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| julho de 2019 |

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HISTÓRIAS MOVIDAS PELA ÁGUA


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MESCLA.CC


EDITORIAL

UMA GOTA NO OCEANO

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bundante no planeta e nos corpos vivos, a água é um recurso mal administrado mundo afora e, especialmente, na América Latina, talvez por ser esta a parte do mundo em que se apresente em maiores volumes. Vistos a partir das câmeras potentes das naves espaciais que circulam pelo espaço, os oceanos, os rios e os demais cursos representam cerca de 70% da superfície terrestre – dos quais 97,5% são de água salgada e 1,75% está congelado nos polos, restando para uso imediato apenas 0,75%, portanto. Os números acima, compartilhados recentemente por organizações como a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, pela Universidade de Londres e até pela Nasa (sigla em inglês da Agência Nacional de Aeronáutica e do Espaço), alarmam ainda mais quando a eles se junta a constatação de que um quarto dos 8 bilhões de humanos da atualidade habita áreas de escassez, mas com consumo seis vezes superior ao de 100 anos atrás. Ásia e África são as regiões em que o problema é mais grave. E também onde ocorre mais expansão populacional. É, ainda, nelas em que mais se registra a condição de uma única fonte de água dividida entre duas ou mais nações. Juan Pablo Rud, especialista ar-

gentino da Royal Holloway, da Grã-Bretanha, alerta os países latino-americanos para um futuro pleno de desafios: mudanças climáticas, temperaturas em elevação, precipitações erráticas e urbanização descontrolada, ao lado do necessário desenvolvimento econômico e social – conforme disse ele, recentemente, ao jornal La Nacion, de Buenos Aires. Torna-se, assim, relevante a escolha temática feita neste semestre pelos alunos de Narrativas Jornalísticas e Planejamento Editorial/Jornalismo Literário e de Projeto Experimental em Fotografia para a atual edição da Primeira Impressão: água! O assunto percorre as histórias reveladas nas páginas seguintes da revista, evidenciando etapas da vida humana: do começo (parto natural, batismo) ao fim (perda, abandono), passando pelos sentimentos (paixão, medo) e pela necessária sustentação (artístico-cultural, econômico-financeira, esportiva, laboral e turística). Uma gota no oceano de um lugar chamado consciência. Boa leitura! Nikão Duarte Professor editor de texto Flávio Dutra Professor editor de fotografia EDUARDA BITENCOURT

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GABRIELA DA SILVA

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ÍNDICE 06 10 14 18 22 26 30 38 42 46 50 54 58 62

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RETORNO AO NATURAL Em busca de bem-estar e acolhimento, mães optam por partos humanizados ORIGENS A água, que dá início à vida, é o berço da ancestralidade religiosa de um povo FONTE DE FERTILIDADE Na Serra Gaúcha, irrigação é forte aliada para o êxito rural A MULHER E O RIO Jussara incorpora a força das águas para fluir nas torrentes da vida O SUSTENTO QUE VEM DAS ÁGUAS Em Canoas, famílias ribeirinhas usufruem da pesca e do turismo para a sobrevivência AS DIFERENTES FACES DE UM RIO Águas que ajudam a superar medos também deixam marcas e levam vidas PARAÍSO PERIGOSO Amantes da água se veem diante do medo de que aquele seja o último mergulho CONTINUE A NADAR Medo da água? Enfrentá-lo pode ser a melhor solução A CURA NA ÁGUA Hidroginástica é alternativa de saúde e qualidade de vida MAIS DO QUE ESPORTES Diversão para alguns, estilo de vida para outros DIÁRIO DE BORDO Viver em alto mar: os bastidores de quem trabalha nos cruzeiros ENXURRADA ARTÍSTICA Como um vazamento de água gerou uma nova exposição de Denise Gadelha CAMINHO SOBRE O RIO Vidas se cruzam na travessia da ponte Giuseppe Garibaldi, entre Tramandaí e Imbé DA PONTE PARA LÁ As vidas cercadas pelas águas que banham a Ilha da Pintada

AS RUÍNAS ESQUECIDAS Ilha que já foi presídio sofre o apagamento do tempo PRIMEIRA IMPRESSÃO 5


UM RETORNO AO

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O NATURAL LAURA NIENOW

Busca por bem-estar e acolhimento faz mães optarem por partos humanizados e domiciliares TEXTO DE MAESE CLOSS. FOTOS DE LAURA NIENOW

Família Wasem vive a alegria de saber que escolheu o melhor método para Manu nascer

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er mais um filho não estava nos planos. Já havia uma adolescente de 13 anos e um menino de oito. A notícia de uma terceira gravidez chegou como um susto para Ana Paula Homem Wasem e durante algum tempo ela não soube como lidar com a novidade. O medo de passar novamente por procedimentos desnecessários que trouxeram sofrimento para a mãe e seus bebês fez com que ela buscasse informações sobre maneiras mais confortáveis de conceber o seu filho Emanuel, o Manu. A mãe escolheu o parto humanizado domiciliar, procedimento que prioriza o seu bem-estar e as suas decisões, e foi a maneira que ela buscou para se conectar melhor com o seu bebê. No caso de Ana Paula, o parto ocorreu na sala de sua casa, em uma piscina de plástico, na presença do seu marido Fabiano, da irmã Deise e dos filhos Camile e Théo. Nenhum medicamento foi utilizado, já que Ana Paula procurou que fosse o mais natural possível. A banalização dos maus tratos aos corpos de gestantes se tornou algo tão comum, que muitas mães ignoram ter sofrido violência obstétrica. Não é o caso de Ana Paula. Os partos domiciliares são realizados por um ou mais enfermeiros obstétricos, e em muitos casos também na presença de um doula. Juliana do Nascimento, a escolhida por Ana Paula, explica que doula é a pessoa formada em um curso de capacitação e que realiza um acompanhamento na gestação. Durante o processo o profissional ajuda a mãe a entender o que ela pode esperar do parto, dando apoio emocional e auxiliando com exercícios que diminuem as dores na hora do nascimento do bebê. Juliana se formou como doula em 2015, por influência de sua amiga Tatiane Fagundes, da qual ela sabia que há algum tempo buscava se informar sobre a humanização do parto. Três de janeiro de 2007, duas horas da manhã. Sapiranga é uma das cidades mais quentes do Rio Grande do Sul, e mesmo de madrugada o calor é intenso nessa época do ano. As contrações começam e a intuição de PRIMEIRA IMPRESSÃO 7


ARQUIVO PESSOAL

Presença do pai contribuiu para melhor acolhimento e conforto durante o parto de Ana Paula mãe não falha: chegou o momento. A doula, Juliana, e as enfermeiras obstétricas Ana Terra e Marta Sabocinski são chamadas. A temperatura quente da água é um dos fatores que contribuem para o conforto ao dar à luz, pois diminui as dores. “É um analgésico natural”, diz Juliana. A mãe, Ana Paula, não era a única pessoa que estava com medo de realizar o parto num hospital. Fabiano diz que as pessoas se dão conta tarde demais da violência sofrida durante os partos cirúrgicos. Ele precisou aprofundar-se no conhecimento sobre o assunto para compreender que este seria o melhor método para o nascimento do filho. “A humanização do parto e o respeito ao que querem as grávidas não deveriam ser privilégios, mas prática padrão”. A doula Juliana explica que não há como definir um único procedimento como o mais adequado, afinal, cada mulher deve ter a autonomia em saber o que é o melhor para si. Porém, em termos gerais, ela define o parto humanizado domiciliar como o mais acolhedor. Tatiane Fagundes, a amiga ativista de Juliana, muitos anos antes de pla8 PRIMEIRA IMPRESSÃO

nejar engravidar já buscava informações na internet sobre a humanização do parto. A doula Juliana acompanhou o nascimento de Bruno, segundo filho de Tatiane. “Não sou contra a cesariana, mas o problema é que esse procedimento foi banalizado pela sociedade”, diz Tatiane. No Brasil, 55% dos partos realizados em 2014 na rede pública foram cesarianas, e na particular foram 84%. Os dados são do Ministério da Saúde. A mãe defende que o procedimento cirúrgico salva vidas, quando necessário.

“Nunca mais serei maltratada em um parto”

“Se você continuar com essa frescura, eu não vou te atender”. “Na hora de fazer você gostou, né?!”. Comentários agressivos durante o momento de dar à luz em hospitais são frequentemente relatados por mães, juntamente com confissões de medo de morrer no parto, tortura psicológica e exames abusivos de toque. A violência não deixa apenas marcas físicas, mas também cicatrizes na alma. Ao invés de um lugar de segurança para a chegada da filha, os hospitais se tornaram uma referência de maus tratos no caso da mãe Francielli Malinski de Oliveira. Um misto de emoções a envolve ao recordar o nascimento do seu segundo filho, Lucas. Ao chegar ao hospital, tendo o ritmo contrações desacelerado, Francielli diz que a médica que a atendeu injetou o hormônio ocitocina, que é responsável por induzir as contrações e reduzir o sangramento, sem sua permissão. Segundo ela, a profissional pediu que a enfermeira “desse uma ajuda à mãe” e empurrasse sua barriga, com o intuito de acelerar o nascimento.

