Lupa.12 edição
Por amor Mulheres vencem preconceito e visitam companheiros e parentes presos
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mor não tem idade, tampouco sexo definido. Até parecem óbvias as afirmações, mas somente em 2015 um casal de lésbicas idosas foi representado na televisão. Saiu do clichê “idosa, doente, abandonada”. Embora a homossexualidade feminina e jovem seja predominante, desde então o assunto é discutido. Porém, na parede da memória de mulheres com idade igual ou superior a 60 anos, não contar sobre esse sentimento pode ser o que dói mais. Conforme estudos de 2017 da Organização Mundial da Saúde (OMS), a estimativa é de que até 2050 o número de pessoas idosas chegue a dois bilhões no mundo. Dar ênfase ao envelhecimento saudável, além de fortalecer o diálogo da relação entre idosas, diminui a necessidade das abordagens sobre doenças. “Não gosto que falem em doença”, disse com a voz firme a ex-coordenadora de Manutenção Predial e Logística da Fundação Iberê Camargo, Ângela Ghizi, 62 anos. Em uma tarde de primavera, ela estava no Café Cantante, na Capital. Antes de o vinho branco chegar à mesa, viver soou obrigatório. Histórias e risos antecederam a bebida. Elegante, vestia blusa bordô aveludada, manta roxa caída no busto, calças xadrez e rosto maquiado. Os cabelos brancos e raspados do lado esquerdo se destacavam. “Amo gente arrumada, com a autoestima elevada. Tenho um diamante tatuado, porque sou uma pedra preciosa”, revelou sorrindo com os lábios pincelados pela cor roxa. Bissexual desde os 19 anos, Ângela já casou com dois homens e duas mulheres. “Mulher é companheira. Elas se entendem. Homem é independente e isso me dá liberdade”, contou ela, que não teve filhos, cuida dos sobrinhos, e relatou bem resolvida o fato de que “ter filhos não significa que eles vão te cuidar”. “Adoro beijar na boca. Beijo até minhas amigas”, expressou com os olhos iluminados. Sobre afeto, disse não se importar com os outros. “Amor se demonstra. Ele ajeita as melancias na carroça. A paixão deixa a carroça desgovernada”, declamou como quem recita um
Sem filhos Idosas abrem mão de modelo tradicional familiar em nome da liberdade
4 Além de namorar, músicas e plantas também fazem parte da rotina saudável de Liliane
Na luta Poucos campeonatos e baixos salários são realidade do futebol feminino
6 materno”, assegurou séria, como quem nem sempre agiu assim. “Se um adolescente me chama de “tia” ou de “vó”, olho para ele com amor de mãe”, diz Liliane. Dona de autoestima elevada, não se deixa abalar pelo tempo. Enamorada há 11 anos por uma mulher de Frederico Westphalen, no RS, quando contou da namorada ficou inquieta. Pediu entusiasmada para mostrar fotos do amor dela. No quarto, instrumentos musicais faziam fila. “A atividade que mais ocupa as áreas do cérebro é tocar música. Eu adoro”, anunciou seguida da cantarolada na composição Como nossos pais, de Belchior: “Você me pergunta pela minha paixão. Digo que estou encantada como uma nova invenção”. E, certamente, ela está encantada como uma nova invenção. Ou, melhor, como uma reinvenção dela mesma.
Amor é fundamental
Amar é um instrumento g Envelhecimento saudável não diz
respeito somente a abordagens sobre doenças. Lésbicas idosas resistem Texto Bruna Schlisting Machado
poema. Em seguida, recordou a interpretação de Bethânia da música As canções que você fez pra mim. “Lembro de mim quando sofria pelas pessoas”, confessou.
Nascemos assim
Com cinco anos de idade, a ex-funcionária da Caixa Econômica Federal, Liliane Corrêa, 62 anos, venerava uma vizinha. Inocente, sem entender o que acontecia, a
Foto Paola Tôrres
única compreensão era o fôlego que perdia ao vê-la. “Tive muitos namorados, mas nunca fui apaixonada por um homem”, assumiu. Aos 21 anos teve a primeira experiência homossexual. “Ser lésbica, bissexual está no gene. Nascemos assim”, afirmou. Recém-saída do banho, cabelos úmidos, roupas simples e chinelos nos pés, Liliane deu acesso à casa humilde e de cômodos pequenos, em Gra-
vataí. Na sala, entre frutas e outros objetos, livros desordenados em cima da mesa preenchiam o ambiente. Logo abriu cervejas e o coração. Descreveu fotos em quadros antigos. As imagens destacavam a única mulher no futebol. “Eu sempre fui meio guri”, lembrou Liliane. “O silêncio é uma prece”, refletiu ao rememorar o passar dos dias. “Ultimamente enxergo as pessoas com olhar
“As pessoas ficam esperando que eu seja o vovozinho”, disse Jaqueline de Carvalho, psicóloga e professora do curso de Psicologia da Unisinos, em Porto Alegre, ao relatar uma das principais queixas dos pacientes dela. O Estatuto do Idoso protege pessoas com idade igual ou superior a 60 anos. Segundo Jaqueline, esse rótulo está mais voltado para fatores biológicos do que físicos. Sem contar questões culturais que dão ensejo à idade estabelecida. No que tange à sexualidade, o assunto “é mais falado pelos homens do que pelas mulheres. Muito provavelmente pela construção de uma sociedade machista”, descreveu. “Mulheres ainda têm tabu para falar da sexualidade, quanto mais da homossexualidade”, corroborou. De acordo com ela, faz diferença pessoas que se preocupam com a saúde e têm estilo de vida. “Quando estamos bem não nos importamos com o pensamento dos outros. Quem se dá conta que gosta do mesmo sexo, do diferente, ou de ambos, tem autoconhecimento”, disse. Conforme a profissional, outra queixa dos idosos é o abandono. “Receber afeto faz com que as pessoas deem afeto. O amor é fundamental”, finalizou Jaqueline.
