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| dezembro de 2018 |

pi primeira impressão

(RE) IMPRESSÕES Na 50ª edição, o passado é revisitado em 12 reportagens


Agência Experimental de comunicação Unisinos

Conhe a o nosso trabalho Coberturas jornalísticas, reportagens e perfis

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EDITORIAL

HISTÓRIAS REVISITADAS

A

o completar 50 edições, a revista Primeira Impressão propôs um desafio aos repórteres: revisitar histórias que preencheram algumas reportagens publicadas nestes 25 anos. À primeira vista, a missão, aceita facilmente pelos estudantes de Jornalismo, parecia fácil. Mas não foi! Mais do que escolher uma reportagem a ser analisada, antes de partir para a saída de campo, o grupo precisou investigar, ligar para antigas fontes e avaliar se era possível fazer um texto sobre a atual realidade daquele assunto. E nem todos conseguiram. Nomes diferentes, telefones trocados e até mortes de fontes os afastaram do objetivo inicial. Só que a ideia de retomar o passado prevaleceu, e o que vocês recebem hoje é uma revista repleta de narrativas inspiradoras. Algumas histórias puderam ser recontadas, sim. Nos emocionamos com o casal que se conheceu pela internet, em 1996, quando ninguém sonhava em conversar pelas redes sociais. A reportagem, assinada por Maria Carolina de Melo, mostra que, quando há amor, o relacionamento virtual perdura por décadas na vida offline. Fomos atrás também do homem que trabalha como chaveiro há 67 anos e que conseguiu

sustentar a família com o ofício. A repórter Jéssica Santos, inclusive, traz a história do neto dele, Pedro José Miranda Souza, que se graduou em Direito graças ao empenho do avô especialista em chaves. Sob olhar renovado, voltamos à Colina do Sol, em Taquara, para saber como estão os moradores da maior vila naturista da América Latina. Em um texto cuidadoso, Vitorya Paulo narra as curiosidades e valores do local – e tem parceria da fotógrafa Kellen Dalbosco, que mostrou sensibilidade ao transformar a visita em um lindo ensaio fotográfico. Também fomos atrás da rotina de esperança de pacientes que precisam de doação de órgãos. A repórter Caroline Tidra foi persistente, e acompanhou os passos de quem percorre quilômetros em busca da vida – e nem sempre consegue. No total, são 12 reportagens, 12 (re) impressões sobre diferentes ângulos do dia a dia, e que nos mostram que a vida é o que temos de mais precioso. Boa leitura! Anelise Zanoni Professora editora de texto Flávio Dutra Professor editor de fotografia EDUARDA ROCHA

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KELLEN DALBOSCO

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ÍNDICE 06 10 14 18 22

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INTERNET UNE APAIXONADOS Dois personagens fictícios do mundo online se tornam casal da vida real VIDAS NOTURNAS Conheça a rotina daqueles que fazem o ‘rolê’ definitivamente acontecer UNIÃO FEMININA Atualmente comandada por 25 mulheres, a Univens é exemplo de economia solidária SONHOS DE INFÂNCIA Imaginar como será o futuro ajuda no desenvolvimento da identidade da criança UMA FAMÍLIA ATRÁS DO PICADEIRO Dedicação, coragem, talento e força descrevem os artistas dedicados ao circo

NATUREZA CRUA Respeito é a máxima na Colina do Sol, maior vila naturista da América Latina

30 33 36 40 44 48

NO GRÊMIO, NÃO! Fidelidade ao Inter fez com que Alex não aceitasse proposta para jogar no rival DO CIMENTO À CADEIRA Para os gremistas, uma coisa não alterou na mudança do Olímpico para a Arena: a paixão DORES DA SOLIDÃO A sociedade precisa conversar sobre o suicídio À ESPERA DO RENASCIMENTO Histórias de pessoas que esperam por um transplante se cruzam na Pousada Solidariedade O SENTIDO DA VIDA DE QUEM NÃO CRÊ Ateísmo não é ir contra doutrinas religiosas, mas uma forma oposta de percepção PORTAS ABERTAS PARA A VIDA Machado sente-se realizado com a profissão de chaveiro, a qual dedica-se há 67 anos

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INTERNET UNE CORAÇÕES APAIXONADOS

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Honestidade, sinceridade e confiança foram suficientes para que dois personagens fictícios do mundo online se tornassem um casal na vida real TEXTO DE MARIA CAROLINA DE MELO FOTOS DE GABRIEL PALMA


– Leopardo: “Dá um tempo aí, agora vou sair do laboratório de informática para fumar”. – Pandora: “A, é? Você está na faculdade?” – Leopardo: “Sim, estou”. – Pandora: “Quem sabe a gente não fuma esse cigarro juntos... Em qual parte está?” – Leopardo: “Estou no Departamento de Matemática”. – Pandora: “Então está perto, fico aqui no Departamento de Psicologia”. – Leopardo: “Espera aí, na minha Universidade não tem Departamento de Psicologia... Desculpa, mas você fala de qual instituição?” – Pandora: “Da UFRGS”. – Leopardo: “Acho que esse cigarro vai ficar para mais tarde, porque estou a mais de mil quilômetros de distância”. PRIMEIRA IMPRESSÃO 7


O

ano era 1996, a internet estava consolidada como a inovação da década e se tornava comercial no Brasil. Com acesso exclusivo em universidades, o uso era restrito aos estudantes, pesquisadores e professores. Naquela selva virtual estavam Leopardo e Pandora conectando–se pelo ‘Moo’, um ambiente de interação totalmente textual acessado por um servidor com usuário e senha. Não sabiam quem eram, mas tinham a certeza de que estavam sempre juntos. Os dois personagens se revelaram: Leopardo era o estudante de Engenharia Agronômica, Luiz Eduardo Guaraldo, falando de Piracicaba, interior de São Paulo, e Pandora tornou-se Ana Cristina Del Grande da Silva, mestranda em Psicologia de Porto Alegre. Cinco meses depois, após trocarem centenas de mensagens, eles e outros 23 internautas conectados pelo mesmo servidor organizaram o ‘moorrasco’, um churrasco com usuários do ‘Moo’. Foi a oportunidade para Leopardo, 19 anos, voar até a capital gaúcha e conhecer Pandora. “Ela me recebeu no aeroporto e fiquei hospedado na casa dela, me apaixonei. Quando voltei para São Paulo, pouco nos falamos. Mas próximo de novembro de 1997, um chamou o outro para dizer que estava com saudades”, relembra Luiz Eduardo. Dessa vez, Ana Cristina decidiu voar sobre nuvens para encontrá-lo, passando uma semana junta de Leopardo. Nesse instante, os aviões fizeram parte de sua rotina a cada quatro meses. Julho de 1998 chegou e Luiz Eduardo ficou um mês no Rio Grande do Sul ao lado de Pandora. Até então, esse tinha sido o maior tempo juntos, o que causou uma das maiores mudanças de sua vida. “Eu larguei a faculdade no 5º semestre, arrumei as malas e me mudei sem plano B para Porto Alegre”, conta. Vinte anos depois, Ana Cristina, hoje com 51 anos, enxerga que a decisão do marido foi a única alternativa para resolver a distância. “Ele tinha uma incerteza profissional e eu já estava iniciando na área, então, terminávamos ou casávamos”, completa.

Da selva virtual para a vida real

Em uma época na qual se criavam personagens como Leopardo e Pandora, os internautas tinham consciência da ficção em torno do ambiente virtual. Por isso, não havia surpresas nos encontros, já que aquele, na verdade, era o criador de uma figura online. Luiz Eduardo observa que, hoje, a situação se inverteu: as pessoas são os próprios personagens. “Muito do que vemos nas redes sociais é apenas a parte bonita da vida, mas se tirarmos o filtro, pode ser o que não gostaríamos”. Em contrapartida, o que surpreendia Ana era saber que quem estava do outro lado da tela vivia em uma cidade distante. “Agora nem isso causa estranheza”, observa. Tanto que 20 anos após o início do novo ciclo, a internet em sua vida é exclusiva para trabalho e estudos. Para Luiz, toda a experiência deu prioridade no uso do computador, tornando–se profissional de Tecnologia da Informação. 8 PRIMEIRA IMPRESSÃO

Ana e Luiz se divertem ao relembrar da história de como se conheceram

Além disso, dessa união nasceu Lucas, 18 anos, e, em seguida, Gabriel, 15 anos, dando ainda mais forma para a vida real. Mas a vivência na selva virtual ainda faz parte. No começo do ano, o primogênito viajou até São Paulo para conhecer os amigos da internet. A mãe admite alguns resguardos. “Sempre instruímos os meninos para não dizerem onde estudam e que não estejam com o uniforme da escola ao ligar a câmera.” Já o pai reconhece o medo, mas não teve dúvidas de que a situação deu mais um significado para o que viveu há 20 anos. “Se fossem pais sem a nossa experiência, provavelmente diriam para não ir até lá”, analisa. E então, eles e suas descobertas no mundo online de ontem e hoje, os três cachorros, Gelatina, Stela e Duda, a calopsita Dinho e o periquito Fly, que ficam soltos pelo apartamento, constroem a história de uma grande família: a dos Guaraldo.


Amor on e off

Até o ‘moorrasco’, Luiz e Ana nunca haviam se tocado, beijado ou acariciado, mas já estavam entusiasmados com o amor. Situações como essa despertam curiosidade na doutora em Psicologia Karla Rafaela Haack, que desde 2007, estuda o assunto, tema de sua pesquisa. “O objetivo é comparar os relacionamentos amorosos mediados pela internet com os que não são, dizendo respeito ao amor, qualidade conjugal e concepções de infidelidade”, inicia. Com base nisso, Karla constatou que há melhor qualidade na relação, comprometimento, intimidade e paixão nos relacionamentos presenciais. Outra conclusão é que quando o casal opta pelo ambiente virtual, índices de infidelidade e problemas conjugais são maiores. “Neste sentido, compreende–se que a internet é um meio para conhecer pessoas e iniciar um relacionamento. Entretanto, para desenvolvê–lo com mais intimidade, paixão, compromisso e qualidade, indica– se que ele deve ocorrer presencialmente”. A pesquisadora ainda supõe que é nesse encontro presencial que as pessoas definem se estão ou não em um relacionamento sério, o que dá margem para conhecer outros parceiros pela internet ao mesmo tempo. “Os principais motivos apontados para cometer infidelidade foram a curiosidade em experimentar outras relações, desgaste, carência, falta de comprometimento e antecipação de uma possível traição ou vingança”. Relembrando as ideias do sociólogo Zygmunt Bauman, que considerou que os relacionamentos da atualidade se caracterizam, de forma geral, como mais frágeis, instáveis e fluídos, sendo adventos da modernidade líquida, Karla Rafaela acredita que “é possível ser feliz ao lado de uma pessoa que se conhece pouco pessoalmente”.

Aproximações amorosas também no rádio

Uma década antes do avanço da internet, quando uma música de amor subia na Rádio Cidade, o ouvinte já sabia: entrava no ar o locutor Arlindo Sassi com enredos verdadeiros de amor. “O Programa Love Songs foi ao ar no momento e hora certa. Se fosse lançado hoje, até poderia ter audiência, mas não como naquela época”, reflete. Entretanto, com mais aparatos tecnológicos disponíveis, histórias como a de Luiz e Ana crescem na mesma proporção que desaparecem das ondas do rádio. “Com a facilidade do contato direto, ninguém mais contou. Até então, era bem fácil produzir o Love Songs”. Além de ler relatos apaixonados que sua esposa e produtora Elaine Sassi escolhia, o radialista, que ficou à frente dos microfones por 29 anos, também traduzia músicas da época. “De repente esse trabalho estava disponível na internet e não tinha sentindo em continuar, mas foi uma revolução parar. Os ouvintes pediram muito e voltamos com o quadro até o fim do Programa, meados de 2015”, conta. A partir do fim, Sassi coordena eventos e tem a possibilidade de entender a grande relação que tinha com a fiel audiência. “Ao ler

uma história de amor, você está interpretando uma pequena peça dramática, e não tenha dúvidas: quanto mais dramática for, maior será a sensibilização das pessoas”, resume. Segundo o locutor, embora as pessoas ainda queiram ser amadas, o conceito de amor se modificou nos últimos anos. “Eu prefiro a forma dos anos 80 de se relacionar, pois tinha muito mais emoção. Agora as relações não têm a mesma durabilidade e no futuro o sentimento se tornará raro ou nem existirá. Mas não vejo como bom ou ruim, simplesmente é uma questão de mudança de tempo, ética e costume”, conclui.

EDIÇÃO 9 Em 1998, a 9ª edição da PI apresentou um casal que se relacionava pela internet. A reportagem mostrava o preconceito em uma época na qual dois milhões de usuários viam na rede uma alternativa para buscar o amor. Depois de 20 anos, a edição da PI procurou as fontes e descobriu que não é de hoje que o ambiente virtual contribui intensamente com as relações humanas. Ao longo desses anos, houve muitas transformações no mundo e, consequentemente, na comunicação.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Junto de meu fotógrafo, folheava a PI do ano de meu nascimento e encontramos a história do Luiz Eduardo e da Ana Cristina. Obviamente, veio a curiosidade de saber se ainda estavam juntos. Seus sobrenomes e profissões foram suficientes para que os encontrássemos na internet para confirmar o que mais queríamos: a formação de uma grande família. Pronto! Não tive dúvidas de que a partir dessa história sairia minha contribuição pautada por dois elementos que têm conduzido a trajetória na profissão: amor e comunicação. Não está claro na primeira reportagem como tudo começou, o que tornou a apuração ainda mais desafiadora, pois foi preciso voltar 20 anos no tempo. Quando nos reunimos, o casal me mostrou que o ambiente virtual não é superficial como lemos, ouvimos e até pensamos. Ele é muito mais. No dia seguinte, tive a oportunidade de conhecer Arlindo Sassi, o dono de uma voz encantadora. Ele, pelos microfones, emocionou minha mãe e muitas outras adolescentes dos anos 80 com as cartas que recebia de corações apaixonados. Eu, pelas palavras, também tive a oportunidade de propagar por aí mais uma história de amor. Mais uma situação na qual esse puro sentimento superou os obstáculos da vida.”

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VIDAS

NOTURNAS Conheça a rotina daqueles que fazem o ‘rolê’ definitivamente acontecer TEXTO DE LEONARDO OZÓRIO FOTOS DE BOLIVAR GOMES

João Rosa divide a rotina entre a produção de eventos noturnos e a formação acadêmica em Jornalismo

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TIAGO CALEB

S

ão 19h de uma sexta-feira na Unisinos, em São Leopoldo. A meia hora do início das aulas, estudantes já perambulam pelo campus, prestes a encaminhar o fechamento do dia. Para um deles, porém, a rotina aparenta estar começando. Dono de passos nitidamente mais apressados, o estudante de Jornalismo João Rosa, 28 anos, não hesita em justificá-los. “Tô me preparando para uma noite bem pesada, para ficar de pé até umas 7h”, prevê, entre goles no copo de café que acaba de adquirir – um dos recursos do qual se apropria para encarar as próximas horas. Assessor de imprensa em uma instituição de ensino em Porto Alegre, João planeja cumprir o compromisso acadêmico no Vale dos Sinos “o mais depressa possível” e rumar para o bairro Bom Fim, de volta à Capital, onde dará espaço para a sua ocupação mais célebre entre o rol de conhecidos: a de promotor de eventos noturnos. Dessa forma, dedica-se à organização da Rockwork Orange, festa de gêneros indie rock e rock’n’roll sediada nas instalações do Bar Ocidente, uma vez ao mês. Envolvido com a vida noturna desde 2013, João descreve tal rotina como “alternativa”. Mesmo em dias distantes do evento, por exemplo, reserva alguns minutos – seja em casa ou no horário de trabalho – em frente ao computador ou smartphone para alimentar as redes sociais da festa. Na medida em que a ocasião se aproxima, a carga horária exigida naturalmente aumenta. “Quando o evento é criado, sempre com 10 dias de antecedência, passo a tirar duas horas para mais. A uma semana, três horas. No dia da festa, de quatro a cinco horas”, conta o produtor. Neste período de 240 horas, cabe a João participar do brainstorm com seu sócio, Thales Speroni, 31, definir o tema da vez para a Rockwork Orange – que geralmente presta homenagem a uma data histórica, aniversário de um algum álbum notório ou, simples-

mente, a uma situação contemporânea –, tratá-lo com os betas, responsáveis por divulgar a festa, repassar o release de divulgação para a imprensa, criar códigos de desconto, controlar o Sympla – plataforma que disponibiliza venda de ingressos antecipados –, entre outras atribuições. Tudo de forma suada. Embora ressalte: com muito amor. “Penso que é fundamental ter carinho pelo que faz, pela festa, pelas músicas, pelas pessoas que frequentam. ‘Fazer por fazer’ pode soar uma mensagem falsa e genérica para o público”, considera João, que, coerente, veste o boné do Rolling Stones, uma das bandas pela qual tem mais apreço.