“Ainda não estava na hora”, recorda a mãe. Todo o planejamento de ter um parto natural estava sendo interrompido sem sua vontade. Ela relata ter pedido “pelo amor de Deus, não faz”, mas que a médica respondeu “eu estou mandando a enfermeira empurrar”. Neste momento a mãe sentou-se para tentar impedir o ato, mas mesmo assim a enfermeira conseguiu empurrá-la. “Senti muita dor, eu jamais imaginei o nascimento do meu filho assim”, relembra Francielli, tentando conter as lágrimas. Outro procedimento não autorizado pela gestante foi a episiotomia, corte realizado para facilitar a saída do bebê. Já a anestesia que a mãe pediu que fosse feita durante os pontos, não foi atendida. “A médica disse que era uma região sensível e não faria efeito”. Francielli levou mais de uma hora após o nascimento para poder tocar seu bebê pela primeira vez. Não foi permitido acompanhante na cirurgia: nem o pai, nem a doula Juliana, que acompanhou toda a gravidez, puderam entrar. O direito a acompanhante durante o parto é garantido pela lei n. º 11.108/2005. Ela acredita que o motivo que leva alguns médicos a agirem de forma agressiva e realizarem procedimentos desnecessários para induzir o parto seja a intenção de terminar rapidamente o processo. Francielli está grávida de Lavínia, que assim como o menino Manu, também nascerá em casa, na sala, e na presença do pai e dos irmãos. Está tudo sendo organizado discretamente, e na 34° semana de gravidez, ela diz sentir-se tranquila. “Nunca mais serei maltratada em um parto, estamos tendo o cuidado para que seja algo especial e íntimo”. O momento do nascimento tem um marco forte no vínculo entre mãe e filho e para Francielli, uma experiência ruim pode ficar marcada no inconsciente do bebê.

Empoderamento feminino

Ana Terra, que também realizou o parto de Manu, é uma das enfermeiras obstétricas que realizará o parto de Lavínia. Ela conta que já acompanhou mais de 100 partos, e que a partir de 2014 ela começou a atender procedimentos domiciliares. Foi por meio do convívio com uma parteira que ela desmitificou sua crença quanto aos partos em casa. “Eu tinha a ideia equivocada de que era para ricos e que teria que haver uma ambulância na porta de casa. E com a vivência, eu vi que era acessível e que eu gostaria de fazer isso”.


A profissional ressalta que a atual facilidade em ter acesso a informações contribui para que as mulheres busquem melhores condições de dar à luz. “As grávidas estão mais conscientes que seu corpo é capaz de gestar e parir seu bebê, quando por muito tempo elas foram levadas a crer que tem corpos imperfeitos, que não tem dilatação, que a bacia é estreita.

No parto domiciliar é possível esperar o tempo necessário para o nascimento ao natural, sem induções”. A enfermeira Anita Machado é a outra profissional que está acompanhando o pré-natal de Francielli. Ela defende que o empoderamento feminino do período atual é um dos fatores contribuintes para o retorno ao parto natural. As duas enfermeiras fazem parte da equipe de obstetrícia“Nascente – Parto Domiciliar Planejado”, de Porto Alegre. Poder dar uma assistência mais individualizada às mães foi o motivo que levou Anita a se profissionalizar na área. LAURA NIENOW

Na definição da expressão “parto humanizado”, há muitas variáveis. “Humanizar é respeitar a opinião da gestante, é tu não intervir no corpo dela sem sua autorização, e sem a real necessidade. É não mascarar uma situação só porque é conveniente pra ti, e não para aquela mulher”, diz Anita. Fazer com que os desejos da mãe sejam respeitados, naquele momento tão particular, singular e delicado, de forma geral, é a definição de parto humanizado. Em toda a experiência de Ana como enfermeira, ela não consegue imaginar um cenário de nascimento aonde o pai tenha maior participação, do que aquele que acontece na casa da família. No hospital, o máximo de proximidade que ele pode ter com o acontecimento, é como espectador. Gerar uma criança é um evento familiar, e os filhos presenciarem é algo saudável. “Naturaliza a experiência, desmistifica o ato de nascer, e o mundo precisa ter esse retorno ao que é natural e fisiológico”. Dar à luz em casa tem seus prós e contras, e profissionais ressaltam que não é para todas as gestantes. “É para as mulheres que têm conhecimento dos benefícios e riscos, e que não estão em uma gestação com complicações. Há critérios para essa mulher ter o perfil apto a passar por isto. Se o hospital for o melhor lugar para ela se sentir segura, e a ideia de cesariana a deixar mais confortável, então ela não deve optar pelo parto natural domiciliar. Independentemente do processo escolhido, respeito deve haver em todos os casos”, conclui Ana Terra.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

Francielli organiza as roupas da filha Lavínia, na sala de sua casa, local onde ela nascerá

Imergir no tema “parto”foi um dos desafios aceitos ao definir a pauta. Iniciei a reportagem praticamente como uma leiga no assunto, pois eu não tinha nenhum conhecimento sobre anestesias, aceleramento de contrações e elementos que definem a naturalidade de um parto. Fui privilegiada em poder entrar no lar de mães e ouvir suas histórias: algumas traumatizantes, outras alegres e esperançosas. O que há em comum entre elas é a intenção em lutar pelo direito de ter suas vontades respeitadas em um momento tão delicado, que é o nascimento de seus filhos. São gestantes que buscam conhecimento sobre o assunto e que querem transmitir a outras mães o saber de que podem ser protagonistas durante este momento, em busca de bem-estar e maior qualidade de vida. Ao concluir a reportagem, me sinto apta para dizer que em um parto, cada mulher tem necessidades únicas, e ela, juntamente com a sinceridade e a clareza de um profissional, é quem deverá decidir o que é melhor para si e para o seu bebê.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 9


Camila Silva, 23 anos, Nação: “A água é quem te inicia. Ela é o primeiro elemento da religião. Tu lavas a tua cabeça. Ela é o marco zero”

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ORIGENS O elemento que dá início à vida também serve como berço da ancestralidade religiosa de um povo TEXTO DE BRUNA LAGO FOTOS DE VITORYA PAULO

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gua. Substância química cujas moléculas são compostas por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. Não há nada de incrível nelas, apenas são como são. E mesmo assim, quando a água toca o turbante da filha de Iemanjá, há um significado especial por trás. Camila Silva tem 23 anos. Três desses são dentro de um terreiro de Nação, religião de matriz africana que nasceu no Rio Grande do Sul. No início do século XIX surgem os primeiros terreiros nas terras de Rio Grande e Pelotas, juntando características de religiões de países como Nigéria, Benin e Costa da Guiné. Formada por várias nações, Jêje, Ijexá, Oió, Cabinda e Nagô, a religião assume o nome de Pará. Na segunda metade do século XIX, com a migração de ex-escravos na direção da Capital, a religião se expande e, aos poucos, é chamada de Nação. Batuque era o termo genérico com o qual os brancos se referiam a qualquer religião de matriz africana. Vestida com a túnica florida de azul e branco, Camila se inclina na direção das ondas suaves e saúda a personificação da sua divindade. São como duas Iemanjás se cumprimentando: o espelho da água reflete a versão humana que sorri com facilidade e fica bem em fotos. “Eu não tinha uma relação ancestral com o mar. É mais do que ser a representação pura do meu orixá, porque a água salgada é Iemanjá. Iemanjá é a água salgada. Ela está ali presente. Então mais do que isso, é uma ligação com o ancestral”, explica com a tranquilidade que, comumente, se associa as representações da orixá. Debaixo do sol forte, a pele negra assume um tom acobreado que lembra as imagens feitas de pedra e contribui para a atmosfera do dia. As pessoas presentes no píer da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, observam com certo interesse a jovem descalça passear pela areia. Na mistura de mitos, a origem de Iemanjá está ligada a Olokum, deusa do mar, e a partir dela, as versões se afastam e se aproximam, criando ramificações que buscam explicar todas as formas da divindade. Mãe de dez filhos, Iemanjá se apresenta como fonte de fertilidade e proteção, a água que revive a terra seca e faz a vida prosperar. Mas, como filha de Olokum, é a força e os castigos do mar, apesar do sincretisPRIMEIRA IMPRESSÃO 11


mo religioso ter apagado algumas nuances menos femininas da sua personalidade para aproximá-la da Virgem Maria. A identidade descrita como sendo a própria água salgada também divide espaço com sua origem no mito, quando era filha do rio. Embora Oxum seja a orixá da água doce, Iemanjá ainda recebe homenagens por causa do encontro da água doce com a salgada. “Iemanjá, a rainha das águas, que usa roupas cobertas de pérolas. Ela tem filho no mundo inteiro. Iemanjá está em todo lugar onde o mar vem bater-se com suas ondas espumantes” Trecho da lenda de Iemanjá. Autor desconhecido.