2 EDITORIAL
Uma edição especial As mulheres sempre tiveram papel importante na sociedade, mas nunca se falou tanto em representatividade, direitos iguais e feminismo. Não é à toa que no início deste semestre a turma de Jornalismo Impresso e Reportagem do curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre, composta majoritariamente por mulheres, levantou a bandeira feminina. Desejavam mostrar ao público o que ainda fica escondido: a realidade de quem enfrenta preconceito, tem salário inferior ao dos homens e jornada de trabalho que inclui o sustento e o cuidado da casa, dos filhos e do marido desempregado. Nesse mosaico de histórias, a repórter Bruna Schlisting escreve sobre lésbicas que desafiaram o tempo, e hoje, em plena terceira idade, estão felizes com as escolhas pessoais. Carol Steques também trabalha com o tempo e revela a rotina de “avós” que optaram por não ter filhos. Há ainda histórias de meninas jogadoras de futebol, apaixonadas por videogames, por cães e até mesmo aquelas que lutam por reconhecimento no mundo do cinema. Em época de mudanças, a edição número 12 do Lupa torna-se especial. E mostra que, sim, lugar de mulher é onde ela quiser!
EXPEDIENTE Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Av. Dr. Nilo Peçanha, 1.600, Bairro Boa Vista - Porto Alegre/RS. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos. br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: Pedro Gilberto Gomes. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Alsones Balestrin. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente dos Cursos de Graduação: Tiago Coelho. Coordenadora do Curso de Jornalismo: Débora Lapa Gadret (dgadret@unisinos. br). LUPA (Leia Unisinos Porto Alegre) é uma publicação experimental produzida por alunos do Curso de Jornalismo, sob orientação de professores e profissionais. REDAÇÃO – Disciplina de Jornalismo Impresso e Reportagem. Orientação: professora Anelise Zanoni (aneliseza@unisinos.br). Textos: alunos Alexsander Machado, Amanda Bormida, Bruna Schlisting Machado, Carol Steques, Gabryela Magueta, Giulia Godoy, Luiza Soares e Tuane Moreira. IMAGENS – Disciplina de Fotojornalismo. Orientação: professor Flavio Dutra (flavdutra@ unisinos.br). Fotos: alunos Bernardo Barcellos, Carlos Barcellos, Guilherme Machado, Jhenifer Fajardo, Marina Bassani, Paola Tôrres e Yasmim Borges. ARTE – Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. IMPRESSÃO – Gráfica UMA. Tiragem: 1.000 exemplares.
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Guerreiras na profissão e chefes do próprio lar g Trabalhar fora não
significa que as mulheres estejam isentas dos afazeres domésticos
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ais do que em qualquer outra época, a mulher do século 21 criou o seu espaço de forma pertinente, assumindo papéis que antes eram absolutamente masculinos e sem nenhuma pretensão de pertencer ao sexo oposto. As mulheres demonstram coragem e controle absoluto sobre diversas situações que fazem hoje a humanidade repensar se elas realmente têm menos força que os homens, já que o título de sexo frágil ficou para trás há algum tempo. A rotina de mulheres batalhadoras, determinadas e com muito foco, que trabalham fora e são a única fonte de sustento da família atualmente, envolve várias obrigações no lar como lavar, passar, limpar, arrumar a casa, dentre outras tarefas domésticas. Dessa forma, o pouco tempo para descanso não é usado somente para lazer como gostariam. Mesmo assim, todas conseguem administrar suas rotinas exaustivas e conciliar com a convivência em família. A coordenadora de treinamento e desenvolvimento Silvania Alvarenga trabalha de segunda a sexta-feira, é casada há 19 anos, tem dois filhos de 12 e 18 anos, e atualmente é a única assalariada da família, pois o marido está desempregado. Trabalhar fora e trazer o sustento da casa não lhe permite se afastar dos afazeres domésticos quando está em sua residência. A rotina dela durante a semana é ir para o trabalho com a filha Camila, que fica em um programa educacional na mesma Instituição onde trabalha e que funciona no turno oposto da escola. Às 13h, durante o intervalo, tem as tarefas de almoçar e levar a filha para a escola, que fica próxima ao local de trabalho. Às 18h, sai para buscar a filha na escola e retorna para casa. Chega às 21h e prepara o jantar da família, dentre outros afazeres. Os finais de semana são voltados para a família, mas também para os cuidados com o lar. A coordenadora de telemarketing Gorete Justo, além de ser a única fonte de sustento da família, que é formada por ela e seu filho de nove anos, não tem escolha. Precisa chefiar a casa completamente sozinha, mesmo com uma rotina de sair de casa às 5h15min e retornar somente às 21h. Também trabalha de segunda à sexta-feira, além de sábados alternados. Gorete leva o filho Arthur para a escola pela manhã, onde fica em turno integral, e vai para o trabalho, começando as atividades às 14h. Às 18h, o menino chega no seu trabalho, trazido por uma van particular e espera a mãe até às 20h15min para retornar para casa. Dentre as tarefas domésticas do dia a dia, a coordenadora ainda acompanha as atividades escolares de Arthur e o leva para apresentações artísticas das quais ele participa aos finais de semana.