A figura do ‘beta’

Festas como a Rockwork Orange, que mobilizam cerca de 400 pessoas por noite – podendo chegar ao dobro –, não se fazem somente com um João ou com um Thales. Cabe a outros, no entanto, a tarefa de fazer o “corpo a corpo” com o público e convocá-lo para os entretenimentos. Eles são os betas. Você, muito provavelmente, os conhece ao receber um convite por WhatsApp ou, até mesmo, ao manusear os stories do Instagram. Diferentemente de João, a maioria deles não possui necessariamente a formação na área de comunicação – principalmente pelas se-

melhanças com o profissional de Relações Públicas –, mas uma característica imprescindível: a influência. Júlia Danda, 26 anos, por exemplo, integra a relação de 40 betas responsável pela divulgação da Rockwork Orange. Ganha a vida como pizzaiola nas redondezas da Avenida Independência, aproximadamente a um quilômetro do Bom Fim. A jornada diária de oito horas, quando literalmente põe a mão na massa, costuma liberá-la para casa somente após as 23h30. Ainda assim, concilia tempo para publicar os materiais que recebe pela equipe organizadora. “Não existe a necessidade de ser periódica, digamos assim. E ainda por cima, considero uma tarefa simples. Então, posto sempre que tenho tempo. Seja de manhã, no meu intervalo, que ocorre por volta das 17h, ou após o trabalho”, relata Júlia, que enfatiza a essencialidade da internet nesse processo. Criado em maio de 2013 e utilizado com mais frequência em Porto Alegre – uma vez que surge na informalidade de produtores da Capital –, o termo ‘beta’ é, portanto, relativamente recente. A atuação de tais figuras confunde-se com aquela desempenhada por promoters, mas ao contrário destes, são “premiados” em vez de comissionados pela venda de ingressos. Ainda assim, Júlia considera-se no lucro. PRIMEIRA IMPRESSÃO 11


Cecília aposta no saudosimo do seu antigo bar, o Elo Perdido, e na dedicação ao novo empreendimento: o Mini Bar “Meu círculo de amigos e eu nos identificamos com o estilo da festa. E o fato de frequentá-la com eles, obtendo free (entrada gratuita) e alguns drinques por conta da casa me deixam satisfeita”, comenta a pizzaiola. As premiações podem variar de acordo com a produtora, tipo e alcance desejado pela festa. Estudante de Fisioterapia e influenciadora digital, Tainá Fofonka, 21, traz, acompanhada de fotos, algumas recordações decorrentes da divulgação de festas promovidas por produtoras como Agência Combo e Raio Eventos – voltadas ao samba e ao funk, respectivamente. “Além de bebidas e ingressos, também já fui contemplada com viagens para Bento Gonçalves, Imbituba, São Paulo e Punta del Este. Tudo pela minha presença nas festas”, conta Tainá.

O que diz o RP

As atuações de promoters e betas são, muitas vezes, confundidas com aquelas desempenhadas pelo relações públicas. Este, porém, distingue-se daqueles na medida em que é reconhecido por legislação federal e Ensino Superior. A RP Caroline Dorneles, 31, acredita que a especialização é um elemento diferencial. “Muitos promoters e betas entram no mercado por gostarem de festas. Eu, particularmente, não

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critico de forma direta, mas acredito que um evento que visa o sucesso demanda um bom planejamento. Muitas vezes quem não busca uma qualificação acaba perdendo espaço. Por outro lado, em funções mais operacionais, a principal característica acaba sendo a proatividade, que concede espaço para a atuação desses profissionais”, avalia Caroline, diplomada há 10 anos.

Uma metodologia antiga

Enquanto maior parte da vida noturna embarca nas potencialidades da internet, existem aqueles promoters que apostam em ideias mais conservadoras. Uma delas, inclusive, está instalada em frente ao Bar Ocidente. Por volta das

19h30 de uma quarta-feira, as ruas do Bom Fim, vigiadas pelo Auditório Araújo Viana, passam a ficar iluminadas exclusivamente por postes e fachadas de comércios fechados. O silêncio presente na região é ensurdecedor, ainda que, segundo a promoter Cecília Capovilla, 44 anos, esteja com os minutos contados. “O movimento por aqui costuma começar por volta das 20h, mais ou menos”, afirma a dona do Mini Bar, instalado na esquina da General João Telles com a histórica Osvaldo Aranha. A experiência de Cecília, dedicada à vida noturna durante 23 anos, não falha. São 19h55 quando os três primeiros clientes se acomodam na parte externa do estabelecimento, cujo nome faz alusão ao espaço de aproximadamente 25m². “Vamos de ‘ipêta’ hoje?!”, sugere, atrás do balcão, Eduardo Etchepare, sócio do bar com Cecília, em referência à cerveja artesanal IPA (India Pale Ale). O trio é unânime. Rechaça e opta por uma long neck cada. Perto das 21h, o local é tomado por outra proporção. O ambiente passa a sediar diversos papos, simultaneamente colocados em dia, além de registrar risadas, encontros happy hours e comemorações. Mais do que o Mini finalmente entrando em sua rotina habitual, a personificação do antigo bar de Cecília, o Elo Perdido, começa a dar as caras.


Em 1999, Cecília, então com 24 anos, ilustrava as primeiras páginas da edição nº 11 de Primeira Impressão. Na ocasião, compartilhava a experiência como promotora de eventos após adquirir, em setembro de 1995, o bar Elo Perdido, na Rua Garibaldi – a três quadras do atual empreendimento. Quase duas décadas depois, algumas raízes do antigo bar, fechado em 2003, resistem perante o sucesso. E vão desde a decoração alternativa, perpassando pela especialidade da casa, os drinques, à ausência de um letreiro que permita a identificação do lugar. “Ser mais discreto é algo que está na nossa identidade (minha e do bar)”, esclarece Cecília, que admite, ao comparar as épocas, continuar dispensando a adesão de propagandas – e, inclusive, ao uso exacerbado dos recursos proporcionados pelo avanço da internet e sites de redes sociais. “Faço mais uso do Instagram mesmo, que é a grande tendência da atualidade, né?! Confesso que me senti obrigada a entrar nessa onda (de redes sociais). Sou de uma escola que busca uma relação de intimidade com o cliente, e acho, sinceramente, que a internet não é a alternativa mais eficaz”, conta a promoter. Entre diversas ideias, cita a intenção de enviar cartas com a programação do Mini Bar, semelhante à lista VIP, em que clientes recebiam, na década de 1990, a agenda do Elo Perdido. “Um atendimento mais humanizado, capaz de proporcionar um contato ‘mais vivo’, é fundamental. Receber um WhatsApp, como se faz hoje em dia, é legal. Mas penso que uma ligação é ainda muito mais”, opina Cecília, embora frise que o método não se aplica para qualquer bar. “Deu certo porque era outro tempo. Por isso, para nós, é muito fácil”, resume. Naturalmente, ela exibe os frutos colhidos das estratégias do passado, na medida em que acena e cumprimenta, enquanto conversa com a reportagem, a clientela do bar. “Tá famosa, hein?!”, dispara o cliente Roberto Lewin.

“Esse vem desde os tempos do Elo”, lembra Cecília, que intensifica a importância da fidelidade com o público. “Somos contemplados, em maior parte, por pessoas que frequentavam o Elo. Pessoas que casaram, separaram, estão na ativa novamente e demonstram saudosismo pelo bar, que marcou uma geração”, completa. Assim como em 1999, reitera ser apaixonada pela vida noturna. Recorda-se de um desgaste com a função em meados de 2006, quando decidiu mudar-se para Balneário Camboriú com o objetivo de estudar Gastronomia. Três anos depois, retornou a Porto Alegre buscando retomar o trabalho pelo qual tanto se destacou. Enquanto o Mini Bar, erguido em 2014, ainda não era uma realidade, prestou assessoria a diversas casas noturnas, criando conceitos e cardápios,

e promoveu festas itinerantes do Elo Perdido. “Por uma série de questões pessoais fiquei lutando contra a ideia de retornar. Mas não adianta, é o que eu sei fazer. Isso é o que me mantém na história. Vou ser sempre a ‘Cecília do Elo’, e isso ninguém vai me tirar”, diz. Sem hesitar, ela revela alguns planos para o futuro – e a noite, é claro, não fica em segundo plano. “Quero abrir mais um lugar. Se tudo der certo, para o ano que vem. Também cogito estender o funcionamento do bar para manhãs e tardes e trazer alimentação vegana, que não tem nessas bandas”, revela Cecília. Ela ainda vai mais além. Com o pensamento em 2037. “E quem sabe não ser entrevistada pela revista novamente?”, conclui sob risadas.

EDIÇÃO 11 A reportagem é inspirada no título ‘Vida de promoter’, publicado na edição nº 11 da Primeira Impressão. Sob o olhar da repórter Betine de Paris, o material traz a rotina e as estratégias do promoter da década de 1990, encaradas naquela época sem os recursos e as potencialidades oferecidas hoje pela internet.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Embarcar na vida noturna sob a condição de repórter foi, em mais de 22 anos – dos quais quatro dedicados à rotina jornalística –, uma experiência inédita. E, justamente por isso, desafiadora, visto que o processo de construção da narrativa impôs a necessidade de desconstruir a posição sobre a qual sempre me coloquei quando costumo frequentar um “rolê”: a de público. Para dispor de um olhar mais atento e preciso, como pede o gênero literário, vimos o “outro lado do balcão” e os bastidores de uma festa que propõe a compreensão de que os promoters, como todo apaixonado pela profissão, também se divertem com o que fazem. Por sinal, é isso que os sustentam, mesmo que as pernas e a cabeça, muitas vezes, solicitem o contrário. Seus dias, de fato, pedem doses cavalares de persistência, dedicação, planejamento e organização. Compreender um contexto com o qual não estou adaptado foi a maior dificuldade da pauta, sem dúvidas. O texto, aliás, foi escrito e reescrito. Mais uma vez, reescrito. E, mesmo assim, ainda me causa um pouco estranheza. Mesmo assim, creio que a leitura irá fluir.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 13


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UNIÃO

FEMININA Atualmente comandada por 25 mulheres, a Univens é exemplo de economia solidária TEXTO DE HELEN APPELT FOTOS DE CAREN RODRIGUES

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manhã estava fria e nublada. Do outro lado da calçada, o prédio verde água dava cor ao dia cinza. O relógio marcava 9h. Na recepção, uma bancada de concreto toda branca desenhada com flores e acompanhadas da frase “Somos economia solidária”, dão característica e fazem jus ao trabalho desenvolvido. A presidente da Cooperativa Unidas Venceremos (Univens), Nelsa Inês Nespolo, estava em reunião com duas colegas da Cooperativa exatamente 30 minutos mais cedo do que o combinado. Com sorriso simpático, pediu que esperasse. O sofá da sala da recepção, que também serve de sala de espera, fica de frente para o ambiente de confecção de costura. O som das máquinas se misturava como melodias de um mantra de concentração para as costureiras. As lâmpadas que refletem sob as paredes brancas deixam mais evidentes as cores dos tecidos organizados. Enquanto uma dobra e organiza, outra faz os cortes e as demais costuram. Na janela, violetas floridas em cores roxas dão vida ao ambiente. A observação foi interrompida pontualmente às 9h30. Dona Nelsa se apresenta e começa a contar a história que já dura 22 anos. Atualmente, a cooperativa conta com 25 sócias que dividem tarefas entre serigrafia, confecção, bordado, produção, vendas e administração. Nelsa conta que o início foi complicado, pois o número de sócias no ano que os trabalhos começaram era de 35. O primeiro serviço em grande quantidade que pegaram foi uma encomenda de 105 blusões de moletom, cobrando R$1 cada peça. PRIMEIRA IMPRESSÃO 15


“Na hora de dividir o dinheiro, nossa vontade era de chorar e desistir”. O sentimento para a criação da cooperativa era que fosse algo libertador. A busca por um trabalho que não fosse escravo (como era dentro de fábricas), fez a equipe repensar. Nelsa diz que naquele momento o sentimento era de que a caminhada foi em vão e que estavam os escravizando ainda mais. Com um olhar de mágoa, conclui: “Foi muito desanimador”. Alguns sócios desistiram da parceria. Mesmo sendo uma recordação nada boa, ela levanta o olhar e volta a sorrir. “Mas o que realmente marca positivamente nossa caminhada foi nossa primeira encomenda bem paga”. Ela conta que foi uma remessa de 500 camisetas feitas para o Sindicato dos Metalúrgicos. Precisaram comprar os materiais para a confecção com cheque pré-datado e a serigrafia ainda era terceirizada. Além de ser uma grande encomenda, conseguiram extrair lucro para dividirem. A emoção de dividir o valor recebido e compartilhar do sentimento de esperança foi um momento maravilhoso. Deu força para que elas não desistissem. Em 2002, a Univens ainda não tinha sede própria. Ocupava um galpão no bairro Sarandi, Zona Norte de Porto Alegre. Em 2005, a cooperativa conquistou um espaço fixo através do Fórum Social. “Ter um local que não é temporário, que é do seu empreendimento, é como ter a casa própria”, diz a presidente. Atualmente, o espaço conta com depósito, área de confecção, costura, bordado, serigrafia e uma cozinha para as funcionárias. Como o lema da Univens é Economia Solidária, após a conquista da sede, conseguiram uma parceria com a Cooperativa Central Justa Trama que é uma cadeia produtiva de algodão agroecológico e vai até comercialização de peças de confecção produzidas com este insumo. A parceria resultou em crescimento e reconhecimento para a Univens, que atualmente fidelizou aproximadamente 250 clientes e produz em média de oito a 10 mil peças por mês. “Nossa produção é feita do início ao fim. É muito raro fazermos algo que já chegou cortado, por exemplo”, relata Nelsa. Devido ao árduo esforço e persistência das mulheres uniformizadas de aventais azuis, elas conseguiram reduzir 30 minutos diários da jornada de trabalho. Para elas, o foco está em reduzir ainda mais o expediente mantendo a qualidade e aumentando as rendas, que atualmente já tem um valor único e fixo.

Unidas Venceremos

Quem pensa que o nome da cooperativa faz sentido apenas para cumprir o objetivo profissional e econômico, se engana. Escutar as histórias de cada uma das mulheres e saber como a união serve de suporte entre elas, entende que vai muito além do profissional. Rosilene Rodrigues Ramos, 53, perdeu o marido há dez anos. “Ser costureira é de sangue”, diz Rosilene enquanto arruma os óculos e puxa as mangas da blusa. Para ela, a cooperativa surgiu em um momento difícil. Ela trabalhava no Hospital Conceição, costurando jalecos descartáveis e precisou largar o emprego para cuidar do marido doente. Ter a oportunidade de trabalhar perto de casa facilitava os cuidados com o esposo. “Eu considero a Univens minha família. Sempre que precisamos de apoio, temos. São minhas companhias desde que fiquei viúva.” 16 PRIMEIRA IMPRESSÃO

Para Vera Lúcia Filereno, 61, não foi diferente. O apoio entre as mulheres é fundamental na rotina. Ela já havia trabalhado na Creche Nova Geração, também fundada pelas sócias da cooperativa em 2006. Precisou parar de trabalhar para cuidar da mãe que sofria de Alzheimer. A mãe de Vera faleceu aos 83 anos. Com dificuldade de vencer o luto recebeu o convite da Nelsa para retornar para a Univens. Segundo ela, aceitou o convite como forma de ocupar seu tempo e foi acolhida de braços abertos. “A cooperativa é uma forma de segurança tanto econômica quanto afetiva aqui. As pessoas foram melhorando sua vida. Hoje dirigem, tem carro, melhorou a casa”, complementa a presidente.

Solidariedade para crianças

Um ano após a conquista da sede, a Univens abriu o espaço de ensino infantil Nova Geração, também localizada no bairro Sarandi. No momento, a creche atende 56 crianças da comunidade. Em convênio com a prefeitura, conseguiu a contratação de nove educadoras. Além disso, os pais ajudam como podem para manter a instituição.

Banco Solidário

A economia solidária vai além do trabalho realizado dentro do ambiente de serviço. Com orgulho nos

A rotina de 25 mulheres é em meio aos tecidos, linhas e tintas


EDIÇÃO 16 A reportagem foi inspirada em uma matéria realizada em 2001 para a 16ª edição da PI, feita pela repórter Sara Feitosa. A matéria construída por Sara é interessante por trazer histórias de pessoas com os mesmos objetivos e dedicação. Em busca de melhoria na renda e autonomia profissional, os sócios da Cooperativa Unidas Venceremos se aproximaram e deram início a uma linda trajetória de conquistas e solidariedade. O texto conta quais os desafios enfrentados durante a construção da Univens.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Procurando uma reportagem para reviver na edição 16ª, de 2001, encontrei a história Cooperativa Unidas Venceremos, na época, com poucos anos de experiência na área de confecção têxtil, fundada em 1996. Fui conhecer a Univens sem ter ideia de como funciona uma cooperativa. Criei algumas cenas na minha cabeça, mas não chegaram nem perto. Conheci um lugar repleto de simplicidade e muito trabalho. A presidente da cooperativa, Nelsa Fabian, demonstrou pontualidade. Cumpriu o horário agendado da nossa entrevista, marcada para às 9h30. De forma tímida, respondeu tudo prontamente, nos mínimos detalhes. A timidez da Vera e as poucas palavras de Rosilene nos aproximaram e permitiram uma conversa mais demorada para extrair as respostas necessárias. Poder conhecer a trajetória de um lugar que guardas histórias de superação, conquistas e união é gratificante. Trazer um pouco mais sobre a Univens nessa 50ª edição é inexplicável. Trabalhar em uma matéria como essa é mergulhar em um universo de solidariedade e a amor ao próximo.

olhos, Nelsa relata a importância da moeda criada pelas mulheres, chamada de “moeda justo”. Cada justo equivale a um real. Forma prática e de fácil controle para ajudar na economia local.

Especialização

A mão de obra é dividida na cooperativa. Cada setor tem sua equipe devidamente unida, profissional e preparada. Antes de alguém iniciar o trabalho, são necessários cursos de qualificações paras as atribuições. Além das confecções e serigrafias, as mulheres produzem malhas com tear no espaço da Justa Trama, ao lado da sede, que está em reforma para futuramente promover cursos de especialização para as mulheres.