Camila lembra que, quando se fala de água, a ligação dentro da religião é direta. O rito de iniciação é lavar a cabeça para o orixá, onde a água representa a limpeza espiritual, preparando o terreno para a ação do guia. “Eu lembro de quando lavei a minha cabeça pro meu santo, eu chorei muito porque representava que, a partir daquele momento estava entregando a minha cabeça para o meu orixá, sabe. Vai ter uma energia especial na tua cabeça. E essa ligação não se explica. Ela só acontece. E aí a gente tem esse elemento, que é o instrumento de uma ligação. Então, é importante frisar que independentemente se tu és filho de Iemanjá ou não, a água é quem te inicia. Ela é o primeiro elemento da religião. Tu lavas a tua cabeça. Ela é o marco zero.”

Menina da praia

“Meus pais não são de religião de matriz africana. Na verdade, eu entrei no Batuque, na Nação, porque o meu tio é pai de santo. E nós nos tornamos muito próximos. E aí, através dele eu comecei a conhecer a religião. Apesar de ser uma mulher negra, e tudo mais, eu não tinha um conhecimento sobre religião. E também não sabia de qual orixá eu era filha.” Em dois de fevereiro, dia de Iemanjá e também de Nossa Senhora dos Navegantes, escrupulosamente, Camila partia com caravana de excursão para 12 PRIMEIRA IMPRESSÃO

a praia, e apesar de não saber ainda que a emoção se explicava no plano espiritual, oferecia suas flores e aproveitava as festividades com adoração. Quando se iniciou na religião, foi no jogo de búzios que Iemanjá respondeu imediatamente e a história com o mar teve uma confirmação. “Ela sempre cuidou de mim, sempre me guiou, mas eu não sabia, eu passei a ter uma nova relação com a água. Porque daí o mar passou pra mim a ter um novo significado. Eu sempre gostei muito de mar, e nunca tive medo, sempre gostei muito, sempre achei muito bonito e sempre gostei de praia.” “Nunca quase morri afogada e minha orixá me

salvou, isso nunca teve”, ri da ideia, mas o riso logo vira um sorriso tranquilo quando os pensamentos desviam para as lembranças. “É louco pensar sobre isso, né. Eu acho que a presença é tão contínua, ela é tão sempre muito forte, que eu não consigo relatar um caso especial, que tenha sido tão... que tenha fugido da curva. Mas eu acho que a coisa mais louca é a emoção que eu sinto quando chego perto do mar.” A sensação de estar em casa


passeia pela lembrança e ilumina os olhos enquanto Camila fala. Como ela mesma menciona, são sentimentos impossíveis de tentar racionalizar, afinal, o oceano não é o elemento mais acolhedor da natureza, mas para os filhos de Iemanjá, é a imagem da mãe protetora. “E é uma real sensação, absoluta sensação, de estar em casa.”

Rainha do mar

Camila usa a roupa ritualística como quem ostenta uma bandeira. Os olhares de curiosidade não são ofensivos ou agressivos, e ela sabe: todos os seus atos têm importância para sua religião. O Batuque é uma das maiores heranças africanas no Rio Grande do Sul. Com elementos trazidos de várias etnias, a Nação representa todas as nações que a construíram, mesclando crenças e simbologias que ficaram presas no tempo. Sem contato com outras religiões de matrizes africanas, e menos ainda com sua origem, na África, a Nação mantém rezas e canções em yorubá, como seus ancestrais. “Nessa perda de contato, eles mantiveram esse dialeto que era falado há 200 anos. Então, é uma conexão. Pensa assim, a gente tem 350 anos de história, e ela é toda pautada na oralidade. Não tem uma tradução de yorubá. Não vai ter, porque ela veio trazida, não tem uma tradução das rezas. As rezas são todas em yorubá, mas não tem uma tradução, por exemplo.” Além da língua, a organização social dentro dos terreiros é diferente de outras religiões. A relação entre o pai de santo e seus filhos, o respeito por ancestrais e anciões, é uma das características herdadas com maior força. “É uma religião, mas é mais do que isso, é uma herança africana, é uma ancestralidade. Não é à toa que ela sofre intolerância religiosa. Isso é diretamente ligado ao racismo”, observa com seriedade. Apesar do Rio Grande do Sul ser o Estado brasileiro com o maior número de adeptos de religiões de matrizes africanas, segundo dados do IBGE, não quer dizer que sejam apenas pessoas negras. “Muitas pessoas brancas cultuam a religião, mas ainda tem esse preconceito pela questão de ser uma religião de

pessoas negras. Uma religião trazida por escravos.” Por esse lado, a Nação e outras religiões trabalham no fortalecimento da história das pessoas negras, relembrando o passado de sofrimento. “Quando a gente fala de matriz africana pra pessoas pretas, a gente tá falando de ancestralidade, né.” O vício de linguagem absolutamente brasileiro combina com o fervor dos argumentos. Nesse momento de reencontro com suas origens, ao mesmo tempo que a pouca idade e a inserção no mercado de trabalho combinam com a pressão de ser mulher e negra, Camila compreende seu papel e tira disso a força da personalidade cativante. “Todos os santos e todos os exús, todas as entidades que me guiam, elas têm ligação com o mar. Então a ancestralidade, ela é muito presente, né. Tem até um ponto que diz, né, que a maior falange é no mar, porque foi o lugar onde muitas pessoas negras, escravas, morreram. Quando foram sequestradas e trazidas pro Brasil. Então quando a gente fala de mar, a gente fala de ancestralidade. E no meu caso pessoal, a gente fala de uma ligação muito forte com a minha espiritualidade, porque estar no mar é estar em casa. Tanto quando a gente tá falando de orixá, quando a gente tá falando de exú.” Filha de Iemanjá com Ogum Adiolá, acompanhada e guiada pela Pomba-Gira Menina da Praia e Exú Maré, o mar e a vontade guerreira estampam o rosto jovem, de feições tranquilas, que fala com firmeza e autoridade. A mesma firmeza quando responde o questionamento de um desconhecido, curioso.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Uma das coisas mais difíceis, ao se falar sobre religião, é falar de forma clara e sem preconceitos, sem se deixar levar pelas ideias que achamos que sejam as certas. Por isso, desde o começo, tinha combinado com a Vitorya, a fotógrafa, que seria, sobretudo, uma relação de companheirismo entre religião e praticante. E deu certo. Nos surpreendemos com a facilidade com que a entrevistada tem de tornar os momentos simples em sagrados, e acho que ela também assumiu o tom que a reportagem teria. E nós fomos, tranquilamente, arrastadas pelas ondas de Iemanjá. O melhor momento da entrevista, talvez do texto, é a percepção histórica e simbólica que aquela roupa, que aquela música, que aquela tradição encerra. Hoje tentamos dar um passado para ser reconhecido pelos jovens e crianças, principalmente aqueles desprovidos de assistência, e que seja possível enxergar nele a esperança no futuro.”

“Tu é da Umbanda?” “Não, eu sou Nação.” E nessa frase, no ser Nação, fica implícito o longo trajeto dos filhos que vieram antes dela, desde a origem da religião, assentando o terreno para as lutas que ela trava agora. “Como é lindo o canto de Iemanjá Faz até o pescador chorar Quem ouvir a mãe d’água cantar Vai com ela pro fundo do mar...” Ponto popular para Iemanjá. Autor desconhecido. PRIMEIRA IMPRESSÃO 13


FONTE DE FERTILIDADE Na Serra Gaúcha, irrigação é forte aliada para o êxito rural TEXTO DE RENATA GARCIA. FOTOS DE MARTINA BELOTTO

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s primeiros raios de sol surgem ao meio das árvores e os pássaros despertam um por um, com o seu canto, anunciando a chegada de um novo dia. Muito antes dos supermercados abrirem suas portas e a população ter acesso aos produtos, pessoas acordam, junto ao amanhecer. Milhares de agricultores ao redor do país veem o dia começar muito cedo. Toda a dedicação tem como principal objetivo o acesso a produtos de origem vegetal de qualidade. As raízes desse processo não se detêm somente as hortaliças, há uma herança cultural que move as colheitas e a produção. No alto da Serra Gaúcha, em Gramado, a agricultura familiar ainda tem forte resistência. Segundo o IBGE, o município tem cerca de 35 mil habitantes e, ao contrário do que muitos pensam, não é apenas um polo turístico, de belas paisagens, fondues e o glamouroso Festival do Cinema. As tradições vindas dos italianos e alemães podem ser vistas a alguns minutos do centro da cidade: centenas de propriedades agrícolas movimentam a vida de famílias que fazem da terra sua principal forma de sustento. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 5,6% da área territorial do município abrigam plantações.

