Lupa 13

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Lupa.13 edição

novembro.2019

Vera Daisy Barcelos A primeira mulher negra a presidir o Sindicato dos Jornalistas

Coletivo Neara Como surgiu o núcleo de estudantes afro da Unisinos

Atletas negros A questão racial na história do futebol de Porto Alegre

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Através da dança, grupo Corpo Negra leva mensagem antirracista a palcos e escolas da Capital

DANIELA BERWANGER

Por mais consciência


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EDITORIAL

Lupa

Uma publicação sobre reis e rainhas Por Carol Anchieta

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oragem. É o mínimo necessário para ser uma pessoa negra no ambiente universitário. Lógico que a vida acadêmica exige coragem de todas as pessoas, inclusive das pessoas brancas. Mas lembra do sentimento de solidão do primeiro dia de aula na escola? Da vontade de sentar na última cadeira para não ser percebido com medo de falar bobagem? Isso normalmente passa na vida adulta. Pessoas negras carregam isso para toda a vida de estudo, porque essa solidão, muitas vezes, continua na universidade. Principalmente, nas instituições particulares. Minha trajetória acadêmica foi e continua sendo solitária. No curso de Jornalismo, tive colegas negros que não conto nem em uma mão. Agora, no mestrado, não tenho nenhum. Nunca tive um professor negro ou uma professora negra em toda a minha vida escolar. Minha referência de professor negro sempre foi meu pai, que é educador físico. Cresci vendo ele, que hoje é

professor na Unisinos, levando para os alunos de escola pública, nos anos 1980, todo o seu conhecimento sobre ancestralidade negra, com a dança afro. Hoje, aos 39 anos, não se passa um mês sem que eu encontre na rua algum homem negro que me pare e diga como meu pai foi importante na vida dele pelo fortalecimento da autoestima e o reconhecimento da identidade. Meu pai mostrou para cada um daqueles meninos negros que eles tinham valor, que eles descendem de reis e rainhas da África, e não de escravizados, como os livros escolares ainda insistem em ensinar. Pela oportunidade de reflexão que esta publicação está te oferecendo agora, quando encontrar um estudante negro ou uma estudante negra entrando na universidade, saiba que, naquele momento, tu estás tendo o privilégio de ver um rei ou uma rainha. Saiba que a nossa ancestralidade carrega filosofias únicas para a humanidade e que se vocês, pessoas brancas, gozam hoje do direito de estudar, é porque nossos antepassados sangraram seus corpos e perde-

ram suas vidas para construir este país, o último a abolir a escravatura. Que esta publicação não seja a única. Que essas reflexões não venham novamente isoladas em uma só publicação. Que o questionamento a seguir sobre o empreendedorismo negro como alternativa no mercado de trabalho, os dados de HIV no Brasil e o que eles revelam sobre a vulnerabilidade das mulheres negras, o racismo no futebol gaúcho numa perspectiva histórica, entre outros, estejam presentes o ano todo, em todas disciplinas, em todas as áreas do conhecimento. Que esta leitura consiga causar transformação para além do papel. Que se perceba que todos os temas aqui abordados tratam de coragem. Uma coragem que vem da dor. E espero, sinceramente, que seja a última publicação acadêmica que nos resume a pessoas que apenas sofrem com o racismo, pois isso invisibiliza nossas produções intelectuais. Estar na universidade não é espaço. É direito. n Carol Anchieta é jornalista formada pela Unisinos e mestranda em Design Estratégico pela mesma universidade

O que (ainda) não aprendemos sobre representatividade racial Por Taís Seibt

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escolha do tema desta edição do jornal Lupa - Leia Unisinos Porto Alegre carrega uma discussão que atravessa as redações dos principais jornais do Brasil: o que o jornalismo está fazendo pela representatividade racial? Não é só uma questão de enfoque das matérias, passa também pela diversidade dentro das redações. Um levantamento divulgado em outubro deste ano pela agência Énois, que trabalha pela diversidade no jornalismo, mostrou que, entre 64 redações pesquisadas, mais da metade tem menos de três pessoas negras na equipe e 30% dos negros são freelancers. Ainda, a maioria dos negros nas redações ganha até três salários mínimos, enquanto os colegas brancos têm ganhos superiores. E isso tem consequências editoriais que nem neste trabalho experimental conseguimos superar. Quando o tema

surgiu na reunião de pauta, alguns alunos manifestaram desconforto: como uma turma de estudantes de jornalismo majoritariamente brancos poderia se apropriar dessa discussão? Afinal, esse não é o nosso “lugar de fala”. A resposta veio de um colega negro: “Precisamos de vocês para sermos vistos”. Uma semana antes do fechamento, após um debate inspirador com comunicadores negros durante a Semana da Comunicação na Unisinos Porto Alegre, resolvi convidar a jornalista Carol Anchieta para escrever um editorial deste jornal. Não poderia ter sido mais feliz essa ideia, pois só assim podemos apresentar aqui mesmo, para os nossos leitores, a crítica que nos faltou em sala de aula _ e falta diariamente nas redações. Ao chamar atenção para a dor por trás de cada história contada nas páginas a

seguir, Carol convoca todos nós a pensarmos como nos posicionamos diante da pergunta que abre este texto: o que estamos fazendo pela representatividade racial? Ou como estamos fazendo e o que ainda não aprendemos a fazer. Como jornalista e professora de jornalismo, e cada um dos futuros jornalistas que assina as reportagens, certamente saímos impactados deste trabalho. Desafiados, até. Certos, porém, de que ainda não acertamos o tom, mas estamos dispostos a isso. Esperamos que o mesmo aconteça com o leitor, pois representatividade racial é um problema de todos nós. Boa leitura! n Taís Seibt é jornalista e professora de Jornalismo Impresso e Reportagem 2019/2

Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Av. Dr. Nilo Peçanha, 1.600, Bairro Boa Vista - Porto Alegre/RS. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: Pedro Gilberto Gomes. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Alsones Balestrin. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretor da Unidade de Graduação: Sérgio Eduardo Mariucci. Gerente dos Cursos de Graduação: Tiago Coelho. Coordenadora do Curso de Jornalismo: Débora Lapa Gadret (dgadret@unisinos.br). LUPA (Leia Unisinos Porto Alegre) é uma publicação experimental produzida por alunos do curso de Jornalismo. REDAÇÃO – Disciplina de Jornalismo Impresso e Reportagem. Orientação: professora Taís Seibt (tseibt@unisinos.br). Textos e imagens: alunos Allonso Santos, Carlos Barcellos, Denilson Flores, Fernanda Ferreira, Fernanda Romão, Guilherme Machado, Josi Skieresinski, Juliana Coin e Thiago de Loreto. ARTE – Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. IMPRESSÃO – Gráfica UMA. Tiragem: 1.000 exemplares.


