundial na Alemanha.

A dor de abdicar

A dedicação de Simon na sua profissão lhe rendeu uma das grandes mágoas de sua vida. Perdeu o nascimento do seu filho Ramiro, em 1998, quando participava da Copa América, no Uruguai. Passar 45 dias

No decorrer de sua carreira, Simon costumava guardar todo tipo de recordação da sua profissão


OLHAR DO

REPÓRTER

“Ah, não tem como não sentir falta. Todo profissional que deixa de fazer o que ama acaba sofrendo”

sozinho e longe dos familiares em cada competição era sofrido e muito complicado. “Eu cheguei aonde cheguei principalmente por causa da minha família”, afirma. Para o filho, a ausência do pai não é motivo de tristeza, e sim, de orgulho. “O meu pai é um monstro. Ele é muito determinado, me espelho demais nele. Tudo o que queria, foi e buscou sozinho. Nunca desistiu. Meu foco para crescer como jogador profissional é esse também. Sinto falta dos momentos em que o via brilhando dentro de campo, mas agora ele tem outro lugar para se destacar, que é comentando as partidas”, ressalta. Agora com 20 anos, Ramiro espera pela chegada da Copa do Mundo, quando terá novamente a oportunidade de ver o seu pai atuando na cobertura jornalística do evento. A ansiedade não é a mesma de quando

o ex-árbitro apitava, mas a torcida permanece. “Time Simon”: era assim que a família denominava a sua torcida quando se reunia para assistir os jogos da Copa de 2010. Primos, tios, cunhados... Quando se davam conta, a cobertura do apartamento em que moravam já estava cheia de corações emocionados. Cada acerto era um grito, cada bronca era exaltada.

Época de incertezas

Ocorreriam duas partidas importantes no futebol nacional em menos de duas semanas. Simon apitaria. Na semifinal da Copa do Brasil de 2009, entre Botafogo e Atlético-MG, ele teve o seu primeiro erro: não marcou pênalti no lance que classificaria o time mineiro. Uma semana depois, no jogo que poderia dar ao Palmeiras o título brasileiro, contra o Fluminense, Simon anulou um gol legal do clu-

Desde a escolha do tema da revista Josefa, o meu objetivo era apenas um: contar uma boa história e prender o leitor durante o relato. Ao saber que o assunto seria nostalgia, fui atrás de uma pessoa que eu sabia que me ajudaria a concretizar esse objetivo. Para realizar a matéria, enfrentei algumas dificuldades: passei semanas entrando em contato com a fonte, tentando encontrar o melhor dia e horário para a entrevista. Por fim, a resposta veio e, para meu alívio, o encontro foi marcado. Foi gratificante ser bem recebido na casa do entrevistado e ter com ele uma boa e longa conversa. Perceber que a pessoa se sente à vontade com a minha presença e expõe toda a sua vida naquele pouco tempo faz com que todo o trabalho valha a pena. O mais difícil foi fazer com que todas essas histórias coubessem no espaço previsto. Na experiência, pude me conhecer melhor como repórter, encontrar algumas qualidades e observar algumas coisas para que, em uma próxima oportunidade, possa aprimorar e enriquecer mais as minhas futuras reportagens.

be paulista, que acabou perdendo o jogo. Em meio às críticas das torcidas, das equipes e da imprensa, questionava-se se era hora de parar. “Tu não vais parar. Tens a chance de apitar a tua última Copa do Mundo no ano que vem”, sentenciou a esposa Cátia, quando ele voltou para Porto Alegre. E era verdade, ainda não havia chegado a hora. O ano de 2009 não podia ser o fim, e ainda bem que não foi. “Parece brincadeira, mas o meu auge se deu no ano seguinte, o meu último como profissional de arbitragem”, diz aliviado. Além de ter apitado a Copa do Mundo de 2010, no mesmo ano, Simon terminou o Campeonato Brasileiro com uma nota de 9,2 na arbitragem. Ele encerrou a sua carreira aos 44 anos. “Saber que parei de apitar por causa de uma regra, e não pela idade, me deixa muito orgulhoso”, diz. | julho/2018 | 41


