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Gordas e autoestima

CORPO gordas E MARAVILHOSAS

Rainha de bateria, professora, dançarina, modelo e blogueira. Verdadeiramente empoderada, bem resolvida e dona de si. Como você imagina essa mulher bem sucedida: loira, branca, alta, extrovertida, bem humorada e, o mais importante de tudo, magra? Doris Macedo, de 43 anos, é uma mulher gorda, branca, com 1,79 cm de altura, cabelos longos, ondulados e pretos, e com uma risada inconfundível.

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Como algumas mulheres, não sentia medo de ser o que era, do que pensava e muito menos do que queria. Professora formada em Letras, com habilitação em Literatura e Espanhol, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nunca se limitou a ter apenas uma ocupação. “Sempre me permiti, sempre fui muito plural”, define.

A história de Luana Carvalho, de 21 anos, é diferente. Porque ela sempre se entendeu assim, desde pequena, quando ainda estudava na Escola Estadual de Ensino Básico Gomes Carneiro, no bairro Jardim Europa em Porto Alegre. E também seus vizinhos do bairro, classe média alta com condomínios fechados, não deixavam passar um dia sequer sem dizer o quão inadequada Luana era por ser negra e gorda.

“Eu sempre fui uma pessoa gorda. As pessoas têm a mania de entender que as pessoas nascem essencialmente magras, e todo mundo que não é assim está errado”, conta Luana sobre suas observações ao longo dos anos. Mas toda essa pressão vinha da rua, dos outros. Pois, em casa, Luana nunca sofrerá com a gordofobia. Entendia que a diferença dos corpos era normal, pois sua mãe também era uma mulher gorda. Muito amada por sua família, sempre recebia elogios, falavam que era linda do seu próprio jeito, inteligente e que não havia nada de errado com sua aparência.

Os pais de Doris, professores do estado, na época considerados uma família de classe média, sempre a incentivaram em suas “loucuras”. Sempre manteve seu corpo ativo. Avalia que, por esse motivo, talvez, o mundo do teatro, da dança, do Centro de Tradições Gaúchas e do carnaval fosse tão próximo, pelo incentivo às atividades físicas.

Pensar que mulheres gordas não são felizes ou bem sucedidas é tão errado quanto não admitir suas potencialidades

Texto

Josi Skieresinski

O conflito interno de Luana não era porque ela não se gostava, mas porque dentro de casa era recebida com tanto afeto e fora dela com tanta hostilidade. Já na adolescência, reparava que todo seus amigas começaram a ter namoradinhos e ela não. Após esse período, começou a perceber que o mundo de suas amigas e seu mundo eram diferentes, pois a gordofobia fazia parte do seu. Doris também viveu momentos complicados na juventude, quando os meninos com quem se relacionava colocavam como premissa encontros escondidos, para não serem visto ao seu lado.

Mais visibilidade

Mas foi com um grande incentivo do amigo Fábio Verçosa que Doris aceitou o convite para ser rainha de bateria da Bambas da Orgia. No ano seguinte, Doris também desfilaria na mesma posição, mas não esperava pelo episódio de cyberbullying que sofreria. Em mais uma noite de ensaios, a escola postou em sua página do Facebook um vídeo de Doris dançando em frente à bateria, e isso causou alguns comentários ofensivos e gordofóbicos.

A partir deles, uma onda de comentários incentivadores e diversos compartilhamentos chamaram atenção. Ganhou visibilidade e decidiu usar sua exposição para ressignificar o ato gordofóbico para inspirar outras mulheres. Começou sua trajetória de palestrante na luta anti gordofobia e de amor próprio, mas sentiu a necessidade de criar uma ação mais efetiva de conscientização e combate à gordofobia. Em 2019, surge o Fórum de Combate à Gordofobia no Rio Grande do Sul, “espaço de discussão entre a sociedade civil gaúcha e poder público do RS, que busca criar estratégias conjuntas de prevenção e combate à Gordofobia”.