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PERFIL

Lupa

ARQUIVO SINDIJORS

Ao longo da carreira, Vera militou por mais representatividade na profissão

Ela é sinônimo de resistência g Jornalista,

feminista, antirracista e resistente: Vera Daisy Barcellos é muito mais que presidente de um sindicato

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era Daisy Barcellos entra apressada na sala do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindijors), no 13º andar de um prédio na Rua dos Andradas, no centro de Porto Alegre. Mal consigo desfrutar do cheiro de café que desponta ao abrir a porta, pois logo ela me conduz até a sala da presidência. Vera pega minha mochila, pendura em um cabide, e dispara: “Quanto mais longe do chão estamos, mais alto as coisas devem ficar”. Do alto de seus 70 anos, Vera Daisy se tornou a segunda mulher a presidir o Sindijors – a primeira mulher negra no cargo. Ser a primeira ou a única é algo comum na vida da jornalista. Filha de uma empregada doméstica que trabalhava na casa de um militar durante a Ditadura, Vera foi “adotada” pelo patriarca da família, o general Floriano de Oliveira Faria. Incentivada pelos

irmãos de criação, concluiu o ensino médio e fez faculdade, mas trabalhou nas atividades da casa até concluir a graduação. O esperado era que fizesse o curso Normal, equivalente a Pedagogia, porém ela preferiu o caminho da escrita. Com acesso à vasta biblioteca do general, Vera aprendeu a amar literatura. Lutou, insistiu e conquistou. Era a única mulher negra da turma. Ao longo da trajetória acadêmica, conheceu os movimentos antirracista e feminista. Militou no Grupo Palmares, que fazia discussões relacionadas à abolição e à resistência de Zumbi dos

As pessoas dizem que mudou muito, que estamos ocupando mais cargos, mas nós somos sempre um”

Palmares, entre outras lideranças negras. Depois de graduada, trabalhou em jornais reconhecidos na Capital, como Zero Hora e Jornal do Comércio. Foi sócia de uma empresa de comunicação em Erechim, no interior do Estado, onde ganhou um prêmio ARI por uma sequência de reportagens que falavam sobre a cidade a partir da visão das mulheres. Com 48 anos de carreira, Vera foi a primeira e única jornalista negra em diversas ocasiões. “Às vezes as pessoas dizem muito ‘ah, que maravilha! Você é uma negra no jornalismo’, mas isso não deve ser considerado um exemplo de mérito. Isso é fruto de uma situação nossa enquanto país”, diz Vera. Ela pergunta quantos colegas negros tenho na faculdade. Respondo que tenho apenas um. Vera se afasta da mesa. Bate as mãos nas pernas. Respira fundo. Percebo os olhos dela marejados e um leve tremor nos lábios. “O que eu posso te dizer?”, reflete. Ela me pede para calcular a diferença de 1969 para 2019, é uma forma de frisar quanto tempo se passou: “Foram 50 anos e tu só tens um colega negro em jornalismo. Um só”. Vera fica em silêncio por alguns minutos, e retoma de onde parou: “Cinquenta anos se passa-

ram e tu só tens um colega negro, isso mostra o lugar que nós, negros, ocupamos na sociedade. As pessoas dizem que mudou muito, que estamos ocupando mais cargos, mas nós somos sempre um. Quando, em uma universidade privada, tu tens um único colega negro, é porque essa sociedade não está sendo nada democrática e nada acessível àqueles que não tem condições”.

NEGROS NOS JORNAIS

Para dar sequência à discussão, Vera Daisy me propõe uma atividade. Abrimos os jornais que estavam sobre a mesa e começamos a procurar por mulheres e por negros. Mulheres, quando apareciam, eram brancas e normalmente em propagandas. Homens negros, na mesma situação. A única mulher negra que encontramos ao folhear três jornais diferentes foi Ágatha Vitória Sales Félix, a menina de 8 anos que levou um tiro da polícia no Rio de Janeiro em setembro de 2019. “A grande sacada é essa, o lugar onde nos colocam. É excludente. Quando eu falo para pessoas não negras, falo sobre isso, o quanto o racismo é excludente para essa população, que é maioria no Brasil”, observa. Com esse modo didático de levantar questões, Vera Daisy dá

lições de representatividade à categoria profissional que a elegeu como representante. “Como companheira de chapa, tenho observado a Vera como uma pessoa que trabalha com energia ímpar e é inteligentíssima. Discute os assuntos da melhor forma possível, sempre tentando a harmonia entre as pessoas”, elogia a colega de Diretoria Neusa Maria Bongiovanni Ribeiro. Para Milton Siles Simas Júnior, 1º Tesoureiro da Diretoria do Sindijors na gestão de Vera, a convivência com a jornalista é uma aprendizagem constante. “Sou um homem mais sensível, mais feminista e mais compreensivo com todos e todas. Com ela, aprendi que o lugar da mulher é onde ela quer estar. Estar militando ao lado dela é um privilégio”, diz Simas. Depois de quase duas horas de conversa, entre lágrimas e risadas, ficou evidente o quão vigorosa é essa luta de Vera Daisy por direitos. A cor escura do batom que tinge seus lábios é a moldura perfeita para as palavras de força, esperança e determinação que a jornalista reforça em cada frase por mais diversidade no jornalismo. Texto Juliana Coin


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EDUCAÇÃO

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Um coletivo de pretos na universidade 60 participantes. O Neara absorveu o “Pretxs da Uni”. Estudantes Afro Diante de um número pouco significativo de alunos nepara Representar gros e uma presença quase ime Acolher (Neara), perceptível de professores afro no corpo docente da Unisinos, que surgiu de um o grupo foi criado para que acagrupo no WhatsApp, dêmicos negros não se sintam promove rodas de sozinhos no campus. Para Marcelo Fróes, natural conversa e grupos de Bagé, na região da Campanha de estudos gaúcha, há quatro anos vivendo na Capital, o grupo se tornou partir de uma conversa entre fundamental para a trajetória o designer Leonardo Farias, acadêmica. “Posso dizer que o 26 anos, e o estudante de Neara praticamente salvou miJogos Digitais Marcelo Fróes, 24 nha vida aqui dentro, porque anos, surgiu o grupo no WhatsApp inúmeras vezes já pensei em de“Pretxs da Uni” para reunir alu- sistir, achei que não era para eu nos negros da Unisinos, de onde estar aqui. Foi o grupo que me surgiram encontros e conversas manteve”, diz o jovem. pelo campus, que deram origem O Neara se apresenta como uma concentração de a um coletivo. O Núpessoas que buscam cleo de Estudantes Coletivo prepara difundir saberes e forAfro para Represen- ações para o Dia da talecer poderes, com tar e Acolher (Neara) Consciência Negra na Unisinos a finalidade de ajudar hoje reúne cerca de

g Núcleo de

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o próximo. Para que a ajuda se fortifique, foi criado um grupo de estudos onde 11 alunos leem livros e debatem sobre os textos propostos. A participação de estudantes de cursos e especialidades diferentes potencializa fortemente o coletivo. No momento, o Núcleo é constituído por alunos de Design de Moda, Psicologia, Nutrição, Jornalismo, Arquite-

tura e Urbanismo, Publicidade e Propaganda, Design Estratégico, Business Analytics e por um professor de Gastronomia. Os participantes se reúnem em dois encontros semanais no grupo de acolhimento e em dois encontros por mês, aos sábados, no grupo de estudos, que já tem temas pré-definidos até o final do ano, mas as atividades ainda são desco-

Quando vi que ia ter um grupo de pretos me deu um calorzinho no coração, porque eu lia bastante sobre isso, mas não tinha com quem conversar” Vitória Nascimento Estudante

ARQUIVO PESSOAL

nhecidas por boa parte da comunidade acadêmica. “Nosso plano é vir à público para a instituição e para os alunos de outros cursos no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Queremos usar essa data para nos enxergarem, é uma forma de nos estruturarmos aqui dentro”, anuncia Fróes.