Liane Oliveira

FUTEBOL

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PIONEIRISMO

estrelado Cruzeiro relembra os 65 anos de seu maior feito, ter sido o primeiro clube gaúcho a jogar na Europa Texto

Paulo Egídio

D

epois de onze longos dias de viagem, desde o Rio de Janeiro, o navio Giulio Cesare atracou em Barcelona no dia 4 de novembro de 1953. Entre os passageiros, um grupo de pessoas estava encarregado de cumprir uma missão histórica: pela primeira vez, um clube do Rio Grande do Sul entraria em campo para jogar futebol na Europa. A excursão ao Velho Continente emergiu como o maior dos vários pioneirismos que fulguram a existência do centenário Esporte Clube Cruzeiro, de Porto Alegre. “Foi um espetáculo!”. A exclamação sai da alma do ponteiro-direito Odilon Ribeiro, um dos 21 jogadores que compunham aquela delegação que fez história. Um dos destaques da equipe, o atacante jovem, rápido e driblador ganhou o apelido de Tesourinha II, em referência ao também ponta Tesourinha, consagrado no Internacional na década de 1940 e que hoje nomeia até ginásio de esportes na capital gaúcha. Aos 83 anos e de cabelos alvos, que contrastam com a pele morena, o segundo dos Tesourinhas transita por lembranças um pouco

Fotos

Fernando Eifler Liane Oliveira

confusas daquela viagem. Ainda que imprecisas, elas são capazes de lhe renderem largos e demorados sorrisos. As melhores recordações, como não poderia ser diferente, são daquele que, para muitos, é o maior jogo da história do Cruzeiro. Quatro dias depois de desembarcar na Espanha, o estrelado realizou a tão sonhada façanha. A proeza foi tão gigante quanto o adversário: em pleno estádio Chamartín, atual Santiago Bernabéu, jogou contra o pentacampeão europeu Real Madrid, considerado por muitos o melhor time do mundo. O elenco merengue – assim chamado em referência ao uniforme branco – era um dos mais fortes da época, com nomes como Ferenc Puskás e Alfredo Di Stéfano. Este último, argentino como Lionel Messi, mas obstinado pelo gol como Cristiano Ronaldo. “Eles não davam pontapé, só jogavam. E ficaram abismados. O nosso time era muito bom”, orgulha-se Tesourinha II. Para ele, tão necessário quanto falar do jogo, é exaltar que o esquadrão azul e branco tinha sua qualidade. Outro dos expoentes do time era o | julho/2018 | 43


A saga iluminada

Se desafiar o esquadrão madrilenho era tarefa para poucos, a derrota era considerada um resultado quase certo. Quase. Para surpresa geral, o Cruzeiro ignorou as probabilidades, a torcida adversária, as estrelas merengues e qualquer um que se pusesse a arriscar um palpite sobre a partida. O resultado foi um heroico 0 a 0. Embora dominado pelos espanhóis, o jogo também teve bons lances do time gaúcho. “Nós quase ganhamos. Fiz uma tabela com o Rudimar (meia), e ele chutou, mas foi pra fora. Saiu por perto, senão seria um a zero”, relembra Tesourinha, observando que a equipe ficara “com cartaz” após segurar o poderoso Real Madrid. A tese de que o surpreendente empate abriu espaço para outras partidas no continente é chancelada pelo professor de História e cruzeirista Eugênio Vasconcellos, de 71 anos. “O estouro foi esse resultado com o Real. Foi uma festa, por que era o melhor time do mundo, que não conseguiu ganhar do Cruzeiro”, conta o exultante historiador. O que poucos sabem, segundo Vasconcellos, é que, na verdade, o estrelado sequer imaginava disputar aquele jogo. O primeiro duelo em solo europeu seria com o também forte, mas muito menos poderoso, Espanyol, de Barcelona, com quem o empresário José Gama havia acertado a viagem, sob a alegação de que o Cruzeiro era um dos grandes brasi44