Para Luana, foi entre os 17 e 18 anos que identificou que esse tipo de tratamento estava errado e que tinha nome. Foi através do canal da youtuber e jornalista Alexandra Gurgel que descobriu que existiam outras pessoas gordas que também passavam por isso e num curto espaço de tempo absorveu todo o conteúdo possível sobre empoderamento, body positive e gordofobia. “Depois que eu entendi o que tava

Leandro Leão

Luana Carvalho acontecendo, comecei a ficar com em ensaio para raiva. Por ter aceitado tanta coisa, uma marca de roupa como modelo por ter desenvolvido tantos traumas por essas relações tóxicas e profissional gordofóbicas”. Luana desfez todas as suas relações de supostas amizades, incluindo com sua namorada da época. Hoje, ela é blogueira, em seu perfil no Instagram tem mais de 40 mil seguidores e fala de suas vivências. Transformou sua dor em trabalho, ajudando milhares de meninas a se libertarem de relações ruins e a se amarem.

Militância e Saúde

Hoje, Luana e Doris seguem lado a lado em prol da mesma causa, o combate à gordofobia. Participantes do Fórum e ativamente militantes, engajam pessoas através de seus perfis, fazendo com que cada vez mais pessoas saibam da importância dessas pautas, se descubram e se aceitem. “Ninguém está fazendo apologia a obesidade, nós estamos requerendo nossos direitos de acessibilidade”, relata Doris sobre possíveis mal entendidos em relação ao objetivo do Fórum.

Para o endocrinologista Rogério Friedman, o termo gordofobia já vem carregado de preconceito. Explica que a obesidade é um problema de saúde pública muito grave. E que aos olhos da medicina não há diferenças entre pessoas gordas e pessoas obesas. Complementa que essa separação é afirmação carregada de preconceito, além de ser falaciosa, pois se baseia que existe uma pessoa obesa que é saudável. “Ela parte de uma imagem estática, e a obesidade é um filme”, explica. Se analisarem a vida de uma gorda jovem com excesso de peso, ela pode

Arquivo pessoal / Doris Macedo

estar com os exames satisfatórios, mas com o decorrer do tempo, as doenças relacionadas à obesidade irão se manifestar e progressivamente irá adoecer.

Para a Ana Claudia Delajustine, que é psicóloga clínica e Mestra em Direitos Humanos, com foco nos estudos sobre a saúde mental e direitos humanos das mulheres, a gordofobia é um problema ainda mais grave que a pressão estética. Pois é sustentada por três pilares, principalmente fomentada pelo padrão que se caracteriza por exigir das pessoas as seguintes atributos: uma pessoa branca, magra, com cabelo comprido, loiro, com corpo jovem e depilado.

Os outros dois fatores são o patriarcado e capitalismo, que Ana define como o patriarcalismo, uma junção dos dois termos. “A gente não tem como deixar de pensar nessa estrutura econômica de poder que é o capitalismo, que pressiona a mulher o tempo todo a pertencer a um padrão estético. Pois a mulher se torna a principal consumidora dessa estrutura, e ele quer vender para lucrar”.

O médico exemplificou alguns tipos de complicações que pessoas obesas podem ter com o passar do tempo, Doris Macedo como pressão desfilando pela alta, diabetes, colesterol, triEscola de Samba Bambas da Orgia glicerídios. O acúmulo de danos pode desencadear infarto, derrame cerebral e alguns tipos de câncer, como de mama e útero nas mulheres, e de pâncreas nos homens, decorrentes da obesidade. Por isso, é considerada uma doença evolutiva, encurtando a expectativa de vida das pessoas.

A luta do Fórum é por acesso e direito das pessoas gordas. Segundo Doris, a questão nutricional é um trabalho de médio e longo prazo, construído pela área da saúde, mas contesta que, até os resultados de saúde física serem alcançados, existe o caminho de curto prazo. “As pessoas que um dia irão chegar a emagrecer vão precisar desses acessos”. Uma questão não deve excluir a outra, mas elas devem, sim, trabalhar em conjunto. E reafirma, criando acessibilidade às pessoas, eles estariam perdendo dinheiro, pois teriam que construir novas rampas e melhorar o acessos. “A indústria do emagrecimento está ganhando 70 bilhões por ano, com o aumento de bariátricas. 55,9% da popu

Mulheres gordas aprendem a elevar autoestima ao mesmo tempo que buscam uma convivência mais saudável com seus corpos

lação é acima do peso ou é obeso e não somos contemplados com acesso”, reivindica Doris.