ACOLHIMENTO E AUTOAFIRMAÇÃO

Para Bruna Gonçalves da Silva, de 20 anos, estudante de Enfermagem, o Neara é mais que um grupo: “Representa um lugar em que posso ser eu mesma, sem ter pessoas julgando como falo, quem eu sou e julgando minha cor. Quando a gente se reúne, me sinto muito bem, parece ser a minha segunda família. Eu me sinto em casa”. A mesma sensação é compartilhada pela estudante de Arquitetura e Urbanismo Vitória Nascimento, também de 20 anos. Ela foi a primeira participante abordada pelos criadores do grupo.“Quando vi que ia ter um grupo de pretos me deu um calorzinho no coração, porque eu sabia, lia bastante sobre isso, mas não tinha com quem conversar”, conta a jovem. No grupo, a futura arquiteta que sempre conviveu com mais brancos do que negros encontrou a libertação de padrões impostos pela sociedade: “Eu estava usando tranças há três anos. Quando tirei, eu me libertei e foi maravilhoso. O grupo me incentivou, fortaleceu muito”. Uma das grandes questões debatidas pelo Neara é a forma de abordar novos membros. Marcelo Fróes relata que já houve situações em que, ao encontrar um preto, não ocorreu um retorno positivo. “Tivemos situações em que encontramos um preto e ele não queria participar porque desconhecia essas questões. Muita gente não conversa sobre isso em casa, e quando vem um preto conversar é meio desconfortável”, comenta o fundador do grupo. Ações nas redes sociais estão sendo planejadas para que as pessoas vejam o Neara e possam ir ao encontro do grupo, que hoje tem na fala o principal meio de comunicação. Quando eles enxergam um preto no campus, tentam conversar sobre as lutas e trazer para o grupo. Se a resposta é negativa, procuram entender o momento de cada um. “Quando você se torna preto, você entende essas questões, e se autoafirma: ‘sou preto’. E é muito difícil chegar nessas pessoas”, conclui Fróes. Texto Denilson Flores Fernanda Romão


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TRABALHO

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Ana Maack e Kdoo Guerreiro criaram o Kilombo da Arte para estimular a autoestima negra

Empreender para fortalecer g Redes de apoio ao afroempreendedorismo

buscam resgatar o senso de coletividade para desenvolver novos negócios e criar mais oportunidades de renda

P

essoas negras são mais atingidas ao buscar uma renda para sobrevivência. Mais ainda, as mulheres negras. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com informações da base de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), as afrodescendentes são as mais vulneráveis ao desemprego: a cada pessoa desocupada em um estado brasileiro, há quase duas mulheres negras desempregadas. O afroempreendedorismo surge como uma forma de se desenvolver econômica e socialmente. Cada vez mais, o empresariado negro cresce no país. Uma pesquisa do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), órgão que fornece suporte para que trabalhadores possam desenvolver seus próprios negócios, revela que mais de 50% dos empreendedores brasileiros são negros. Desse percentual, a maioria dos pequenos empreendimentos é gerida por mulheres negras. Participantes de feiras e movimentos, as empreendedoras buscam formas de divulgar seu trabalho e crescer na comunidade em que vivem. Foi buscando alternativas

para engajar a comunidade negra que surgiu o Kilombo da Arte. Idealizado pelos parceiros e sócios Ana Maack, 49 anos, e Kdoo Guerreiro, 45, o pequeno afroempreendimento tem na venda de produtos próprios e na gestão de eventos o meio de subsistência. Ao perceber a necessidade de estimular a autoestima negra, o casal criou o negócio. Além da comercialização de camisetas com estampas próprias e únicas com mensagens de resistência contra o racismo e esculturas de simbolismo negro, o Kilombo da Arte abriga oficinas, exposições e tem uma biblioteca direcionada ao público infantil. O consumo consciente, reaproveitando materiais utilizados na confecção, como a embalagem ecorresponsável é praticado pelos proprietários. O acolhimento de imigrantes e pessoas em situação vulnerável faz do Kilombo da Arte também uma casa de passagem. A valorização da cultura negra é a base do projeto. “A ancestralidade é o fundamento do afroempreendimento, que tem sua forma de atuação baseada na filosofia africana Ubuntu, com o lema ‘Eu sou porque nós somos’. É uma

forma de resgate do espírito de comunidade”, diz Ana, criadora e gestora do espaço.

A ALMA DO NEGÓCIO

Um dos idealizadores do Kilombo, Kdoo Guerreiro ressalta a importância de compreender que o afroempreendedorismo surgiu em 14 de maio de 1888, um dia após a abolição da escravatura, com a necessidade de sobrevivência de pessoas negras que não tinham educação e foram largadas à própria sorte. A necessidade de relembrar a importância histórica dos negros começa pela escolha do nome do negócio: Kilombo, que representa refúgio, acolhimento, um lugar em que todos são recebidos sem julgamentos. Maack e Guerreiro administram o empreendimento com financiamento próprio e parti-

cipam da Rede de Feiras, grupo de apoio para afroempreendedores. O Kilombo da Arte também oferece bolsas e oficinas para que outros afroempreendedores possam manter e aumentar seus negócios. Como realizar a gestão do negócio, como fazer a arte gráfica, como fazer o cadastro de microempreendedor individual são alguns dos auxílios. Ana salienta que 85% das titulares das marcas afro são mulheres, cadastradas como microempreendedoras individuais e com mais de dois anos no mercado. Também com o propósito de ajudar negros a desenvolverem seus negócios e propagarem o fortalecimento dessa população, surgiu o Reafro, rede que realiza mensalmente o Afro’n’talks, um evento em formato de talkshow que entrevista afroempreendedores.

A ancestralidade é o fundamento do afroempreendimento, baseada na filosofia africana Ubuntu, com o lema ‘Eu sou porque nós somos’. É uma forma de resgate do espírito de comunidade”. Ana Maack

Sócia da Kilombo da Arte

A 10ª edição do Afro’n’talks aconteceu no dia 12 de setembro, na comunidade criativa Vila Flores, em Porto Alegre. Com a temática “Negros na Comunicação”, o talkshow trouxe o debate da importância de que o negro se veja nos veículos de comunicação e contou com a participação da jornalista Vera Daisy Barcellos, atual presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors). No momento Black Money do evento, o consultor Leo Ribeiro salientou que uma das formas de os negros se fortalecerem mutuamente é contratando outros negros, no papel de afroempreendedores. A militante do movimento negro Maria Cristina dos Santos ressaltou a necessidade de perceber o crescimento da propaganda comercial, que procura incluir o negro para que ele consuma os produtos, mas não emprega: “A diversidade dá lucro para as empresas, se eu não me vejo eu não compro”. Mas o evento não é somente um talkshow, há também uma feira de afroempreendedores que divulgam e comercializam seus produtos. Gastronomia, moda, arte e música fazem parte do encontro, que consolida o afroempreendedorismo em Porto Alegre, seguindo a lógica ancestral de fortalecer a comunidade. Texto e Foto Fernanda Romão


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SAÚDE

Lupa

Por que mulheres negras são mais atingidas pela Aids g Porto Alegre

apresenta a maior taxa de detecção da doença entre as capitais do Brasil, e o número de casos entre mulheres negras aumenta mais