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A 30 minutos do centro da cidade, na localidade da Serra Grande, a família Fais já inicia suas atividades em sua propriedade. Os seis hectares de terra da família recebem a plantação de alfaces, repolhos e brócolis. O dia já começa com a distribuição das hortaliças que foram previamente separadas no dia anterior. O casal Marlene e David Carlos Fais dispõe as variedades, com muito cuidado, em pequenas caixas. O processo é extremamente familiar, com auxílio do filho Volmir Fais. Após o carregamento da Fiat Strada Vermelha, o pai da família segue rumo aos supermercados da cidade e às escolas para as entregas da semana. Volmir abandonou o emprego convencional há cerca de dois anos, em uma fábrica de móveis, para auxiliar os pais na propriedade. O jovem conta que a decisão não foi fácil, mas não se arrepende. “Foi um


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Marlene Fais e o filho Valmor realizam boa parte do plantio da família pouco complicado no começo, mas com o tempo fui percebendo que era preciso estar junto com o pai e a mãe. A gente vai buscando trazer novidades e tecnologias que nos auxiliam na produção”, conta.

Aliada na produção

Volmir se afasta do plantio por alguns minutos e se ouve ao longe o som do trator. Ali inicia o processo onde a água torna-se protagonista da plantação. Entre todas as manobras com o trator, Volmir chega até o açude da propriedade e liga uma bomba que faz com que a água mova-se através dos canos, até o seu destino final. Ao som da água correndo pelos canos, é possível notar, em poucos segundos, a chegada até as hortaliças. A imagem lembra a irrigação de jardins e parte de um mecanismo muito parecido. Esse processo se denomina irrigação por aspersão, onde jatos distribuem água sobre a plantação, como se fosse chuva. A técnica agrícola da Emater de Gramado, Janete Basso, conta ainda que esse tipo de aspersão é indicada para terrenos menos uniformes, com declives, como é o caso. “Além disso, a aspersão pode ser utilizada em solos com alta capacidade de infiltração e baixa capacidade de 16 PRIMEIRA IMPRESSÃO

retenção de água, por permitir irrigações frequentes e com menor quantidade de água”, comenta. Esse tipo de irrigação é feita por uma tribulação de sucção que leva a água até as plantações. Esse é um dos métodos para garantir uma colheita mais qualificada e de melhor qualidade. Porém, é preciso cuidado com a cultura desses solos, com a rotatividade do plantio, as condições climáticas e as variações dos locais. Mesmo sendo um processo que agiliza a forma de irrigação do solo, a atividade passa a ser extremamente manual, o que demanda tempo e dedicação diários. A família Fais precisa estar sempre atenta ao clima e ao solo, para ativar a aspersão. No verão, por exemplo, Volmir realiza cerca de três a seis irrigações por dia. “O vento, a umidade e a temperatura são os principais fatores que afetam o uso da irrigação, por isso precisamos sempre estar atentos para acertarmos nossa rotina”, analisa.

Distribuição

Entusiasmados, Volmir e Marlene contam que estão aprimorando novas técnicas para a distribuição dos produtos que cultivam. Tendo em vista a rotina corrida da população e a procura por uma alimentação mais prática, a família começará a investir, nas próximas semanas em embalagens com um mix de produtos, todos frescos de procedência certificada pelos órgãos competentes. Volmir pega seu celular e mostra os primeiros testes dos legumes que serão comercializados. “Estamos nos especializando ao máximo para entregar esse produtos e comercializar nos mercados, onde já vendemos. Tivemos que fazer diversos cursos de boas práticas para seguir com essa ideia”, conta. “Sabemos como o dia a dia das pessoas é corrido, né? E as pessoas deixam de comprar verdu-

ras, porque já pensam que elas vão estragar na geladeira, por isso pensamos em montar essas bandejinhas. É algo simples, mas sabemos que pode ajudar muitas pessoas”, conta Marlene.

Resultado

A 12 quilômetros do centro de Gramado, em meio a uma estrada de chão estreita e casas nos topos dos morros, vive a família Pereira, que produz anualmente de 12 a 13 mil quilos de morango. A rotina da família inicia às cinco da manhã, com Marcelo Pereira fazendo sua primeira visita às seis estufas da propriedade. O trabalho de plantio e o cuidado com o morango são minuciosos e mostram a fragilidade de cada uma das frutas. Enquanto limpa o suor, decorrente do forte sol, as folhas secas do morango são descartadas e depois utilizadas como adubo. Mas o agricultor não cuida de tudo isso sozinho. Marcelo conta com a ajuda de Cristiane Reinehr, com quem é casado. Além de auxiliar na plantação quando necessário, Cristiane faz a distribuição e a entrega de morangos. Como a propriedade fica a mais de 30 minutos do centro da cidade, é preciso demandar um tempo


Em meio aos morangos, família Pereira garante o sustento por meio da terra especial durante a semana para realizar esse trabalho. Segundo Cristiane, os morangos são comprados, especialmente, por padarias. “Nossa produção tem destino já, durante o ano todo. Tanto que não fazemos divulgação da nossa marca. Padarias e confeitarias são os ramos que nos procuram. Como produzimos um morango de qualidade, elas preferem utilizá-los em suas receitas, e para nós isso é perfeito”, relata. A qualidade do morango, relatada com orgulho pelos produtores, é resultado de muito trabalho e dedicação, aliados à tecnologia. Marcelo conta que largou o emprego regular, em uma empresa de chocolates, para dedicar-se integralmente à plantação. Formado em Administração, o agricultor viu a oportunidade de unir saúde mental com um trabalho que lhe faça bem. “Aqui não temos feriado ou final de semana, mas estar em casa, em meio aquilo que eu gosto de fazer, é gratificante. Todos os desafios são superados. É muito bom ver aquilo que produzimos tomando forma e chegando para o consumo de tantas pessoas”, conta. A tecnologia chegou à família Pereira através do novo processo na plantação de morangos. Desde

2015, a família investiu em um projeto de irrigação por gotejamento. Ao contrário da família Fais, a modalidade é automatizada e foi montada pelo próprio Marcelo, num investimento de R$ 8 mil, que traz resultados na dinâmica do agricultor. Com apenas um clique, ele programa a irrigação do dia. A aparelhagem está toda em uma sala muito simples, construída de madeira, em um canto da plantação. Nela, se encontra tudo para que a colheita seja próspera. Além dos aparelhos, estão os nutrientes, que ao serem misturados na água levam até os morangos o necessário para o seu fortalecimento. Marcelo explica que o sistema de gotejamento é o que ele encontrou de mais eficiente para sua plantação, já que os morangos se encontram em sacolas e não no solo, como são plantados convencionalmente. Os canos que levam água até as mudas são levados até fitas, com pequenos furos, que nutrem os morangos. O processo minucioso traz à plantação a quantidade necessária de água e nutrientes, fazendo com que o produto final não seja prejudicado pelos excessos. A técnica da Emater Gramado, Janete, ressalta a importância para o solo, quando se trata da

irrigação por gotejamento. “Com esse sistema, o aproveitamento do solo é de quase 100%, no caso da propriedade que utiliza sacos para a plantio o impacto ambiental é ainda menor, já que o solo não recebe nenhum tipo de alteração”, revela. Mas é importante lembrar que o tipo de irrigação se deve muito ao tipo de produto que será cultivada. O que é necessário lembrar é que, independentemente do cultivo, do tipo de verdura, legume ou hortaliça, há muito trabalho e qualificação por trás, como a boa distribuição da água. Para que o produto chegue fresquinho para os pratos dos consumidores, existe dedicação e conhecimento minucioso, pois é preciso respeitar o produto, o clima e a rotina dos milhares de agricultores.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Fazer essa matéria para a Primeira Impressão foi uma verdadeira imersão. Seja pelo fato do interior de Gramado ter pouco sinal de internet, ou pelas paisagens que foram proporcionadas. Fiquei muito feliz de poder tirar um dia da agenda corrida e ter espaço para fazer essa reportagem. As famílias foram extremamente receptivas e atentas às nossas demandas. Como já sabia, essas localidades do interior abrigam pessoas com histórias muito interessantes, e o mais importante: que querem ser contadas. O momento foi muito oportuno para rever a simplicidade e o cuidado que os agricultores têm ao que produzem. Às vezes consumimos tantas coisas e não pensamos todo o processo que há por trás, o quanto os produtores se mobilizam, acordam cedo e lutam para oportunizar os melhores produtos e a melhor condição para as suas famílias. Produzir reportagens com maior profundidade têm muito disso, se encantar e valorizar coisas que muitas vezes passam despercebidas pelos nossos olhos. É muito gratificante dar voz a essas pessoas.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 17