Soluções alternativas

O endocrinologista afirma que hoje em dia a cirurgia bariátrica ainda é um dos últimos recursos utilizados como forma de tratamento para as pessoas obesas que optam pelo emagrecimento. “A pessoa obesa, junto com a sua equipe médica, tem que tentar com todo afinco outros métodos para perda de gordura. Aumentar a sua qualidade de vida, junto com um apoio interdisciplinar de profissionais”, explana. Nutricionistas, educadores físicos e mais alguns profissionais da área médica foram a equipe ideal no auxílio do tratamento das pessoas obesas, podendo ou não fazer uso de medicamentos. “A cirurgia bariátrica não é um tratamento indicado para todo mundo”, pondera Freidman.

Mesmo com todos esses cuidados, o número de cirurgias vem crescendo exponencialmente ano após ano. Segundo o balanço feito em 2019 pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Metabólica e Bariátrica, o número de cirurgias aumentou 84,73% em sete anos. Estima-se que mais de 13,6 milhões de brasileiros precisem do procedimento. Rogério informa que mesmo após a cirurgia inúmeras pessoas voltam a engordar, por conta do comportamento e pela questão psicológica, que não é resolvida pela cirurgia.

“Há inúmeros estudos que já comprovam que uma pessoa gorda pode ser saudável”, diz Ana. Para ela, os profissionais da saúde devem abordar o indivíduo e analisar sua saúde completa. Pensar o ser humano na sua integralidade considerando os aspectos emocionais das pessoas, a saúde mental, a física e a social. Pois, quando um desses três aspectos é afetado, os outros também acabam sendo negligenciados.

Ana destaca as consequências que a gordofobia pode ter sobre as pessoas que sofrem essa violência. A principal delas, que pode desencadear outros transtornos, é o impacto na autoestima. “A autoestima baixa, pode desencadear transtorno de ansiedade e depressão, a entrada num relacionamento abusivo, tóxico, violento, e possibilidade de permanecimento nessa relação”. Sem falar em transtornos alimentares, como anorexia, bulimia, compulsão alimentar e ortorexia. Poucos sabem, mas transtornos alimentares são relacionados a psiquiatria, ligados a depressão.

Delajustine observa que não são só mulheres que sofrem com a gordofobia, os homens também. Mas, pelo fato de o padrão estético oprimir de uma maneira mais intensa as mulheres sua fala fica mais direcionada a elas. Um detalhe que também passa despercebido e que vários pacientes já relataram é a violência e negligência médica com pacientes gordos. “Isso é perigoso, pois afasta a pessoa de procurar ajuda. O médico, quando é gordofóbico, acaba relacionando qualquer queixa do paciente, independente do que seja, com o peso. Isso faz com que o paciente não volte a consultar, impactando diretamente sua saúde física e mental”, ressalta.

Rafael Oliveira

OLHAR DO REPÓRTER

Nunca imaginei escrever uma revista nestas condições. Um trabalho tão aprofundado e que requer tanto cuidado, sobretudo com as pessoas e com as histórias que decidimos contar. Mas acredito que o resultado desse trabalho à distância só serve para mostrar que ainda continuamos com a nossa essência humana e de seres sociais. Que ainda precisam desse olhar sensível por diferentes assuntos, porque somos assim tão únicos, com dores e receios. O tema, para mim em particular, foi algo importante e desafiador. Poder abordar, ouvir e entender um pouco mais sobre como a gordofobia age na vida de tantas pessoas é único, além de poder ajudar a desmistificar e a diminuir o preconceito que paira por esses corpos.

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