Experiências que ficaram

Quando a repórter Sara Feitosa realizou a entrevista para a edição 16ª em 2001, já contava sobre a determinação e solidariedade da Univens. Naquela época, além da confecção, era produzido um suplemento alimentício, feito das folhas de mandioca, casca de ovo, pó de sementes de abóbora, farelo de arroz e milho, que ajudava na alimentação das crianças carentes da comunidade. Através desse farelo, iniciaram a produção de bolachas. Logo após, os cursos voltados à área de

panificadora foram surgindo, dando a oportunidade de ampliar as opções de produção. Pães, cucas, bolos e salgados também eram produzidos. Parte dos lanches era fornecida para o Sindicato do Metalúrgicos. As receitas foram servidas no café da manhã para o Governador do Estado do Rio Grande do Sul na época. “O motivo para o projeto não ter continuidade foi a incompatibilidade jurídica. O ICMS para a Confecção era um e para a alimentação era outro”, explica Nelsa. Além disso, para que a produção panificadora continuasse, havia um problema de estrutura. Era necessário que o local tivesse áreas separadas para a produção, totalmente azulejada, área para o estoque e outras exigências que não poderiam ser cumpridas. A presidente explica que mesmo com a conquista da sede, não seria possível manter a parte de alimentação. Então, optaram por permanecer apenas na área têxtil. Os 22 anos de Univens servem para inspirar. Por determinação e união, a cooperativa se fortalece cada vez mais, ganhando espaço na área de confecção e praticando a economia solidária da comunidade do bairro Sarandi. Os dias dessas mulheres ganham cores ao entrar na sede. Não importa o quão frio e cinza esteja o dia, lá dentro tem vida e calor humano. PRIMEIRA IMPRESSÃO 17


CAIO RESENDE

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SONHOS DE INFÂNCIA Imaginar como será o futuro é importante no desenvolvimento da identidade da criança TEXTO DE GABRIEL NUNES FOTOS DE FELIPE DA SILVA E CAIO RESENDE

E

m um terreno onde há três casas, duas ocupadas e uma vazia, no bairro Vila Mentz, em Novo Hamburgo, mora uma menina que, apesar de ter apenas 1 metro e 25 centímetros, sonha em voar alto. Quase encostada na parede de casa, há uma jabuticabeira em flor, à espera da primavera para dar os primeiros frutos. Pendurada nesta árvore, também há uma lira artesanal feita pelos pais da menina. É nela que Maria Clara Ludwig Muller, nove anos, mais conhecida como Clarinha, treina para realizar o sonho de ser uma bailarina de dança aérea. Sonhar é uma parte importante da infância, afinal quem de nós nunca imaginou ser artista, bombeiro, jogador de futebol, professor ou até, com a difusão da internet, um youtuber? É fundamental para a criança projetar como será seu futuro, ajudando no desenvolvimento dela e na construção de sua autoimagem. Clarinha é apenas um dos exemplos que vamos ver nessa viagem pelos sonhos de infância. Histórias de crianças simples que sonham longe e que almejam conquistar aquilo que querem, apesar das inúmeras

dúvidas e descobrimentos que a infância proporciona. Siga com a gente nessa viagem incrível chamada vida.

Maria Clara, a bailarina

Ao lado da mãe, inicialmente hesitante, Clarinha começa a falar sobre sonhos: “Já pensei em ser youtuber, veterinária, mas agora serei bailarina de dança aérea”. Para ela não há dúvidas, pois tem certeza que vai conseguir realizar seu desejo. A paixão pela profissão começou há cerca de um ano, quando ela fez uma aula experimental. Gostou tanto do estilo circense que começou a pesquisar mais sobre o assunto e também a participar frequentemente das aulas, em uma academia próxima de casa. Mexendo no celular, ela mostra orgulhosamente o vídeo de sua primeira apresentação, que fez em novembro do ano passado, em Campo Bom. Mais desenvolta agora, ela explica a mistura de sentimentos: “Antes da apresentação eu estava muito nervosa, mas depois me senti muito bem, porque todo mundo tava me aplaudindo e gostando”. Para ela, a apresentação foi apenas o início. Ela tem a ambição de participar do Grupo Tholl, uma trupe circense

de Pelotas. Clarinha assistiu a uma apresentação deles quando o grupo esteve em Novo Hamburgo, durante as festividades do Natal dos Sinos, o que serviu para motivá-la ainda mais. Inclusive, ela conta que o antigo professor de dança hoje participa do grupo pelotense, servindo como exemplo para ela continuar seguindo seus sonhos. Daiane Rosa da Silva, professora de dança da Clarinha, explica que a menina precisa de mais aulas de dança, como ballet contemporâneo e jazz, para conseguir evoluir mais. “Quanto mais aulas e companhias de dança importantes e vistas ela fizer parte, maior serão as chances dela se tornar uma bailarina profissional”, explica Daiane, que atua há 10 anos. Além disso, também é necessário muito investimento na carreira. Mas, para a professora, a saída é saber buscar e correr atrás das oportunidades. Para Débora Elena Turowczuk, formada em Pedagogia e com pós-graduação em neuroeducação e psicopedagogia, é importante que as crianças tenham um modelo a seguir para realizar os sonhos. Exemplo a seguir é o que não falta para o jovem Cristiano Ronaldo dos Santos de Lara, que asPRIMEIRA IMPRESSÃO 19


FOTOS DE FELIPE DA SILVA

sim como o xará português, sonha em ser jogador de futebol.

Cristiano Ronaldo, o jogador

Com toda a sabedoria dos 8 anos, Cristiano Ronaldo, que mora no bairro Kephas em Novo Hamburgo, conta o que quer para o futuro: “Eu quero ser jogador de futebol ou de games”. Para ele, realizar essas duas atividades como profissão seria o ideal. Para seguir na carreira futebolística, a família o inscreveu na escolinha de futebol do Grêmio, em Campo Bom. Há dois meses participando dos treinos todos os sábados, ele dá os primeiros passos no mundo do esporte, calçando as chuteiras e indo para o campo. Além de serem xarás, os dois Cristianos Ronaldos “começaram” suas carreiras nessa idade. Porém, o Cristiano tupiniquim gosta de jogar no meio-campo, ao contrário do atacante melhor do mundo. O menino tem mais um desejo, relacionado a outra atividade favorita: o videogame. Um sonho difícil anos atrás, mas que parece ser cada vez mais possível com o passar dos anos. Na verdade, a última década transformou o que era tradicionalmente uma brincadeira de criança em um cenário esportivo com crescimento exponencial. Os e-sports, como são chamados os jogos virtuais, anualmente movimentam cerca de R$ 1 bilhão apenas no Brasil. Clubes conhecidos a nível nacional e internacional, como Flamengo e Paris Saint-Germain, respectivamente, estão aderindo à tendência. Uma esperança para o jovem Cristiano, que alterna seu tempo livre entre o futebol real e o virtual. A pedagoga Débora explica que ao longo dos anos, ser futebolista é o sonho mais frequente entre os meninos que estão em idade escolar. Mas também acredita que os desejos de profissão na infância mudam ao longo dos anos. “Hoje em dia, algumas crianças de 10 e 11 anos têm muito o desejo de ser youtuber, ou de seguir alguma profissão que envolva tecnologias que não eram tão difundidas há 10 anos, como a internet, por exemplo”. Ela também salienta que as crianças desejam menos serem professores ou educadores. 20 PRIMEIRA IMPRESSÃO

Clarinha treina novas acrobacias diariamente na lira artesanal feita em casa

Cristiano participa da escolinha do Grêmio em Campo Bom, e joga na posição de atacante

Apesar disso, há exceções. Como é o caso de Alexandra Yasmin Dorneles Machado, que quer ser professora quando crescer.

Alexandra,a professora

Assim como Maria Clara, Alexandra demonstra enorme vergonha ao falar sobre seus sonhos. “Mãe, fica comigo enquanto sou entrevistada”, diz. Sentada no sofá com os braços cruzados, ela vai lentamente falando mais sobre sua profissão favorita: “Eu quero ser professora, porque elas prestam atenção e cuidam da gente”. A menina de 8 anos já sabe que para ser educadora precisa: “estudar muito, ler bastante e fazer faculdade depois que terminar a escola”. Alexandra está no 3° ano do

Ensino Fundamental, na Escola Municipal Rodrigues Alves. Seu maior exemplo é a diretora da escola, Elidiane Etter. A profe Lidi, como é conhecida, conta que desde pequena também sonhava em ser professora. Para ela, “é importante estudar muito, ir atrás dos objetivos e não desistir, mesmo que em alguns momentos fique difícil persistir”. Formada em Educação Física pela Unisinos, Elidiane é diretora da Rodrigues Alves desde 2015. Mas não é só Alexandra que tem o sonho de educar. Ismael Friedrich Menezes, colega de Maria Clara, a futura bailarina aérea, também quer ser professor, mas é específico na disciplina: quer ensinar inglês.


Ismael pensa em ser professor de inglês ou arquiteto, tarefas que necessitam de muito estudo e dedicação

nária do Núcleo de Apoio Pedagógico (NAP) de Novo Hamburgo, acredita que a fantasia da infância constitui a personalidade dela. “Mesmo em uma brincadeira, que com o tempo vai se tornando mais séria, a criança precisa sonhar, ter planos e objetivos”, explica. Pode ser que Clarinha não se torne uma bailarina, Cristiano não siga carreira no futebol ou, quem sabe, Alexandra mude o objetivo de seus sonhos. Porém, eles sempre poderão lembrar da magia da infância, quando podem ser piratas, astronautas ou qualquer outra profissão apenas usando o seu bem mais valioso: a imaginação.

EDIÇÃO 19

Devido ao cuidado e atenção que tem das professoras, Alexandra sonha em educar

Ismael, o professor de inglês

Ismael, de 9 anos, acredita que para ser professor de inglês é importante estudar, decorar as matérias e também viajar para outro país. Ele conta que quando crescer quer ir morar no Canadá, “pois lá eles falam inglês”. No tempo livre, gosta de jogar videogame e também de brincar com Lego, o clássico jogo de montar e encaixar. Enquanto constrói minicidades, ele conta timidamente que se não for professor, quer ser arquiteto ou engenheiro. “Eu gosto de montar cidades, tanto de lego quanto no Minecraft (jogo de videogame)”, conta. Para Édina Patrícia de Vargas, professora de inglês da Escola Kurt Walzer, é importante que

Ismael faça uma graduação na língua inglesa, mas ressalta que apenas isso não é o suficiente. “Também vai ter que ter muitas noções dos aspectos linguísticos e ter fluência”, explica. Ela concorda que é importante viajar para países que falem a língua inglesa para ter mais contato com o idioma que pretende aprender.

Continuar sonhando

Sonhar faz parte da vivência humana, tanto na infância como na vida adulta. A principal diferença é que com o tempo acabamos deixando de lado os sonhos mais impossíveis — na verdade, não deveriam ser considerados assim, porque fazem parte da magia de ser criança. Carmen Angelita Badeck dos Santos, funcio-

Publicada na edição 19 da revista Primeira Impressão, a reportagem “Nos trilhos do sonho”, com texto de Cybeli Moraes e Fernanda Cruz, traz a história de quatro crianças que contam seus sonhos, assim como a realização de três adultos que alcançaram o que almejavam na infância. Além disso, as repórteres buscaram a opinião de pesquisadores e profissionais da psicologia e pedagogia para explicarem melhor a importância de sonhar durante a infância.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Ao começar a apuração da minha reportagem, tive dificuldades para contatar algumas das fontes. A ideia inicial da minha pauta era resgatar a história das quatro crianças, hoje adultas, da matéria original, lá em 2003. Como consegui contatar apenas uma das fontes, resolvi, então, alterar minha pauta para a atualidade. Assim, conversei com quatro crianças de 8 a 9 anos, para saber o que elas desejam ser quando crescerem. Também conversei com pedagogos e psicólogos para entender como os sonhos mudaram ao longo dos anos, ainda mais com as novas tecnologias disponíveis cada vez mais cedo para as crianças. Após trocar a pauta, o processo de apuração ficou mais fácil. A principal dificuldade foi fazer com que as crianças quisessem me contar seus sonhos e ambições, pois todas foram muito tímidas. Inicialmente, os pais falavam mais do que elas. Mas conversando, às vezes sobre assuntos triviais, como videogames, consegui fazer com que me falassem seus desejos para o futuro.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 21


UMA FAMÍLIA ATRÁS DO PICADEIRO Dedicação, coragem, talento e força são palavras que descrevem os artistas que dedicam a vida ao circo TEXTO DE CAROLINE TENTARDINI FOTO DE SUELLEN SANTANA

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D

esafiando a gravidade, o corpo é cheio de força e a mente ágil para completar todas as acrobacias. Não só a artista, mas o cenário está em constante movimento. Apesar da caracterização, é possível identificá-la pelos longos cabelos loiros esvoaçantes durante piruetas nas argolas suspensas a metros de altura do palco. Michelle Aparecida Robattini Venegas, hoje com 31 anos, deu a primeira entrevista para a revista Primeira Impressão no ano de 2005. Ela nasceu na cidade de Mauá, em São Paulo. Hoje em dia, vive com o marido e os três filhos em Las Vegas, nos Estados Unidos. É a quinta geração por parte do pai e a sexta pela da mãe a atuar no mundo circense. Os filhos dela são a sétima geração da família. A artista fala com orgulho sobre ter seguido na vida de circo, mesmo que na adolescência ela tivesse dúvidas. Para ela, é uma honra levar adiante a arte circense, assim como seus pais fizeram. O circo é levado no sangue, a vontade de viver disso já nasceu com ela. “Eu continuo levando a tradição da nossa família, e os meus filhos agora vão dar continuidade. O circo é e sempre

será a nossa vida, o nosso mundo. É o que a gente mais gosta de fazer”, afirma. Na primeira entrevista da revista feita com Michelle, durante uma passagem de um circo por São Leopoldo, ela ainda morava e trabalhava com os pais, Michel Venegas e Lilian Robattini Venegas, e os irmãos mais novos Michel Venegas Filho e Melissa Aparecida Robattini Venegas. Em 2006, a família foi morar na Argentina para trabalhar no maior circo do país na época, chamado Circo Rodas. Foi onde ela conheceu o marido, Junior Espinoza, 29 anos. Eles começaram a namorar, noivaram, casaram e tiveram os primeiros filhos, Maria e Enzo, durante o período de cinco anos na qual estiveram vivendo na Argentina. De lá, Michelle e a família foram para o Chile. Fizeram

Michelle e a família com os colegas do espetáculo KÀ ARQUIVO PESSOAL

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FOTOS DE ARQUIVO PESSOAL

toda a temporada de inverno em um dos maiores circos do país, por quatro meses. Depois, voltaram para o Brasil e regressaram para a Argentina, onde moraram até 2011, quando ela e o marido receberam uma proposta para trabalhar no Cirque du Soleil no Japão. “Foi uma emoção indescritível, porque é o sonho que todas as pessoas que trabalham, vivem do circo e tem a companhia como modelo. Foi o melhor que poderia nos acontecer naquele momento”, conta a circense muito emocionada, relembrando o dia. No Japão, a família circense fez durante um ano um tour com o espetáculo chamado Kooza, uma homenagem a circos tradicionais, trazendo palhaços, acrobacias e a inocência dos circos antigos. Em 2012, foram transferidos para Nova York, onde ficaram três meses com o espetáculo Zarcana no maior teatro dos Estados Unidos, chamado Radio City Music Hall. 24 PRIMEIRA IMPRESSÃO

O espetáculo

Desafios, inimigos, lutas e combates que acabam se tornando incríveis acrobacias, os personagens caracterizados como guerreiros e animais fazem movimentos precisos. Em instantes, a terra vira céu e as batalhas começam a ser entre seres de outros planetas. Os diversos palcos ficam suspensos e giram 360 graus, sobem e descem conforme a apresentação vai se modificando, a música auxilia em toda a ambientação do show trazendo mais emoção e intensidade. Desde 2012, quando a família foi morar permanentemente em Las Vegas, Michelle e o marido fazem parte do espetáculo KÀ by Cirque du Soleil, no Casino MGM Gran Las Vegas. No espetáculo, ela faz o número do arco aéreo, enquanto Júnior apresenta a roda da morte.