A MULHER E O RIO

Jussara incorpora a forรงa das รกguas para fluir nas torrentes da vida TEXTO DE MURILO DANNENBERG FOTOS DE BIBIANA FALEIRO

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la chegou ao mundo no interior de uma embarcação e sendo embalada pelo suave fluxo das águas do rio que até hoje é a fonte de seu sustento. Foi na cabine do “Mari Virgínia”, barco do avô, Antenor Botelho de Souza, que começou a ligação elementar, entre corpo e natureza, de Jussara Botelho de Souza, de 56 anos, pescadora autônoma, no ofício há mais de quatro décadas. Ela é a mais velha de uma família de sete irmãos. A pesca é a ocupação de seus antepassados há mais gerações do que é capaz de recordar. Chegou com quatro meses em Taquari. Como os pais não tinham condições financeiras, foram para a casa do avô. Aliás, não apenas a casa era da família, mas também a “rua”. Tão numerosos eram familiares naquela trilha, que ela ficou conhecida como “Rua dos Botelho”. Posteriormente, oficializada com o nome de Antenor. Como não poderia ser diferente, a rua desemboca diretamente nas margens do rio. Pouco depois, com sete anos, ini-

ciou sua relação com a pesca. Ainda que de forma sem compromisso, ao lado da mãe, pegou em redes e anzóis pela primeira vez. Descendente de “bugres”, como chama seus antepassados que viviam quase em isolamento no interior do Vale do Taquari, Jussara tem características fortes. Pele bronzeada, pela descendência e pela exposição quase diária ao sol. O corpo, robusto, por anos carregando redes e peixes. Mas, também, pelos meios que usa para se locomover. Bicicleta, em solo firme. Barco a remo, nas águas. Rosto marcado pela expressão de quem está sempre exposto a uma forte luz. Traços largos, levemente achatados no rosto redondo. As mãos, ásperas pela labuta, palmas

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embotadas. Ainda assim, sua figura se encaixa perfeitamente no interior de sua casa, que divide com o marido e uma das netas.

Família

Jussara está casada há 41 anos com José Fernando Ferrão, de 63, também pescador. Desde o matrimônio, residem na mesma casa, no bairro Tinguité, em Taquari. José nasceu na região do Caramujo, área ribeirinha e lar de gerações de pescadores no município. Uma olhada na rua onde moram deixa claro que são dos moradores mais antigos. Vizinhos de diversos tipos de residências, a maioria com grades e muros, além de uma alvenaria recente. O lar do casal parece sair de um filme nacional antigo. Cerca de madeira, galpão de tábuas para as “tralhas” e para o carro. Chão batido, com sombras providas por árvores frutíferas. No terreno, duas pequenas casas. Uma, a dos fundos, desativada. Foi a primeira. O casal vive na da frente, que contém três cômodos privativos e espaço que serve de

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sala de estar, de jantar e cozinha. O casal gerou três filhas: Dulce Ferrão, de 41 anos; Deisi Ferrão, de 31; e Fernanda Martins, de 25. As duas primeiras moram fora de Taquari. Além disso, eles têm seis netos e uma bisneta. Junto com o casal mora uma das netas, Maria Eduarda Ferrão, de 13 anos, filha de Deisi. Ela escolheu morar com os avós por não se adaptar à vida dentro de um apartamento em uma cidade maior, mas principalmente pela ligação com os avós e o mesmo amor pelas águas. Também quer ser pescadora. Maria Eduarda, aliás, aproveita uma pausa na conversa dos avós pescadores (algo difícil de acontecer), para fazer uma confidência em tom acanhado. “Nos meus 15 anos, vou fazer as fotos lá na beira do rio”, revela. Apesar das incertezas do futuro, seu sorriso orgulhoso revela uma certeza de quem sabe o que quer.

Rotina

Cedo começa seu dia. Tão cedo que ainda é noite. Levanta-se e parte para sua rotina. Espera por tímidos, porém bem-vindos, raios solares. Quando a visitam, iluminam as possibilidades da pesca render. Por volta das 6h, já sai para o rio. Três quilômetros separam sua casa do local onde guarda o barco. Distância que cobre de bicicleta, em 30 minutos de um pedalada lenta, porém constante. Não sem esforço conclui o caminho. Passa por aclives, declives, estradas com todos os tipos de pavimentação ou até nenhuma. Próxima ao rio, de terra e saibro é solo em que pedala. Os cursos d’água da chuva deixam

irregularidades perigosas. Tão perigosas que caiu de sua bicicleta e feriu um tornozelo. Durante a Quaresma, período de maior movimentação de pescadores, passou duas semanas “de molho”, em casa. Nas águas, como não tem habilidade com a manutenção de motores, Jussara segue o fluxo ou sobe contra a corrente dependendo apenas da força e competência dos seus braços, acostumados com as curvas d’água. O esforço rotineiro mantém seu físico reforçado. Apesar da força, no entanto, não está imune a outros tipos de sufoco. Longe da sociedade e sem fiscalização, tudo acontece na superfície dos cursos d’água. Além dos riscos diários, convive com ameaças, roubos, brigas...Assédio. Profissional. Psicológico. Sexual. Jussara denuncia que o machismo, tão comum em terra firme, é potencializado nas zonas sem lei dos rios. Contudo, ela ressalta que não passou por essas situações sozinha. Se o marido não pode mais acompanhá-la, contou, até abril deste ano, com a companhia de outra mulher para praticar a pesca. Geovana Silva. A amiga


da pesca para viver”. É preciso proteger também as posses e equipamentos. “Tem muito pescador ladrão”, lamenta José, que já teve problemas com roubo diversas vezes. “Infelizmente, nesse ambiente é um mais sujo que o outro”, ressente-se. No último verão, não veio conforme o esperado. Seguro-defeso atrasou. O benefício funciona como um meio de garantir o sustento dos pescadores fora do período de pesca, entre novembro e fevereiro. O período serve para a reprodução dos peixes. É permitida a prática apenas para consumo pessoal. Porém, não é o que acontece no dia a dia. “A situação da pescaria está cada vez pior, alguns não respeitam o período de reprodução ou as leis da pesca sustentável. Temos cada vez menos peixes nos rios”, lamenta Jussara.

Reconstrução

deixou a pesca e mudou-se para São Jerônimo, onde casou. As palavras da pescadora avançam através dos mais variados assuntos. De temas pesados, a temas curiosos. Conta porque pouco usam o carro. A necessidade de austeridade financeira não casa com os preços do combustível, que mais parecem robalos, pulando cada vez mais alto. Por falar, em veículos, aliás, recorda-se de um que marcou o casal. Com uma pausa, mostra uma foto no celular. Kombi azul, modelo 1972, que a família nos anos mais produtivos do casal.

Dilúvios

Em 2017, José descobriu um câncer na bexiga e iniciou um tratamento, que dura até hoje. Desde então, ele não pode pescar. A Kombi, assim como outros bens, foi vendida para possibilitar os gastos com remédios, além das consultas e exames. Não exerce a profissão há dois anos. Os médicos pediram que parasse de praticar a pesca, pois, segundo ele, seu organismo está propenso a desenvolver câncer de pele,

além de ter um risco maior de contrair alguma infecção na água. Além disso, tem a mobilidade reduzida por conviver com hérnia e diabetes. A esposa Jussara, também não goza de perfeitas condições de saúde: tem labirintite. Apesar disso, é na água que as coisas encontram seu devido lugar para ela. Não vive sem pescar e se fica se afasta dois dias longe do rio, já fica nervosa. A pescaria destina-se à venda particular, a conhecidos ou pessoas que foram recomendadas a buscá-la. É o que o rio lhe permite. Ou os outros pescadores, que o dominam. “Se roubarem as minhas redes, não tem como provar que são minhas”, complementa. “Existe uma união de pescadores que fazem irregularidades, eles trabalham em conjunto para ficar com as melhores partes do rio, e acobertam uns aos outros” denuncia “Eles fazem isso porque não respeitam. Para eles, é feio uma mulher pescar”, reclama. José contrai-se, e assente. “Às vezes a gente tem que engolir as coisas. Ir na polícia não adianta, e na verdade, só aumenta nossos riscos. A gente precisa