A enfermeira Jéssica Fischer não desanima diante de suas inúmeras atividades dentro e fora de casa
A coordenadora Silvania Alvarenga firme em sua jornada diária de 10 horas de trabalho
A enfermeira Jéssica Fischer trabalha em dois empregos, sendo um deles em noites alternadas com 12h em cada turno e o outro de segunda à sexta-feira, das 8h às 14h. Atualmente, também sustenta sozinha a família, pois o marido está desempregado, o que não a isenta dos afazeres domésticos e cuidados com os dois filhos, Lucca, um ano, e Thayla, seis. O filho menor fica em uma escolinha e a filha já frequenta a escola. A grande carga horária de trabalho lhe consome bastante tempo e energia, mas por enquanto a enfermeira diz não poder abrir mão de um de seus trabalhos devido à necessidade financeira de manter a família, não descartando de ser um plano futuro, quando o marido estiver trabalhando novamente e as condições da família se estabilizarem, para poder descansar mais e aproveitar mais tempo com as crianças, já que está esperando outro bebê. Jéssica, além de dividir algumas tarefas domésticas com o marido, se diz bastante envolvida com a casa, principalmente com as roupas, para não acumular serviço. Segundo o estudo da Escola Nacional de Seguros, de março de 2018, o número de famílias brasileiras chefiadas por mulheres aumentou 105% entre 2001
e 2015. A pesquisa aponta que os percentuais de chefia feminina tendem a crescer conforme se elevam os níveis de escolaridade e a participação da mulher no mercado de trabalho. E mais: mesmo nos lares em que elas têm renda mais baixa e dedicam muitas horas aos afazeres domésticos, o percentual de chefes mulheres também aumenta. Essas guerreiras com ou sem maquiagem e salto alto suam diariamente para o bem-estar e o sustento da família. Mostram que jamais deixam de exercer o papel de donas de casa, mesmo com compromissos externos e cansaços do dia a dia, pois não se permitem apenas trabalhar fora, se envolvem incisivamente com a casa, os filhos, acompanham trabalhos escolares, vão a reuniões da escola quando possível e, ao mesmo tempo, exercem profissões com afinco. As entrevistadas foram unânimes em dizer que mesmo que tivessem a possibilidade de não precisar trabalhar, igualmente trabalhariam fora, talvez por menos tempo, mas não abririam mão de exercer funções profissionais. Texto Tuane Moreira Fotos Guilherme Machado
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Amor do outro lado da cela g A paixão prevalece
nas dificuldades enfrentadas pelas famílias e namoradas dos presidiários
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a porta da Penitenciária Estadual de Jacuí (PEJ), em Charqueadas, dezenas de mulheres dormem na fila aguardando o momento de visitar o marido. Na frente da cadeia, mães, irmãs e filhos esperam horas para passar o dia de visita com os detentos. A rotina de quem visita parentes presos nos presídios da cidade é sofrida, sendo que essas famílias passam por diversas dificuldades para poder rever o parente que está recluso. São mulheres apaixonadas, que vivem longe daqueles que amam, por estarem separadas por grades e muros das prisões. Algumas vezes, o namoro começa mesmo na prisão. É o amor que supera as barreiras, pois existem dificuldades, humilhações e preconceitos. Elas buscam forças para superar a discriminação e as adversidades para viver uma relação amorosa com assassinos, traficantes, assaltantes, estelionatários e outros tipos de criminosos que estão pagando por seus crimes atrás das grades. A vida para elas não é nada fácil, pois além de visitarem o companheiro, é preciso também cuidar da residência, filhos e a vida aqui fora. É o caso da Elaine Silveira, que visita o parceiro há dez anos na PEJ, e mesmo depois desse longo período, ela não desiste, e se considera muito feliz. Apesar de dizer que está contente de visitá-lo, Elaine passa por diversos obstáculos, como por exemplo, a mobilidade. “Em tempo de chuva e frio, dependemos de ônibus e trem, e é bem difícil. Se for colocar na calculadora, o custo das passagens mensal pode ser caro. Nós somos obrigadas a separar algum dinheiro para essa despesa. E quando eu chego na penitenciária, a caminhada do portão até chegar lá dentro (presídio) é um trecho enorme. E em dias de chuva não tem como não se molhar, por que não tem cobertura”, diz Elaine. Segundo a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), atualmente a Penitenciária Estadual de Jacuí tem 2.514 presos nas dependências da PEJ. Recebe em torno de 2 mil visitas diárias, e a prisão conta com uma igreja na parte interna. O preso Walter, marido de Elaine, é o pastor e responsável da religião evangélica que eles frequentam. Além de ser o “encarregado”, Walter tem diversos
Elaine Silveira visita o companheiro todas as semanas na penitenciária. Abaixo, crianças acompanham as mães na visita aos presos
membros de sua cela que frequentam a mesma igreja. “É realmente uma igreja! É como se fosse na rua, e é mais lá dentro, do que na rua, porque lá eles oram mais e buscam mais pela fé. É um templo cristão de verdade e os presos que vão no culto se recuperam muito bem. O culto faz bem para eles. As famílias deles aqui fora ficam super felizes com a recuperação dos seus maridos. Estou bem contente e espero ajudar sempre”, conta Elaine. O que é surpreendente é a fidelidade dessas guerreiras que, mesmo com todos os preconceitos, não abandonam os homens (namorados) e continuam visitando-os. Formada em Jornalismo e mestre em Ciências Sociais na Unisinos, Luiza Oli-
veira aponta que essa dedicação por parte das mulheres aos seus companheiros presos é por causa das construções sociais. “Social e historicamente, o cuidado foi atribuído às mulheres. A divisão do trabalho baseada no gênero, colocando o homem como provedor e a mulher como responsável pela casa e pelos filhos, se perpetua há séculos. Essas atribuições são vistas, inclusive, quando pensamos nas esposas dos presos que continuam casadas e visitando os companheiros apesar de todas as dificuldades. São ‘construções sociais’. Diz-se que a fila de visita em um presídio feminino e em um masculino é a mesma: formada por mulheres. No primeiro caso, por mães, irmãs e companheiras. No segun-