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os últimos anos, houve uma mudança no padrão da população mais atingida por HIV/Aids no Brasil. O número de casos nos últimos 10 anos caiu 20,9% entre pessoas brancas, enquanto a população negra (pretos e pardos) teve aumento de 23,5%. Além disso, ao observar a série histórica, nota-se que, desde 2009, os casos de Aids são mais prevalentes em mulheres negras. Os dados são do Boletim Epidemiológico publicado pelo Ministério da Saúde em 2018, que mostra também como a taxa de mortalidade da população negra em geral aumentou – e a de pessoas brancas vem caindo. Analisados proporcionalmente os óbitos notificados no ano de 2017 por raça/cor, 60,3% ocorreram entre negros e 39,2% entre brancos. Entre 2007 e 2017, houve queda de 23,8% na proporção de mortes de pessoas brancas e crescimento de 25,3% nas mortes de pessoas negras por HIV/Aids. Mas por que o número de casos de mulheres negras com HIV/Aids vem aumentando? Essa não é uma pergunta fácil de se responder. A cientista social Carolina Montiel garante que a explicação é multifatorial, mas destaca alguns pontos importantes. Há questões sociais, como nível de escolaridade precário, inserção econômica reduzida e fragilizada (empregos insalubres, menores salários). Em relação à saúde, há dificuldades no acesso aos serviços públicos, bem como relatos de atendimentos displicentes e altas taxas de diagnóstico tardio, o que aumenta o índice de mortalidade da doença em mulheres negras. Outro ponto fundamental são questões de foro íntimo, como negação da doença, falta de poder decisório da mulher sobre aspectos reprodutivos e métodos contraceptivos utilizados pelo casal. “O histórico desfavorável, de submissão e invisibilidade da mulher negra, bem como um racismo estrutural e estruturante, persistente ainda atualmente, determina muito da vivência dessas mulheres”, diz a socióloga.

REDES DE APOIO

Para a assistente social Susane Souza, coordenadora executiva da Associação Cultural de Mulheres Negras (Acmun) de Porto Alegre, é fundamental que haja uma rede de apoio para essas mulheres. Atualmente, a Acmun não tem um projeto específico para HIV/Aids, mas há um grupo de autocuidado para

mulheres negras liderado pela psicóloga da ONG, Simone Cruz, que faz esse trabalho. As reuniões são regulares e ocorrem tanto na sede da Acmun quanto nos territórios, conforme solicitação das participantes. No grupo, elas reforçam laços de cuidado e compromisso com o próprio bem-estar, e não somente com o dos ou-

Saiba mais sobre HIV e Aids A infecção pelo HIV se dá de uma pessoa infectada para outra, se: – Houver quantidade suficiente do HIV no fluido corporal que serve como veículo de infecção – O vírus entrar na corrente sanguínea Somente o contato com o fluido infectado não é suficiente para contaminação. O HIV só é transmitido através de sangue, sêmen, secreções vaginais e leite materno. Fluidos corporais como saliva, urina, lágrimas, fezes e suor não são capazes de transmitir o HIV. FONTE: OBSERVATÓRIO NACIONAL DE POLÍTICAS DE AIDS – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS (ABIA)

tros, algo interioriNesses 23 anos, recebeu o zado nas mulheres. Medi Medi passou alguns diagnóstico de Uma das integran- Aids há 23 anos períodos internada. Na tes do grupo é Maria última vez, em 2010, Medianeira, 66 anos, que re- ficou três meses no hospital, por cebeu o diagnóstico de Aids conta de um AVC. Porém, a força há 23, quando foi fazer um que ela tem é maior do que qualteste de gravidez. Grávida ela quer adversidade. Na Associação não estava, mas se descobriu dos Aposentados, no centro de soropositiva. O ano era 1996 Porto Alegre, ela ajuda outras e a doença significava uma mulheres em uma rede de apoio sentença de morte. Media- exclusiva para mulheres negras. neira foi aposentada por in- Vai a eventos, shows, concede validez no mesmo ano. entrevistas e grava documenMedi, como é conhecida tários, inclusive com reperpelos amigos, resistiu e deu cussão nacional, como o filme a volta por cima. No início, “As Positivas”. Com direção de tomava 16 medicações, agora Susanna Lira, o documentário são três ao dia. Ela está inde- foi vencedor do prêmio Melhor tectável, ou seja, a carga vi- Longa Metragem Documentário ral presente no sangue não é pelo Voto Popular no Festival de significativa o suficiente para Cinema do Rio, em 2010. transmitir o vírus sexualmenMesmo com desafios imposte. A partir do diagnóstico, ela tos pela Aids, Medi segue lutanse envolveu na militância, foi do, aproveitando cada minuto presidente da ONG AmaVida precioso, sempre grata pela RS, de Viamão durante anos oportunidade de viver. e realizou diversos trabalhos comunitários de conscientizaTexto e Foto Fernanda Ferreira ção acerca do HIV/Aids.


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FAMÍLIA

Lupa

ARQUIVO PESSOAL

Um caso de amor e luta g A partir do

apadrinhamento afetivo, Peterson Rodrigues virou pai de Lucas

O

número de famílias querendo adotar uma criança é cinco vezes maior do que o número de crianças aptas para adoção. As exigências feitas pelas famílias nas fichas cadastrais são o principal empecilho. A questão racial, aos poucos, vem perdendo importância nessa lista de restrições, mas ainda é relevante. Os pretendentes à adoção que dizem aceitar crianças negras eram 35,7% em 2012 e passaram a ser 51,9% em 2017 _ mas a aceitação de crianças brancas segue superior a 90%. A restrição aumenta quanto maior a idade da criança ou adolescente. Os dados são de um levantamento da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad) feito com base em registros do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que mostra também algumas diferenças regionais. A região Sul é a que tem o menor percentual de pretendentes que aceitam crianças negras: 44,6%. Porto Alegre tem cerca de 773

crianças e jovens em abrigos e casas de acolhimento atualmente, de acordo com a Fundação de Assistência Social e Cidadania. Nos abrigos, até 20 crianças e adolescentes são acompanhados por uma equipe técnica, e as Casas Lar são configuradas por casal ou mãe social que acolhem até dez crianças e adolescentes. Em qualquer das configurações, são recebidas crianças que estão aptas à adoção e as que ainda não foram completamente destituídos do poder familiar.

Optei pelo apadrinhamento, pois imaginava que, sendo gay, solteiro e de família humilde, jamais poderia adotar ou ter filhos” Peterson Rodrigues

Presidente da Associação ELO

Uma prática que auxilia na mudança de perspectivas dessas crianças, além da adoção, é o apadrinhamento. Essa prática tem dois vieses, afetivo e financeiro. O financeiro é caracterizado com um auxílio, de acordo com as necessidades da criança ou adolescente. Já o afetivo busca criar laços entre os padrinhos e os apadrinhados. Nessa relação, a família ou o padrinho devem estar cientes do tempo que disponibilizarão ao afilhado e não poderão estar na fila de espera para adoção _ uma proposta que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei 8.069/90) para permitir que pessoas inscritas em cadastros de adoção também possam atuar como padrinhos ou madrinhas de crianças e adolescentes em programas de acolhimento tramita na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. No apadrinhamento, os menores podem participar da rotina da família, passar finais de semana, férias escolares e datas comemorativas com seus padrinhos. Peterson Rodrigues, 38 anos, passou por essa experiência. Ele entrou para o programa de apadrinhamento afetivo em 2013, mas sem intenção de adoção. “Optei pelo apadrinhamento, pois imagi-

nava que, sendo gay, solteiro e de família humilde, jamais poderia adotar ou ter filhos”, comenta sobre sua primeira impressão do programa. Após ser aprovado no processo para ser padrinho, conheceu Lucas, com sete anos na época. E pelos próximos dois anos a rotina de Peterson e Lucas seria a mesma, com encontros semanais, enquanto os laços afetivos iam se estreitando. Durante esses dois anos de apadrinhamento, Lucas foi destituído do poder familiar, e só após esse afastamento as crianças podem entrar para a lista de adoção no Brasil.