Logo após a Semana Santa, que não foi muito animadora, um acontecimento profano abalou a simples família. O caíque, companheiro de trabalho, foi roubado. Jussara tentou reaver o pequeno barco, mas ninguém tinha pistas de seu paradeiro. Desistiu. De procurá-lo, não de pescar. Junto com o marido, compraram tábuas de eucalipto. Fariam em casa a substituta da embarcação subtraída. José, apenas com a ajuda da neta, começou a empreitada. “O “caíco” não pode ficar bambeando na água. “Se ficar, não passa na inspeção e a gente não pode pescar”, explica José. O serviço tem que ser feito sem pressa. Medidas seguidas à risca, o fundo deve ficar com a mesma inclinação em ambas as metades. Não há espaço para aberturas. As laterais são feitas de folha de alumínio, para o barco não ficar pesado para o motor de cinco cavalos ou para os braços de Jussara. Por fim, uma camada de manta asfáltica, para impermeabilizá-lo. Após três dias, não consecutivos, de labor, o barco está pronto. O maior sonho, porém, está além da volta ao rio. Literalmente, além. Jussara, apesar das décadas sobre a água, não conhece destino final que elas buscam sob o casco de seu barco. Jamais viu o mar. As condições financeiras, adiaram o sonho que estava previsto para ser realizado em 2017. Ainda assim, ela não desiste. As filhas prometeram que um dia a levariam e a José para botar os pés na areia e sentir, pelo corpo, o sal que lava a alma. “Ano que vem, quem sabe a gente vai…”

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Encontrar uma história tão rica e única quanto Jussara foi um privilégio. E uma sorte. Temos a imagem de que praticamente não existem pescadoras. De fato, em um ofício margeado por preconceitos e desconhecimento, e com ambiente machista, elas são poucas. Jussara, porém, vale por muitas. Conversar com ela é conversar com alguém que tem a pesca no sangue, ama o que faz e não desiste. São muitos os causos em sua trajetória. Seu marido, companheiro também no ofício da pesca, é testemunha importante para muitos dos momentos e sentimento que ela conta. No jornalismo, aprendemos a manter alguma distância profissional com as nossas fontes, mas com Jussara isso exige esforço redobrado. Além da ótima recepção, sua abertura para falar e simplicidade no ser, seu caíco, companheiro diário no rio, foi roubado entre uma entrevista e outra. Triste, mas não o suficiente para fazê-la abandonar sua paixão. Com ajuda do marido começou a construir um novo barco. E esta é a impressão que fica. Persistência.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 21


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O SUSTENTO QUE VEM DAS ÁGUAS

Famílias ribeirinhas da praia do Paquetá, em Canoas, usufruem da pesca e do turismo local para sua sobrevivência TEXTO DE VANESSA FONTOURA FOTOS DE LUANA ROSALES

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om mais de 323 mil habitantes em uma área de 131,1 quilômetros quadrados, Canoas é uma das maiores cidades da Região Metropolitana de Porto Alegre. O município gaúcho é banhado pelo Rio do Sinos e pelo Rio Gravataí, no Delta do Jacuí. É aí que se encontra a Praia do Paquetá, um local tão esquecido por alguns moradores. O acesso, hoje em dia, é fácil. Localizada no bairro Mato Grande, a “prainha”, como é conhecida, fica a poucos quilômetros da Rodovia do Parque (BR 448). Seguindo alguns quilômetros por uma estrada de chão, logo se observam as primeiras casas ribeirinhas, todas com uma peculiaridade: são altas e construídas através do sistema de palafitas. Tudo para a proteção dos moradores, que frequentemente enfrentam a fúria da natureza e a enchente dos rios. A estrada, apesar do local ser isolado, é concorrida. Há quem procure o lugar para pescar, andar de barco, se aventurar em caiaques e jet skis ou para desfrutar do comércio da região, muito conhecido pela venda de peixes. Falando em pesca, a família de Ivair Lopes e Jaqueline Freitas é muito experiente no assunto. Ivair (também chamado pelos amigos de Alemão) conta que é pescador e morador do Paquetá desde que nasceu, há 49 anos. Foi uma profissão passada de pais para filhos, a qual ele lembra de ter praticado desde sempre. “Quando cheguei aqui isso tudo era mato e banhado, nós morávamos em barracas de palha e que estavam sempre molhando por causa do rio”. Jaqueline, de 46 anos, sua esposa, é pescadora aposentada. Devido a um problema de saúde, ela fica em casa cuidando da mãe e da filha adolescente e informa que quando o marido sai para pescar leva alguns dias no rio para voltar com a carga. “Quando a gente vai pescar para longe, levamos caixas de isopor grandes e com gelo. Ficamos dois, três dias no máximo e embalamos os peixes em sacos transparentes para depois armazenar no freezer e vender”, explica. Ivair revela o modo da pesca: primeiro armam uma barraca em terra, encostam o barco no acampamento e deixam a rede no rio. Quando mais novo, fazia esse processo a cada dois dias, agora, porém, não vai com tanta frequência. “Às vezes a gente volta com 60, 70 PRIMEIRA IMPRESSÃO 23


problema bem sério no coração, além da minha mãe, que é acamada. Quando tu estás com saúde, estás acostumada a lidar com enchente, mas agora a gente tá doente e fica passando trabalho”, lamenta. Quando alaga, até mesmo os carros precisam ser removidos. Jaqueline explica que eles os levam para a casa de parentes, pois quando começa a encher o rio, já sabem o que fazer. “Nós aqui não temos nem para onde correr. Quando enche, a água dá para mais do pescoço. Em 2015 foi um desespero, parecia que o telhado ia cair em cima da gente também por causa do granizo. Nunca tinha visto um temporal daquele jeito”. “Nós morávamos em uma casa mais baixa, então sempre que dava enchente molhava tudo dentro. Fizemos esta mais alta e graças a Deus escapamos da enchente, Ivair e mas (o granizo) quebrou todas as Jaqueline telhas, chovia dentro de casa que utilizam a nem na rua”, diz Jaqueline. pesca para o As enchentes são um grande transseu sustento torno até para conseguir alimentos. “Outro problema é que ficamos sem luz. Tínhamos coisas na geladeira que estragaram. Tem uns armazéns aqui na frente que vendem carne congelada de frango e nem isso tinha para nós. E como é que vamos sair com enchente para ir no mercado? É sofredor”, reclama Jaqueline Por conta dessa adversidade pela qual já passaram durante anos, eles querem ir morar em Nova Santa Rita, cidade vizinha. Jaqueline tem uma filha que mora no município e quer se mudar para um lugar igualmente tranquilo e que tenha rio, para que Ivair possa continuar exercendo sua profissão. “Minha mãe e meu pai eram pescadores, na verdade, todos os parentes eram”, diz Ivair. Jaqueline complementa: “nossos avós se criaram na beira do rio, pelas ilhas”.

quilos de peixe, depende da sorte, porque outras vezes dá 10, 15 quilos”, esclarece o pescador. Sua esposa afirma que eles preferem se aventurar em locais mais longes da prainha. Geralmente entram no barco e vão pelo Rio Jacuí para Charqueadas, a cerca de 70 quilômetros, onde tem mais peixes e menos concorrência. “Às vezes pescamos aqui na volta, mas não muito. Não que seja sujo, mas não tem tanto peixe. Aqui tem vários pescadores e se a maioria pescar na volta fica uma tranqueira de redes”, explica Jaqueline. Os moradores contam que na semana prévia à Sexta-feira Santa houve bastante procura pelos pescados. Em seu bar, os peixes mais vendidos são piava, traíra, jundiá, pintado e carpa. “Nós não vendemos para mercados, somente direto para as pessoas. Muita gente que compra aqui é frequentadora de anos. Não fazemos ne24 PRIMEIRA IMPRESSÃO

nhuma publicidade só as plaquinhas na frente das casas”.