do, também por mães, irmãs e companheiras”, diz Luiza. Na fila da PEJ a reportagem conversou com Maria e, ao ser perguntada sobre esse laço com o companheiro que está preso, ela informou que é o amor e que tem uma filha com ele, e pode passar por tudo que jamais irá desistir. “Desde quando meu esposo foi preso por tráfico em Porto Alegre, eu jamais deixei de visitá-lo. Somos casados e temos uma princesa, ela não veio hoje visitar o pai. Mas sempre a gente vem junto, levamos comida e dinheiro. Incrivelmente, mas já são sete anos nessa vida, e jamais penso em desistir, pois estamos juntos há dez anos. A verdadeira mulher de um presidiário acaba cumprindo a pena
junto com ele. Eu o amo demais e espero passar o resto de minha vida ao lado dele. Vou até confessar, a melhor coisa é a visita íntima”, disse Maria. Algumas contam que não falam do relacionamento no trabalho, na escola e até com os amigos. Diversas afirmam que preferem fazer isso, pois se alguma coisa acontecer na empresa, se algo sumir, elas serão as primeiras suspeitas. Apesar de todos os problemas que elas passam diariamente, afirmam que é importante visitar o seu parente, para que o tratamento de ressocialização seja completo, e com todo apoio de sua família. Texto Alexsander Machado Fotos Bernardo Barcellos
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Vovós sem filhos
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MARINA BASSANI
g Entre seguir com a
estrutura familiar da época ou romper com o patriarcado, elas optaram pela liberdade
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FOTOS ARQUIVO PESSOAL
eu amorzinho, vem aqui ganhar uma balinha. Espera um momentinho que eu vou ali levar um lanchinho para o porteiro e já volto”, foi assim que Therezinha Teixeira, 83, e sua irmã, Ana Maria Teixeira, 76, receberam a equipe de reportagem. Com muitos doces e amor para dar. Uma trajetória repleta de alegrias e esperança. Um brilho suave no olhar e um sorriso leve que encanta a todos que passam por perto. Ao pensar em uma senhora da terceira idade, imagina-se uma vovózinha frágil, rodeada de netos, fazendo bolo e tricô. Porém, a realidade é outra. Cada vez mais as mulheres são independentes e donas de si, buscando ser livres e felizes com suas decisões. Desde pequena, Therezinha, a mais velha de sete irmãs (sendo 11 irmãos no total), sempre soube que não gostaria de ter filhos, não por falta de pretendentes, mas por excesso de atitude. As duas irmãs eram jovens independentes, lutavam por ideais em uma época marcada pela repressão do golpe militar, desafiando o patriarcado com a sua decisão de não ter filhos. “Ana teve muitos e muitos namorados”, contou Therezinha com um belo sorriso em seu lábio de batom vermelho. “Muitas pessoas falam que têm filhos para levar ‘o nome da família’ depois da morte. Porém, depois que morreu, morreu. O mundo acabou. Nós temos que viver o agora”, concluiu Ana. As irmãs Teixeira reviraram os álbuns de fotografias e relembraram felizes dos carnavais que passaram fantasiadas de garçonete com as camisas dos irmãos, voltando de pés descalço para casa ao amanhecer, na Rua dos Andradas, rodeadas de amigos. Hoje, elas ficam assustadas ao ver a quantidade de meninas que sofrem violência pelas ruas da Capital. “Atualmente, as mulheres ficam com medo até de pegar um Uber. Não podem nem isso mais sozinhas”, desabafou Therezinha. Maria da Graça Furtado, especialista em Gerontologia Social e Terapia de Família, conta que o empoderamento feminino fez com que idosas tivessem cada vez mais voz ativa para fazer suas escolhas: “eu vou sair”, “eu vou viajar”, “eu ainda quero encontrar um companheiro” e até mesmo como a decisão de não ter filhos quando jo-
vens. Porém, é pequena a quantidade de mulheres que fizeram essa escolha, muitas vezes por causa da pressão da sociedade, do marido, dos familiares, e até mesmo por não existirem métodos contraceptivos na época. “Hoje em dia, há um desejo maior de viver a vida, mas isso me preocupa, pois sem os filhos, quem estará ao lado das senhoras no futuro? A família é um grupo de apoio para este e diversos outros momentos”, declarou Graça. Therezinha e Ana têm o apoio do sobrinho e de duas outras irmãs que moram por perto. Além disso, a vizinhança do condomínio forma uma ampla rede social de união e confraternização. Uma das pessoas que faz parte deste grupo é a Dona Wilma, que vê hoje em sua neta a mesma ati-
Therezinha e Ana reviram fotos antigas. Uma delas mostra as irmãs e amigas na praia de Torres, na década de 70. Em outra, Ana no trabalho
tude que as irmãs Teixeira tiveram no passado. “Eu acho ótima essa evolução das mulheres, que elas comecem a pensar cada vez mais em si. Quem ama cuida e pensa no amanhã”, declarou Therezinha. Para ela, é uma grande responsabilidade colocar alguém no mundo, ainda mais com a falta de segurança e com a crise econômica que o Brasil está passando. “Eu acho que a pessoa que tem filhos não é mais dona de si. Pois a responsabilidade de uma criança é uma vida. Isso nós aprendemos sempre: quem ama cuida. Tudo está difícil hoje, o colégio, por exemplo, tá caríssimo”, enfatizou a irmã mais velha. Therezinha é conhecida no bairro por vizinhos, cuidadores de carros e até mesmo por motoristas e cobra-