Rotina: treinos

Muito diferente da vida de circo que Michelle tinha no Brasil, onde os destinos eram sem-

Família Robattini na Disney, nas férias do circo

pre incertos, estudava em diversas escolas por ano e sempre tinha que manter as amizades através das redes sociais. A estadia na cidade dependia de como o público se relacionava com o circo, se estavam frequentando e qual era a lotação. Atualmente, ela trabalha no que chamam de show residente, há sete anos em Las Vegas. “Eu e meu esposo realizamos dois shows diários, durante cinco dias de semana, de sábado a quarta feira, das 18h até as 23h, e descansamos por dois dias,” informa Michelle que se mostra sempre muito religiosa, agradecendo a Deus sempre. “Hoje em dia eu sou cristã, tenho uma fé inabalável, então procuro agradecer muito a Deus. E antes de entrar no palco eu tenho o costume de sempre orar para que ele nos proteja e nos abençoe a mim e minha família. ” A artista comenta que agora consegue ter uma rotina estabilizada, pois recebe a agenda informando todos os shows em que vai participar durante o ano


inteiro. “Com isso fica muito melhor, pois como hoje em dia eu tenho minha casa e filhos, consigo manter uma rotina. Além de conseguirmos programar as férias, na última, fomos curtir com as crianças na Califórnia,” declara Michelle, que ainda tinha mais uma semana de descanso, antes de começar a temporada de apresentações. Os três filhos, Melany Robattini de oito anos, Enzo Robattini de nove anos e Maria Eduarda Robatini, 12 anos, também já praticam a arte circense. A mais velha, Melany, treina para o mesmo ato da mãe no arco aéreo, além de ser ginasta olímpica, assim como a irmã mais nova. “Meu filho Enzo aos oito anos foi considerado o menor pendulista da história do circo a começar a praticar,” conta a artista orgulhosa, enquanto mostra um vídeo do filho praticando. Nele, o pêndulo é uma espécie de gangorra com círculos nas duas pontas onde os artistas caminham para que ele gire. O pequeno Enzo, pratica com muita concentração e segurança, enquanto isso o pai fica de olho e passa todos os conhecimentos sobre o equipamento. A rotina de treinos de toda a família é bem intensa, mas segundo Michelle é o que eles mais gostam de fazer. Ela e o esposo, além das apresentações, treinam todas as quartas-feiras e sábados, das 13h até as 16h. A rotina das crianças durante a semana é ir para a escola das 8h às 14h, ficam um tempo em casa para descansar e lanchar, às 16h eles vão para a ginástica olímpica, onde fazem quatro horas de treino todos os dias da semana.

conta a artista, completando que também como profissional amadureceu bastante, hoje ela se diz muito mais focada no que faz, com muita garra, dando 100% de si. Mas que ainda sente o mesmo frio na barriga, a mesma emoção e adrenalina antes de cada apresentação. Mas o que não mudou da Michele de 2005 para a de hoje são os sonhos. Assim é a trapezista que sonha em treinar para ser cada vez melhor e também lutar para que seus filhos consigam chegar aonde eles sonham, tanto na vida no circo, como fora dela também. “Cada vez eu entro em um show é para dar o meu melhor. Pois onde eu cheguei é o ápice da vida circense,” finaliza Michelle.

A artista

Quando recebi a missão de achar entre 49 edições da revista Primeira Impressão uma reportagem que teria que ser refeita, a princípio achei que seria fácil. Porém, diante de tanta variedade, eu teria que ter um critério de escolha. Então decidi por narrativas de pessoas que tivessem muitos planos e sonhos. Com isso, optei pela história de Michelle, e decidi por ela, para recontar. Apesar das dificuldades de comunicação por conta da distância e fuso horário, o papo com ela sempre fluía muito bem. O que mais me surpreendeu foi o amor que com que ela fala da profissão, da sua trajetória dentro do circo e de seus filhos estarem seguindo o mesmo caminho, além da mudança na vida da personagem em um período de 13 anos. Durante as várias oportunidade que tive de conversas com Michelle, pude compreender que com muito esforço e dedicação, os sonhos se tornam sim realidade.”

Quando questionada sobre o que mudou na Michelle de 18 anos, da primeira entrevista, para a atual, ela responde sorrindo “ah mudou muita coisa.” Ela comenta que no decorrer da vida ela foi mudando muito tanto de gostos e pensamentos, e como pessoa. “Eu segui algumas direções diferentes das que achei que iria tomar quando era mais jovem para as que tomei já quando me tornei adulta. Aquela época eu ainda era uma adolescente, hoje já sou uma mulher, mãe de três filhos e esposa”,

EDIÇÃO 24 A reportagem escolhida como referência conta a história de Michelle Aparecida Robattini Venegas, na época com 18 anos. Ela é da quinta geração de uma família de trapezistas que percorriam todo o país com o circo. Na reportagem publicada na edição 24, de 2005, ela contou sobre a vida nômade, relacionamentos e planos para o futuro. Também falou sobre a rotina dura de atleta, com horas diárias de treinos e dos riscos. Porém, tem sempre ajuda, incentivo e companhia da família em todos os momentos.

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NATUREZA CRUA 26 PRIMEIRA IMPRESSÃO


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Respeito ao próximo é a máxima na Colina do Sol, em Taquara, maior vila naturista da América Latina TEXTO DE VITORYA PAULO FOTOS DE KELLEN DALBOSCO

erto das 15h de um feriado ensolarado de 7 de setembro, o burburinho começa a rolar entre um aperto de mão e outro: “vamos jogar vôlei?”, “vamos jogar daqui a pouco?”. O homem de cabelo preso estilo samurai e canga colorida enrolada na cintura responde sempre sorrindo: “Claro, claro! Mais tarde tô na quadra!”. Parecido com Tarzan, ele caminha facilmente entre as árvores enquanto conta que, antigamente, havia um sino que ecoava anunciando o início dos jogos. “Hoje, todo mundo tem WhatsApp, então fica mais fácil”, explica. Seu nome é Zumbi. Não é dos Palmares, mas, sim, Steffens. E nem é o rei da floresta, como o personagem consagrado pela Disney. Mesmo assim, ali, todos parecem conhecê-lo. O jogo começa sem Zumbi. Antes de entrar na quadra de areia, é necessário que se faça um pequeno ritual: qualquer peça de roupa é deixada no lado de fora. Essa é uma das áreas de convívio social da Colina do Sol, a maior vila naturista da América Latina, e, por isso, a nudez é obrigatória. Além da quadra, a pousada, a praia artificial, a piscina de pedra e a térmica são os lugares onde, dentro dos 55 hectares da comunidade residencial, situada no topo de um morro em Taquara (RS), cangas, biquínis ou sungas não têm vez. A regra não se aplica quando os invernos rigorosos chegam. A lógica naturista é a de usar a roupa para se proteger de algum fator externo, como frio, insetos e machucados, ou para o convívio urbano. Fora dessas condições, o ato de cobrir o próprio corpo perde sentido. “Porém, se quiser tomar banho de piscina com traje de banho aqui, não tem problema”. Zumbi se refere aos três hectares que ele e Nicole Deppe, sua esposa, adquiriram dentro da Colina. Dono do hotel e do restaurante, o casal optou por não tornar obrigatória a nudez no local. “Se for na piscina do clube, não dá. Traje de banho é ‘pito’ na certa!”, explica Nicole. Mas os alertas dão uma trégua quando as mulheres estão menstruadas. O uso da canga, objeto quase obrigatório para os naturistas, é permitido nesses dias. “Eu ficava menstruada 24 horas por dia, 30 dias por mês”, brinca Nicole, ao lembrar da dificuldade de tirar a roupa nos primeiros meses na Colina, quando Zumbi finalmente conseguiu levá-la para lá. A tolerância à fisiologia natural também se aplica ao gênero masculino em momentos de ereção repentina. O ideal, expliDonos do hotel e cam, é que se esconda a parte íntima do restaurante, de forma discreta até passar. “Mas Nicole e Zumbi tem aqueles velhinhos que nunca criaram a ficam [eretos], e resolvem ficar. E comunidade Ubuntu dentro ainda fazem assim!”. Zumbi joga o da Colina quadril pra frente, como se alongasse a lombar, coloca as mãos na cintura e olha fixamente para o horizonte. “Sabe?!”. Essas atitudes são consideradas exibicionistas. Sejam feitas por homens, mulheres, novos ou velhos, performances desse cunho são condenadas em qualquer uma das 29 áreas naturistas regulamentadas no Brasil, que estão espalhadas em nove estados. As faltas graves ou comportamentos inadequados estão previstos no código de ética da Federação Brasileira de Naturismo (FBrN), redigido em 1996. A entidade é a representatividade máxima da prática em território nacional, fundada em 1988 por Celso Rossi. AtualPRIMEIRA IMPRESSÃO 27


mente, ele mora na Colina ao lado da esposa, Fabiane Bernd.

Colina à vista

O precursor do naturismo no Brasil tem 58 anos, não gosta de ser chamado de “senhor” e mora em uma casa de madeira simples, impecavelmente decorada com quadros, fotografias, pinturas, móveis com estilo antigo e estampas florais. O imóvel é grande se comparado ao padrão das outras casas e cabanas, que ficam espalhadas nos cinco quilômetros de ruas que delimitam e desenham o interior da Colina. Porém, nem sempre houve esse “luxo”. Em 1986, quando fundou a Associação Amigos da Praia do Pinho, primeira praia a ser considerada naturista no país, Celso morava numa barraca. Por escolha própria, fez sua morada escondida entre as árvores e fincada na areia durante cinco anos - um desses, sem energia. Foi ali, em um escritório improvisado com mesa de bambu e máquina de escrever, que ele teve as primeiras ideias para a regulamentação da prática. Também foi nessa época que viu nascer, além da associação,

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seus dois filhos: Gabriel e Valentina. Hoje, eles moram na Nova Zelândia. O espírito livre dos rebentos é parte da herança do pai. Foi um anúncio estampado na folha de um dos maiores jornais do Rio Grande do Sul que deu início à construção do sonho. Depois de garimpar muitas ofertas de terrenos para iniciar a vila naturista que imaginava, Celso achou o local que julgava perfeito: era uma plantação de eucaliptos situada no topo de um morro. A dimensão e as características do terreno à venda davam a privacidade necessária para que a Colina do Sol fosse criada. Com um empréstimo e a ajuda do pai, Celso adquiriu a área em Taquara. “Aliás, comprei no dia do meu aniversário, em 1º de agosto”. Foi o presente de aniversário daquele ano.

Naturismo em família

Os trabalhos de formação da Colina começaram a se desenvolver. E havia muito a ser feito: escavações para a praia artificial, corte de algumas árvores para a construção de casas, abertura e marcação de ruas. Uma das pessoas que

acompanhou de perto esse início da história da comunidade foi Etacir Manske, ou só “Eta”, que há 22 anos vive na Colina do Sol e é um dos moradores mais antigos do local. Desde aquele tempo, ele tem a concessão da loja de souvenirs da vila, além de desempenhar trabalhos de construção e manutenção. De 15 anos para cá, a vida dele é compartilhada com a esposa, Verônica Domingos. Na época da edição 26 da revista Primeira Impressão, em 2006, ela estava grávida de Kauê, que nasceu e cresceu na vila naturista. O menino alto e magro, de cabelo encaracolado, chega correndo na casa, pega a bicicleta, dá uma volta, larga e continua a correr ao lado de outros amigos que também moram na comunidade. Tudo com muito barulho, muito sorriso e muita liberdade. Toda essa liberdade é “fácil de se acostumar”, afirma Verônica. Mesmo que seja uma das mães mais “cricris”, como se autoentitula, ela sabe que pode confiar nos moradores da Colina. “O que eles têm aqui, não tem em lugar nenhum”. Instantes depois de concluir a frase, Verônica interrompe e pede pausadamente ao filho: “Sem telefone. Vão brincar!”. Nem os 55 hectares da Colina do Sol freiam o apreço dos pequenos aos jogos de celular. Atualmente, Kauê tem bolsa integral de estudos numa escola da rede privada de Taquara. Os professores sabem que a família é naturista, mas os colegas, não. Mesmo que soubessem, Eta acredita que não haveria problemas. Verônica se preocupa, e ganha o apelido de “galinha choca”. Ela se defende: “é que o pai tem outros tipos de preocupação”. Mas Eta afirma que o pequeno é tranquilo. É um reflexo do próprio pai, que fala de jeito manso, baixo


EDIÇÃO 26 Em 2006, o estudante Giulliano Alves Pacheco afirmou que “se Adão e Eva estivessem entre nós, com certeza viveriam em um local chamado Colina do Sol”. A reportagem “Ao Natural”, veiculada na edição 26 da PI, descreve a vila exatamente como ela está hoje: tranquila, verde e amável. Com 10 anos de existência na época, a Colina teve a calmaria descrita pelo repórter com maestria, que desenhou o paraíso dos naturistas com detalhes. A filosofia da prática naturista foi deixada em segundo plano. É exatamente esse pedacinho que a reportagem que você vai ler nesta edição 50 tenta resgatar. e quase sempre no mesmo tom. “O principal [do naturismo] é o convívio com a natureza, o respeito ao próximo e com o próprio corpo”. Para Eta, esse estilo de vida, de aceitação ao outro e a si mesmo, pode e deve congregar todas as idades. “Se a criança não pode estar presente, então perdeu o sentido”, destaca. Na Colina do Sol, a regra é clara: você pode fazer tudo o que faria na frente do seu próprio filho.

Ubuntu cresce

Eta e sua família moram em uma das 100 cabanas espalhadas pela Colina do Sol. Essa é uma das opções que os visitantes possuem para se hospedar na vila. Existe, também, o hotel, que conta com oito quartos disponíveis, a pousada, com banheiros compartilhados, e o camping, que pode abrigar um sem número de barracas. Para aqueles que desejam ter um pedaço da Colina para chamar de seu, Zumbi e Nicole estão iniciando uma nova comunidade dentro dos três hectares que adquiriram. Com o nome de Ubuntu, que de acordo com Zumbi significa “não posso ser feliz se as pessoas à minha volta não são felizes”, o novo condomínio tem pequenos terrenos à venda para os sócios patrimoniais do clube da Colina. Ao falar da ansiedade em construir sua casa no terreno que acabou de adquirir, os olhos cor de oceano de Taline Schneider brilham. “Vou até colocar uma plaquinha na entrada: Cuidado! Sujeito à nudez!”. A jornalista conheceu a Colina na festa da virada de 2017 para 2018. Visitou

Etacir e Verônica moram há mais de uma década na Colina e criam o pequeno Kauê

a comunidade cinco vezes, mas já tem a certeza de que lá é o seu lugar. “Sabe aquela coisa: ‘quero me aposentar e morar na praia’? Não. Eu quero morar aqui”. Vestindo uma canga colorida transformada em vestido, ela começa a contar que o naturismo entrou na sua vida quando visitou a praia de Tambaba, na Paraíba. O desconforto em ficar nua em público durou… cinco segundos. “Aquele ventinho que eu senti lá… Pegou vento onde nunca pegou, né?”. Quando a brisa passou, Taline já tinha se despido das roupas, da vergonha e do pudor. Como é demissexual (aqueles que só sentem atração sexual por pessoas com quem já tenham algum envolvimento emocional), ela conta que o corpo nu não é e nunca foi sexualizado na sua mente. Ver pessoas nuas na sua frente, então, não foi um problema. “A roupa é só uma simbologia. Quando tu chega ao ponto de tirá-la, tu já se despiu de um monte de preconceitos”. Enquanto Taline fala, sentada em frente à quadra de vôlei, onde o jogo acontece a todo o vapor, uma moça com a canga no quadril em formato de minissaia chega e grita: “va-

mos fazer um time misto aí! Só tem homem jogando!”. O protesto não tem contestação. Ela caminha para o lado em desfalque no número de jogadores, se posiciona e a bola é lançada. Assim se desenrolam os jogos amadores na Colina do Sol: sem aparentes preconceitos de estética, de gênero, de cor ou de credo. O feriado na vila naturista serve para lembrar que, em todos os dias do ano, os moradores e visitantes podem desfrutar da independência dos seus próprios corpos. Como se fosse análogo, o naturismo se torna uma emancipação do próprio ser.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Sair da zona de conforto é a obrigação de qualquer repórter. É a incomodação da pauta que nos move. É a dúvida que nos instiga. Saber como viviam os naturistas (além do já esperado: pelados) foi o que me deu coragem para passar uma noite na Colina do Sol. Muito solícitos, Zumbi e Nicole cederam um quarto do hotel para mim e me deixaram completamente à vontade. Ninguém me obrigou a tirar a roupa, é verdade. Porém, apenas a ideia de que poderiam pedir para que eu me despisse (afinal, eu seria a “intrusa” no ambiente e teria de respeitá-los) me deixou em claro na noite anterior. Bobagem. Passei um dia incrível na vila, respirei ar puro, andei entre árvores desenhadas pelo caminho, conheci pessoas totalmente desapegadas dos seus corpos e dos corpos alheios. Pessoas que miravam os meus olhos, que me abraçavam forte, que me escutavam e que tinham muito para dizer. No verão, pretendo voltar à Colina. Porém, dessa vez, sem roupas no corpo, sem gravadores de áudio na mão, sem câmeras penduradas no pescoço e sem medos na cabeça. Essa última, aliás, acho que vou tirar de letra.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 29


M

anhã de sexta-feira, logo após o feriado de 20 de setembro. O pátio do Gigante da Beira-Rio, em Porto Alegre, recebe excursões e torcedores que circulam próximos ao monumento que homenageia o maior ídolo colorado, Fernandão. Eis que a presença de um homem chama a atenção dos que estão pela volta. Ali, parado, admirando a estátua de cobre, o meia Alex Raphael recordava os tempos vestindo a camisa do Sport Club Internacional. A imagem de seu amigo Fernandão esculpida o faz lembrar dos ensinamentos do capitão colorado. Um deles foi sobre a fidelidade ao clube e isso o fez recusar uma proposta do rival Grêmio. Entre flashes e agradecimentos por todos os feitos realizados com a camisa vermelha, um torcedor gremista abraça o “rival” e declara admiração pelo jogador. “Quando um gremista pede para tirar foto comigo, eu lhe digo que é uma honra para mim. Pois o Grêmio é um grande rival, mas inimigo jamais.”

Anos marcantes no colorado

Nascido em 25 de março de 1982, em Cornélio Procópio, interior do Paraná, Alexandre Raphael Meschini chegou ao Internacional em 2004. Naquele período, o clube comandado por Fernando Carvalho passava por uma reformulação em busca de grandes conquistas. A principal ambição era a conquista de títulos internacionais para crescer e ganhar notoriedade no mundo futebolístico. O meio-campista chegou ao elenco gaúcho com 21 anos, após uma passagem no Guarani, clube tradicional de Cam30 PRIMEIRA IMPRESSÃO

NO GRÊMIO,


NÃO!