LICENÇA PARA SER PAI

Foi a partir daí que Peterson pôde entrar com pedido para ter a guarda de Lucas. Já com nove anos, ele não tinha nenhum interessado na fila para adoção. “Foi inesperado. Entrei com o apadrinhamento pelo simples fato de querer fazer um trabalho voluntário e sem conhecer nada do universo da adoção”, conta Peterson. Além dessas conquistas, Peterson e Lucas venceram mais uma batalha. Peterson seria um dos primeiros pais solo a conseguir a licença maternidade de 180 dias para a adaptação do filho. Isso aconteceu porque Peterson era solteiro, não teria

mais ninguém para fazer essa adaptação com Lucas, função que geralmente é atribuída às mães. Hoje, no Brasil, a licença paternidade é de cinco dias, tanto para filhos biológicos quanto para adotivos. Essa licença pode ser estendida para os trabalhadores de empresas que estejam vinculadas ao Programa Empresa Cidadã, que têm o período ampliado para 20 dias, de acordo com a Lei Trabalhista. Após a história de Peterson e Lucas ter ficado conhecida, surgiram diversas dúvidas sobre adoção e apadrinhamento por homossexuais. Sendo assim, juntamente com um grupo de pais e pretendentes a adoção, surgiu a ELO - Organização de Apoio à Adoção, em parceria com a Faculdade Cesuca. O projeto do grupo de apoio deu tão certo em Cachoeirinha, que outros municípios se interessaram. Hoje, a ELO tem identidade jurídica e grupos mensais em Torres, Alvorada, Gravataí, Canoas, Porto Alegre e Novo Hamburgo, além de projetos de apadrinhamento afetivo e cursos de preparação para adoção em mais de 15 municípios gaúchos, em parceria com diversas universidades e o judiciário. Texto Josi Skieresinski


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FUTEBOL

Lupa

Uma liga mais forte do que a segregação racial g A história por trás

da exclusão de atletas negros nos principais clubes de futebol de Porto Alegre

A

CANELA PRETA

Entre pesquisadores, reflete-se muito acerca da palavra “nacional” no nome da associação. Seria pelo fato de boa parte dos elencos da Liga Metropolitana serem compostos por imigrantes europeus e descendentes. O apelido “Liga da Canela Preta” foi conferido pela imprensa da época, em tom pejorativo. No linguajar do futebol, “caneleiro” designa jogadores de pouca capacidade técnica. A origem da Liga Nacional seria atribuída a um episódio inusitado: em 1911, Francisco Rodrigues, pai de Lupicínio Rodrigues, tentava ingressar no Rio-Grandense, clube do qual era dirigente, na Liga Metropolitana. Com o time quase inteiramente de futebolistas negros, o Rio-Grandense teve sua participação negada pela

funcionários de lixões. Situado na Colônia Africana, estava o 8 de Setembro, já o Primavera é associado aos arredores da Rua Gonçalves Dias. “Esses clubes negros se organizavam de tal forma que conseguiam recursos financeiros para comprar todo material necessário para a prática do futebol. Eles promoviam festas, bailes, diversas ações para adquirir os recursos. São clubes que se organizaram não só em torno do futebol, mas em torno da valorização da cultura negra”, revela Marcelo Carvalho, idealizador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. O talento dos atletas negros despertava atenção do público.

“O pessoal da plateia era branco, mas onde tem bom futebol, o povo vai”, relembrou Jaime Moreira da Silva, em entrevista para o Globo Esporte. Na época com 94 anos, o ex-ponta esquerda do 8 de Setembro, falava como único ainda vivo daquela geração. Os clubes da Liga Metropolitana viram nos atletas da Liga Nacional a oportunidade de captar talentos e reforçar seus elencos. Em uma tímida tentativa, a associação criou uma segunda divisão, a Liga do Sabão. Aos poucos, negros foram encontrando espaço, até que, nos anos 1930, a Liga da Canela Preta foi encerrada. Contratado pelo Grêmio em 1925, o primeiro jogador

negro da dupla Gre-Nal foi o atacante Adão Lima. O atleta figura em uma fotografia próximo ao lendário goleiro Eurico Lara. Atuou pelo Tricolor até 1935, depois foi para o Inter. Já em meados de 1929, o Colorado iniciou a construção do “Rolo Compressor”, uma equipe extremamente ofensiva, liderada por Tesourinha, oito vezes campeã estadual. Mas a abertura para a contratação de atletas negros passa mais pelo momento financeiro do clube do que a superação do preconceito. Os jogadores eram adquiridos por baixo custo e com baixa remuneração. O contexto proporcionou ao Inter o apelido de “Clube do Povo”.

REPRODUÇÃO

O juiz mudou, mas o placar continua desfavorável”. Márcio Chagas

Ex-árbitro de futebol

JOGO DESIGUAL

Adão Lima (da esquerda para a direita, agachado, o terceiro) com a camisa do Grêmio

Equipe do 8 de Setembro, uma das integrantes da Liga Nacional de Football Porto Alegrense, criada em 1920

REPRODUÇÃO

segregação racial no esporte mais popular da capital gaúcha ficou por pouco tempo sem reação. A disputa do futebol de várzea por times de atletas negros já era comum no ano de 1912, mas a Liga Metropolitana, que reunia os clubes de elite, não admitia jogadores negros. Em 1920, foi oficializada a Liga Nacional de Football Porto Alegrense. A Capital da época tinha claras representações da exclusão social em sua estrutura, resultado de uma sociedade influenciada pela cultura escravocrata, pouco após o fim da escravidão em 1888. Espaços ocupados por negros como a Colônia Africana, onde hoje estão os bairros Bom Fim e Rio Branco, Cidade Baixa, Ilhota eram mal vistos e as triagens de sócios das agremiações afastavam o povo negro marginalizado. No censo de 1872, o Rio Grande do Sul era o 7º maior em população escrava do Brasil. Após a abolição, em 1888, boa parte dos descendentes se estabeleceram na Capital. Idealizado em 1914 e executado em 1924, o Plano Geral de Melhoramentos de Porto Alegre não conservou os territórios da população negra. A Colônia Africana virou um bairro de judeus, enquanto a Ilhota foi desmantelada para obras do Arroio Dilúvio.

associação organizadora, naquele ano presidida por Henrique Poppe, um dos fundadores do Internacional. “Lupicínio diz que se tornou gremista por isso”, destaca o jornalista e entusiasta do tema, Léo Gerchmann, autor do livro Somos Azuis, Pretos e Brancos (2015). Eram nove clubes: Rio-Grandense, Bento Gonçalves, Primavera, União, Palmeiras, Primeiro de Novembro, 8 de Setembro, Aquidabã e Venezianos. Os dois primeiros eram rivais, Rio-Grandense, dos funcionários públicos, e Bento Gonçalves, formado por engraxates. No Palmeiras, jogavam auxiliares de disciplina escolares, enquanto o Primeiro de Novembro seria formado por

