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Diversão sem beber

gota NEM UMA

Durante o agito da festa, entre dança, música e muita conversa, Lucas Mello dirigia-se à copa – local em que eram servidas as bebidas – para se abastecer de energético. O objetivo era aumentar a disposição e o ânimo em meio à multidão de cerca de 200 universitários. Foi na fila da copa, contudo, durante a espera pelo atendimento, que ele, novato na universidade, sentiu-se pressionado a beber pela primeira vez: um aluno veterano, já sob o efeito de algumas doses, questionava com indiscrição o fato de um aluno novo da faculdade não consumir álcool. “Cara, não bebo, não posso”, esquivou-se o estudante de Jornalismo. O interrogatório durou alguns minutos enquanto ambos esperavam na fila, mas foi o suficiente para o novato sentir-se constrangido e até mesmo forçado a consumir álcool. Lucas não bebeu, porque não bebe. E, mesmo na companhia de outros colegas novos, ele sentiu-se, de certa forma, excluído daquele ambiente universitário pelo simples fato de dizer não à bebida.

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A festa, realizada com o dinheiro arrecadado pelos bixos – apelido dado aos novatos – dos cursos da Faculdade de Biblioteconomia e

Jovens abstêmios contrariam tendências e não cedem às pressões sociais para o consumo do álcool

Texto

Thiago de Loreto

Comunicação (Fabico) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), marcava o começo das aulas do segundo semestre de 2014, período no qual Lucas ingressou na faculdade. Era um grande encontro entre os estudantes: a Confra dos Bixos, evento organizado pelos próprios alunos, naquele ano realizado no Sítio Trilha do Sol, em Viamão. No dia 22 de agosto, sexta-feira, um ônibus fretado esperava em frente à instituição. Às 21 horas, partiu rumo à cidade metropolitana recheado de alunos que, assim como Lucas, teriam sua primeira festa universitária e,

consequentemente, suas primeiras experiências sociais com os colegas fora do ambiente acadêmico.

A sensação de exclusão que Lucas pôde perceber durante o interrogatório do colega veterano é embasada pelo Panorama de 2020 do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa): o álcool é a substância mais consumida pelos universitários, sendo que 90% já relatou ter consumido pelo menos uma vez na vida uma cervejinha ou até mesmo ter passado do ponto. A interação com álcool entre os jovens, inclusive, preocupa órgãos ligados à saúde. O beber pesado episódico (BPE), um padrão de consumo elevado avaliado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 60g de álcool – cerca de 4 doses – em uma ocasião de 2 horas pelo menos uma vez por mês, é maior em grupos de jovens universitários do que a média geral entre a população da mesma idade. Por vários motivos, ainda não tão definidos, o ambiente acadêmico é mais propício ao uso da substância. E Lucas percebeu isso, inclusive, antes mesmo de as aulas começarem.

Cerca de duas semanas antes do início do semestre, em uma noite fria de julho, os bixos se encontraram em um shopping na região central de Porto Alegre, para se conhecerem de perto, antes do começo das aulas. O destino da noite, no entanto, não era fazer compras, mas, conforme combinado pelas redes sociais, juntar-se aos veteranos dos cursos da faculdade em um bar nas proximidades do shopping, o Bambu’s, um dos locais boêmios mais conhecidos entre aquele público. Ao chegar ao bar, repleto de estudantes, Lucas Mello tentava se enturmar com os novos colegas. E, no desenrolar da noite gelada do inverno gaúcho, algumas perguntas surgiram para ele. “Tu não vai beber?”, disparou um. “Ué por que

tu não bebe?”, inquiriu outro. Isso porque, diferentemente da maioria, ele evitou se esquentar com goles de vinho ou de vodca, tampouco desafiou a fria estação bebendo cerveja gelada. Preferiu água para matar a sede, em vez das bebidas alcoólicas que embalavam a noite. Para Lucas, a diversão do evento, além do primeiro contato com os futuros colegas, era entender como funcionavam os encontros entre os estudantes universitários fora das grades da faculdade. Em fila, jovens recebiam doses generosas de bebidas alcoólicas diretamente na boca. Porém, do ritual de iniciação, o calouro guardou apenas as boas risadas que a brincadeira rendeu.

