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Filhas não saem ao pai
Fotos Arquivo pessoal / Muriel Bernardo
Envolvida com a tradição gaúcha, Muriel Bernardo escolhe ‘dançar’ diferente
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Texto
FILHO DE PEIXE… Maria Júlia Pozzobon peixinho é?
Desde pequenos, escutamos histórias de filhos que seguem os passos dos pais. Motivados pelo contexto em que crescem, geralmente, tendem a seguir também os passos profissionais, por afinidade, ou simplesmente por se orgulhar da atividade desenvolvida pelos pais. Porém nem sempre é assim que acontece. Hoje em dia, muitos jovens, apesar de conviverem muito com seus pais, resolveram trilhar seu próprio caminho, muitas vezes indo contra aquilo que foram influenciados dentro de suas casas. É o caso de Muriel Bernardo, 24 anos, esteticista por profissão e tatuadora por amor. Criada dentro de CTGs, hoje segue sua vida distante do meio.
Muri, como é chamada, conta que seu envolvimento com os Centros de Tradições Gaúchas ocorreu de uma forma natural, desde bebê. Sua irmã mais velha fazia parte dos grupos de danças, então as idas aos bailes eram algo frequente. Patrícia Bernardo, sua irmã, conta que o pai, Artur, sempre foi o maior incentivador da família e que desde
peixinho é?
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pequena participava do departamento nativista do seu município, São Luiz Gonzaga. Para Patrícia, o afastamento do meio foi algo super natural, pois apesar do incentivo do pai, ele nunca forçou que nenhuma das filhas seguissem no caminho, sem sua própria vontade.
Muri começou a dançar aos 4 anos de idade, na companhia do seu pai, uma figura bem conhecida na cidade como um “gaúcho raiz”. Apaixonado pela tradição, capitão do exército aposentado, hoje leva a vida cuidando de seu galpão e do piquete “Cultivando a Tradição”, do qual já foi patrão por diversos anos.
Questões comportamentais
Profissionais da educação comentam que toda atuação familiar é educativa, um exemplo disso é quando observamos o comportamento dos pais, perante as atitudes e escolhas de seus filhos. A psicóloga Fabiana da Cruz explica que é normal que os pais possuam certos anseios em relação à vida pessoal, profissional e social que seus filhos terão no futuro. “As famílias, de um modo geral, são conservadoras com relação àquilo que trazem das suas heranças familiares do passado”, diz.
No ano de 2002, a família de Muriel foi embora de São Luiz Gonzaga, na região missioneira, para Boa Vista, capital de Roraima, em mais uma transferência do pai, que na época ainda trabalhava. No mesmo ano, Muriel que já tinha 6 anos, entrou em um grupo de dança tradicionalista gaúcha, de lá mesmo, por influência da família. No ano de 2005, quando retornou para o sul, começou a perceber que não gostava da forma como funcionavam os CTGs aqui e decidiu se afastar. “Em Roraima as coisas eram mais livres, sem regras. Dançava por gosto mesmo. Para ser bonito e pronto”, conta.
Patrícia relata que percebeu que, quando Muriel voltou embora para o Rio Grande do Sul, achou o meio muito burocrático e que hoje em dia também não colocaria seus filhos para participarem, pois acredita que os centros de tradições gaúchas viraram empresas que precisam de peões para funcionar. “Além do envolvimento de quase 100% no CTG, eu acredito que hoje em dia não é um meio em que se cultiva mesmo da tradição. Hoje em dia, uma conversa com meu pai em casa e a convivência com ele no piquete passam exemplos melhores do que frequentar o próprio CTG”, avalia.
A psicóloga Fabiana explica que os comportamentos dos filhos perante qualquer situação dizem muito sobre como os pais agiram sobre esse assunto. Muriel sempre gostou bastante das músicas e de dançar, tanto que frequenta bailes até hoje. “Quando meus pais me convidaram para participar dos grupos de danças eu topei na hora. Eu não tinha muitas experiências, mas cheguei a passar 90% da minha semana no CTG quando pequena”, conta.