Problemas com os rios

A residência do casal fica bem em frente ao rio, assim como muitas outras, e se encontra em cima de palafitas de mais ou menos três metros de altura, para se proteger das grandes enchentes que assolam a população do Paquetá. “Já pegamos enchentes grandes. A maior foi a de 2015, quando deu aquele temporal, encostávamos o barco aqui na área. Só de caiaque para sair”, diz Ivair. Jaqueline conta que, nestes casos, eles precisam ir de barco até a BR 448, para poder conseguir um ônibus até o centro da cidade. Por este motivo, estão pensando em se mudar, já até colocaram uma placa de “vende-se” em frente ao terreno. “Eu estou com um problema de coluna e meu marido está com um

Paixão pela Prainha

Apesar de algumas dificuldades enfrentadas pelos moradores do Paquetá, o local é ponto turístico de Canoas e exerce o papel com louvor. Foi revitalizado pela Prefeitura, recebendo uma área de lazer com mesas, bancos e um deque para que o pessoal aproveite a paisagem dos rios. O cheiro não é muito agradável. Apesar do local receber muitos banhistas em dias quentes, ele não é recomendável para banho, por causa da poluição do Rio dos Sinos, um dos afluentes. Porém, isso não incomoda Valeria Lopes e Alinor Magalhães, também conhecido como Aladim. O casal é novo no Paquetá, se mudou em janeiro, mas já tem muitas histórias para contar. “A princípio, meu marido e eu somos bem andarilhos, adoramos ficar cá e lá. Viemos de Encruzilhada do Sul para Alvorada e depois ele conseguiu alguns serviços por aqui e nós viemos para cá”, conta Valeria. A moradora recente considera que a prainha é muito agradável de residir. Como ela tem problemas de saúde, fica feliz em morar próximo ao Hospital Conceição onde se trata, em Porto Alegre. “O acesso não é muito fácil, os ônibus têm horários muito longos um do outro, mas como hoje há a possibilidade do Uber, então a


Alinor e Valeria em seu barco sustentável

gente sai tranquilo” diz. Valeria informa que sempre quis conhecer a Praia do Paquetá, e hoje fica contente em morar no local. “Para mim, que morei em Encruzilhada do Sul, que é um lugar em que tu desces do carro e deixas a chave na ignição, não chaveias a porta da tua casa, não fechas a janela, aqui é um lugar igualmente tranquilo. Os moradores não se preocupam em guardar as coisas, além disso, são antigos, todos se conhecem e a maioria são famílias. São pessoas acolhedores e bem receptivas”. O marido, Alinor, não trabalha com pesca, mas está aprendendo com os vizinhos. Segundo Valeria, ele coloca a rede no rio, vai buscar os peixes, mas ainda não é profissional. “Uma coisa que é muito gratificante na vida é encontrar pessoas receptivas, que vão abrindo a porta das suas casas e têm a maior intimidade contigo. Porque é um golpe de confiança e uma amizade que será para o resto da vida”, diz, emocionada.

Fazendo mais

Por onde anda, Alinor Magalhães deixa sua marca, através de uma de suas invenções totalmente feita com material reciclado. Em sua antiga cidade, Encruzilhada do Sul, ele fez um barco com pedal de bicicleta para o açude do sítio onde trabalhava. No Paquetá, sua grande invenção será um barco, estilo pedalinho, feito da carcaça de geladeiras usadas. Ele quer construir como veículo de emergências para o Outono, época das cheias dos rios, pois não tem dinheiro para comprar um novo. “Aqui dá muita enchente, né, e a gente não tem barco e ela tem muita dificuldade de entrar nesses caiaques, então esse aqui vai ser o nosso transporte”. Mas, além disso, sua intenção com o barco é ainda mais nobre. “No Natal eu quero fazer o primeiro trenó aquático do Rio Grande do Sul. Vou transformar esse aqui com a ajuda do dono do terreno que nos cedeu a casa. Ele vai ter rodas para poder sair da água e andar pela rua”, explica Alinor.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Fazer esta reportagem foi realmente uma chuva de primeiras impressões. Apesar de morar desde que nasci em Canoas, nunca havia visitado a Praia de Paquetá, não fazia ideia nem de onde ela se localizava. Porém, há pouco me mudei para o bairro onde está localizada a prainha, o que despertou meu interesse pelo lugar e resolvi relatar a vida dessa comunidade ribeirinha. Para minha alegria, o Paquetá é completamente diferente do que eu imaginava. As pessoas são muito receptivas e realmente é um lugar turístico que oferece várias opções de lazer. Além disso, conhecer a família de Ivair e Jaqueline foi uma experiência enriquecedora sobre a vida e os acontecimentos que podem mudar o curso das nossas histórias. Inclusive pude notar algumas semelhanças entre nós, como, por exemplo, ter sofrido com o temporal de 2015, que também danificou o telhado da minha antiga casa. Já a Valeria e o Alinor conseguiram me passar uma ótima lição: nunca desistir. Conhecê-los foi vagar por belas histórias de vida, de pessoas simples, mas que, assim como todos no local, têm muito a contribuir.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 25


Águas que ajudam a superar medos também deixam marcas e levam vidas TEXTO DE GUSTAVO BAUER FOTOS DE PEDRO HAMEISTER

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AS DIFERENTES

m uma tarde chuvosa na pacata cidade de Igrejinha, um barco vermelho encostado na casa indica que é o lugar certo. Ao toque de palmas, logo surge um menino animado. Em suas pequenas mãos está outro barquinho – este proporcional ao seu tamanho – navegando por uma poça d’água da chuva. As primeiras impressões não enganam, a relação daquela família com a água é especial. O menino atraca por um instante seu brinquedo e grita para seu pai, que de prontidão atende ao chamado. Na varanda surge o mergulhador Romeu Tadeu Bischoff, de 60 anos. Os cabelos grisalhos denunciam a longa caminhada, marcada pela proximidade com o Rio Paranhana - não apenas geográfica, mas especialmente afetiva. Romeu foi criado na barranca do rio e apresentado ainda criança aos perigos que a água oferece. Aos cinco anos, enquanto soltava pandorga, caiu em um poço com oito metros de profundidade. Não fosse o apoio em uma tábua quebrada e uma corda estendida por um vizinho atento, sua história teria contornos trágicos. Para vencer o trauma, passou a ser encorajado pelo pai. O menino era levado para ajudar no esvaziamento de outros poços. De canequinha em mãos e suspenso por uma corda, dava uma ínfima contribuição ao trabalho, mas valiosa para superar seus medos. Romeu explica que sua relação com a água transcendeu de tal maneira que hoje a trata como uma virtude. A superação de um trauma 26 PRIMEIRA IMPRESSÃO


FACES DE UM RIO

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lhe apresentou o amor ao Rio Paranhana. De quase afogado quando criança, criou práticas próprias de mergulho e passou a resgatar vítimas da correnteza na adolescência. “Sempre que morre uma pessoa afogada, sabem que em Igrejinha tem um cara que acha. E por incrível que pareça, eu acho mesmo. E não uso nada de equipamento, mergulho na apneia”, conta. O mergulhador contabiliza uma estatística bastante negativa. Em toda sua vida, foram 53 pessoas encontradas mortas, sendo quase 30 corpos nas águas do Paranhana. Ele lamenta a morbidez dos fatos, com os quais muitas vezes tem pesadelos à noite, mas se orgulha por conhecer o rio como poucos. “Sempre falaram que esse foi um dom que Deus me deu e que eu teria um sexto sentido. Questionavam como eu sabia onde estavam os corpos, já que ninguém mais conseguia encontrar”, confidencia.

Reconhecimento

Mais do que um simples morador de uma região ribeirinha colonizada por germânicos, Romeu se considera um guardião do rio que corta ao meio sua cidade. O trabalho voluntário no Rio Paranhana está prestes a completar cinco décadas –

relacionamento duradouro que o rendeu títulos de personalidade social e também dois mandatos como vereador. Embora encontrar corpos seja um de seus atributos – com ou sem vida - o mergulhador conta que a preservação ambiental sempre foi sua maior virtude. Ainda jovem iniciou o projeto Amigos do Rio, que tem a intenção de recuperar as barrancas do local. Relembrando o passado, conta que diversas árvores foram plantadas e muito lixo retirado, especialmente os resíduos lançados pelas fábricas do setor calçadista. Por bater de frente com as empresas e denunciar a mortandade de peixes, Romeu era visto como um vilão. Ele afirma que hoje Igrejinha está mais preservada do que há décadas passadas. Como legado ao trabalho voluntário, aponta para os morros repletos de árvores, lembrando que antigamente não havia nada.

Enchentes

Paranhana vem da língua guarani e significa ‘rio que corre ligeiro’. O nome diz muito sobre suas características e ajuda a explicar as enchentes que com frequência acometem a região. A mais recente - ocorrida no dia 10 de janeiro de 2010 – surpreendeu as cidades de Igrejinha e Três Coroas. Mais de 300 famílias ficaram desalojadas e uma pessoa morreu. Romeu Bischoff foi um dos primeiros a ser chamado. Ele lembra que naquele dia chovia demais nas cabeceiras, especialmente nos três arroios que desaguam no Rio Paranhana. Este era o sinal de que o pior estava a caminho: a enchente era inevitável. Desde a adolescência, Romeu Romeu é no supervisiona o rio como se fosse um reconhecido Paranhana por sua guardião, estando atento a qualquer relação com o rio movimento atípico. “Sempre que e pelo resgate de tem enchente ninguém precisa me 53 corpos

ligar. É algo inacreditável que ficou marcado desde guri aqui na cidade: ‘não se preocupa que o Romeu está lá’. Quando acho que o rio vai sair eu não vou dormir. E digo para as pessoas: pode dormir, se o rio sair vocês vão ser os primeiros a saber. Chego a me arrepiar”, comenta. Foi assim na última enchente, embora tenha acontecido em pouquíssimo tempo. “Tu não esperavas que ia vir toda aquela água. Foi simplesmente um dilúvio, uma nuvem que baixa e chove só ali. Eu estou sempre de olho no rio, mas chamou a atenção que as pessoas não tiveram tempo de tirar o gado. Vimos muito boi, vaca e porco ser levado pela correnteza. Em muitos casos só deu tempo de as pessoas saírem de casa e a água levou tudo”, conta. Ao participar ativamente dos resgates e evacuações, Romeu relata que as enchentes deixam marcas eternas em muitas pessoas. E além disso, os efeitos das enxurradas afetam uma administração e atrasam o município, causando uma série de prejuízos. A maior enchente da história da região ocorreu em 1982, quando Igrejinha ficou totalmente debaixo d’água. Devido ao estrago, a cidade teria retrocedido seu desenvolvimento em dez anos.