Pesquisa recente realizada pela UFRGS em parceria com o Observatório da Discriminação Racial no Futebol indica que 90% dos casos de racismo no esporte ocorrem no futebol. Após anos como um dos melhores árbitros do RS, Márcio Chagas sofreu com o racismo em campo. Bento Gonçalves o levou ao limite: ao sair da partida entre Esportivo e Veranópolis, encontrou seu carro danificado e com cascas de banana. Ele levou o caso aos veículos de comunicação, realizou denúncia e não se calou, mesmo sem apoio da Federação Gaúcha de Futebol. Em palestra na Unisinos, Chagas fez uma analogia que ilustra o paralelo entre a abolição da escravatura e a sociedade atual: “É como se fosse uma partida de futebol em que um dos times começa com 11 e outro com sete. O time com 11 faz no primeiro tempo três gols irregulares e, então, no segundo tempo, o árbitro é trocado. O juiz mudou, mas o placar continua desfavorável”. Um século atrás, surgia uma Liga contra a segregação, e o jogo segue desparelho. Texto Carlos Barcellos


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FUTEBOL AMERICANO

CAMILA THOMAZ

Thiago Braga é um dos destaques do Porto Alegre Gorillas

Esporte novo, problema antigo g Histórico de

preconceito não é particularidade do esporte brasileiro. No seu país de origem, futebol americano demorou a aceitar atletas negros

O

futebol americano é um esporte relativamente novo para os brasileiros, mas reproduz um problema bastante antigo. Jogador do Porto Alegre Gorillas, Thiago Braga é parte de uma minoria de jovens negros na modalidade no Brasil. “O que percebo é que quem consome futebol americano no país ainda são as pessoas que têm mais poder aquisitivo, pois o esporte é transmitido somente em canais fechados de TV, mas o quadro está mudando com a popularização do esporte e o crescimento da liga nacional”, comenta Braga. O preço dos equipamentos é um empecilho: em média, um capacete e uma ombreira usados

custam R$ 1.500. Equipamentos novos podem chegar a custar até R$ 4.500. No Gorillas, há um estoque de equipamentos para empréstimo aos atletas que não têm renda para comprar. Em Minas Gerais, o programa FA de Favela, idealizado por Adam Araújo, tenta aumentar a representatividade racial no futebol americano. Além de ensinar um novo esporte e todos os seus fundamentos, o projeto tenta manter os jovens longe da criminalidade, ensinando valores como respeito, companheirismo, responsabilidade, amizade, disciplina e trabalho em grupo.

PROTESTOS NOS EUA

Na NFL (liga profissional de futebol americano dos Estados Unidos), 68% dos jogadores de cada time são negros, de acordo com o censo da liga feito em 2017. Mas a discussão sobre desigualdade racial segue presente no país que batiza esse esporte. Um caso recente é do quarterback (lançador) Collin Kaepernick, que iniciou uma série de protestos contra o racismo, a brutalidade policial e a injustiça social ao se ajoelhar durante a execução do

hino nacional americano antes dos jogos da NFL em 2016. Collin teve seu contrato rescindido com seu time e desde então vem recebendo “boicotes” de outros times da liga, onde não conseguiu mais nenhum contrato. Foi alvo até declarações do presidente americano Donald Trump.

A ORIGEM

O futebol americano começou como um esporte elitizado praticado apenas em faculdades de ponta dos Estados Unidos, como Harvard, Princeton e Columbia. A modalidade começou a ficar famosa a partir de 1905, quando o treinador John Heisman deu a ideia de acrescentar um passe para frente em cada jogada, que tornou o esporte mais seguro para quem praticava e mais atrativo para quem assistia. Na década de 1960, a AFL (uma das ligas da época) permitiu jogadores negros, mas foi só em 1987 que um time com um quarterback negro venceu o Super Bowl (a final do campeonato) pela primeira vez, com Doug Williams, do Washington Redskins. Nessa mesma época, Waren

Moon foi recrutado pela universidade de Arizona State, mas ao chegar na faculdade soube pela comissão técnica que era visto como wide reciever (recebedor), não como quarterback, principal jogador responsável pelas armações do time. Para não mudar de posição, Moon mudou de time e quebrou vários recordes até conquistar o Rose Bowl (espécie de final de campeonato universitário) jogando pela Universidade de Washington, em 1977, mas sequer

Collin Kaepernick teve contrato rescindido com seu time e vem recebendo “boicotes” de outras equipes

foi selecionado no draft de 1978. O draft é o evento onde jogadores universitários são “convocados” para os times profissionais. Essa história se repete até hoje. No draft 2018, Lamar Jackson foi convidado por muitos times para mudar de posição para wide reciever, mesmo tendo sido o terceiro melhor jogador universitário de 2017 como quarterback. A exemplo de Moon, Lamar não mudou de posição, foi selecionado pelo Baltimore Ravens e hoje é titular e líder de sua equipe, uma das favoritas ao título de 2019. Atualmente, nove dos 32 quarterbacks da liga americana são negros. Ainda é pouco, mas representa avanço. No Brasil, o esporte ainda é pouco conhecido, bastante restrito a exibições na TV fechada, como destacou Thiago Braga, um dos craques do Gorillas de Porto Alegre. Mas a audiência vem crescendo, em média 33% ao ano. Em fevereiro de 2017, uma pesquisa do Ibope apontou que 15,2 milhões de pessoas se declararam fãs do esporte no Brasil. Texto Allonso Santos


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LITERATURA

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Protagonismo negro nos livros g Mercado editorial

brasileiro apresenta padrão excludente de autores: entre 692 livros analisados em pesquisa, somente 2,5% dos autores não eram brancos

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stela e João são dois personagens. Ambos negros, jovens e vivem em zonas periféricas. Ambos são exceção e também estão presentes nos primeiros romances do escritor e professor Jeferson Tenório, 42 anos, negro, carioca, radicado em Porto Alegre. Os livros O Beijo na Parede (2013) e Estela Sem Deus (2018) têm as marcas de um mercado editorial excludente e pouco representativo. São vividos por protagonistas negros. Em uma pesquisa coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UNB), foi feito um

levantamento de 692 livros publicados pelas principais editoras do país desde 1965, para avaliar os perfis de quem escreve e quais tipos de personagens são mais publicados. No recorte temporal de 2004 a 2014, apenas 4,5% dos protagonistas das histórias não eram brancos. Sendo que a população negra e parda representa 56,1% do total no Brasil, segundo dados do primeiro trimestre de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad). Não só os personagens criados por Tenório, mas o próprio autor foge à regra. Segundo a pesquisa de Dalcastagnè, entre 2004 e 2014, somente 2,5% dos escritores publicados não eram brancos. “Grande parte dos escritores estão na região entre Rio de Janeiro e São Paulo. Eles são homens, brancos, de classe média, em torno de 40 a 50 anos. O tipo de histórias que eles escrevem é sobre si mesmos ou sua classe social, os conflitos de uma classe mé-

dia”, analisa Tenório. Marcelo Spalding, 37 anos, escritor e professor que dirige o Metamorfose Cursos, mantendo a oficina de Criação Literária e o Curso Livre de Formação de Escritores, esse quadro reflete um domínio da população branca. “É mais fácil para populações economicamente privilegiadas tanto publicar um livro quanto fazer a carreira deslanchar, dedicando tempo e dinheiro para divulgação”, diz Spalding. Além de promover cursos de escrita e de formação de escritores, Spalding também editou mais de 80 livros pela Editora Metamorfose, que é ligada aos cursos. Segundo ele, o perfil dos alunos é bem variado. Existe o predomínio de mulheres e pessoas

brancas, mas há sempre de um a cinco alunos negros em todas as turmas. Diversos deles publicaram seu primeiro livro pela Metamorfose.