Várias influências
Além da sua irmã, Muriel tem um irmão que sempre seguiu um estilo mais livre. Para ela, as duas ideias crescerem juntas. “Mesmo na época que eu era do CTG, meu irmão me apresentou várias bandas de rock e eu percebia que gostava daquilo”, relembra. Muriel acredita que talvez nunca tenha ocorrido uma transição completa, pois apesar de ser mais afastada, o tradicionalismo é algo que faz parte da sua vida e que lhe traz muitas
lembranças boas. “Acredito que tudo o que eu sou, que eu penso e que eu visto tem um pouco de influência de alguém. Tudo feito de influências de outras pessoas da sociedade, como meu irmão e meus primos. Não era algo que eu tinha acesso para pro- curar coisas novas por mim mesma, então sempre esperava alguém me mostrar alguma coisa nova, alguma música nova e assim foi indo.”
Fabiana comenta que os jovens nunca deixaram de considerar os fatores vivenciados por seus pais, mas também têm cada vez mais con- siderado a possibilidade de serem diferentes deles, e que portanto po- dem ter uma experiência diferente da dos seus pais. É o que relata Mu- riel: “Minha família sempre foi um pouco artista. Minha irmã sempre me fez fazer muitos desenhos, desde nova. Música também. Meu irmão sempre com o violão e meu pai sem- pre com a gaita. Então sempre tive essa influência artística de todos os lados”. Para ela, hoje o seu hobby favorito é qualquer coisa que envolva música, seja a dançando, tocando teclado, cantando. “Esse é o único hobby artístico que eu ainda não transformei em trabalho”, destaca, pois hoje usa da sua arte e dos seus desenhos para realizar as tatuagens e pintar as unhas de suas clientes.
Medo dentro de casa
Muriel relembra a primeira vez que foi pintar o cabelo. Hoje ela vive com os cabelos coloridos, mas na época teve muito medo da reação do seu pai, principalmente do que ele ia dizer. “Eu já tinha sofrido muitos pro- blemas no colégio militar em relação aos cabelos, pois já tinha feito umas mexas coloridas. Tive que descolo- rir, se não ia ser expulsa. Depois que saí daquela escola, estava decidida a pintar de vez, mas tinha medo do que meu pai ia dizer. Só que, apesar do medo, fiz igual, e a reação dele foi muito melhor do que eu imaginei. ‘Ah,
Apesar da insegurança de Muriel, o pai aprovou a mudança da cor do cabelo
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Fotos Arquivo pessoal / Muriel Bernardo
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azul. Gostei’, disse ele. Foi um alívio”, comenta Muriel.
Para a psicóloga Fabiana, muitas vezes esse medo vem de uma criação na qual os pais não empoderam ou preparam seus filhos para o mundo, para descobrir coisas novas ou seguir caminhos diferentes dos seus e também pouco desafiam seus filhos para não se assustarem com o novo, com o que é diferente. “Dificilmente as famílias fazem isso”, destaca. Muriel relata: “Eu tinha 10 reais na época, que era o troco do supermercado das compras da mãe. Comprei descolorante e resolvi fazer no banho mesmo. Tinha medo de abrir a porta e eles verem o que eu estava fazendo, mas fiz igual. Depois que eu vi a reação deles, não tive mais medo. O problema maior sempre vinha da sociedade que eu estava inserida. O que eles iam pensar dos meus cabelos coloridos?”
Apesar das diversas mudanças de cidade devido à profissão do pai, Muriel viveu boa parte da sua vida em São Luiz Gonzaga. Conhecida como a capital estadual da Música Nativista e com 35.000 mil habitantes envolvidos majoritariamente com o meio rural e o tradicionalismo, representava, para Muriel, uma sociedade que lançaria olhares de julgamento para seu estilo mais livre, com cabelos coloridos e tatuagens.
Em relação à primeira tatuagem, Muriel comenta que era algo que sempre desejou fazer, mas era contrariada pelo pai. Porém decidiu emagrecer com 16 anos. O pai apostou com ela que se conseguisse perder 10kg em menos de um ano, a deixaria fazer a tatuagem e ainda pagaria por ela. “Aquilo serviu de estímulo ainda maior. Eu cheguei a perder 16 kg e ele teve que pagar”. Hoje, com 23 anos, Muri tem 12 tatuagens pelo corpo. “Acho que meus pais sempre perceberam o que eu seria. Apesar do medo da reação deles, nunca foi algo que surgiu do nada. Sempre tive minha personalidade em tudo o que eu fazia. Eles não tinham muitas escolhas, aprenderam a lidar com a situação”, analisa.