dores de ônibus da região como “a senhora das balinhas”. “Eu nasci no interior, na fronteira com a Argentina. Meu pai era uma figura, daquelas que pertenciam às famílias tradicionais da cidade. Ele me levava pela mão na rua e entregava balinhas para mendigos, moradores, todo mundo por quem passava. E eu achava tão bonito aquilo, as pessoas ficavam tão felizes. E eu comecei a entregar balinhas também. Toda vez que faço isso me lembro dele, aquela figura tão querida que todo mundo gostava”, declarou. O pai delas sempre as apoiou em todas as decisões, e, mesmo com a pressão da sociedade - a qual chamava mulheres sem filhos e/ou maridos de “solteironas” - nunca foi contra as escolhas das filhas, somente queria que fossem felizes com suas vidas. De acordo com dados do IBGE, a pesquisa realizada em 2014 mostra que 38,4% das brasileiras não são mães, e que a cada ano cresce o índice de mulheres que optam por não ter filhos. E, ainda hoje, mesmo com o empoderamento e a voz ativa feminina, as mulheres ainda sofrem com esta decisão. Para as irmãs Teixeiras esta decisão nunca foi um fardo e elas levam suas escolhas e suas vidas com muita leveza e alegria, sempre ressaltando seu lema principal: gentileza gera gentileza. Texto Carol Steques Foto Marina Bassani
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Animais pedem ajuda g A vontade de três
porto-alegrenses de fazer o bem na defesa dos animais abandonados
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aridade: termo derivante do latim caritas (afeto, amor); boa disposição do ânimo para com todas as criaturas. Eliane Tavares, Alice Zanin e Brendha Moura são mulheres que prestam solidariedade e lutam para a conscientização dos cuidados de animais e de crianças menores de oito anos em Porto Alegre. Alice, 23 anos, estudante de Relações Públicas, arrecadou mais de 1,5 tonelada de ração há cerca de oito anos. Brendha, 22 anos, é estudante de Administração e diretora do Instituto Amor em Patas, uma ONG sem fins lucrativos fundada como projeto em 2013 com atuação em Porto Alegre e São Paulo. Eliane, é dona de casa e presidente da ARPA - Associação Riograndense de Proteção aos Animais, instituição há 70 anos atuando na Capital. “O objetivo do nosso trabalho é o bem-estar animal, 80% da nossa instituição trabalha com
Eliane Tavares, presidente da ARPA, com um dos gatos acolhidos pela instituição
castração de cães e gatos, como forma de controle populacional desses animais. Aqui na ARPA atendemos principalmente o público de baixa renda, com consultas a baixo custo. Mantemos os custos sozinhos e não recebemos verba pública. A maior dificuldade é o tamanho da estrutura pelo tamanho da demanda que é muito maior. Felizmente o pensamento hoje em dia é um pouco diferente de antigamente: pensamos no bem-estar dos animais - o que temos aqui é um abrigo e queremos que eles tenham um lar, uma família”, declara Eliane. “Os animais sempre foram uma paixão para mim, minha família incentivou a adoção de animais desde pequena. Quando cresci, acabei conhecendo o projeto Open Bar Canino pelas redes sociais, que promove a arrecadação de rações e mantimentos para animais de rua em prol das ONGs de Porto Alegre. A idealizadora, Bruna Mendes, explicou a situação do projeto e do compromisso. O plano dela foi um facilitador e acabei tornando-me voluntária das ações”, comenta Alice. Apaixonada por comunicação e animais, ela deseja se profissionalizar e criar um contato maior entre ho-
mem e animal “Gostaria de criar um centro de atendimento para animais. Amo a Comunicação e isso é natural em mim. Quero estar trabalhando com isso sempre que for possível, na minha realidade. É algo que sempre estará ao meu redor”, aponta. O papel da mulher em mobilizar e levar adiante a ajuda à causa dos animais já a prejudicou quando mais nova. Porém, ela sente-se forte a lidar com a dificuldade. “Em 2012, fui entrevistada para um site de notícias e na época eu cometi o erro e o acerto de ler os comentários do site. Havia comentários meus com 18 anos, de usar as redes sociais para me promover para algo maior, etc. Tempo depois, essa situação me fortaleceu e tive a sorte de ter amigos e família para lidar com esse incômodo.” Já a estudante Brendha Moura é diretora do Instituto Amor em Patas. Inicialmente, era apenas um projeto de faculdade que se tornou um sonho realizado: “Criamos o Projeto do Amor em Patas e não pensávamos em criar uma ONG. Pelas redes sociais tivemos a oportunidade de divulgar o que era preciso sobre conscientização animal e logo depois percebemos
que tínhamos a necessidade de começar a resgatar os animais, de forma efetiva”. Aponta também os cuidados e desafios de uma ONG de ajuda aos animais: “A questão financeira e o acolhimento em lares temporários são as maiores delas. Infelizmente, temos muitos gastos em clínicas veterinárias e os custos altos em rações. Não recebemos ajuda do governo e as doações são feitas por pessoas que confiam em nosso trabalho”. O projeto da faculdade saiu do papel e Brendha diz estar satisfeita com o que faz e espera fazer o bem cada vez mais: “A sensação é de estar fazendo algo maior. Eu sempre quis fazer algo por todo mundo. Criamos, em julho, um evento beneficente no Parcão e foi algo muito positivo”. A dificuldade em resgates de animais por mulheres também já prejudicou Brendha, segundo ela. “Infelizmente tive problemas em resgatar animais, por questões de segurança, principalmente quando estes resgates eram feitos apenas por mulheres. Hoje em dia não tenho mais estes problemas. Em geral, sempre fui bem acolhida”. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS),
de 2018, apenas no Brasil existem 10 milhões de gatos e 20 milhões de cães abandonados. Em cidades grandes, para cada cinco habitantes há um cachorro. Destes, 10% estão abandonados. Nas ruas, o cão vive em média dois anos e, nesse período, ele passa por inúmeras situações que colocam a vida dele em risco. A estimativa de vida de um cão é de 10 a 15 anos. Os principais motivos de abandono de um animal são: compra irresponsável, ninhadas inesperadas, problemas de adaptação e problemas familiares. As organizações não-governamentais e projetos de assistência animal promovem o acolhimento e trabalham com medidas de redução do abandono de animais de estimação. A prática conscientiza a sociedade. Entretanto, o problema só aumenta na medida em que há a compra de animais, alimentando um mercado de vidas, que também correm o risco de abandono, deixando de lado outros tantos cães e gatos que vivem nas ruas. Texto Gabryela Magueta Foto Yasmim Borges