FORMAÇÃO CULTURAL

O perfil de escritor brasileiro mudou ao longo dos anos. A partir dos anos 1980, a escrita passa a ser desempenhada de forma mais especializada. Os autores não saem mais das redações de jornais, como era comum nos anos 1960. “De certa forma, a literatura ficou um pouco mais técnica e burocrática”, afirma Jeferson Tenório. Para o escritor, como os autores são forjados dentro do contexto acadêmico e da elite, eles adquirem a metodologia da produção

Os escritores brasileiros são homens, brancos, de classe média, em torno de 40 a 50 anos. O tipo de histórias que eles escrevem é sobre si mesmos” Jeferson Tenório Escritor

literária e o domínio da língua, porém não conseguem obter a substância da vida, da experiência, isto é, o conteúdo. Na periferia, os escritores têm a experiência e vão aprendendo a técnica como podem. O autor de O Beijo na Parede e de Estela Sem Deus destaca o racismo estrutural que persiste no Brasil. Para ele, não existe reconhecimento da sociedade de que os autores negros e de periferia também são pessoas que produzem cultura e pensamento. Como exemplo, ele cita Conceição Evaristo, autora mineira, pós-modernista, que escreveu o romance Ponciá Vicêncio será homenageada, aos 72 anos, no Prêmio Jabuti 2019. “Há quanto tempo ela está fazendo literatura e só agora vai ser reconhecida?”, questiona. Já Marcelo Spalding vê a importância da produção literária negra na quebra de rótulos. Para ele, o mercado deve acatar e observar a estética das periferias, e também notar o que movimentos como hiphop e funk trazem de novidade para a arte em geral.

ARTE EM FAVOR DA DIVERSIDADE

Tenório é cético em relação ao poder da literatura para ampliar a diversidade, pois acredita que as questões raciais fogem da alçada cultural. “Na verdade, eu acho que a literatura não pode fazer nada para diminuir o racismo”, completa. Ele diz confiar na força da empatia que a leitura produz. Para o escritor, a literatura sensibiliza para perceber a existência do outro, e que essa existência é diferente, o que não significa ser menor: “Ser diferente significa que existe uma pessoa que é singular, nem pior, nem melhor, mas ela é única, um ser único”. Spalding tem opinião similar: “A literatura pode ser instrumento para todo tipo de luta simbólica na sociedade, embora não seja esse seu papel principal”. Ele acredita que lutar pela diversidade, pelo respeito e contra a desigualdade social em um momento difícil como o de agora é papel fundamental de todos nós. Mas se diz triste ao notar os efeitos quase imperceptíveis da literatura como instrumento em favor da diversidade. E arremata: “Se deixarmos de acreditar, lutar, expressar, aí talvez tenhamos sido definitivamente derrotados”. Texto e foto Thiago de Loreto


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DANÇA

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O corpo em movimento no ritmo da liberdade g Projeto de extensão

Karine (E) e Luiza (D) encontram na dança uma forma de espressar sua subjetividade

“Corpo Negra” da UFRGS busca unir mulheres negras do curso de Dança e levar uma educação antirracista a escolas da região metropolitana

Q

uatro corpos dançantes se reúnem em roda, respiração lenta, pausa. Então, as mãos tocam as nádegas, o peito, a perna, e o som dos movimentos reproduz música. A música do corpo negro, que grita pela própria liberdade. Rui Moreira é o maestro. Ele conduz as quatro bailarinas a entender o próprio corpo. Um corpo negro marginalizado pelas estatísticas. Corpo da Leandra Oliveira, da Luiza Alves, da Mariana do Amaral e da Karine Lizandra. Assim, começa mais um ensaio do coletivo Corpo Negra, que também atua como Projeto de Extensão do Curso de Licenciatura em Dança da UFRGS. Tudo começou em 2016/1, quando uma aluna percebeu o aumento de mulheres negras na graduação em Dança. O nome ainda não era Corpo Negra, e sim Pretas da Dança. Juntas, construíram seu primeiro trabalho, ‘Baile Black’: um mix de músicas tradicionalmente negras que marcaram a década de 1990. O primeiro palco foi o Mix Dance, mostra de processos coreográficos dos alunos do curso de dança da UFRGS. Então, vieram outros, sempre alinhados com os debates do coletivo sobre o universo feminino da mulher negra. “Enquanto mulheres negras, vivemos em espaços de muita solidão. A gente busca visibilidade, ocupar espaços através da arte, se unir, se integrar e se conhecer”, conta a bailarina e professora Leandra Oliveira. “Quando vemos os índices de mortalidade juvenil, temos os jovens negros como maioria. Diante das dificuldade sociais que um país com 60% da sua população negra enfrenta é muito importante a existência deste coletivo”, diz Rui Moreira, coreógrafo do Ballet da UFRGS. Ele é admirado pelas meninas e a cada ensaio busca partilhar experiência e conhecimento sobre dança. Os encontros são um espaço para expressar subjetividades, aquilo que vivem no dia a dia, e descobrir como comunicar tudo isso pela dança.

DEUS É MULHER

Em 2018, o Coletivo Corpo Negra foi indicado ao Prêmio Açorianos de Dança pela coreografia Deus é Mulher. O trabalho indicado foi fruto de um processo longo e difícil, inspirado na figura da cantora Elza Soares. “A gente escolheu a Elza, porque ela é uma mulher muito potente, uma mulher negra com uma história de vida forte e muito importante para nós”, conta Luiza, bailarina e professora de dança. Em 26 de maio, Elza recebeu o título de Doutora Honoris Causa pelo significado de sua arte e vida ao país. O coletivo estava lá para presenciar o momento. A principal ideia da coreografia foi mostrar a variedade de linhas que passa pelo corpo da mulher negra. Mas também dizer o quanto é importante a bailarina clássica negra conhecer a dança afro. “O Prêmio Açorianos de dança que é um prêmio extremamente conceituado em Porto Alegre, tem em várias categorias artísticas uma maioria branca que o decide e que o compõe”, diz Leandra. Assim, o coletivo elaborou questionamentos e afirmações para o público na

forma de cartazes apresentados durante a apresentação. Como: “Afinal, quantas bailarinas negras já foram indicadas ou venceram o Prêmio Açorianos?”. Karine Lizandra, bailarina, é de Viamão e nunca se inseriu no Ballet. Escolheu as danças urbanas, mas sempre se sentiu cobrada por ser negra. “Acaba sendo inferido que tu se destaque por ser negra, com cabelo volumoso e um corpo mais forte”, conta a bailarina. Para Mariana, ao mesmo tempo que existe essa cobrança, a mulher negra sempre estará em um ambiente majoritariamente branco e machista. “Se tu for no mundo do break (uma das vertentes do Hip Hop), os caras vão te comer com os olhos, literalmente”, afirma Mariana, sobre quando um b-boy a observa nas rodas de dança. Ela já se sentiu invisibilizada por ser a única negra nos espaços de dança. A competição entre os grupos e dos próprios negros também é um incômodo. “A partir disso vem essa ideia da gente se juntar. Para deixar de lado a competição e somar, para fazer algo contra essa ideia de que os pre-

Acaba sendo inferido que tu se destaque por ser negra, com cabelo volumoso e um corpo mais forte” Karine Lizandra Bailarina

tos não estão unidos e não estão trabalhando juntos”, diz Karine, a mais jovem do grupo.