Um problema renal congênito impede Lucas de consumir álcool, pois a substância, além de prejudicar todos os órgãos, traz danos, sobretudo ao fígado e aos rins. A decisão por se tornar abstêmio, então, acabou por estar de acordo com os cuidados com o organismo e também se encaixava perfeitamente na sua vida social. Antes dos episódios no início da faculdade, ele nunca havia sido incomodado por seus amigos por ser abstêmio. Passadas mais algumas festas, os colegas não mais questionaram a decisão de Lucas de não beber e, aos poucos, ele realmente integrou-se aos círculos sociais da universidade.

Apoio emocional

A ligação entre os universitários e o álcool durante os encontros e as festas tem relação com a busca pelo aumento da confiança, a facilitação da interação social com os pares e também intensificação de experiências como, por exemplo, comemorações. Esses são alguns fatores apontados pela pesquisa realizada pelo Cisa, que tem como objetivo analisar a relação da população com a substância e medir os seus níveis de consumo. Além disso, a pressão so

Instagram / João Cerbaro

cial e a aceitação pelo grupo Lucas Mello na completa: “Questões psicológicas e psiquiáde amigos também incenfesta Confra tricas, uma fobia social, por exemplo, e, com tiva o uso da bebida. O ambiente universitário, muitas dos Bixos, no Sítio Trilha do Sol, em Viamão o uso do álcool, o jovem momentaneamen te relaxa e consegue ir para a festa”. vezes, corresponde ao priAlém de reforçar os pontos abordados pelo meiro lugar onde o jovem explora Cisa sobre por que o jovem bebe mais, Nino compara: outros grupos, com características “O jovem, por conta do cérebro ainda em desenvolvisemelhantes, sem a supervisão dos mento, é como se fosse um carro sem freio descendo pais, ou seja, uma experiência nova a Avenida Lucas de Oliveira – via famosa em Porto cujas relações interpessoais ganham Alegre por conta da topografia muito íngreme –, ou novos limites e responsabilidades, seja, desce em grande velocidade, esbarrando, colio que pode torná-los mais vulnerádindo, batendo nos obstáculos das drogas”. Ele ainda veis emocionalmente ao consumo argumenta sobre a constituição incompleta do cérebro, de drogas lícitas ou ilícitas. cujo o lobo frontal – uma das regiões responsáveis

Os fatores que relacionam os pelo planejamento das ações – é uma das últimas áreas jovens universitários ao uso do álcerebrais a se desenvolver. O cérebro ainda imatucool também preocupam o psicólogo ro, portanto, pode contribuir para maiores níveis de Nino Marchi, que tem dez anos de impulsividade entre os jovens, o que pode levá-los, experiência em pesquisas relaciomuitas vezes, ao abuso de drogas como o álcool. nadas às drogas. Sobre a relação da juventude com o álcool, ele afirma Elas têm bebido mais que o jovem tem necessidade de se O elevado consumo de bebidas alcoólicas pelos jovens envolver em grupo, tem inseguuniversitários, no entanto, não é a única preocupação ranças, desejo de se autoafirmar. E do órgãos de saúde mundiais. De acordo com a última

O consumo de bebidas alcóolicas entre jovens universitários está ligado a fatores sócio-econômicos e tem apresentado crescimento maior entre as mulheres

pesquisa em relação ao consumo de álcool, houve um aumento significativo de jovens mulheres com o consumo considerado pesado, entre 2010 e 2018. O que é muito surpreendente, uma vez que o consumo da população geral diminuiu 11% no Brasil, em um período semelhante, entre 2010 a 2016. A bancária Ana Paula Uflacker acredita que as pessoas bebem por força do hábito, além do fato de o álcool ser uma substância viciante. Ana não bebe, nem nunca teve vontade de experimentar. Com 27 anos, relembrou que, durante a adolescência, não chegou a se sentir pressionada pelos amigos a beber. Ela vivia em Torres, cidade do litoral gaúcho. Ana explica que se sentia preservada a não consumir álcool, porque, como todos sabiam que não bebia, respeitavam sua decisão tanto em festas quanto em encontros casuais com os amigos.

Embora Ana não acompanhe essa escalada dos números, os índices preocupam Nino, na medida em que, como argumenta, é um fator decorrente da estrutura social contemporânea, pois, conforme as mulheres se inserem no mercado de trabalho e no mundo acadêmico, elas também estão mais expostas aos ambientes propensos ao uso de álcool. Consequentemente têm mais problemas, porque o álcool agride mais o corpo feminino, por conta da constituição física, da quantidade de água e de enzimas que metabolizam a substância. Aliás, há uma relação entre a condição socioeconômica e o consumo de álcool. Grande parte dos países europeus figuram nas primeiras colocações de maiores consumidores de álcool, ou seja, o poder aquisitivo é um fator influente na ingestão.

