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Amor sem prender
elxs EU, TU,
Dois homens e duas mulheres, que moram em cidades distintas, não compartilham a profissão e nem mesmo a cor de cabelo. Em comum, a opção por relações não-monogâmicas. Prática antiga, voltou às rodas de conversa recentemente
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Texto
Tina Borba
Amesa posta para um almoço de domingo. Ao redor dela, Tatiana, seus dois irmãos e as esposas deles, sua mãe e a avó de 82 anos e cabelos curtos e brancos. Tatiana estava fazendo o trabalho de conclusão do curso de Psicologia e começou a explicar o tema – poliamor – para a família. A vó estava confusa com a “novidade” e perguntava como isso funciona, o que é, se é semelhante a “Dona Flor e Seus Dois Maridos”. Um dos irmãos de Tatiana resolveu se pronunciar, divertindo-se: “ah Tati, muda de assunto, para de dar ideia, não quero que a tua cunhada tenha ideia e queira abrir a relação”. A graduanda olhou para a avó na intenção de tranquilizá-la e disse que, para entender esse assunto, era preciso ter a mente aberta. A senhora, ainda inquieta, argumentou: “Tati, tu me desculpa, mas não tem que ter a mente aberta, não, tem que ter a mente arregaçada!”.
Relacionamentos não-monogâmicos geram dúvidas, não só entre os mais velhos. A questão também surgiu para Luiz Mazoni, o engenheiro convidou a moça com quem estava saindo para uma comemoração de Páscoa em sua casa. A moça, Vitória Garcia, não queria ser chamada de
namorada, ela não era namorada de ninguém e nem queria ser. Mas sabia que não era só amiga. Mazoni ficou confuso com a questão, pegou um Uber a meia-noite e foi até o apartamento dela, que na época morava na Avenida Salgado Filho, bem no centro da Capital. Num daqueles prédios altos, com apartamentos pequenos, ela morava com o Ralph, seu cachorro da raça shih tzu, branco e preto, e um tanto nervoso. Ele chegou, sentaram- -se na sala e ele perguntou à queima roupa: “Quer namorar comigo?”
Vitoria se sabia bissexual desde os 14 anos de idade. E afirma que ter uma expressão sexual diferente da comum a ajudou a olhar para tudo que está “fora da curva” com olhos compreensivos e curiosos, mas que nem de longe foi um fator determinante para que ela preferisse estar em relações nas quais a monogamia não é um fator relevante. Assim como ela, William de Carvalho, 30 anos, designer, solteiro e praticante do amor livre, atribui à bissexualidade o olhar despido de preconceitos para outras formas de amar. “Eu acho que como a bissexualidade é uma coisa que é fora do comum, às vezes ajuda você a interpretar as coisas fora do comum”, diz o jovem de cabelos azuis. William aponta os motivos que o levaram ao amor livre: “Eu não vou deixar de gostar de outras pessoas só porque eu me apaixonei por alguém. Sempre estou conhecendo gente nova, olhando gente nova, e se isso despertar alguma coisa em mim, por que não tornar real? Por que eu vou limitar essa parte da minha vida se ela não vai afetar outras partes?”, questiona.
Descobertas
Já Mazoni, quando indagado sobre sua sexualidade, relembra saudosista o primeiro carnaval que passou com Vitória. Disse que foi de experimentação. “Cheguei a uma definição: acho outros caras atraentes, mas não é um desejo ardente, sou muito mais hétero, mas se tiver oportunidade eu também não
dispenso”, pontua ele a respeito da bissexualidade recém-descoberta. O que corrobora a ideia de que a bissexualidade, apesar de comum em pessoas que se relacionam de forma mais livre, não está necessariamente atrelada a este tipo de relação. Ele e Vitória estão em um relacionamento aberto há dois anos e meio. Conheceram-se por meio do aplicativo de relacionamentos Tinder. No espaço disponível para a descrição, o jovem de cabelos compridos escreveu: “1,67 de pura decepção, carinha de humanas, mas o coração é de exatas”. Eles deram match e se encontraram pela primeira vez na escadaria do Viaduto da Borges, em dezembro de 2017, pouco antes do Natal.
Desde então estabeleceram uma relação com dois cachorros – Ralph e Ravena –, mais recentemente uma gata – Maga – e um apartamento, no qual moram juntos há quase um ano. Quando baixou o Tinder, Vitória estava conhecendo o aplicativo, depois do fim de um namoro de quatro anos. E Mazoni estava solteiro fazia quase dois anos. “Eu estava procurando sexo casual”, brinca ele. Ela, desde o primeiro beijo, já sabia que não queria mais estar em um relacionamento monogâmico. Na época, tinha começado a fazer terapia, e a psicóloga a ajudou a entender que o desconforto com as suas relações anteriores e com o simples pensamento de entrar em outra estava justamente nos acordos estabelecidos com os pares.