CULTURA AFRO

Segundo a lei 10.639 da constituição federal é obrigatório o ensino de “história e cultura afro-brasileira” nas disciplinas que já fazem parte das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio. Com isso, o coletivo Corpo Negra busca desmitificar a imagem da África e da arte afro-brasileira, com o projeto Corpo Negra em Movimento nas Escolas. A oficina de uma hora pode ser solicitada por escolas públicas e privadas. Para Leandra, é preciso se tornar referência. “A

gente vê que algumas (crianças) já reconhecem o cabelo, turbante, meio que se identificam. Outras aprendem a respeitar aquilo que não é dela, mas que convive no dia a dia”, diz. Luiza acredita que é possível ensinar, dançando, para crianças e adolescentes, mesmo que seja um corpo negro e periférico, que elas também podem estar em espaços dominados por brancos. O coletivo leva os princípios dos seus ancestrais em forma de crenças e de resistências, para ensinar às crianças a combater os preconceitos com pessoas negras. Texto e Foto Guilherme Machado


Lupa

novembro

edição

2019 13

O guardião do Mercado Público Custódio Joaquim de Almeida ao chegar ao Brasil e se tornou famoso por ser curandeiro. Líder religioso, ele teria feito o rito para firmar Mosaico no centro o “axé” no Estado, e a do Mercado é sagrado para função seria frutificar a religiões afro religião e evoluir espiritualmente. O príncipe Custódio teve oito filhos, três homens e cinco mulheres. Até sua morte, em 28 maio de 1936, aos 104 anos, morou na atual Cidade Baixa, rua Lopo Gonçalves 498, que na época era conhecida como Areal da Baronesa, área tradicional de ocupação da população negra no período.

g Prédio histórico

que completou 150 anos em 2019, carrega culto ao Bará, atribuído a um príncipe nigeriano que viveu em Porto Alegre até 1936

M

uito importante para a comunidade de religiões afro-brasileiras de Porto Alegre e para a literatura, “O Bará do Mercado Público” representa um local sagrado e de culto, marcado pelo assentamento de um ocutá - objeto de identificação do santo. No sincretismo, Bará é o Santo Antônio da religião católica, na vertente africana é o orixá da abertura de caminhos e da fartura. O Rio Grande do Sul tem assumidamente o maior número de adeptos de religiões de matriz africana, com Centro de Umbandas, Terreiros de Batuque, Nação com suas três bacias, Cabinda, Oió, Jêje-Ijexá e o Candomblé da Bahia. Mas poucos sabem da história enterrada num dos principais símbolos do Centro Histórico de Porto Alegre. Marco Antônio Barros, 53 anos, produtor cultural, conhecido como Pai Maike de Ogum, diz que está na religião desde sempre, por estar na terceira geração de trabalhos em sua casa – terreiro – que era de sua avó e passou para a sua mãe. Revelou ser pronto desde os 13 anos – isto é, ter todos os orixás assentados (feitos). Ter a liberação dos axés de búzios e obés (facas). E estar apto a ter seu ilê (casa) com seus filhos. Segundo o babalorixá, só é possível falar em Bará, no Rio Grande do Sul e em Cuba, em outros locais é conhecido por Exú. “Ele é o mensageiro entre os orixás e o homem. Bará vem primeiro, ele que abre e fecha, não se faz nenhum tipo de ritual, sem antes pedir licença. Nada acontecesse dentro da religião se ele não fizer a intermediação”, diz. Segundo Pai Maike de Ogum, na escavação feita no local, não foi encontrado nenhum objeto que represente Bará. “Quem é que acha Exú? É ele que encontra a gente”, desafia. Sobre o memorial no centro do Mercado Público, revela que está no local por ser um cruzeiro e por Bará ser o dono da encruzilhada: “Exú é o dono do caos, mas ao mesmo tempo organiza tudo”. E por ser o dono do destino, ele é um ponto de equilíbrio no mercado, tem a ver com compra e venda, trocas, alimentos e oportunidade de emprego.

HISTÓRIA DESCONHECIDA

SENHOR DO DESTINO

Bará tem um papel importantíssimo dentro da religião, pois os orixás não falam diretamente com as pessoas, falam através de Bará. “É o senhor do destino, tem a ver com a comunicação, adivinhação. É o intermediário entre os orixás, o sagrado

e o profano, o ser humano e o nosso mundo”, ensina. De acordo com Pai Maike de Ogum, a versão aceita pela comunidade de religião afro é que o príncipe Custódio teria assentado o Bará – há outra versão que credita o rito a escravos que construíram o Mercado. Ele

diz nunca ter ouvido essa versão, mas acha pouco provável, pois para fazer um ritual é necessário tempo, materiais específicos de sacralização e autonomia. Osuanlele Okizi Erupê, da tribo pré-colonial de Benis, dinastia Glefê, da nação Jêje, da Nigéria, adotou o nome de

O povo e o Bará “Sou de Nação de Cabinda, da família Babakelê, filha do Pai Juliano de Oxalá e neta do Pai Bará de Juarez. Bará abre portas e caminhos. O certo é qualquer religioso da nossa matriz africana vir aqui e cumprimentar o Pai Bará, jogar moedinhas para ele e fazer seus pedidos. Porque bem ou mal, ele protege. Está protegendo há anos, ele é o guardião disso aqui tudo. Sai e entra quem ele quer dos portais”. Jauna Adriana Policarpo 51 anos, aposentada, moradora de Viamão

“Eu não sigo essa religião, sou católica. Acho lindo o que esse povo de matriz africana faz em torno do Bará. A gente acredita que ele protege o mercado, porque já teve tanta coisa. Já houve incêndios, enchente e o mercado até hoje está de pé. Penso que existe uma força ali, porque talvez qualquer outro prédio que passasse por tudo o que o mercado passou nesses 150 anos não teria sobrevivido. Acho que tem uma força que vem do Bará que protege o nosso prédio.” Cláudia de Paoli 44 anos, atendente da Banca 1 do Mercado Público de artigos religiosos, moradora de Cachoeirinha

Oscar Henrique Marques Cardoso, 47 anos, jornalista, radialista, escritor e editor-chefe da “Agbara Edições”, que em Iorubá significa força, renascimento, resistência ou “O senhor que sustenta o corpo”, a memória do Bará é importantíssima para a própria história de Porto Alegre, pois foi escolhido pelos negros e pelos orixás que trouxeram sua religiosidade: “O Bará vai abrindo portas, vai abrindo caminhos e transporta sonhos”. O escritor acredita que a história do Bará não é explorada porque o porto-alegrense conhece pouquíssimo a religião afro. “Ainda é a amostra de um racismo subliminar, a religião africana ainda é vista como algo do diabo. É vista como pagã e pecadora, e não é. Traz uma visão de um povo que passou e que por aqui está. A cosmovisão africana é diferente da visão cristã”, diz. Na religião africana, os saberes estão na oralidade, os ensinamentos vão passando de um para o outro. Para Oscar, que tem 10 livros publicados, é fundamental a literatura produzir mais obras com o tema. Uma curiosidade sobre “A Pérola Mais Negra”, de 2014, é que ele a teria recebido de presente dos orixás Iansã e Xangô, num período em que ainda frequentava a Igreja Batista. A trama retrata uma mulher negra quilombola da cidade fictícia Rio Vermelho do Sul, que vem para Porto Alegre estudar Direito e se torna a prefeita da cidade. “Por que não criar um romance de dois negros que tenha surgido no mercado com a benção de Bará?”, provoca o escritor. Ao contrário de Pai Maike de Ogum, ele acredita que os escravos teriam assentado o Bará no Mercado Público, pois a religiosidade chegou através deles. “Cada um crê em uma versão”, conclui. Texto e Fotos Denilson Flores


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