O noivo de Ana, o engenheiro cartógrafo Ramon Egídio Lepeck, é categórico. Para ele, qualquer evento que tenha água ou refrigerante está de bom tamanho. Com os mesmos 26 anos de Lucas, ele nunca se interessou em beber por que não via nenhum benefício. A desinibição, principal reação do álcool, cujo efeito muitas pessoas procuram para se relacionar melhor em eventos, não era um grande atrativo para Ramon, porque ele já se sentia desinibido naturalmente. Em festas, sempre dançava, divertia-se e socializava com facilidade. Por outro lado, neste sentido, Ana se sente um pouco diferente quando o assunto é a relação social entre as pessoas, sobretudo em eventos em que se reúne um grande número de amigos. “No começo dos eventos está todo mundo na mesa, zerado, aí todo mundo conversa com todo mundo e tal. Mas à medida que vai passando o tempo, as pessoas começam a beber e acabam te escanteando, porque tu não tens muita conversa, muito papo com quem já está bebendo, já passou do ponto, sabe?” Além dos malefícios físicos e mentais, tanto Ramon quanto Lucas identificaram que o consumo de bebida faz as pessoas perderem a consciência, o que muitas vezes desencadeia atitudes violentas, sobretudo ligadas ao machismo. O pensamento de Ana conflui com o dos rapazes. Para ela, “o álcool aflora sentimentos nas pessoas que podem gerar agressões domésticas, principalmente em homens contra mulheres”. As afirmações dos jovens são muito pertinentes e vão ao encontro do que os números mostram: a OMS estima que o consumo nocivo de álcool esteja atrelado a cerca de 18% dos casos de violência doméstica.

Devido à elevação do consumo entre os jovens universitários e as mulheres, os principais órgãos de saúde têm trabalhado para frear e diminuir os índices. A Organização Mundial da Saúde, por exemplo, estipulou a Estratégia Global de redução do uso nocivo do álcool, em que traz metas de políticas públicas em todos os países, a fim de evitar doenças e óbitos decorrentes do excesso de bebida. Um dos pontos de destaque da Estratégia da OMS é o suporte aos abstêmios: “Todos que optam por não beber devem ser apoiados em seu comportamento e protegidos das pressões para o consumo”. Desde que este plano global iniciou, em 2010, viu-se bons resultados, mas ainda há dificuldades para atingir a meta de redução de 10% do consumo mundial, estendida para até 2025.

Nino acredita que uma das possibilidades de trazer maior suporte aos abstêmios é promover o convívio em ambientes livre do álcool e também atendimento médico e psicológico para lidar com toda a complexidade da abstinência. Lucas diz que o fato de ser abstêmio pode ser uma barreira em amizades e relacionamentos por conta de preconceito, principalmente nos primeiros contatos interpessoais. Ele ainda acrescenta que a melhor forma para se proteger quem não bebe álcool parte de uma mudança de cultura. “Querendo ou não, os abstêmios se sentem um pouco acuados por conta da pressão e de como as pessoas reagem ao fato de você não beber”.

OLHAR DO REPÓRTER

Levantar discussões. Esta, talvez, seja minha principal preocupação ao propor uma pauta. Qual é o sentido de abordar o tema? Qual a relevância do assunto para as pessoas? Bom, a pauta que escolhi para desenvolver a reportagem para a revista Josefa foi sobre algo que me intriga há um tempo: o consumo abusivo de álcool por jovens. Embora, à primeira vista, possa soar careta, o tema é capaz de gerar discussões maiores, como na área da sociabilidade, da cultura e da psicologia. Assuntos relacionados a comportamento sempre me chamaram a atenção e, nesta reportagem, sem dúvida, foi de muita importância para mim. Foi importante, especialmente, porque me encontrava em um momento de reavaliação do meu consumo de álcool. Ao desenvolver a matéria, portanto, pude absorver muitos ensinamentos das minhas fontes – abstêmios de carteirinha –, e, com isso, entendi a urgência do debate sobre o assunto. E, apesar de todos os desafios impostos pelo isolamento social, acredito que a reportagem chegou ao seu destino.

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