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O longo caminho do futebol feminino até o pódio g Falta de campeonatos,
salários desiguais e público ainda são obstáculos para atletas
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ela sexta vez Marta foi premiada como a melhor jogadora de futebol feminino no mundo, pela Fifa. Ela é símbolo de força, determinação e de esperança no futebol, mostrando que este também é um esporte para mulheres, deixando de lado o estereótipo de “sexo frágil”. Em Porto Alegre, ações voltadas para jovens meninas trazem alegria e expectativa para uma longa carreira no esporte. Em 2014, a Unisinos realizou uma pesquisa acadêmica fazendo o levantamento do número de artigos esportivos publicados que mostra apenas 2,7% trata de esportes femininos. A falta de apoio ainda se manifesta, a Caixa Federal decidiu não renovar o contrato com a seleção brasileira feminina, um patrocínio de R$10 milhões. Ano passado, o Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino sofreu com a falta de público nos estádios. O primeiro jogo do torneio vendeu o total de apenas 420 ingressos, gerando um prejuízo de R$5.300, enquanto os jogos de times masculinos lotam os estádios. Em Porto Alegre, há o incentivo da Associação Gaúcha de Futebol Feminino (AGFF), ligada à Fundação Gaúcha de Futebol, que realiza jogos dos times da Capital, como Grêmio e Internacional. Criada em uma assembleia em 2010 entre os clubes que participavam do campeonato gaúcho de futebol feminino, foi uma proposta para que buscassem juntos os órgãos governamentais um auxílio de viabilizar o campeonato. Segundo o presidente da AGFF, Carlos Alberto de Souza, a associação atingiu seu objetivo: a Federação Gaúcha de Futebol assumiu a organização de categorias adultas do futebol feminino. “Estamos igualando o nosso prestígio junto ao futebol masculino. Então, por
Times amadores de futebol feminino buscam espaço em competições da Capital, como o La Barca Futebol Feminino
termos toda uma trajetória no esporte, neste ano a Associação Gaúcha encaminha o campeonato gaúcho, para que a Federação assuma como está legitimado pelo esporte nacional”, afirmou o presidente Carlos Alberto. Escolinhas de futebol são o primeiro passo para as meninas que sonham em praticar o esporte na Capital. Eduarda Luizelli, conhecida como Duda, até 2017 comandava 14 escolinhas com cerca de mil alunos, meninos e meninas. Ela começou a carreira no esporte em 1984, no Internacional, em uma época em que não havia apoio ao futebol feminino. “Quando eu comecei não existia esco-
linha de futebol feminino, eu jogava futebol com os meninos na pracinha, e hoje é o contrário. Existe escolinha pra meninas a partir de sete anos, essa é uma grande diferença que tem. Esse é o futuro do futebol feminino no Brasil daqui pra frente”, relembra Duda. As equipes femininas dependem apenas de campeonatos como o Brasileirão, e dependendo do Estado, torneios Estaduais. Segundo Duda, hoje falta, além de disputas profissionais, jogos voltados para as categorias de base e uma competição à nível nacional. “Ano passado, a Conmebol (Confederação Americana Sul-Americana
A jovem atleta Maria Luiza Schwaizer, 17 anos, nascida em Vale Real, interior do Estado, começou a se interessar pelo futebol ainda na infância, quando jogava bola com o irmão, e desde então, estava sempre com os meninos jogando. Aos cinco anos entrou em uma escolinha, do Juventude, e mesmo não tendo turma de feminino, Malu fez as aulas com a turma de meninos. Aos nove anos se mudou para Porto Alegre, pois o irmão começava a carreira no futebol, mas não deixou sua paixão pela bola de lado. Quando se mudou para a Capital, Malu ingressou a Escola da Duda, e passou por diversas esco-
linhas até entrar na do Santos, após o convite de um dos professores. Foi convidada para jogar no time paulistano após um olheiro vê-la em um dos testes do time masculino. Com apenas 15 anos, era muito jovem para se mudar para outro Estado sozinha. No início de 2017, foi chamada novamente para integrar o time do Santos. “Nunca tinha treinado em um clube que tivesse toda a estrutura que o masculino tem. Acabei gostando muito e assinei o contrato para até final do ano que vem”, relata. “Na época em que eu morei em Porto Alegre, não tinha incentivo de clubes. Mas logo que eu mudei pra Santos, as
escolinhas começaram a crescer. Se eu tivesse isso quando ainda estava na Capital, seria outra realidade. Pois agora, o Rio Grande do Sul começou a dar valor para o futebol feminino”, explica Malu. Nessa transição de cidades, Malu foi convocada para jogar na seleção brasileira. Jogou nas categorias Infanto-Juvenil pela camiseta amarela, em competições internacionais contra o Chile, Paraguai e Colômbia. Essa experiência faz com que a atleta conheça o mundo, quando também jogou o Sul-Americano no início do ano na Argentina e na África do Sul em julho, pelo campeonato Brics. Em todas as partidas, a seleção brasileira foi campeã.
Texto Luiza Soares Foto Jhenifer Fajardo
ARQUIVO PESSOAL
Entrevista / Malu Schwaizer
de Futebol) fez um sub-14 e sub-16 na Granja Comary. São iniciativas como essas que fazem com que a base venha muito forte e que o Brasil tenha grandes seleções no futuro”, relata. Na Capital, meninas participam de seleções para jogarem em times do exterior com bolsas de estudos de atleta. “Nós vamos, em breve, lançar um convênio com cinco universidades dos Estados Unidos, que vão ser parceiras da Escola da Duda e da Escolinha de Futebol Feminino do Inter”, explica a ex-atleta.
