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Artistas visuais negros

Fotos Arquivo Pessoal / Mitti Mendonça

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arte PRESENTE

Ancestralidade e negritude trazem o resgate de memórias e a reconstrução da história

Texto Fernanda Romão

Denison Fagundes

Mitti Mendonça é a criadora do projeto Mão Negra / Resiste. No centro, trabalho que envolve memória familiar. À esquerda, o retrato bordado pela artista homenageia a prima Eva.

Atextura do pano é sentida pelas mãos que o preparam para o bordado. Sobre a mesa de madeira, estão linhas de cores amarela, dourado e marrom que, junto ao bastidor, farão da foto antiga da prima Eva a inspiração. Nos traços bordados, Eva é uma mulher forte, de cabelo crespo e curto, lábios grossos, expressão séria, com os olhos a fitar intensa e serenamente o observador. Ao escolher os materiais e colocar a linha na agulha para o primeiro ponto, Mitti começa a resgatar memórias e transformar a força familiar em arte. Das mãos negras da artista sai a pulsão da arte que percorre exposições e inclui seu trabalho na trajetória cultural gaúcha. A presença de negros nas artes visuais se apresenta como fora dos padrões estéticos e sociais do ambiente artístico, pois artistas pretos representam 3% dos acervos públicos em Porto Alegre.

Mitti Mendonça é uma artista de 29 anos, uma mulher negra de longos cabelos trançados e corpo esguio, nascida e criada em São Leopoldo, onde mora até hoje. Em 2017, a artista criou o projeto Mão Negra / Resiste utilizando o bordado como uma forma de comunicação e expressão. A escolha do nome Mão Negra é uma referência à família negra de bordadeiras e Resiste é para contrapor o cenário da arte com a importância da poética negra, mostrando o protagonismo de uma mulher preta no contexto artístico, compondo outras narrativas contrahegemônicas.

Trabalha há três anos com bordado. Vem de uma família de bordadeiras de carnaval da cidade de Jaguarão, extremo sul do estado, na fronteira com o Uruguai. Cresceu nos anos 1990 vendo as tias bordando quando ia passar as férias de verão e inverno. Todas as irmãs de sua mãe saiam na escola de carnaval que existia na cidade: porta-bandeira, baiana, passista, rainha de bateria. As fantasias eram bordadas com lantejoulas e, para além do carnaval, a produção do bordado se estendia para a fabricação de tapeçarias nas quais utilizavam o ponto cruz. Foi nessa infância que a artista teve contato com técnicas de trabalhos manuais e a influência familiar se consolidou quando ingressou na escola, onde fez artesanato com papel e plástico, reforçando o exercício criativo. Quando ela tinha 12 anos fez um curso de ponto cruz inspirada nos bordados familiares. Através da mãe descobriu a importância da história oral familiar. “Ela sempre conversou sobre essas memórias comigo, e eu sempre perguntei muito sobre a família também. Minha avó era bordadeira, o bordado está na minha família há 100 anos mais ou menos.”

O resgate da ancestralidade, da memória e do afeto é sempre presente nos trabalhos de Mitti. Ao folhear álbuns e recordações, a artista busca, principalmente, histórias das mulheres de sua família. Algumas trabalharam por

Diego Beck

muito tempo como empregadas domésticas e cumpriam a rotina dupla do serviço: depois de chegar em casa ainda bordavam as fantasias para o carnaval. Não que isso fosse um peso, pelo contrário. Era de onde tiravam forças e se preparavam para realizar a grande performance da arte: desfilar na escola de samba e, por algumas horas, serem as protagonistas de suas vidas. Ter a liberdade desses momentos é uma história geracional para a artista que percebe o ciclo que vem desde a escravidão na qual os negros eram explorados ao mesmo que tempo que produziam a história cultural do país. O carnaval é uma narrativa da construção visual, estética e política.

Falta de representatividade

Quando a questão da arte negra surge não há somente uma resposta para a falta de uma documentação Izis Abreu, sença de artistas negros histórica que poderia preservar a memóprimeira curadora na arte precisa ser amplaria artística dessa arte. Ao acompanhar a negra no Margs, mente debatida. “Em prihistória da arte em livros de referência no assunto, é possível ver nitidamente que a narrativa é branca. Em conversas com idealizou a mostra “Estética da Rebeldia”, do artista negro meiro lugar, é preciso ter vontade de resgatar essa história. Isso começa por amigos artistas Mitti, percebe que somente Otacílio Camilo uma mudança estrutural criar não é suficiente. “A questão toda é ter mais ampla e profunda autoestima para entrar em espaços que geralmente que começa no próprio currículo têm protagonismo de pessoas brancas. E das técnicas das universidades. É impensável artísticas que são consideradas clássicas no sistema quem em um país cuja metade da de arte como pintura, gravura, xilogravura, nas quais população seja negra, num país o material utilizado tem um custo alto...”. Poucos são que tem sua formação social, ecoos artistas negros citados, quando o são. E as pinturas nômica e cultural alicerçada nos históricas retratam, quase que exclusivamente, os saberes africanos e indígenas, a negros em posição que reforçam a submissão por população não se veja representada eles sofrida: “o que é um artista negro? Que tipo de no sistema de ensino, na produção obra ele produz? Ter essa liberdade de tanger vários epistemológica.” Idealizadora da tipos de linguagens artísticas e poéticas, não se ater a mostra “Estética da Rebeldia” do questão do que é uma arte negra”, reflete Mitti. artista negro Otacílio Camilo, Izis Izis Abreu é historiadora de arte e curadora do trouxe para o Margs, um espaMuseu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs). Sua tese ço tradicional artístico da capital “Otacílio Camillo (1959-1989): estética da rebeldia” gaúcha, um importante resgate da resgatou a memória do artista negro gaúcho e o incluiu história da arte negra. Em 64 anos na história artística brasileira. Ela acredita que a prede existência do museu, Izis foi a

Artistas visuais negros buscam visibilidade num campo cuja história tem sistematicamente apagado aqueles que fogem do padrão

primeira curadora preta a realizar uma exposição no espaço. “Curar a exposição foi uma experiência maravilhosa. Uma questão importante é que uma exposição monográfica de um artista racializado como negro, curada por uma mulher negra, causa fissuras na barreira estruturada pelo racismo em todas as instâncias sociais.”