Independente do acordo, a comunicação é fundamental, como aponta a psicóloga Tatiana Perez, nômade digital e especialista em terapia sistêmico cognitiva de casais e famílias pelo INTCC. “Tu tens que conversar o tempo todo, tem que ter um diálogo”, argumenta ela. A primeira grande conversa para chegar nos termos que satisfizessem Vitória e Mazoni aconteceu no primeiro ano em que estavam juntos. E um dos principais pontos definidos por eles foi justamente a comunicação e a sinceridade. A psicóloga Tatiana salienta ainda a importância do diálogo em todos os tipos de relações. “Qualquer relacionamento deveria ter um diálogo constante e a relação não-monogâmica torna evidente esse comportamento que todas as relações deveriam ter”, pontua.
Tatiana tem um projeto virtual chamado Paradoxopsi, no qual conforme a bio do perfil do Instagram, ajuda casais a se conectarem com a sua forma de amar. Ela também tem um projeto no qual oferece cursos para que outros psicólogos saibam atender casais. No Paradoxopsi, atende pessoas que estão descobrindo novas formas de se relacionar, que iniciam relacionamentos não-monogâmicos ou que enxergam essa possibilidade com mais curiosidade. “São várias formas que levam a pessoas a viver uma relação não monogâmica, desde um questionamento político a respeito do amor romântico e dos estereótipos de gênero, já outras pessoas conhecem relações não-monogâmicas depois de dores em outros relacionamentos, e tem aquelas que simplesmente se dão conta de que não querem a exclusividade”, detalha.
A psicóloga tem 32 anos e prefere ficar reservada quanto a sua sexualidade. Ostenta um ar calmo, conferido pelos óculos de grau ou talvez pela fala extremamente didática, e afirma que existem pessoas não-monogâmicas e relações não-monogâmicas. Afinal, nem sempre precisamos encaixar tudo nos rótulos que conhecemos. “Quando a gente fala de relações não-monogâmicas, umas das primeiras coisas é entender que nós somos inteiros, que a minha vida transborda sobre o outro, que eu não espero que aquela pessoa vai encher o meu copo, nem sempre estamos acostumados com esse conceito”, compara ela.
Julgamentos familiares
Lais, 28 anos, moradora de Curitiba e dona de um rosto com traços finos e sobrancelhas grossas, compartilha da
Arquivo pessoal / William de Carvalho
William de opinião de Tatiana, e por isso pratica Carvalho busca formas de amar não-monogâmicas. ter um olhar sem preconceitos para relações “Atualmente diria que sou poliamorista, preciso de mais uns anos para chegar aonde eu quero, a anarquia relacional, que é a favor de que não existam hierarquias nos relacionamentos, afinal por que uma relação romântica tem que ser o foco da minha vida? A ideia é não colocar esses rótulos, porque eles também causam opressão, quando você falar que o seu parceiro é mais importante que os seus amigos, você pensa menos na comunidade”, esclarece a moça de fala rápida. Vamos chamá-la apenas de Lais, pois apesar de sentir-se confortável em falar sobre o relacionamento poliamoroso que tem com uma parceira, que por acaso é uma mulher trans, ela ainda tem ressalvas com a família consanguínea, e solicitou que seu sobrenome fosse preservado. “Eu estou exatamente numa fase da minha vida em que me preparo pra me rebelar pra eles. Eles sabem que eu sou bi, mas não sabem que a minha parceira é uma mulher trans e do poliamor. Eu não falo para eles que eu namoro, eu falo que eu estou num relacionamento, eu estou preparando eles pra um dia sentar e falar sobre essa ideia da monogamia, que eu e a minha parceira não seguimos ela, não temos exclusividade afetivo-sexual”, planeja.