Fidelidade ao Internacional fez com que o jogador Alex não aceitasse proposta para jogar no tradicional rival TEXTO DE GUILHERME CHAVES FOTO DE EDUARDO BRANDELLI

pinas, interior de São Paulo. O jogador buscou as lideranças do Inter para se adaptar ao novo ambiente. “A formação desse grupo vem desde 2002, pelo Fernando Carvalho. Ele acertou muito neste elenco e dessa família que acabou se tornando. Os jogadores eram pessoas com um ‘DNA vencedor’. Pessoas com extinto de liderança, tomada de decisão e bem educadas,” disse ele. Depois de quase conquistar o Campeonato Brasileiro, em 2005, o Internacional voltou a disputar a Copa Libertadores – a competição mais importante das Américas. Na temporada de 2006, uma mudança de vida aconteceu para o jogador. Junto com Fernandão, Iarley, Clemer, Edinho e Tinga, Alex conquistou o inédito título da Copa Libertadores da América. Segundo o paranaense, a responsabilidade daqueles atletas engajados no projeto do time fez com que as vitórias e conquistas viessem. Depois desse primeiro grande objetivo alcançado, o mais importante ocorreu no fim daquele ano. No continente asiático, precisamente em Tóquio, o Internacional fez jus ao nome e conquistou o Mundial de Clubes, tornando-se um time reconhecido em todo o planeta. “A gente conseguiu influenciar uma geração de pessoas. Fazer com que os antigos torcedores tivessem maior orgulho de ser colorados e terem visto títulos internacionais. Conseguimos influenciar pais, crianças e sobrinhos mais novos que estavam na dúvida de quem torcer e a gente abraçou.” Dessa forma, o ex-jogador descreve aquela geração que ficou marcada nos alfarrábios do futebol. Um sorriso se abre ao dizer que participara de uma geração que marcou era no Rio Grande do Sul. PRIMEIRA IMPRESSÃO 31


Os acontecimentos dentro do clube mudaram o patamar de muitos atletas. Muitos se tornaram jogadores de seleção e ganharam notoriedade dentro do Brasil e fora dele. Para o meio-campo, os seus êxitos no time de Porto Alegre mudaram a vida. Mais de 300 jogos vestindo a camisa colorada fizeram do jogador um cidadão porto-alegrense. Com mais sorrisos, ele diz que a magnifica história, o carinho e o respeito fazem ele querer viver no Sul, precisamente na Zona Sul de Porto Alegre. “Todo o abraço e o carinho recebido faz do torcedor o nosso amigo. Esse sentimento que me fez virar colorado.”

Proposta do Grêmio

Após passar pelo Corinthians e Al-Gharafa, do Catar, Alex recebeu uma ligação do Diretor Executivo do Grêmio, Rui Costa. A vontade do diretor gremista era contar com o atleta para reforçar o elenco tricolor. Ficou só em uma conversa e, prontamente, o colorado Alex recusou ouvir a proposta do time azul, preto e branco. Usando os exemplos de Rafael Sóbis e Fernandão, o paranaense disse que não atuaria com a camisa do rival pelas conquistas e vitórias que construiu no verdes gramados do Gigante da Beira-Rio. “Eu recebi uma proposta do Grêmio, por meio do Rui Costa, mas a negociação não chegou a caminhar. Eu não tive coragem de fazer isso. Mas tudo por causa do respeito que eu tenho pelo que construí aqui no Beira-Rio”, diz convicto. A camisa 12 – que o jogador habitualmente usava nos times – falou sobre Arilson e Tinga. Ambos fizeram história usando a camisa vermelha e a azul. Com esses exemplos, ele crê que poderia ser interessante vestir a camisa do rival, mas por tudo o que representa para a nação colorada e o Inter representa em sua vida, jamais vestiu a roupa do tradicional rival. Amigo de Alex e assessor de Fernandão, Marcelo Campos crê que o meio-campista fez a escolha certa em não aceitar a proposta do tradicional rival 32 PRIMEIRA IMPRESSÃO

do Inter. “O Alex se identificou muito com o Inter. Ele é colorado. Pela grande história que ele criou no clube e a projeção que ganhou no time, ele nunca aceitaria jogar no Grêmio. Ele e o Fernando eram muito amigos e ambos tem uma história fantástica no lado vermelho de Porto Alegre”, afirma Campos.

Respeito e admiração

“Para mim, é melhor só a admiração do lado gremista. Sou muito grato por isso”, disse depois de comentar sobre a proposta do rival. As palavras que mais foram ditas pela entrevistado foram “respeito” e “conduta”. Ele afirma que a grandeza das conquistas elevou o nome do clube e, consequentemente, do Estado. “O engrandecimento do Rio Grande do Sul, para um povo que considera o Estado a sua pátria, fez com que os gremistas admirassem aquela geração gloriosa do Inter. A gente fez história, mas sempre respeitou os torcedores do Grêmio”, afirma o camisa 12. Segundo ele, nada adiantaria ter sido um grande atleta, com muitos títulos e nenhuma admiração. A sua conduta, dentro e fora dos gramados, fez com que ganhasse essa admiração dos rivais gremistas. “Rival sim, mas inimigos nunca”, frizou.

Por onde anda Alex?

O fato de ser colorado vem pelo amor que Alex sentiu após cada título conquistado. “A gente gosta do Inter. É aquele amor igual ao da família”, afirma. Segundo ele, os jogadores que se identificam com o clube foram “picados” pelo amor ao time. Jogador de futebol aposentado, Alex tem investimentos na agropecuária, juntamente com a família. Morador de Porto Alegre, ele atende qualquer chamado do Internacional. Seja para dar um abraço no torcedor em festas consulares ou ir para um campo de batalha. “Gostamos do clube e, por isso, o defendíamos em qualquer situação. Se precisasse dar a vida, daríamos que nem o índio sangrando na conquista do Mundial. Seja para ver a torcida ou ir para uma guerra, estarei pronto.”

EDIÇÃO 44 A rivalidade entre Grêmio e Inter faz com que o clássico do futebol gaúcho ocorra dentro e fora dos gramados. A inspiração para esta reportagem veio com o título “No Inter, não”, publicada em 2015. Nela, o repórter contou a história de Yura, jogador do Grêmio que recusou uma proposta para atuar no Inter. Então, conversei com Alex Raphael, que conquistou os títulos mais importantes do colorado e negou uma proposta para atuar no rival. Nos dois lados, a fidelidade ao clube é o principal fator para não “virar a casaca”.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Após ler as edições anteriores da Primeira Impressão, fiquei em dúvida entre duas reportagens. Ambas envolviam esporte, editoria que eu tenho paixão e trabalho atualmente. Ao ler o texto “No Inter, não”, decidi dar um novo capítulo para ela, mas pensando em um personagem que nunca jogaria no Grêmio. Elegi duas fontes possíveis: Alex e D’Alessandro. E optei por Alex por sua grandiosa história no colorado com as conquistas da Copa Libertadores e Mundial de Clubes. Em um bate-papo descontraído e cheio de surpresas no local, percebi o respeito e admiração dos gremistas com o atleta e a reciprocidade do jogador. Ídolo no Internacional, o camisa 12 deixou claro por que negou a proposta do lado azul. Sempre existem exceções, mas são muito raras. No Rio Grande do Sul, pode-se citar Arílson e Tinga que jogaram em ambos e tiveram conquistas. De qualquer maneira, tentei expressar na narrativa a veracidade do que Alex contou e das coisas que aconteceram durante a entrevista.


DO CIMENTO À CADEIRA

O

ponteiro grande do relógio chega ao número 8, enquanto o pequeno está no meio do caminho, entre o 2 e o 3. As portas do vagão de um dos trens da Trensurb abrem na Estação Anchieta, e um mar azul, preto e branco se desloca em direção à escada rolante. São mães, pais, filhos, amigos e desconhecidos que, movidos pela paixão, se dispõem a andar por quase dois quilômetros pela Rua José Pedro Boéssio até chegar na Avenida Padre Leopoldo Brentano, onde a casa do tricolor gaúcho está localizada. Não é um percurso fácil. A longa rua que separa o estádio da estação é um tanto quanto malcuidada. Quando chove, surgem poças d’água tão grandes que fazem o torcedor caminhar lado a lado com os carros que transitam por ali. Mas não é só por meio dessa rua que o torcedor chega ao estádio. As outras principais vias

A mudança do Olímpico para a Arena mudou a forma de como o torcedor gremista assiste aos jogos, mas manteve a mesma paixão TEXTO DE MARCELO JANSSEN FOTOS DE GIORDANO FOPPA

de acesso são pela Avenida A.J. Renner e pelas ruas Frederico Mentz e Voluntários da Pátria. É perceptível que o caminho é certo. São casas e bares pintados com as cores do Grêmio, vendedores ambulantes expondo bandeiras, camisetas e até pelúcias de cavalos fardados nas listras verticais do clube da casa. Na avenida Padre Leopoldo Brentano, no alto do número 51, está um dos bares no entorno da Arena, o Bar Tricolor. A proprietária, Rosane Martins Rosa, 52 anos, nunca foi uma torcedora ativa, mas a chegada do novo estádio gremista mudou sua percepção. “Eu não tinha noção do que era jogo e o que era a extensão do jogo”, revela Rosa, que por causa de um pedido do irmão, teve a área de sua casa transformada em um novo ambiente, “eu nunca tinha ido em estádio e aquele dia eu me apavorei”, lembra, aos risos. A Arena do Grêmio comporta quase 10 mil torcedores a mais do que o saudoso Estádio Olím-

pico Monumental. Outra diferença é a quantidade de setores disponíveis. No antigo estádio, localizado no bairro da Azenha, era possível assistir os jogos em quatro comodidades diferentes: arquibancada, arquibancada social, camarotes e cadeiras, esta última com três repartições, uma central, laterais e sociais. No Humaitá, os quatro anéis possuem a divisões baseadas nos pontos cardeais e colaterais: norte, sul, leste, oeste, nordeste, noroeste, sudeste e sudoeste. A principal torcida organizada do Grêmio, a Geral, tem como característica a posição atrás de uma das goleiras. A mudança de estádio resultou em um espaço, localizado no nível gramado do setor norte, sem cadeiras e com preços mais acessíveis ao torcedor. Muitos acreditam que lá está a alma do estádio. A funcionária pública Ore Mari da Silveira de Souza, 50 anos, mora no município de Passo Fundo, região norte do Estado. PRIMEIRA IMPRESSÃO 33


Ela tira o mês de setembro para as férias, em especial, para acompanhar o Grêmio nos jogos e pelas comemorações anuais de aniversário do clube. Ore está no Norte, até na hora de apoiar o clube do coração: ela assiste aos jogos na Arquibancada Norte, setor popular da Arena. Batom azul, rímel azul, dois corações desenhados nas bochechas com dois tipos de azul, um para o contorno e outro para o interior, uma faixa na cabeça e uma camisa tricolor são partes do look da mulher - que não gosta de ser chamada de se34 PRIMEIRA IMPRESSÃO

nhora! – que percorre mais de 280 quilômetros para assistir aos jogos. “Enquanto eu tiver perna, eu quero badalar, torcer, pular”, ressalta a passo-fundense que enquanto conseguir, sempre seguirá indo no mesmo local do estádio. “Eu sou eufórica, brigo, xingo, berro, grito, quase me atiro no chão e agora vi que sou coração forte (se referindo ao jogo Grêmio x Estudiantes)”, afirma Ore. Nunca é demais quando o assunto é se vestir para assistir a um jogo de futebol. Andando em direção à Rampa Oeste, uma das quatro que dão acesso ao estádio, devagar vinha um vivente pilchado. Com bota, bombacha, e chapéu, um gaúcho caminhava junto de várias pessoas que também tinham o mesmo destino. Já havia passado de vinte para as quatro da tarde. A escalação das equipes já havia ecoado pontualmente,

como em todos jogos 20 minutos antes do início da partida. O aposentado Valdecir de Moraes Laus, 77 anos, se encaminha para uma das confortáveis poltronas destinadas a conselheiros e convidados. “Esse, o pai não era nascido e ele já era gremista”, disse um conhecido ao passar pelo homem natural de Dom Pedrito, a Capital da Paz. Segundo Moraes, a Arena precisa ser mais calorosa, mais unida com a direção, como o Olímpico conseguia. “A Arena, o torcedor por si só faz com que esse espírito (do antigo estádio) exista”, afirma o pedritense. Com cinco anos completos e chegando aos seis em 2018 -, a Arena do Grêmio, hoje, é o atual lar de uma das torcidas mais apaixonadas do Brasil. A cada dia, o gosto do torcedor vai se afeiçoando mais pela nova casa. Desde 2014, o Grêmio está entre os cinco maiores públicos do Brasil nos estádios de futebol. Só em 2018, a média do número de torcedores está em 21.857 torcedores pagantes, sem contar os não pagantes. De acordo com o site oficial do clube, o estádio tem capacidade para 55.662 pessoas, conforme liberação dos bombeiros, já que a verdadeira capacidade é de cerca de 60 mil torcedores - apontada pelo site da construtora OAS, que realizou a obra da Arena. A administradora de empresas Juliê Tavares Tecchio, 24 anos, conta que gosta de assistir aos jogos sem muita gente em volta, e que a parte do estádio que ela mais gosta de ver jogo é na cadeira gramado. “Porque tu tens um contato melhor, tu escutas jogadores dentro de campo, tem essa interação”, afirma Juliê, que como o seu time, é natural da capital gaúcha. Acompanhar uma partida pessoalmente e em casa, pode ter uma diferença muito grande. Para Juliê, a magia de uma partida de futebol está presente no local onde os 22 jogadores disputam para alcançar a vitória e garantir três pontos ou a classificação (dependendo do campeonato). “Não tem energia, aquele jogo que a bola vai para o lado, vai para o outro, não é legal”, conclui aos risos, comparando a experiência no estádio com a pela TV.

Novo X antigo

A experiência de ver um jogo na Arena do Grêmio e no Está-


dio Olímpico é grande quando o quesito comodidade é posto no meio. Segundo o site oficial do Grêmio, de cima a baixo, a Arena possui 18 sistemas de elevadores, sendo quatro para carga, 246 banheiros com acessibilidade total e 58 bares, além de um restaurante panorâmico. Para pessoas portadoras de necessidades especiais (deficientes físicos, mobilidade reduzida e obesos) estão disponíveis 274 lugares, enquanto que no Olímpico havia lugar para 28 cadeiras de rodas e 22 acompanhantes. A advogada Elis Regina da Silva, 55 anos, Com o Grêmio vê a nova casa identificado na como um local roupa, Valdecir de maior acesacompanha sibilidade a totoda a dos os públicos, temporada que possui um na Arena serviço mais estruturado, porém, ressalta que um dos problemas é a localização. “Ali (no Olímpico) era mais centralizado para o torcedor. Tem gente que nunca botou os pés aqui (na Arena), porque diz que é tudo contramão”, lamenta Elis. Já para a funcionária pública Ore Mari da Silveira, a saudade do antigo estádio ainda dói no peito. “Sou mais saudosista, sinto muita falta do Olímpico. Lá todo mundo já se conhecia desde os porteiros ao pessoal do banheiro, enquanto aqui na Arena acho muito frio apesar de ter melhorado desde o início”, completa Ore. Um dos pontos mais citados pelos torcedores entrevistados na matéria “De camarote”, encontrada na edição número 27 da Primeira Impressão, escrita por Joana Faillace e Quelen Lima, foi a energia que o povo possui e transmite para dentro de campo. Para a gerente de finanças Maria Elena Tavares, 62 anos, não é o local que você assiste o jogo que define a empolgação do torcedor para o jogo. “Eu acho que o que importa é o entusiasmo que você tem no jogo e quanto mais gente tem junto, mais a euforia é maior”, ressalta Maria Elena, que é coordenadora do Núcleo de Mulheres Gremistas, grupo que chega aos 15 anos em maio de 2019. O grupo frequentava as arquibancadas sociais do Olímpico. Hoje se une antes e após

os jogos no Bar Tricolor, para tomar cerveja, refrigerante, comer lanche e conversar. Mas no estádio, devido à separação dos setores, já não assistem mais o jogo todas juntas. “A mulher não tinha e ainda é difícil essa representação no estádio”, orgulha-se Maria Elena, que costuma frequentar a Superior Norte, localizada no quarto anel da Arena, em cima da Geral do Grêmio. Aos poucos, as glórias erguidas por grandes equipes, principalmente as de 1983 e 1995, estão sendo construídas na Arena. Já são quatro títulos: Copa do Brasil em 2016, Copa Libertadores da América em 2017, Recopa Sul-Americana e Gauchão neste ano. E os torcedores já estão percebendo. “A tradição está vindo aos poucos, começam novas histórias, começam novos títulos, novas histórias” conclui a administradora de empresas Juliê Tavares Tecchio. Hoje, o valor do ingresso pode ser o fator fundamental para a escolha de lugar na Arena. A comodidade que o local fornece para assistir aos jogos se alinha com esta decisão, mas o torcedor já não se importa tanto com estas formalidades. O interesse está na pulsação que o assento azul, de plástico ou estofado, poderá transmitir para dentro do campo, transformando a torcida no 12º jogador.