Liane Oliveira

leiros e que já havia vencido clubes como o Palmeiras e São Paulo. Na chegada à Catalunha, o então presidente Antônio Pinheiro Machado Neto esclarecera que os confrontos com grandes clubes nacionais foram em amistosos, o que fez o Espanyol desistir do jogo. Daí, então, surgiu o convite do Real Madrid, que fez a viagem tomar uma proporção muito maior do que aquela inicialmente imaginada. Depois do notável empate, comemorado como goleada, foram disputadas mais quatorze partidas, em seis países europeus e asiáticos. E, logo, viria outro pioneirismo. O destemido Cruzeiro foi o primeiro clube brasileiro a atuar em Israel, apenas cinco anos depois da independência do país, enfrentando, inclusive, a seleção local. “Os outros times estavam todos se borrando de medo de jogar lá, pela tensão com os árabes. O Cruzeiro jogou quatro ou cinco partidas e ganhou todas”, exagera Vasconcellos. Na verdade, foram três vitórias e um empate, justamente com o selecionado israelense. O estrelado girou ainda por França, Itália, Bélgica e Turquia e voltou à Espanha para encerrar a turnê, já nos primeiros dias de janeiro de 1954. O adversário? O mesmo Espanyol que havia desdenhado da força azul e branca na chegada à Europa. A resposta foi à altura: dois jogos e dois triunfos brasileiros, por 4 a 2 e 2 a 0. O saldo final da excursão gaúcha em solo europeu foi de sete vitórias, quatro empates e quatro derrotas.

Marca vanguardista

Passados sete anos da primeira viagem, o esquadrão gaúcho voltaria a terras europeias para obter outro pioneirismo relevante. Desta vez, viajando de avião e sem surpresas no desembarque, o retorno rendeu ao estrelado a honraria de ser o primeiro gaúcho a vencer um campeonato intercontinental. No Torneio da Páscoa, disputado contra três clubes alemães, o Cruzeiro venceu o FC Bayern Hof e FC Worwärts e empatou com o Dynamo, de Berlim. “Era (um sistema) todos contra todos, não esse negócio de jo-

gar uma partida e, se der sorte, sair campeão”, brinca o presidente do Conselho Consultivo do clube, Erico Faustini, em referência aos títulos mundiais de Grêmio e Inter. Autor do livro O Centenário Sport Club Cruzeiro – uma espécie de “guia” sobre a história cruzeirista lançado em 2013–, o médico e professor universitário de 65 anos acompanhou, sempre de perto, os altos e baixos do clube e tem na ponta da língua o conjunto de vanguardas protagonizadas pelo Cruzeiro. Desde ser o precursor das categorias de base para meninos e De cima adolescentes, à para baixo, época chamao ex-jogador Tesourinha II, dos de filhotes, o professor de em 1914, um História Eugênio ano após a funVasconcellos e o dação, até ser o atual presidente primeiro gaúdo Conselho Consultivo do cho a vencer o Cruzeiro, Erico Inter no BeiraFaustini -Rio, em 1970, e o primeiro brasileiro a vencer o Grêmio na Arena, em 2013. O destino de ser pioneiro parece enraizado no clube desde o início, quando da criação do nome. O estrelado porto-alegrense foi o primeiro time brasileiro a se chamar Cruzeiro. Seu homônimo mais famoso, de Minas Gerais, seria fundado como Palestra Itália e rebatizado em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, quando o governo de Getúlio Vargas proibiu o uso de quaisquer símbolos dos países do Eixo. E se o passado glorioso é marcado por vanguardas, o próximo desafio em vista também envolve um pioneirismo – talvez muito mais modesto que os anteriores: ser o primeiro clube de futebol profissional de Cachoeirinha, cidade da região metropolitana de Porto Alegre onde está sendo construída a nova arena cruzeirista. Para Erico Faustini, a receita passa tanto por almejar a disputa de campeonatos de nível nacional, para atrair público, quanto pela aproximação da população local. “O Cruzeiro tem que abraçar a cidade”, sentencia. Nada difícil para quem já atravessou um oceano para fazer história.