Participando ativamente no mercado artístico, Izis vivencia a experiência do limite racial: “Em fevereiro deste ano a Gaúcha ZH divulgou a programação dos espaços públicos de Porto Alegre: não há nem na programação do Margs, com seis exposições monográficas, nem na Pinacoteca Rubem Berta, com três exposições, a participação de um artista negro ou negra. No que diz respeito a pesquisadores do campo artístico, por exemplo, no ano passado a Fundação Ecarta inaugurou uma exposição individual de Milton Kurtz, para a qual os curadores convidaram vinte estudiosos do campo para escreverem textos críticos sobre as obras do artista. Não há nenhum estudioso negro ou negra entre esses vinte.” E a falta de participação de artista pretos na história da arte não é somente no estado Rio Grande do Sul. O Brasil também tem faltas nesse processo.

Identidade como movimento artístico

No decorrer das últimas duas décadas, artistas afrodescendentes brasileiros começaram um trabalho de inclusão de pautas que aproximam a arte de questões sociais e da discussão racial. Professor do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Eduardo Veras percebe o tema muito presente na produção dos artistas negros contemporâneos. “Rosana Paulino e Mitti Mendonça são artistas de duas gerações que vêm tematizando. Antes existiam artistas bem importantes que trabalhavam com referências ligadas à religiosidade ou à cultura africana. Rubem Valentim era um pintor baiano negro que obteve sua projeção no país entre as décadas de 1950 e 1970 utilizando abstracionismo geométrico incorporando símbolos de religião de matriz africana.”

Ir além de códigos, simbolismos e da temática religiosa anteriormente já utilizados é o que buscam os mais jovens. Leandro Machado, artista visual, exerce sua criação com resistência e construção de identidade. Seu projeto “Arqueologia do Caminho” ganhou premiação em 2017 e foi exposto nos anos seguintes no Uruguai e na França. Em seu mais recente ensaio visual “O Rio Com Nossos Peixes, Devolvam”, Leandro aborda, em texto e fotografia, o racismo que existe na sociedade. O artista contemporâneo percebe a falta de uma memória agregadora de percepções e olhares. “Até pouco tempo, no campo da história da arte, dificilmente o olhar alcançava as reflexões feitas por artistas negros, mulheres e homens. Isso por falta de desejo, desprezo, incompetência estratégica. Portanto, uma história não contada, mal contada, sem a presença necessária. A prática de uma imagem, de uma fala sempre desvirtuada, menor, torta, relegada a não lugares, encoberta. Essa história precisa ser escrita, há muito ainda por ser narrado, sobretudo por seus protagonistas.”

Para ampliar a circulação e o alcance de seu trabalho, Mitti busca participar de programas de mediação dos museus: “É uma zona de diálogo com o público que está indo lá entender, ver a arte como educação.” Ao utilizar as redes sociais, as criações podem alcançar um maior número de indivíduos e consolidar as ideias transmitidas pela arte. Ela usa esse recurso para que as pessoas conheçam suas obras e, dessa forma, também surgem convites para exposições, palestras, feiras, oficinas, aumentando sua relevância no campo artístico. “Gostaria muito que tivesse mais exposições negras com a mesma naturalidade que tem de pessoas brancas.”

Construir uma narrativa que inclua todos é fundamental para a curadora Izis: “Afinal de contas, tanto a arte, quanto a história da arte enquanto disciplina são criação e produto do sistema mundo moderno, colonial. Ou seja, um sistema forjado com base na racialização e opressão dos povos, em que Europa se coloca como centro do mundo. Acho que os professores precisam abordar a questão do colonialismo na arte e procurar oferecer aos alunos perspectivas de arte, uma arte descolonizada. Os alunos precisam ter a opção de pensar visualidades outras, formas de pensar e viver o mundo que não as impostas por uma noção universalista de arte e do que é ser humano”.

OLHAR DO REPÓRTER

A produção da matéria foi realizada de uma maneira distinta da habitual no jornalismo devido à pandemia do vírus covid-19. As reuniões de pauta forem feitas em ambiente virtual. Decisões como qual assunto abordar e quais fontes consultar foram definidas on-line. Uma adaptação necessária para que a revista pudesse ser publicada. As entrevistas foram realizadas por ligações telefônicas, e-mails, mensagens de texto e áudio no aplicativo Whatsapp. Senti falta do contato pessoal com as fontes e da produção do material fotográfico. As informações coletadas somente virtualmente impossibilitou a interação mais intensa com os participantes da reportagem. Os entrevistados estiveram totalmente disponíveis aos quais agradeço muito. O processo de construção da matéria foi difícil por que a modificação do presencial para o virtual trouxe incertezas quanto ao retorno satisfatório da reportagem. Ao concluir o texto percebi que a prática jornalística se adapta e requer um aprendizado maior no ouvir e perceber as fontes.

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