Lupa
7
novembro
2018
O mundo geek também é delas ARQUIVO PESSOAL
g Uma luta por
CARLOS BARCELLOS
respeito e representatividade além dos videogames e filmes
E
ntre guerreiros jedi, warcraft, super-heróis, revistas em quadrinhos, e-sports e todas as questões que englobam o mundo da cultura geek, existe também uma incessante busca por representatividade e respeito às mulheres desse universo. Muitas delas questionam o fato de serem tratadas como minoria e a frequência com que são assediadas, porque antes de se tornar uma cultura mais popular, o universo geek já foi alvo de preconceito e exclusão. Desde o lançamento das primeiras revistas em quadrinhos, muitas vilãs e super-heroínas marcaram a história da cultura. Elas mostram a importância das mulheres dentro deste setor e deixam claro que não precisam ser salvas por homens. Não é à toa que depois de quase 60 anos, em 2017, dois dos filmes mais esperados pela comunidade tiveram o maior saldo nas bilheterias americanas, foram protagonizados por personagens femininas: Star Wars – Os últimos Jedi e Mulher Maravilha. Além de trazer representatividade para as telas do cinema, o segundo filme também foi dirigido por uma mulher, Patty Jenkins, mostrando que o empoderamento vai dos bastidores aos créditos finais. A última vez que houve uma quebra na bilheteria de filmes com mulheres protagonistas, foi em 1958, com A Mulher do Século, Gata em Teto de Zinco Quente e o musical South Pacific. Não é só dentro de produções mundialmente conhecidas que essas mulheres ficam. Elas estão em emissoras de TV, universidades, streaming (prática de jogos ao vivo que permite interação com o público) e mostram que mulher pode estar dentro dos e-sports (competições organizadas de jogos eletrônicos). Uma pesquisa feita em 2016 pela Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, revelou que 100% das mulheres que jogam mais de 22 horas por semana sofrem com assédios de jogadores homens. Foram 293 respostas no formulário online. Todas afirmaram episódios desagradáveis. É sobre ódio e diferenciação de gênero na cultura geek e, principalmente, nos games, que a publicitária Letícia Dallegrave pensa em defender em seu artigo para o mestrado em Comunicação Social pela PUCRS. Questionadora desde muito pequena, Letícia brincava com
Através do canal na plataforma Twitch, Luana Auler transformou seu hobby em profissão
as Barbies que tinha em casa, mas só depois de elaborar uma história bem criativa. O interesse pela cultura surgiu quando descobriu a saga de livros de Harry Potter e os videogames. “Quando comecei, eu jogava Nintendo e Playstation 1 só na casa de amigos e primos, porque eu não tive na época. Depois ganhei um gameboy e aí era uma época que eu costumava viajar muito pro interior pra ver a família, eram 6 horas de viagem e eu ia a viagem toda jogando Pokémon”. Com a oportunidade de falar sobre um assunto que conhece e gosta muito, Letícia trouxe o machismo e a falta de representatividade feminina, no universo dos e-sports, para dentro de um artigo de mestrado. “Nos games eu recentemente sofri duas vezes ataques em grupos de lol (jogo League of Legends). Quando o pessoal fala de machismo, feminismo, como estou estudando isso, está muito fresco. Tenho referenciais teóricos e tenho leitura. Sempre tento ajudar as meninas, porque às vezes vejo que elas tentam explicar e não conseguem”, fala a publicitária. Além disso, Letícia comenta sobre os discursos de ódio com mulheres que jogam na web. “A gente teve somente duas jogadoras de lol. Uma foi reserva, nem chegou a jogar, a outra quando jogou sofreu hate na transmissão, virou piada, cada vez que ela jogava mal alguém falava. Mas quando os homens jogavam mal, nin-
guém falava nada”, conta. Em uma cultura conhecida mundialmente pela diversidade, ela acredita que a representatividade feminina dentro do universo geek progride a passos pequenos, principalmente quando se refere aos games. “Filmes e séries já estão bem mais na frente, acho que jogos ainda ficam muito na coisa da heroína que tem que ser salva. No lol tem um movimento de trazer meninas menos sexualizadas como personagens. O que eu acho bem importante”, comenta ela. Com 21 anos, a gaúcha de Novo Hamburgo Luana Auler é estudante de Marketing e já conquistou muitos seguidores desde quando começou a transmitir os
Entenda a diferença Geek: Pessoas que
se interessam por tudo que é novo e se tornam especialistas naquilo o que é do seu interesse: tecnologia, computação, códigos, videogames, filmes, séries, revistas em quadrinhos, etc.
Nerd: Nos anos 90, nerds
eram deixados de lado por grupos sociais por serem pessoas muito estudiosas que preferiam dedicar o tempo à alguma atividade intelectual.
jogos em seu canal (@Luuauler), na plataforma twitch.tv. Em menos de dois anos, a gamer já tem a stream como sua principal fonte de renda. O interesse pelos games começou cedo, quando tinha seis anos. “Desde criança eu já tive esse contato. Sempre gostei e conforme fui crescendo não era uma das principais coisas que eu fazia, mas com o tempo, logo voltei e continuei, comecei a jogar outros jogos, conhecer pessoas na internet, que jogavam também, e nisso não parei mais. Hoje é o meu hobby, trabalho e o que eu mais gosto de fazer. Não tem como cansar sabe?! É muito bom!”, comenta a gamer. Com transmissões ao vivo todos os dias e em horários alternados, ela tem a oportunidade de se comunicar com os seguidores. Eles acompanham os vídeos por meio de um chat em tempo real, disponibilizado pela plataforma, e também podem jogar com outros usuários. Mesmo sendo uma das maiores streamers do Estado, Luana conta que já presenciou comentários ofensivos durante alguns jogos. “No início e até hoje, tem muita gente, homens que vêm e xingam, falam coisas machistas. Tu tens que ter o psicológico bem forte. Saber lidar com isso”. Luana também conta sua luta pelo espaço das mulheres na stream e como lida com comentários machistas. “Acho que o meu papel como mulher jogando é mostrar que outras