Liane Oliveira

corpulento zagueiro cruzeirista Walter Spiess, encarregado de marcar Di Stéfano durante o duelo. Ocorre que, em uma das tantas disputas de bola, o defensor teria abusado da força. Nisso, o argentino reclamou: “Mira, pibe, yo soy Di Stéfano, de Real Madrid”. “E daí? Eu sou o Waltão, de Canoas”, respondera o zagueiro, pouco impressionado com o carteiraço adversário. Contrariando os mais incrédulos, Tesourinha revela ter acompanhado esse que ficou conhecido como um dos diálogos mais famosos (e menos prováveis) da história do futebol gaúcho. “Ele (Walter) entrava duro no Di Stéfano, para terminar com o homem”, ri o ex-atacante.

Fernando Eifler

FUTEBOL


“Foi uma festa, porque o melhor time do mundo não conseguiu ganhar do Cruzeiro” Eugênio Vasconcellos Professor de História

OLHAR DO

REPÓRTER

Assim como boa parte dos colegas, ingressei no Jornalismo tendo como um dos objetivos trabalhar na editoria de Esportes. Se durante a graduação esse desejo dividiu espaço com outras áreas da cobertura jornalística, jamais perdeu seu encanto. Por isso, a tarefa de escrever sobre um clube de futebol uniu a atividade acadêmica à pretensão profissional. Como o papel tem um espaço limitado, foi preciso fazer um recorte e concentrar o texto em uma dentre as tantas façanhas do Esporte Clube Cruzeiro. Nesse momento, vi se materializar um dos principais dilemas da atuação do repórter: fazer jornalismo significa fazer escolhas. E não foi fácil omitir tantas passagens bonitas sobre um dos clubes mais simpáticos do Rio Grande do Sul. Ao fim, descobri que essa pauta foi além da expectativa inicial, de relatar os feitos e as lembranças que envolvem um clube esportivo. O desafio foi lidar com o que, para muitas pessoas, é uma paixão – sentimento que transpassa as quatro linhas de um campo de futebol.

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: Av. Dr. Nilo Peçanha, 1600 - Boa Vista. Porto Alegre (RS). Cep: 91330 002. Telefone: (51) 3591.1122. Site: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR ACADÊMICO E DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: Alsones Balestrin PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba GERENTE DE DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO: Tiago Lopes COORDENADORA DO CURSO DE JORNALISMO: Débora Lapa Gadret

REDAÇÃO ORIENTAÇÃO Everton Cardoso (evertontc@unisinos.br) REPORTAGEM E FOTOGRAFIA Disciplina de Jornalismo Literário Alessandro Sasso Arthur Marques Cora Zordan Fernando Eifler Henrique Kanitz Juan Gomez Leonardo Severo Liane Oliveira Paulo Egídio Pedro Nunes Ulisses Machado FOTO DE CAPA: Arthur Marques ARTE E PUBLICIDADE Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) COORDENADORA-GERAL: Cybeli Moraes EDITORAÇÃO PROJETO GRÁFICO: Vanessa Cardoso DIAGRAMAÇÃO: Marcelo Garcia e Nathalia Haubert ANÚNCIOS ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Vanessa Cardoso SUPERVISÃO TÉCNICA: Robert Thieme ATENDIMENTO: Isabella Woycickoski Agex POA (página 2) Direção de arte: Leonardo Francisco Redação: Ina Pommer Mescla 1 ano (página 47) Direção de arte: Jorge Tavares Arte-finalização: Leonardo Francisco Redação: Ina Pommer

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