EDIÇÃO 27 A matéria “De Camarote”, da 27ª edição da revista Primeira Impressão, no ano de 2007, traz ao leitor a experiência de união dos torcedores do Grêmio no Estádio Olímpico, ressaltando as diferenças de locais e preços que os torcedores encontram para assistir ao seu clube do coração. Nas arquibancadas ou camarotes do antigo estádio localizado no bairro da Azenha, em Porto Alegre, as classes sociais se encontram e dividem histórias de paixão por uma equipe de futebol, mostrando que diferenças são insignificantes.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Meus olhos brilharam quando encontrei a reportagem da 27ª edição da PI. Li e gostei muito do conteúdo escrito pelas colegas Joana Falace e Quelen Lima. Eu logo pensei sobre a mudança de estádio que o Grêmio teve no final de 2012 e pensei que era aquilo que eu queria escrever. Mas o caminho não foi de “mil maravilhas”, inclusive fechar a pauta foi um pouco desafiante. Perceber coisas como o calor da torcida, a expectativa pré-jogo, a empolgação de milhares, a conversa dos jogadores dentro do campo, entre outras, mudou a percepção do espetáculo. Conversei com torcedores apaixonados que me contaram belas histórias junto ao clube, realmente me envolvi muito e me senti satisfeito com o apurado. Ir ao estádio não é só um passeio, é uma declaração de amor a uma entidade que proporciona alegria e tristeza, mas essa última por pouco tempo, pois a paixão não atrapalha. Muitas pessoas dizem ‘é apenas futebol’, mas, hoje, posso afirmar que não é apenas futebol, é muito mais que um esporte.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 35


DORES DA SOLIDÃO 36 PRIMEIRA IMPRESSÃO


F

A sociedade precisa conversar sobre o suicídio

oi em um destes dias quentes do início de outono, quando a troca de estação ainda permite usar roupas de verão, aproveitar o ar puro do interior e vagar pelo pátio de casa. Era como Daniel*, 15 anos, sempre fazia à tarde, após os estudos. Sua mãe, Joana*, 55 anos, lembra como se fosse hoje. No dia 24 de abril de 2014, ela retornara para casa do trabalho de costureira, com o ônibus escolar que passava pelo bairro por volta das 17h. Ao chegar, estranhou não ver o filho por lá ou mesmo seus cadernos e livros em cima da mesa da cozinha, onde costumava estudar. Joana questionou se a mãe sabia onde o neto se encontrava, mas a avó não sabia dizer. Agricultora, a mãe até então não estava aflita ou nervosa, pois sabia do costume que o filho tinha de passear pelo potreiro. Ela ainda aproveitou para dar pastagem ao gado e tirar o leite das vacas, pois escurecia rápido. Quando retornou à casa, o filho ainda não tinha aparecido. O pai e a filha mais velha, que chegaram do trabalho, também não sabiam do jovem. A angústia naquele momento já se fazia presente, pois não era normal o rapaz não estar em casa. Na época, a residência ainda não tinha internet wi-fi. Eles se comunicavam por dados móveis – quando pegava sinal – ou ligações de celular. Em nenhum dos casos Daniel respondia. A busca pelos arredores da propriedade começou a ser feita, pois a preocupação era de que o menino tivesse se perdido, caído em um buraco ou, até mesmo, sido picado por uma cobra. Joana conta que as horas passavam, os vizinhos chegavam para ajudar e nada do menino. A costureira se deu conta da situação quando ligou aos bombeiros, dizendo que o filho estava desaparecido. “Eu me perguntei: o que estava acontecendo com a gente? Meu Deus! Eu não sabia onde estava meu filho”, lembra, olhando para o nada, como estivesse vivenciando o momento no presente.

TEXTO DE NAGANE FREY FOTOS DE MURILO DANNENBERG

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Ela conta que o desfecho foi por volta das 21h, quando o marido e os vizinhos se separaram em busca do garoto, em uma área onde a família plantava araucárias. Fazendo um quadrado imaginário na mesa com o dedo, ela conta, com a garganta engasgada, que o vizinho encontrou o filho enforcado em uma árvore, com apenas uma mochila ao lado, um lápis, uma folha em branco e comprimidos de paracetamol. Joana diz que o vizinho ainda cortou a corda com uma foice, mas ele já estava gelado. Com lágrimas nos olhos e voz embargada, a mãe diz que não existem palavras para descrever a dor de saber que o filho não está mais com ela e de tentar se reerguer. “Eu sei que poderíamos ter feito mais pelo Daniel. Os pequenos sinais que ele demonstrava, como o lamentar da falta da internet, ou o não poder trabalhar em função da idade. Poderíamos ter nos esforçado mais. Mas também sei que fizemos o possível para agradá-lo como também a minha filha mais velha”, relata, complementando que a alegria do filho era muito rápida e passageira. “Uma hora estava muito feliz, mas outra já estava triste de novo. A felicidade nunca era completa”, finaliza. A costureira buscou auxílio psicológico, mas as sessões que mais lhe ajudaram foram os encontros com amigos de confiança, na qual as lágrimas de dor e o desabafo da angústia se faziam livres. “Nós fomos muito julgados e discriminados pela sociedade. Fomos taxados como a família da perdição e do diabo, mas ninguém esteve na nossa situação ou na nossa pele para saber o

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que passamos. As pessoas precisam ver o suicídio com outros olhos e não como forma do mal, mas como qualquer doença que leva o seu fim. Está na hora da sociedade quebrar esse tabu”, afirma com a voz firme e a palma da mão grudada na mesa, em forma de protesto. Joana se diz orgulhosa do filho, salienta que ele era uma ótima pessoa, e agradece todos dias a oportunidade que ela, o seu marido e a filha mais velha tiveram de passar 15 anos ao lado de Daniel. “Por mais duro que seja, precisamos nos acostumar que somos passageiros nesta vida, nosso destino é um bem melhor. Daniel escreveu a sua história aqui”, afirma a mãe. Em uma outra realidade e por motivos diferentes dos que levaram Daniel ao extremo, Camila*, 30 anos, por um triz, não teve a vida marcada por uma tragédia. Ela é uma sobrevivente de uma tentativa de suicídio. Durante os últimos nove anos, Camila passou por muitas situações que a afundaram em crises de ansiedade e quadros de depressão. Assédio sexual

no ambiente de trabalho, pedido de demissão, dificuldade em encontrar um novo emprego, pressão de final do curso de graduação, término de um longo namoro e dificuldade financeira são alguns dos fatos que a levaram a uma situação de risco. Sem dormir, alimentandose mal, pesando apenas 43 quilos, ela chegou ao fundo do poço em 2017, quando tomou mais de 40 comprimidos e desmaiou. Sua mãe a encontrou no quarto e logo chamou os bombeiros, que tiveram a felicidade de socorrer e salvar a garota. Por decisão dos médicos, Camila foi internada na Clínica Professor Paulo Guedes, em Caxias do Sul, onde permaneceu até o início do ano de 2018. “Eu gostava de lá. Pra mim, foi muito bom estar em uma clínica, pois foi a primeira vez que eu tive a chance de estar doente, de precisar de ajuda e saber que eu precisava melhorar”, conta, com um sorriso. Camila saiu da clínica com prognóstico de bipolaridade, mas ela afirma que não se associa com essa imagem. “Acredito que essa situação foi um acú-


mulo de vários sentimentos e momentos ruins da minha vida. De verdade, eu não me vejo desta forma. Eu sou ansiosa eu sei disso, mas não me considero um perfil de pessoa depressiva, para baixo, o lado meio vazio do copo”, finaliza, dizendo que hoje está bem, feliz e realizada.

Tragédia nos trilhos

Movida pelo agito do dia a dia, a Trensurb já foi e continua sendo palco de incontáveis tragédias. Desde 2009, houve 15 casos de suicídio envolvendo trens, em todo o Estado, segundo os dados da Companhia de Processamento de Dados do Estado do Rio Grande do Sul (Procergs) de setembro deste ano. Um número pequeno comparado ao registro total de ocorrências que apontou 10.721 casos de suicídio de 2009 a 2018, sendo que 741 aconteceram só neste ano. O chefe do setor de Tráfego da Trensurb, Nelson Dadda, que trabalha há 34 anos na empresa, diz que a companhia evita a exposição dos fatos, para não incentivar novos casos. Além de ser algo traumático para os familiares da vítima, também abala psicologicamente os funcionários, principalmente os operadores, que lidam com a circunstância de frente. “Temos como política logo substituir o condutor por outro, independente da estação que esteja. Ele é encaminhado para um tratamento psicológico e afastado por uns dias”, declara Dadda, complementando que alguns operadores não lidam bem com a situação e são realocados de função. Dadda explica que são mais de mil funcionários que trabalham na empresa, e mais de 400 câmeras de monitoramento, que tem como objetivo dar segurança e qualidade para os cidadãos que passam pelas estações. Ele relata que, através das câmeras, se identificam muitos casos com tendências suicidas. “A pessoa normalmente se isola, vai de uma extremidade da plataforma até a outra, ou até se senta na ponta da plataforma”, completa o líder, dizendo que algumas pessoas que eles abordam reagem bem e até se

Nelson Dadda esclarece que a Trensurb evita a exposição de fotos de suicídio

EDIÇÃO 31 Em 2009, a hoje jornalista Márcia Lima desenvolveu para esta mesma revista uma reportagem sobre casos de suicídio em trens. Ela narrou, na edição 31, como os funcionários da Trensurb lidavam com a situação e como a vida dos operadores da empresa eram afetados após o acontecimento. Destacou também a preocupação da companhia em transportar pessoas de forma rápida, limpa e segura, colocando um alto número de empregados, que alternavam dias e noites em busca da perfeição no atendimento ferroviário.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER A morte para mim sempre foi difícil. Quando adolescente, passei por crises de pânico e consegui superar com ajuda psicológica. A partir desta fase e da decorrência de atos de suicídio que ocorriam na minha cidade, percebi o desconforto que o assunto gerava na sociedade e principalmente o preconceito. Notei que a revista era uma ótima forma de poder parar e ouvir quem tinha muita a contar e desabafar. Histórias difíceis, tristes e de superação. Compreendi como as circunstâncias e a sociedade podem gera um impacto no outro, muitas vezes positiva, mas também negativa. Você acredita que sua situação muitas vezes é ruim, mas você não sabe pelo que o outro está passando ou pelo que passou, podem sempre existir casos/histórias mais complicadas que as suas. Desta forma, foi possível entender que não há estereótipos para quem sofre e pensa em suicídio, como também foi possível afirmar que é preciso quebrar este paradigma, chamado tabu. É essencial o assunto ser debatido na sociedade, eliminando o preconceito e a descriminalização.”

abrem para os funcionários da Trensurb, já outras negam e seguem adiante. Nestas situações, a empresa procura ser discreta e ajudar o cidadão a encontrar ajuda e auxílio necessário. Ele ainda destaca que, de 2009 até hoje, a empresa recebeu um aumento significativo no corpo de segurança, o que ajuda muito nos casos de suicídio, como também nos vários pontos da segurança dos cidadãos.

Prevenção

Anildo Fernandes que é secretário nacional do Centro de Valorização da Vida – CVV, explica que a instituição presta apoio emocional a todas as pessoas que precisam de ajuda, pelos mais de 100 postos nas principais cidades do país, por telefone 188 ou outros canais como e-mail, chat ou o site www. cvv.org.br. “Em 2017, recebemos 1,2 milhão de ligações telefônicas, e este ano deveremos superar 2 milhões em todo território nacional”, destaca, pela quantidade de ligações já ocorridas neste ano. O porta voz também lembra que os números de casos podem ser reduzidos se toda população tiver conhecimento que há prevenção e ajuda. (*) O nome foi alterado para preservar a identidade dos entrevistados PRIMEIRA IMPRESSÃO 39


À ESPERA DO RENASCIMENTO Histórias de pessoas que esperam pelo transplante de órgãos se cruzam na Pousada Solidariedade, em Porto Alegre TEXTO DE CAROLINE TIDRA FOTOS DE KELLEN DALBOSCO

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ra dezembro de 2017, início do verão brasileiro. Edinalva dos Santos Costa, 28 anos, parte de Teresina, no Piauí, e desembarca em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em busca do renascimento. Com 28% do funcionamento pulmonar e a quase 4 mil quilômetros longe de casa, a jovem é uma das 82 pessoas que aguardam por um pulmão no Estado. O critério para receber o órgão responsável pela respiração não depende da lista de espera, mas da compatibilidade com seu tipo sanguíneo AB+, peso e tamanho. “Na verdade, nenhum médico resolveu. A melhor solução era ser encaminhada para o transplante”, diz. Desde a infância, Edinalva sofre com problemas respiratórios e, por referência do médico do nordeste, ela cruzou o Brasil à procura de atendimento especializado em um dos melhores centros de transplantes. A longa viagem ocorreu por ordem judicial, em um voo fretado com cilindros e uma enfermeira. Além de encarar o frio, ela enfrenta a luta contra o tempo e a saudade. “O calor de vocês é o nosso inverno. Quanto mais quente, melhor”, relata. A expectativa é de que o transplante ocorra dentro de 18 meses a partir da solicitação do órgão.

Dificuldades de uma rotina simples

Há três anos, o uso do tubo de oxigênio se tornou inevitável. Edinalva convive com a bronquiectasia, doença adquirida pela incidência contínua de pneumonias não tratadas. Quando criança, médicos recomendaram que os pais a levassem para São Paulo. Na época, o casal, com nove filhos pequenos, não tinha condições financeiras. Não sabiam como ir e nem como voltar. “Eles nem sabiam ler, então, foram esperando Edinalva 40 PRIMEIRA IMPRESSÃO

crescer”, conta Maria Benta, 33 anos, irmã de Nalva, como ela chama a caçula. Aos 18 anos, o agravamento da doença levou à retirada de um pedaço do pulmão, procedimento cirúrgico conhecido por lobectomia. “Só em respirar eu já fico cansada”, conta. A falta de ar e a perda de apetite são dificuldades que a distanciam de uma boa qualidade de vida. “Eu desço a escada e já tô morrendo”, relata. São razões que impedem a jovem de conhecer Porto Alegre. A rotina é restrita à pousada e ao hospital e, raramente, à igreja. Opta por ficar em casa, mesmo se sentindo presa. Carregar o oxigênio e estar entre as pessoas são situações que ela evita. Emocionada, o anseio é definido por um desejo. “Ter uma vida mais normal possível é o que eu mais sinto falta”. Sem data para check-out, as irmãs estão hospedadas na Pousada da Solidariedade. A casa recebe pacientes em lista de espera ou já transplantados junto de seus acompanhantes que, sem condições financeiras de arcar com os custos de hospedagem, necessitam de um lar acessível enquanto passam pelo tratamento. As risadas rompem as paredes da pousada quando Benta entra no quarto. “No início, eu

estava com medo porque eu nunca tinha vindo, e é muito longe”, conta, sobre o sentimento de acompanhar a irmã. Para ela, estar com Edinalva não é perda de tempo, mas uma experiência nova. “Somos em muitos irmãos, sempre foi bastante gente em casa e aqui é uma família também, mas é diferente”. A espera é angustiante, mas entre as duas só se vê risos. “Tem hora que a gente ‘se pega’, mas depois fazemos as pazes”, diz Nalva. “Ela é muito detalhista, muito certinha, e eu sou mais avoada”, rebate Benta. A tecnologia aproxima Benta das filhas, que já são adultas. Edinalva, das séries de TV. Ela prefere aquelas que os médicos fazem grandes cirurgias cardiotorácicas. “Eu não olho tanto para os personagens, eu foco no que eles estão fazendo”, comenta sobre os episódios de Grey’s Anatomy, série americana que se passa dentro de um hospital. Benta não entende a curiosidade de Edinalva. Sobre saudade é unânime. “Eu sinto falta só da mãe. Se ela viesse pra cá, não faltaria mais nada”, ressalta Benta. Os olhares se cruzam em sinal de concordância. “E eu andava de moto lá, sinto falta”, Nalva interrompe com animação.


Edinalva, que veio do Piauí, aguarda há quase um ano pelo transplante bilateral de pulmão

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A esperança de quem está na pousada Solidariedade não dorme e durante a madrugada Nalva recebe uma ligação. “Me chamaram para o transplante, mas infelizmente o órgão não estava bom”, conta. Com o coração tranquilo, ela expõe gratidão à família que disse sim à doação de órgãos em um momento de dor. Edinalva volta à pousada e descansa na sua fé. Ela não perde a positividade. Sua expectativa está no futuro, no renascimento, no inspirar de uma nova chance. 42 PRIMEIRA IMPRESSÃO

Anseio da volta para casa

Rischarles, natural do Pará, passou pelo transplante renal em maio deste ano e se recuperava na Pousada Solidariedade, em Porto Alegre

No mesmo ritmo em que ocorre a vida e a morte, aguardar por um órgão pode variar desde horas até anos. Às 23h do dia 8 de maio deste ano, Rischarles Furtado Marques, na época com 17 anos, é levado ao centro cirúrgico para receber um novo rim. Duas horas depois, ele é encaminhado para o pós-operatório. Livre das hemodiálises, pronto e ansioso para viver com qualidade de vida novamente. Diagnosticado nove meses antes da viagem, o adolescente chegou em Porto Alegre em abril, 30 dias antes do transplante. Em relação a outros pacientes, sua espera foi breve. No caso dele, o perío-

do pós-transplante é o que o impede de voltar para casa. Natural de Afuá, no Pará, fez o tratamento em Macapá, no Amapá, cidade vizinha a de sua origem. Um percurso de duas horas dividido por rios, na qual a travessia é feita através de lanchas. Rota, que não fez Rischarles melhorar. Ele foi encaminhado para a capital gaúcha, onde a temperatura é um dos fatores que o nortista mais estranha assim como Edinalva. Ele sente falta do calor que beira 40°C no verão. A maior preocupação era a infecção, um dos principais fatores de risco após o transplante renal. Em uma das consultas, em setembro, o resultado dos exames foi negativo em relação à qualquer infecção. O entusiasmo era visível, tanto em Rischarles quanto na sua irmã Lidiane, de 23 anos, que o acompanhou. Os dois não aguentaram a saudade e num curto período entre as consultas conseguiram voar até em casa. Uma semana foi pouco para quem passou por tanto em Porto Alegre, mas o suficiente para recarregar as forças de voltar e continuar o tratamento até a liberação médica. “Eu queria passar meu aniversário em casa”, relata o jovem que completou a maioridade no dia 18 de outubro, em solo gaúcho. Faltam poucos dias, era o pensamento positivo. “Aqui tem muitas coisas diferentes, Afuá é uma cidade pequena que não tem carros, a gente anda de bicicleta”, conta Lidiane. De fala tímida, Rischarles tem sonhos simples, não exige nada além do que voltar para escola e para a rotina do interior. E, no fim de outubro chegou a notícia de que poderiam voar para casa. Felicidade transbordou no olhar de quem poderá pedalar pela pequena Afuá. A festinha de recepção não aconteceu em comemoração ao aniversário, mas aos seis meses de transplante. O tratamento continua, e Rischarles continuará vindo a Porto Alegre, só que agora com data de volta para casa marcada.