A gente precisa provar Produtora audiovisual do SBT, Ariane Felix luta contra todos os padrões e estigmas impostos dentro do universo geek. “Esse lance de mulher ter que sempre provar conhecimento. Acho que essa é a maior parte de estar no meio. Parece que não basta a gente gostar, precisa provar que conhece e sabe mais que os homens”, conta. mulheres podem e que respeito tem que ter. A gente não pode achar que ninguém é superior a gente, como os caras normalmente pensam, que são melhores pelo simples fato de ser homem. Isso é um absurdo”, conta. Em meio à comoção e entusiasmo, ela fala sobre a importância da representatividade feminina em todos os setores, não só nos games. “Mulheres tem que estar juntas. Temos que representar em tudo o que der e está supercerto. Vamos dominar o mundo”, completa Luana. Texto Giulia Godoy Foto Carlos Barcellos
Lupa
novembro
edição
2018 12 EVERETT COLLECTION
Jennifer Lawrence no papel de Rosalyn Rosenfeld em Trapaça, filme que lhe garantiu o Globo de Ouro
g Ao longo da história
do cinema, o papel da mulher evoluiu, mas elas ainda sofrem com baixo reconhecimento
I
gualdade sempre foi, e certamente será por muito tempo, uma meta difícil de se atingir por completo. Mulheres ganham consideravelmente menos que homens há séculos e também são minoria em grandes meios – o cinema é um deles. As discrepâncias numéricas entre os gêneros nas áreas de direção são enormes. Segundo o site Mulher no Cinema, estudos apontam que personagens femininas, em geral, têm menos falas e mais cenas de nudez do que personagens masculinos. A representatividade feminina ainda sofre muito. Hoje em dia, o sexo feminino ocupa mais cargos de direção, produção e roteiro, mas ainda assim são números muito inferiores aos dos homens. A variação salarial de atrizes em relação a atores também chama atenção. Divulgado pela revista Forbes, a atriz mais bem paga de Hollywood entre junho de 2014 e junho de 2015 foi Jennifer Lawrence, que recebeu 52 milhões de
dólares. É uma quantia ótima, certo? Bem, nem tanto. O ator mais bem pago de Hollywood no mesmo período foi Robert Downey Jr., que recebeu 80 milhões de dólares. Uma diferença de 28 milhões de dólares. No primeiro trimestre de 2018 foi divulgado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) que cotas seriam aderidas para mulheres, negros e indígenas nas áreas de direção e produção no cinema nacional. “Tenho ideia de que as cotas ajudem e deem mais coragem às mulheres para tomar riscos na área”, constata Jessica Luz, professora do curso de Realização Audiovisual da Unisinos. Ela tem diversas produções em seu currículo, e relata que normalmente as equipes que trabalha são 90% masculinas. Acredita, porém, que isso tende a mudar em um futuro próximo, devido aos recentes movimentos de empoderamento feminino. A primeira diretora brasileira de grande destaque foi Carmem Santos, nos anos 30. A participação feminina foi crescendo, principalmente por causa das universidades, dos cursos superiores na área. A partir disso, as mulheres começaram a ter mais acesso à produção audiovisual. Mesmo assim, durante muito tempo, as
turmas formavam um número muito maior de homens do que de mulheres. “Eu acho que o número de trabalhadoras do sexo feminino no audiovisual cresce todo dia. Minhas alunas estão se destacando em cargos que há 20 anos eram exclusivamente masculinos, como direção de fotografia e som. Isto é bárbaro, as meninas se dando o direito de fazerem o que quiserem”, relata Flávia Seligman, professora do curso de Realização Audiovisual da Unisinos. Não somente o empoderamento colabora com o cinema, mas também projetos que visam dar suporte ao papel feminino nas áreas de direção, produção e roteiro. São incentivos de mulheres para mulheres, que expõem números e dados concretos sobre a desproporcionalidade nas áreas citadas anteriormente. Um desses projetos é o Feito por Elas, que engloba discussão, crítica e divulgação do trabalho de diretoras, atrizes, produtoras e roteiristas no audiovisual. Idealizado por Isabel Wittmann, o projeto hoje conta com a colaboração de mais seis mulheres, todas envolvidas com cinema de alguma forma. Em 90 anos de Oscar, apenas uma mulher ganhou o prêmio de melhor direção e somente outras cinco foram in-
TUMBLR AMERICAN HUSTLE
Luz, câmera, representação dicadas. Em 71 anos do Festival de Cannes, apenas uma diretora foi premiada com o Palma de Ouro. “Isso é lamentável, e reflete o fato de que o controle dos espaços que definem o que é válido ou não em termos de cinema ainda está majoritariamente em mãos masculinas. Mas não só isso, como masculinas, heterossexuais e brancas, tornando pouco visível ou acessível trabalhos fora desse padrão”, reflete Isabel. Projetos como o Feito Por Elas estão se tornando cada vez mais comuns, pois refletem a insatisfação – em grande parte feminina – em relação aos números apresentados. Em 2015 a organização Women in Film lançou o projeto 52 Films by Women, que incentiva ver um filme por semana ao ano feito por mulheres. São projetos como esse que trazem esperança para as mulheres que estão dando os primeiros passos no mundo cinematográfico. A roteirista Luísa Guanabara é um exemplo das mudanças atuais, pois, segundo sua experiência, o audiovisual está mudando, em parte por reivindicação das profissionais, e em parte devido a uma demanda do público. “Ainda estamos longe do ideal, mas considero o mo-
mento atual positivo, pois tenho trabalhado em projetos em que a minha experiência como mulher é imprescindível. Fiz recentemente um trabalho com equipe 100% feminina”, relata Luísa. O teatro, paralelo ao cinema, têm apresentado bons números para o público feminino, segundo Cândida Banzanella, professora formada em teatro. “Cada vez mais tem crescido em Porto Alegre mulheres dirigindo peças, e isso pra mim é uma conquista muito grande por causa da sociedade ser em grande parte machista”. Apesar das desigualdades ainda existentes, pode-se observar uma ponta de esperança no fim do túnel. Mulheres como as retratadas na reportagem estão ajudando a preparar o terreno para as novas gerações de diretoras, produtoras e roteiristas. Projetos, pessoas e empresas já estão cientes dos números grotescos cinematográficos que não representam a totalidade da população. O que resta é esperar pelo melhor e cada um fazer sua parte – apoiar o maior número de mulheres possíveis, em todos os aspectos existentes. O lugar da mulher é onde ela quiser. Texto Amanda Bormida