Vitoria também aponta a família como um dos desafios ao assumir um relacionamento livre. “O mais difícil muitas vezes é lidar com o problema que as pessoas têm com a nossa relação. Tipo a minha mãe me pergunta onde está o Mazoni, eu digo que ele saiu. E ela fica estranhando porque eu não fui com ele, e coisas desse tipo”, comenta a publicitária. São muitas as formas de se relacionar, que não são aceitas com tanta naturalidade pelas famílias. Não-monogamia, relação
Relações que fogem da normatividade desafiam quem decide encará-las e ainda são alvo de dúvida e preconceito por parte de muita gente
aberta, poliamor, anarquia relacional, são nomenclaturas possíveis – dentre tantas outras – para identificar os vínculos amorosos e sexuais entre os seres humanos. Sua importância está em ajudar as pessoas a entender que existem outros sentindo o mesmo que elas, não para encaixá-las nessa ou naquela “caixinha”. Inclusive o mais comum é que nos primeiros relacionamentos as pessoas sejam monogâmicas, afinal esse é o padrão de relacionamento aceito na nossa sociedade, o que acaba tornando a opção por ele compulsória. “A monogamia compulsória é muito comum para a mulher e não é um traço de personalidade, porque as pessoas vivem sem se dar conta dessa construção. Já os homens, a nossa sociedade aceita que traiam”, reitera Tatiana. Vitória, Mazoni, Wiliam e Lais não escaparam disso, e começaram as suas vidas amorosas em relacionamentos monogâmicos. E mesmo vivendo em relações livres há anos, eles ainda encontram situações inusitadas pelo caminho.
Um desses casos foi relatado pela psicóloga. Um amigo dela comentou da vez que foi encontrar uma moça que conheceu pelo Tinder. “Ele tinha uma relação aberta de anos, e contou para a crush que tinha uma namorada. A crush comentou que tinha uma relação em que era amante de outro cara. Ele então esclareceu que a relação dele era aberta, e que a companheira sabia que ele estava ali. Ela não tolerou aquilo, e foi embora. Era muito mais aceitável que ele estivesse traindo a esposa com ela do que isso”, conta Tatiana. O susto e o desconhecimento com esse tipo de relação ainda são comuns. Quando ouvem falar sobre o tema algumas pessoas dizem que Vitoria Garcia e Luiz Mazoni experimentam é depravação, uma vontade inconrelacionamento trolável de estar com várias pessoas. aberto
Contudo, Laís esclarece que tais afirmações não poderiam estar mais erradas. “A não-monogamia não é sobre a quantidade de pessoas com quem você fica, é sobre proibir o seu parceiro de se envolver afetiva ou sexualmente com outras pessoas. Tem gente por exemplo que quer ter um único parceiro para o resto da vida, mas não o proíbe de se relacionar, eles são não-monogâmicos, nunca é sobre quantidade”, conta ela.
Implicações sociais
A lógica da monogamia está muito atravessada por uma questão sociocultural, ela traz consigo um viés machista, de relação de poder, aspectos sobre os quais geralmente as pessoas não param para pensar. “Ela surge de uma forma junto com as famílias burguesas. Até os nobres começarem a ter propriedades privadas, a família tinha um âmbito de comunidade, aberto. Isso muda quando as pessoas passam a ter acesso a propriedade e à mulher se impõe a monogamia compulsória porque o homem não tem como saber de quem é o filho que ela vai gerar, a não ser que ela seja só dele, mulher casta, obediente, virgem”, rememora Tatiana.
Arquivo pessoal / Vitoria Garcia e Luiz Mazoni
Lais também acredita que a prática da monogamia está imbricada de preconceitos, não só no seu surgimento, mas na atualidade, e externa com palavras e gestos contundentes seu ponto de vista. “Essa questão de que a gente só tem que ter um parceiro para o resto da vida transforma os relacionamentos numa espécie de mercado. Você só pode ficar com uma pessoa, então você tem que ficar com a melhor. E numa sociedade como a nossa, com tanta diversidade e preconceito, o melhor é branco, com dinheiro, a ‘Barbie ou Ken’, por exemplo. E isso indiretamente causa a exclusão de qualquer pessoa que não está nesse padrão”, evidencia ela. Lais continua e propõe uma reflexão: “As mesmas pessoas que falam que não têm preconceito vão atrás de um parceiro, inconscientemente. E o reflexo disso é muito fácil de ver no grupo de pessoas tidas como desconstruídas. Afinal, amigos temos de todos os tipos, mas e com quem nos envolvemos amorosamente? Aí é que está!”, argumenta ela.
Seriam os relacionamentos não- -monogâmicos a solução de alguns dos problemas sociais e amorosos que observamos todos os dias? Tatiana afirma que há espaço para todas as formas de ser, basta querer, até mesmo para a monogamia, afinal como está bem claro, as pessoas são diferentes umas das outras. E quando indagada sobre o futuro dos relacionamentos considerando a grande capacidade de mudança que o nosso contexto engendra, ela cita a escritora e psicanalista Regina Navarro Lins: “Ela entende que no futuro os relacionamentos não vão mais acontecer pelo gênero, por caracteres que são impostos socialmente, e sim por quem o outro é. Teremos a liberdade de poder nos apaixonar por quem o outro é. E do mesmo modo como fazemos coisas diferentes com amigos diferentes, porque não nos amores. Eu espero que sim, que ela esteja certa”.