Missão de acolher quem espera

Esperar. Verbo intransitivo cuja definição se resume em es-


perança ou expectativa de que algo aconteça. Esperar por um milagre, por alguém e pela vida. São estes os anseios de mais de 33 mil pessoas que estão na lista de espera por órgãos no Brasil. As regiões Sul e Sudeste concentram os mais reconhecidos centros de transplantes. Na reportagem realizada em 2009, Milton e Donizete eram pacientes que estavam hospedados na Pousada da Solidariedade à espera do transplante. Hoje, quem espera é Edinalva e outras milhares de pessoas que saem de casa para renascer. Renascimento que ultrapassa o período da gestação, das estações e até de anos. Com a intenção de proporcionar conforto e auxílio para pacientes que chegam a Porto Alegre, surgiu a pousada. Uma idealização da ONG Viavida Pró-doações e Transplantes, que tem capacidade para acolher 10 pessoas com um acompanhante cada. A missão de acolher surgiu após Lúcia Elbern, fundadora da ONG, passar pela espera de rins para seu filho, que na época era adolescente. A luta de Lúcia inspirou 70 voluntários a pôr em prática ações para transformação cultural quanto à doação de órgãos e tecidos e à prevenção e cuidados com a saúde. Levar informação à população para possibilitar que vidas sejam salvas diariamente é um dos objetivos da Viavida. “Passar por isso é muito difícil, pela angústia da fila de espera. Quando meu filho foi transplantado, os médicos disseram ‘Lúcia, você não pode parar’, porque nesse ano que a gente trabalhou, aumentou 30% o número de doadores”, relembra. Quase 3 mil pacientes já ficaram hospedados na pousada, que foi inaugurada em 2004. “Tinha muita gente que ia embora de Porto Alegre sem esperança nenhuma, somente em esperar a morte chegar porque não tinham como se manter na cidade para esperar o transplante, aí surgiu o projeto pousada”, relata, sobre a ideia de minimizar as angústias que a situação da doença impõe. Sem custo aos pacientes, eles chegam à pousada a partir da análise socioeconômica realizada por assistentes sociais dos hos-

pitais transplantadores de Porto Alegre: Santa Casa, Hospital de Clínicas, São Lucas (PUC) e Instituto de Cardiologia. Também são oferecidas refeições e atividades para manter os hóspedes com a mente ocupada e saudável. É um lar longe de casa. Dados do Ministério da Saúde apontam que 43% das famílias de potenciais doadores se negam a doar. É um alto índice de não autorizações. Apesar da doação de órgãos e tecidos ser vista como um ato de solidariedade e amor, a decisão, em um momento de dor e angústia, é impactada pela perda inesperada. Além da não aceitação familiar, a parada cardíaca e a contraindicação médica por más condições do doador também tornam impossível a utilização dos órgãos. Lúcia demonstra preocupação com a baixa aceitação das famílias, mas garante que o trabalho de levar informação é essencial. “O retorno é saber que alguma ação que a gente faz dá um pulo no número de doadores, que houve mudanças no pensamento das pessoas. Elas vêm perguntar, pois querem esclarecer suas dúvidas”, afirma. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, no primeiro semestre deste ano, o número de doadores efetivos de órgãos no Brasil era de 17 a cada 1 milhão de habitantes. Mesmo com um índice que não atende a demanda da lista de espera, o país é referência mundial em transplantes, pois tem o maior sistema público de transplantes do mundo. Além disso, o Brasil fica atrás apenas dos Estados Unidos no posto de maior transplantador. No Rio Grande do Sul, conforme relatório divulgado em novembro de 2018 pelo Governo Estadual, 1.406 pessoas aguardam por um rim, fígado, medula óssea, pulmão, córnea, coração ou rim/pâncreas. Dentro do mesmo período, neste ano, foram realizados 583 transplantes de órgãos e 943 de tecidos. Em 2009, na lista de espera estavam 1.921 pessoas e haviam sido feitas 824 cirurgias. Tal comparação demonstra que não houve aumento significativo no número de transplantes nesses últimos nove anos, e, por isso, a conscien-

tização das famílias pode influenciar nesse processo de doação. Para aqueles como Milton, Donizete, Edinalva, Rischarles e o filho de Lúcia, segue viva a esperança do recomeço da vida e da volta para casa. A campanha “#1salva8” promovida pela Santa Casa afirma que um doador pode salvar até oito pessoas ou melhorar a qualidade de vida de mais de 20. Mas não há registro que autorize a doação de órgãos. Esse papel é restrito apenas às famílias, por isso a conversa sobre essa decisão se torna essencial. “Ser doador é um seguro de vida. Por isso, é importante multiplicar essa ideia. Quanto mais pessoas se colocarem doadoras, melhor”, finaliza Lúcia.

EDIÇÃO 32 Viver é nada mais do que dar e receber. Dessa forma, as repórteres iniciavam a reportagem publicada em 2009 na Primeira Impressão. Com o título “Vida nova”, e com dados sobre transplantes de órgãos e tecidos no Brasil, foi apresentada a ONG Viavida, entidade que garante estadia para pessoas que aguardam na lista de espera. Na época, Milton Renato Menezes, que precisava de um novo fígado, e Donizete Pena Alves, transplantado de rins, foram os protagonistas. Os sonhos deles eram os mesmos de quem se hospeda, atualmente, na pousada: voltar para casa e rever a família. Procurar por Milton e Donizete e escrever sobre um assunto, por vezes, esquecido foram as inspirações de voltar à Viavida.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER ‘Escrevo sobre a extraordinária vida comum, sobre o cotidiano de homens e mulheres que tecem os dias e também o país, mas nem sempre são contados na história’. A frase de Eliane Brum é como eu defino o Jornalismo Literário e dessa forma tentei trabalhar na reportagem. Pessoas que estão na lista de espera nem sempre são notícia e essa realidade não é manchete em grandes veículos. Há inúmeros brasileiros vivendo à espera do renascimento. Ao iniciar a reportagem, meu objetivo era encontrar Donizete e Milton, protagonistas do texto de 2009, mas seus contatos estavam desatualizados e mesmo insistindo de várias maneiras, não os localizei. Então fui em busca de outros que se hospedam na Pousada da Solidariedade. Encontrei dois opostos, Rischarles já transplantado que anseia a volta para casa e Edinalva, que ainda está à espera do transplante. Até o fechamento da revista, a situação continuava assim. Eliane Brum declara que suas reportagens são como uma gestação. No caso desta, sinto que o parto foi prematuro, sem fim, sem que soubéssemos quais serão os destinos. Me senti preocupada e ansiosa por ambos, quero que Rischarles volte à rotina da pequena Afuá e que Nalva respire sem auxílio. O desafio de escrever sobre a vida comum é lidar com uma realidade que não podemos criar o final feliz, mas aguardar na lista de espera.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 43


Rodrigo Guerra desde muito jovem já questionava os ensinamentos religiosos

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O SENTIDO DA VIDA DE QUEM NÃO CRÊ


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Ateísmo como posicionamento não é ir contra doutrinas religiosas, mas uma forma oposta de percepção TEXTO DE THAMYRES THOMAZINI FOTOS DE JÉSSICA BELTRAME

e onde viemos? Para onde vamos? O que acontece depois que morremos? Existe céu e inferno? Dúvidas milenares do ser humano. Quando a ciência ainda era um campo em fase de exploração, as religiões e divindades tinham respostas para os questionamentos sobre o início do universo e os mistérios da natureza. Com os adventos da física, química e matemática, muitas explicações místicas a respeito da vida foram contestadas, o que gerou rivalidade entre ciência e religião, perdurando centenas de anos. Esse impasse ainda é mais debatido quando se trata dos ensinamentos e normas comportamentais impostos pelas doutrinas mais conservadoras. De fato, a religião promove conforto e paz para muitos fiéis, amparando os em momentos de sofrimento. Mas nem todos creem e se identificam com esses valores. O ateísmo é um posicionamento no qual a pessoa não acredita na existência de divindades. Há, ainda, receio quando alguém se posiciona como ateu. Entretanto, não acreditar em Deus não é a mesma coisa que ser contra. O teólogo Thomas Heimann explica que a religiosidade é uma das expressões culturais mais antigas na história humana que influencia tradições, hábitos e comportamentos sociais. A teologia vê o ateísmo como um posicionamento intelectual dentre tantos presentes na sociedade, respeitando-o. “Ateísmo cético pode ser visto por alguns segmentos da religião como uma ideologia que coloca em risco a própria liberdade de pensamento religioso. O que precisa permear as relações entre teologia, religião e ateísmo é o respeito e tolerância pela liberdade de pensamento, seja ele de cunho científico ou religioso”. Para Heimann, para os que creem em Deus ou num ser divino e transcendente, a fé ocupa um lugar central na vida, trazendo consigo a confiança não só da proteção nos momentos de dor e sofrimento, como também implica na crença da imortalidade da alma, fonte de consolo diante da finitude humana e certeza da morte. “No campo das ciências da saúde, pesquisas científicas têm demonstrado que pessoas que têm uma saudável e equilibrada fé em Deus conseguem enfrentar as dificuldades da vida com maior otimismo e coragem, sendo a fé um importante elemento de resiliência”, completa. PRIMEIRA IMPRESSÃO 45


De personalidade pacata e aparência comum, Rodrigo da Silva Guerra, 39 anos, chega ao encontro pontualmente, acompanhado pela esposa, Helena. O local escolhido é uma modesta padaria e cafeteria no centro de Porto Alegre. Engenheiro de controle e automação e doutor em robótica, ele se denomina como ateu agnóstico. Nascido e criado em uma família católica, seguiu até a adolescência os costumes religiosos dos pais, realizando a primeira comunhão com 10 anos e crisma quatro anos mais tarde. As reflexões e questionamentos sobre os ensinamentos religiosos e as crenças sempre fizeram parte da vida de Rodrigo. Pensativo, conta que

mesmo criança se questionava sobre as histórias de Adão e Eva e a criação do mundo em sete dias, durante as aulas de biologia na escola. Foi durante a faculdade que ele começou se afastar da religião católica. Entre 2004 e 2011, durante o período que realizou o doutorado no Japão, pôde entrar em contato com diferentes costumes, pessoas de outras doutrinas e crenças, abrindo novos caminhos e entendimentos sobre suas dúvidas. “O peixe não sabe que está molhado. Nós somos transparentes à nossa própria cultura, não a questionamos. Às vezes temos que sair da nossa cultura para olhar criticamente para ela. E lá (no Japão), vi pessoas que

acreditavam em outras coisas ou não acreditavam. Foi nesse momento e acho que até demorei demais”, relembra Rodrigo sobre como assumiu, de fato, seu posicionamento como ateu. Em momentos de maior fragilidade, como a perda de alguém, a religião se torna uma fonte de conforto e tranquilidade de que há algo superior à morte. Nesses casos, Rodrigo não concorda com o posicionamento assumido. “Faz parte da experiência da vida esse espectro de sentimentos, isso tudo é algo muito rico e é o que faz valer a pena viver, certo? Tanta emoção, tanta coisa profunda. A perda é algo profundo e tirar isso da pessoa, colocar uma promessa, irresponsável na minha opinião, porque não tem como provar nada. Me incomoda. Para mim é importante a finitude da vida”, explana.

Fazer o bem

Cristianismo, Islamismo, Budismo e todas as inúmeras doutrinas ditam alguns com-

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O funcionário público Lucas Souza começou a se posicionar como ateu na adolescência


portamentos éticos e morais a serem seguidos e evitados. O que é bom e mau? Ser bondoso, generoso ou ter compaixão são fatores para ir para o céu e agradar as leis de Deus. Mas quando não há uma doutrina ou religião, como decidir o certo e errado? Para Rodrigo, é mais fácil ter alguém ou algo que diga como agir, e quando se faz algo bom esperando ir para o céu, não se está racionalizando de fato se é algo positivo, apenas seguindo ensinamentos. “A religião organizada, principalmente, tira, atrasa ou dificulta que as pessoas busquem por si mesmas e treinem um senso crítico sobre suas escolhas. Se não tivesse essa imposição do que é certo ou errado, se as crianças desde cedo pudessem questionar, teríamos um avanço grande na sociedade”, enfatiza. Sobre o ateísmo, ainda permeiam algumas interrogações, mas respeitar as escolhas do próximo é fundamental em todos os aspectos, ainda mais no momento atual, em que a liberdade de expressão está tão em voga.” Não tenho nada contra nenhuma doutrina, acho importante as pessoas se posicionarem com o que acreditam. Muitos se sentem bem meditando, estudando e outras seguindo uma religião, um pastor, um padre ou só Deus. Acho importante todos serem respeitados e seguir os ensinamentos daquilo que acreditam. Não vejo problema, apenas tenho um posicionamento diferente”, diz Lucas Luiz Fraga Souza, 30 anos, servidor público municipal de Gravataí. Ateu. Nascido em uma família com crenças na Igreja Católica, com a avó seguidora da doutrina Espírita, Lucas começou a se posicionar como ateu logo após a primeira comunhão, em 1999. Na época, em busca de realizar a catequese, encontrou barreiras por ter os pais divorciados, o que o fez questionar as imposições inflexíveis que a Igreja queria implementar. “Após isso vi que não era necessário aquilo para minha vida e me sentiria melhor sem seguir nenhuma religião”. Uma decisão que foi bem aceita por todos que o cercavam. Apenas em alguns momentos, ele relata, o fato de ser ateu gera

curiosidade por pessoas recém conhecidas. Lucas percebe, inclusive, um número cada vez maior de jovens se identificando com o ateísmo. Assim como Rodrigo, o servidor público também acredita que deve-se fazer o bem sem esperar nada em troca, como um lugar no céu cristão. “Fazer o bem sem motivo é o melhor. Eu não acredito em religião, mas sempre que possível tiro um tempo para levar roupa e comida para os desabrigados, acho algo importante. As pessoas não devem fazer isso ou aquilo com o intuito de ir para o paraíso ou pro inferno. Os terroristas, por exemplo, que projetam e concretizam ataques porque vão chegar no paraíso com falsas promessas. Eles são muito forçados a acreditarem nisso e acabam fazendo essas coisas de maneira inconsciente”, comenta Lucas.