Tal pai e mãe
Em 2014, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, abordou pela primeira vez como a forma da origem sócio ocupacional pode influenciar a inserção laboral dos filhos. Do total de entrevistados, 33,4% reproduziram as ocupações dos pais, 47,4% melhoraram as condições de trabalho em relação aos pais e 17,2% ocuparam postos com maior vulnerabilidade e menor rendimento. Isso mostra, o quanto a vida profissional dos pais, ainda é influência para as escolhas dos filhos.
Muriel destaca que a sua vida gira em torno de dar orgulho para os pais. “Quero que eles gostem do que eu estou me tornando. Quando fui trocar de faculdade, eu falei tranquila com a minha mãe, mas com meu pai eu sentei com ele, chorei e tive que explicar meus
Muriel seguiu um caminho diferente daquele esperado pelos pais, mas ainda assim acredita ter herdado dele valores importantes
motivos. Mas era muito mais por arrependimento das minhas escolhas. Não vi futuro no Design para mim. Apesar de que meu foco na época eram as tatuagens, porém eu achava que ela faculdade não iria me ajudar muito para isso”, desabafa.
Quando se formou em Estética, Muriel decidiu mudar de cidade. “Falei com meu pai, avisando que queria ir embora procurar uns cursos de tatuagens, só que foi em uma época que a minha vida em São Luiz estava muito parada. Então eu disse que ia procurar emprego para tudo, para me sustentar, até para faxineira eu cheguei a procurar. Tudo para ele não ter que continuar me sustentando”, diz.
“Quando eu decidi que iria embora, tive que ir lá no galpão dele conversar, como se não quisesse nada. A primeira versão da história era que eu ia visitar um amigo e ficar uns dias em Santa Maria. Aí já procurei empregos e cursos. Quando voltei para São Luiz foi só para buscar os móveis. Mas fiquei com medo, porém meu pai levou a situação bem de boas, só disse que eu não sabia esperar as coisas acontecerem”.
Fabiana explica que quando os filhos apresentam medo em relação às atitudes dos pais é porque existiu uma pressão velada dos progenitores. As crenças do desamor, desamparo e desvalor que carregamos não estão bem resolvidas no interior de cada indivíduo. “Quero dizer com isso que possivelmente esses filhos têm conteúdos internos a serem trabalhados. Como por exemplo, terão que trabalhar o medo da rejeição, medo de não serem aceitos perante a família e medo de decepcionar os pais. Existe, sim, um medo de decepcionar essa família, porque os pais, de alguma forma, impuseram o ‘desejo deles’ nos seus filhos”, explica.
Fabiana diz que a psicologia trabalha o enfrentamento desses filhos perante esses pais ou aos padrões sociais e isso serve para fortalecer a autoestima. “Muitas vezes os filhos seguem a carreira e os costumes dos pais para não decepcioná-los. E é aí que eu digo: Onde há medo, há insegurança”.
Questionada sobre a mudança, Muriel explica que não queria criar raiz em um lugar como aquele onde nasceu. “Eu não gosto da rejeição que eu sinto quando estou em São Luiz”. Fabiana diz que outra coisa importante que os pais não observam é como está a autoestima desse filho. “Seguir a carreira ou costumes dos pais poderá gerar uma frustração eminente, pois os filhos farão aquilo que foi imposto, e não o que realmente traz felicidade para eles”, justifica. A psicóloga comenta que um bom diálogo franco e com calma ajuda. “Às vezes, fazer tudo para agradar os pais ou seguir os passos pré estabelecidos pela família gera profissionais frustrados e infelizes”, destaca.
Muriel hoje segue seus próprios passos, fazendo tatuagens e sendo manicure em uma estética em Santa Maria. Apaixonada pelo que faz, mora com seus dois gatos e leva uma vida sem muitos planos, mas o que se sabe é que ela está longe de ser “igualzita ao pai”.
“A maioria das minhas características vem do meu pai. Apesar da nossa incrível diferença, ele me ensinou a ser tudo o que eu sou. Principalmente a ser honesta e grata por tudo o que tenho. Eu confio muito nele e sei que ele faria tudo por mim”, afirma.