Valores transformados

Rever opiniões, hábitos e pensamentos é algo natural e faz parte da trajetória de vida dos seres humanos. Algo que antes não fazia sentido hoje pode ser essencial. E foi o que ocorreu na vida da professora porto-alegrense Desirée de Souza Hasperoy, 29 anos, que se posicionava até dois anos atrás como ateia. Batizada na Igreja Católica e pertencente a uma família a qual a mãe é cristã e o pai, ateu, as contradições sempre fizeram parte da convivência.” Como era oito ou 80, ambos sempre foram bem liberais sobre religião, nunca nos obri-

EDIÇÃO 37 Escrita em 2012, a reportagem “O paraíso de quem não crê” foca no posicionamento ateu e na trajetória de vida do professor Rodrigo da Silva Guerra, além de trazer brevemente a opinião do agnóstico Rômulo Garcia. Abordando as visões de céu, sentido da vida, pós-morte e existência do divino, o repórter Tarcísio Bertim aborda como é a vida e os pensamentos de quem não crê em Deus. Diferenças entre ateísmo e agnosticismo são questionadas aos personagens da reportagem, assim como a explicação de um teólogo protestante sobre o tema.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Escrever sobre religião, ou a falta dela, não é algo fácil, pois são posicionamentos e visões de vida muito particulares. Com a possibilidade de escolher entre diferentes temas nessa edição da revista Primeira Impressão, optei pela pauta do ateísmo por curiosidade em conhecer histórias, que ao meu ver, seriam interessantes. O ateísmo é visto por pessoas mais conservadores como algo negativo e incompreendido, e eu queria desmistificar isso. Produzir essa reportagem foi algo desafiador e enriquecedor como repórter, afinal nunca tinha trabalhado esse tema e buscar fontes antigas me deixou ansiosa. Entrevistar e conhecer um pouco mais das histórias das fontes foi algo feito com cuidado e cautela, deixando minhas opiniões e experiências pessoais de lado. Abrir a mente para descobrir e compreender da melhor forma possível trajetórias de vida foi essencial. Os entrevistados foram muito receptíveis e solícitos facilitando a produção do texto. Acredito que cumpri meu papel como repórter e tratei do tema de forma leve e respeitoso.

garam a escolher uma ou não escolher. Mas meu pai se mostrava mais convicto sobre suas teorias. Por este motivo me convenceu que não existia Deus”, conta. Quando ainda se identificava com o ateísmo, Desireé frequentou diversas doutrinas religiosas, como a Igreja Católica, onde realizou a catequese, a Igreja Batista, onde participou, por um período, do grupo de jovens, além de um centro espírita. Mas, segundo ela, tudo por mera curiosidade. Em outubro de 2016, passando por um momento difícil após o falecimento do pai, a jovem foi a Igreja Pentecostal, a convite de uma amiga, atitude que mudaria seu modo de ver a vida. “Fui tocada pelo Espírito Santo e pela misericórdia de Deus, perdoada por todos os anos que duvidei da sua existência. Hoje me sinto uma nova pessoa. Renasci. Sei que o Senhor já guardava minha vida, abençoava meus planos e conhecia meu coração. E no tempo Dele nos encontramos. Posso dizer que não vejo minha vida sem sua presença. Não acho que estava “errada”, pois eu não conhecia a palavra de Deus, nunca fui influenciada a conhecê-lo verdadeiramente. Tudo aconteceu exatamente como tinha que ser, pois Deus sabe de todas as coisas”, enfatiza a professora. A falta de crença ou a intensa participação religiosa abre um leque de estigmas e estereótipos a serem rompidos. Em um momento que se fala tão abertamente sobre a liberdade de escolhas, a intolerância ainda é uma barreira a ser derrubada. Ser evangélico, católico, umbandista, budista, muçulmano, judeu ou simplesmente não crer em nada disso são escolhas íntimas e pessoais. O julgamento do que não se tem conhecimento pode acarretar em más interpretações e equívocos, por isso respeitar o próximo é um dever. Crer ou não em divindades não torna alguém errado ou diferente. Afinal, se questionar, refletir e chegar em suas próprias conclusões são direitos de cada um. Empatia e respeito são os valores que prevalecem, independente das crenças. Todos têm suas próprias experiências e formas de se conectar o mundo. PRIMEIRA IMPRESSÃO 47


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PORTAS ABERTAS PARA A VIDA Aos 81 anos, Machado sente-se realizado com a profissão de chaveiro, a qual dedica-se há 67 anos TEXTO DE JÉSSICA SANTOS FOTOS DE EDUARDA ROCHA

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barulho estridente do metal cortado ecoa na banca de pouco mais de 2 metros quadrados. O cheiro de ferro paira no ar. As mãos já enrugadas, mas ágeis, lixam as rebarbas do corte feito na pequena peça pela máquina. Em menos de dois minutos, está pronta a chave encomendada. É neste processo que se encontra a rotina do senhor José Machado, chaveiro há 67 anos em Porto Alegre. Mesmo aposentado, Machado, como gosta de ser chamado, não pensa em parar de trabalhar como chaveiro. Com uma memória invejável, ele sabe de cor os modelos e a posição das suas companheiras do dia a dia, as mais de 1,8 mil chaves penduradas por toda a extensão do local. Um conhecimento que só os anos de profissão puderam lhe ensinar. Hoje, o trabalho que já foi inteiramente manual, é facilitado pela tecnologia. Entre um “oi” aqui e um abano aos clientes e conhecidos que passam pela banca, localizada no coração de Porto Alegre, na esquina entre as ruas BorMachado exibe ges de Medeiros com Andrade Necom orgulho ves, ele mostra orgulhoso a máquina algumas das mais importada adquirida para facilitar de 1,8 mil chaves expostas na banca e agilizar o seu trabalho. Apesar de reluzente e silenciosa, a companheira mais nova não substitui a velha amiga, com ele há mais de 30 anos. “Essa aqui é o meu xodó (referindo-se à máquina antiga). Trabalho com ela pra não deixá-la parada. Faço umas quatro ou cinco chaves por dia nela para manter funcionando”, orgulha-se. José vem de uma família de chaveiros e aprendeu a profissão com os irmãos. Dos três, ele é o único que seguiu carreira. Iniciou na rua dos Andradas, depois passou pela Borges de Medeiros, General Câmara, esteve em um ponto mais abaixo na Andrade Neves e há 15 anos atua no local onde está hoje. Realizou trabalhos externos por muitos anos, mas hoje prefere permanecer no ponto, por isso, segundo ele, retirou do letreiro o telefone ce-

lular e só atende pelo comercial. Conforme a idade foi chegando, deu-se o luxo de fazer o próprio horário. Sai de casa, no bairro Jardim Dona Leopoldina, em Porto Alegre, pega o ônibus para iniciar o trabalho às 9h30. Às 18h encerra o expediente e retorna à sua residência. Nos dias que antecedem os finais de semana ou feriados, às vezes fecha mais cedo e “se manda para a praia com a esposa”, onde mantém um apartamento. Por ela, Machado nem trabalhava mais, mas ele vê hoje a profissão como uma terapia. “Eu adoro trabalhar. Não tem coisa melhor do que a gente fazer o que

gosta, tendo saúde”. E completa: “Eu falei com meu médico sobre parar e ele disse para não fazer isso. Disse que quando eu parar os primeiros meses serão uma maravilha, mas depois vai bater o tédio e é onde começa a aparecer as doenças”. O sorriso que encerra a frase estampa a alegria de poder praticar o que ama.

Vida realizada

Hoje, Machado diz estar realizado na vida. Tem carro e casa própria e conseguiu viajar para conhecer todos os lugares que queria. “Minha mulher ama viajar, mas eu tinha o sonho de conhecer Manaus. Graças às chaves

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Pedro aprendeu com Machado a profissão de chaveiro, que proporcionou a formação em Direito eu consegui”, comemora. Mas os desejos dele vão além da realização própria. Foi por meio do trabalho de chaveiro que conseguiu formar a filha, Lôide Helena da Silva Miranda, em Pedagogia. Não bastante, a mesma profissão proporcionou ao neto, Pedro José Miranda Souza, uma graduação em Direito. Com um brilho de orgulho nos olhos, ele mostra o cartão de visitas, em tons de vermelho e preto, com o nome e a OAB do neto. Pedro trabalhou com seu Machado por mais de dez anos, mas o avô nunca quis que ele seguisse na profissão. “Eu sempre disse pra ele: ‘Meu filho, o vô não quer que tu seja chaveiro, mas se tiver uma necessidade algum dia tu sabe fazer’”, relembra. O neto carrega com orgulho a profissão herdada. Hoje, o terno cinza, que graças ao incentivo do avô é um dos seus uniformes de trabalho, contrasta com o ambiente simples e movimentado da banca de chaves. Feliz, ele lembra da época que ajudava e aprendia com o avô quando tinha seus treze anos, no auge da adolescência. “Eu saia do colégio, no Ensino Fundamental, e vinha pra cá ajudar ele”. Na faculdade, ele auxiliou o avô por mais um período. Por alguns meses, trabalhou sozinho e cuidou do negócio, enquanto Machado se recuperava de uma ci50 PRIMEIRA IMPRESSÃO

rurgia vascular que precisou fazer devido o tempo de trabalho em pé durante toda a vida. Depois de tanto tempo dedicado às chaves, seu José recebe incentivo da família para que pare de trabalhar e descanse mais. “Ele já fez muito por nós. Meu avô foi o suporte maior para que eu e minha mãe pudéssemos estudar, para comprar os apartamentos que nós temos”, cita o neto. “Quando me formei disse pra ele “Fechou né, vô!?”, mas ele tem sempre um objetivo e é isso que impulsiona ele a continuar vindo, o que pra mim pode o prejudicar”. A tarefa de convencê-lo, segundo Pedro, não é fácil. “Não adianta falar, ele briga com a gente”, ri.

Reconhecimento e gratidão

A semelhança entre Pedro e José é gritante, principalmente quando falam sobre o orgulho que sentem um do outro. Olhando para os dois, é possível arriscar até mesmo alguns traços semelhantes. Mas, o que pouca gente sabe, é que os dois não têm traços biológicos. O chaveiro quase não comenta sobre isso, pois de fato, para ambos, o detalhe não faz diferença. Lôide, mãe de Pedro, é enteada de Machado. No carinho que ele transmite ao falar deles, é possível perceber que ela e o neto são quem o faz alcançar tantos objetivos na vida. “Ele sempre foi o vô,

minha mãe chamava ele assim e eu estava acostumado, não tinha nem como saber que ele não era meu avô biológico. Passou um tempo e eu vi a foto de um homem que eu não conhecia lá em casa, minha mãe me falava que era o pai dela, só que pra mim não fazia sentido”, lembra Pedro. Já crescido, com cerca de 12 anos, ele questionou novamente com a mãe e a avó sobre a foto, foi quando soube que seu José não era seu avô biológico. “Aquilo pra mim não fez diferença nenhuma, continuou tudo igual. Mas ele descobriu que eu sabia e ficou morrendo de medo que eu deixasse de gostar dele”, diz. Pedro conta que, aos 17 anos, como muitos jovens da sua idade, quis fazer uma tatuagem. Decidiu que o desenho seria as iniciais do nome do avô. “Ele relutou um Por meio do pouco, pediu pra eu não fazer. trabalho árduo, Mas pedi autorização da mãe e ela Machado realizou deixou”. Para o neto, o momento o sonho de formar a filha, Lôide, e o principal do desejo foi quando reneto, Pedro tornou à banca com as letras gravadas para sempre na pele. “Eu voltei, mostrei pra ele e ele não acreditou. Para nós dois foi um momento muito emocionante”. Enquanto o avô trabalha nas encomendas do dia, Pedro, encostado em um bloco de concreto ao lado da banca, junto de sua mãe, deixa uma lágrima escorrer ao falar o que o avô representa em sua vida. “Meu avô é a pessoa que eu mais amo no mundo. Falo isso na frente da minha mãe. O amor que eu sinto por este cara não existe”, emociona-se. Para lembrar os velhos tempos, o advogado pega uma chave e adentra na banca, junto de Machado. Ele liga a máquina mais nova, e passa a trabalhar na impressão do metal, relembrando a técnica aprendida. As mãos sem rugas contrastam com a do avô, que o observa parado, quase que de forma zelosa. Em pouco mais de 120 segundos, ele tem em sua mão mais uma cópia, das milhares que já lhe abriram tantas portas na vida.


IMPRESSÕES DE REPÓRTER Desde o início da minha vida acadêmica, fui apaixonada por histórias de pessoas. Aquelas que mostram a vida, superação, contadas de maneira literária e aprofundada. Por admirá-las, para mim sempre foi um desafio muito grande escrever sobre elas. Ao mesmo tempo, sempre tive muito prazer em contá-las. Quando vi a reportagem sobre o senhor Machado, algo me chamou a atenção. Ao conversar com sua família, tive certeza do motivo de o ter escolhido. José é como meu pai. Não fica parado e está sempre em busca de novos objetivos. Sonho em um dia poder contar a sua história de vida, que muito me orgulha. Além da admiração jornalística ao gênero literário, foi isso que me aproximou da reportagem. Agradeço pela recepção, tanto dele, quanto da sua filha Lôide e do seu neto Pedro. Contar uma outra etapa da história de Machado foi gratificante. Poder dar voz e valorizar através de um outro olhar a sua profissão, que quase sempre é lembrada apenas nos momentos de sufoco do nosso dia a dia, é uma honra.”

EDIÇÃO 39 O quanto nossa vida pode mudar em cinco anos? Apesar de parecer pouco, muita coisa pode acontecer neste curto espaço de tempo. Em uma reportagem da edição 39 da PI, a repórter Yngrid Lessa contou sobre a vida do chaveiro José Machado e histórias marcantes nos seus mais de 60 anos de profissão. Nos cinco anos que se passaram, alguns sonhos se concretizaram. Sonhos que só foram possíveis com o trabalho dele.

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50 EDIÇÕES FASE 2 Sui Generis (edições 7 e 8) Aqui, houve duas grandes mudanças. A primeira e mais perceptível: as capas passaram a ser impressas totalmente em cores. A segunda alteração dizia respeito ao projeto editorial. A partir da edição 7, publicada em 1997, a Sui Generis trataria exclusivamente sobre comunicação. Sabendo da nova diretriz, os alunos conseguiram, a partir de então, unir o assunto “comunicação” com outros de grande repercussão na sociedade. No número 7, o tema foi “mulher e comunicação”, e no 8, “futebol e comunicação”.

1993

1997

FASE 1 Sui Generis (edições 1 a 6) Em julho de 1993, surgia a Sui Generis. Criada pelos professores do curso de Jornalismo da Unisinos, a revista-laboratório tinha como objetivo materializar em uma publicação real reportagens produzidas pelos alunos. Na fase inicial, as páginas internas eram impressas em preto e branco. Na capa, apenas uma cor. A partir do terceiro número, já se notava a vocação da revista em dedicar-se a um único assunto. Faltavam poucos anos para a chegada dos anos 2000, e a Sui Generis tratou em mais de uma edição sobre a antecipação de tendências, principalmente tecnológicas, para o novo milênio.

O I R U CIDADES S

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PRÊMIOS A Primeira Impressão já ganhou diversos prêmios em concursos estaduais e nacionais. Entre os mais importantes estão o Prêmio Líbero Badaró, Expocom – Exposição de Pesquisa Experimental em Comunicação, Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo e Set Universitário.


Conheça um pouco da história da revista Primeira Impressão, que completa 25 anos

FASE 4 Primeira Impressão (Edições 14 até a atual) A presente edição, a 50, está dentro da mais longa fase da revista. A partir de 2001, a Primeira Impressão teve nova remodelação, tanto estética quanto editorial. Na área do design, além de um novo projeto gráfico, a revista aumentou de tamanho, trocou o papel de offset para couché e passou a ser impressa a cores também nas páginas internas. No conteúdo, a vocação temática permaneceu, mas, a partir de agora, qualquer assunto poderia ser tratado. E permanece assim até hoje.

1998

2001

FASE 3 Primeira Impressão (edições 9 a 13) “Parem as máquinas! Não podemos mais usar o nome Sui Generis!”. Durante a preparação da edição 9, em 1998, um imprevisto: professores descobriram que uma publicação carioca possuía o mesmo nome. Era preciso, então, mudar. Um concurso entre alunos, com direito a troféu, reuniu mais de cem sugestões de nome. “Primeira Impressão”, proposto por Rosa Albina da Silva, foi o vencedor. Esteticamente e editorialmente, a revista manteve as características da fase anterior. Foram cinco edições sobre comunicação, cada uma com um foco: amor, poder, diversão, sexualidade e “ontem e hoje”.

DUAS EM UMA A edição 13, de 2000, carrega dois feitos: a de ser a única a ser produzida no formato “duas em uma”, com duas capas e dois conteúdos distintos; e a de possuir 168 páginas, a maior quantidade já impressa até hoje.

VISITA DE PERSONAGENS Quando os exemplares chegam da gráfica, os alunos que produziram a edição promovem um coquetel para comemorar. Além dos estudantes e dos professores, personagens das reportagens costumam aparecer. Foi o caso do transformista Jair Rangel, capa da edição 23, de 2005, que fez uma apresentação exclusiva para os presentes.

FLAGRANTE A aluna de Jornalismo Aminie Jardim foi capa da edição 30, de 2008, para ilustrar a temática sobre “limite”. O colega de curso Ângelo Daudt produzia fotos para a revista dentro da universidade quando flagrou, por acaso, em um click, Aminie chorando. Ela recebia, por telefone, naquele momento, a notícia da morte de seu tio.

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS Cep: 93022-750. Telefone: (51) 3591.1122 Site: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR ACADÊMICO E DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: Alsones Balestrin PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba GERENTE DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO: Paula Campagnolo COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs

pi primeira impressão

REDAÇÃO TELEFONE: (51) 3590.8466 E-MAIL: revistaprimeiraimpressao@gmail.com

Orientação Anelise Zanoni (aneliseza@unisinos.br) - Redação Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br) - Fotografia

Reportagem Atividade Acadêmica: Narrativas Jornalísticas e Planejamento Editorial Caroline Tentardini, Caroline Tidra, Gabriel Nunes, Guilherme Chaves, Helen Appelt, Jéssica Santos, Leonardo Ozório, Marcelo Janssen, Maria Carolina de Melo, Nagane Frey, Thamyres Thomazini e Vitorya Paulo MONITORA: Amanda Victória Büneker

Fotografia Atividade Acadêmica: Projeto Experimental em Fotografia Bolivar Gomes, Caren Rodrigues, Eduarda Rocha, Eduardo Brandelli, Felipe da Silva, Gabriel Palma, Giordano Foppa, Jessica Beltrame, Kellen Dalbosco, Murilo Dannenberg e Suellen Santana FOTO DE CAPA: Gabriel Palma

ARTE E PUBLICIDADE Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) COORDENADORA-GERAL: Cybeli Moraes

Editoração PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: Marcelo Garcia

Anúncios ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Robert Thieme SUPERVISÃO TÉCNICA: Larissa Schmidt ATENDIMENTO: Isabella Woycickoski DIREÇÃO DE ARTE E ARTE-FINALIZAÇÃO: Acrides Junior Ávila REDAÇÃO: Cléo Rosa

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O mundo muda. O mercado muda. A Unisinos muda tambĂŠm.


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