Difícil de esquecer

Entre as sequelas deixadas por uma enchente, a pior delas é sem dúvida a morte. Muitos atribuem como obra do destino, reconhecendo que era pra acontecer. Mas de forma inevitável, a dor da perda afeta o psicológico de quem está ao redor - e mais ainda de quem poderia ter sido a vítima. Para João Rafael Venturini, de 54 anos, o dia 10 de janeiro de 2010 jamais será esquecido. A morte de um grande amigo e o novo nascimento ainda estão nítidos em sua memória. Eram quase 11h da manhã, chovia forte no bairro Sander, em Três Coroas. Rafael se preparava para sair com a esposa e a filha para almoçar. Era pra ser mais um programa típico de domingo, mas acabou não acontecendo. Ao pisar na rua, estranhamente percebeu que a água estava alta, algo incomum desde que passou a morar no local. De imediato foi aos fundos de sua casa, que faz divisa com um morro, porém nada foi constatado à primeira vista. 28 PRIMEIRA IMPRESSÃO


Por segurança, Rafael tirou o carro da garagem e o estacionou em frente à casa. Em seguida colocou sua filha Daniela, na época com 11 anos, dentro do veículo e a deixou brincando em seu laptop. O nível da água continuava subindo, fazendo com que seu amigo e inquilino Iremar Batista também retirasse seu carro, que estava com os pneus submersos. O valo que corta o terreno encheu rapidamente, aumentando a preocupação. Mal sabiam eles que o pior estava por vir - um grande volume de água havia represado no muro da escola. Foram instantes para que a estrutura rompesse. Na frente da casa, Iremar gritou para Rafael resgatar sua mãe, que estava sendo levada pela água. Ela morava em outra cidade do interior e pela primeira vez na vida andou de ônibus para visitar o filho. Foi então que Rafael correu para dentro do pátio, pulou o muro e pegou a senhora pela mão. Devido à correnteza e ao peso da senhora, ele raspou sua costela no muro por seis metros. Nesse momento a estrutura estourou. Ela conseguiu ser socorrida por vizinhos. Iremar e Rafael não tiveram a mesma sorte - afundaram e foram arrastados por mais de 200 metros. Em lágrimas, Rafael conta que

o trajeto de sua casa até o posto de saúde (local onde foram parar) durou uma eternidade. Ao perceber que estava vivo, mesmo com diversos sangramentos e fraturas, olhou para o lado e avistou o amigo Iremar, que estava de barriga para baixo, sem vida. Iremar foi a única vítima das enchentes daquele ano no Vale do Paranhana. Diante da perda, Rafael passou a pensar na filha que deixou dentro do carro. Insistiu em retornar para casa, mas foi socorrido por vizinhos e levado para o hospital. Lá recebeu curativos e colocou o braço no lugar. Depois deste dia, passou dois meses na cadeira de rodas sem conseguir caminhar – momento em que o apoio da filha e da ex-mulher foram essenciais. Fatos como este deixam marcas, fazem refletir e abrem um novo capítulo em muitas histórias. “Na minha vida foi uma mudança total, hoje sou outro cara. Antes eu pensava mais em mim, depois disso mudei bastante e penso diferente sobre a vida. Eu comemoro o dia 10 de janeiro como um novo aniversário, não consigo esquecer. Sei de tudo, detalhe por detalhe, parece que é hoje que está acontecendo”, conta, emocionado. A maior lamentação de Rafael naquele dia foi não conseguir sal-

var o amigo. Iremar trabalhava como zelador na escola do bairro e a atenção que ele tinha com as crianças chamou a atenção da família Venturini. Certo dia Iremar estava reclamando do valor pago no imóvel que morava e cogitava voltar para sua cidade natal. Foi então que Rafael, na intenção de ajudá-lo, ofereceu uma casa aos fundos da sua e cobrou apenas R$ 300, isentando água e luz. Ato de bondade que reforçou os laços de amizade entre ambos, que mesmo diante da morte seguem fortes em memória.

João Rafael ainda tem vivas em sua memória as lembranças do dia em que foi arrastado pela enchente

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Traduzir emoções em palavras não é uma tarefa fácil, exige sensibilidade aos detalhes e uma imersão no ambiente dos personagens. Decidi escrever sobre o medo que as famílias ribeirinhas têm de enchentes, o que me levou até o Rio Paranhana. Falar sobre enchentes carrega consigo uma bagagem negativa, e se torna inevitável associá-las à destruição e mortes. Escutar as histórias de Romeu Bischoff e de João Rafael Venturini foi realmente uma grande experiência que levarei para a vida. Eu e o fotógrafo Pedro Hameister fomos gentilmente recebidos em suas casas durante um sábado chuvoso. Por meio das confidências, buscamos documentar nesta reportagem as emocionantes memórias e histórias que marcaram a vida de ambos. Conversar com Romeu me ensinou que para escrever um bom texto devemos ouvir mais as pessoas, saber o que elas sentem. Outro aprendizado foi lidar com as lágrimas e a emoção de Rafael, frequentes durante a entrevista. Cada pessoa guarda dentro de si belas histórias, basta nós enquanto jornalistas sabermos explorá-las.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 29


C

éu azul, sol quente e praia cheia. De cima das guaritas, guarda-vidas observam a movimentação dentro d’água e se dedicam, também, a orientações na areia. De repente, o som ambiente é interrompido por um apitaço. É hora de agir. Alguém está em perigo. Na contramão de todo o seu encanto, é o mar alertando para a curta distância entre a vida e a morte. Segundos separam uma da outra. Os guarda-vidas lutam contra o tempo para não deixar que pessoas sejam levadas pela imensidão de água salgada. Atuando no resgate de vítimas há 16 anos, Cristiano da Rosa de Souza é dos mais conhecidos na Praia da Guarita, em Torres. Do céu ao mar, o bombeiro de 39 anos abandonou o balonismo para se dedicar à carreira militar. Natural da cidade, arrisca a própria vida para salvar a de desconhecidos. Integrante da Companhia Especial de Busca e Salvamento (CEBS) de Porto Alegre, o soldado Da Rosa atua na Operação Verão desde que ingressou no órgão de segurança. Há 15 anos, está na Guarita 11. “A mais bela e invejada de todas”, diz, se referindo à localizada na Praia da Guarita, considerado o ponto mais perigoso do Litoral Norte. “No verão, esse é o meu escritório, o quintal de casa”. Especializado em salvamento no mar, o que pode afirmar, cheio de felicidade, é que nunca perdeu ninguém. “O meu medo é perder uma pessoa por não chegar a tempo, e é isso que me motiva a treinar todos os dias, a não sair da praia mesmo após o horário de serviço. Nada supera voltar para casa e saber que você fez o seu melhor”. Do alto do morro, olhando com fascínio sobre as águas, o guarda-vidas relembra um salvamento ocorrido em janeiro de 2018. “Um rapaz entrou na água correndo, em um trecho sinalizado com bandeiras, indicando perigo. O meu colega apitou, mas ele ignorou”, recorda Da Rosa, que já seguia em direção ao mar, prevendo o afogamento. “Cerca de 20 segundos depois, ao alcançar o jovem, percebi que estava em choque. Segurou a boia, agarrou minha regata e não soltou mais”, comenta, confessando que se viu entre a vida e a morte. “Um homem tentou ajudar, mas acabou tendo que ser socorrido pelo meu colega”, pondera. “Ele me puxava para baixo d’água. As ondas quebravam e nos impediam de subir. Tive que utilizar de manobras drásticas para salvar nós dois”. Menos de um mês depois, no Carnaval, mais um resgate difícil. “Um homem, sob o efeito de álcool, caiu em uma corrente de retorno (popular repuxo). Faltando uns 10 metros para alcançar a vítima, ela desapareceu. Quando cheguei, estava desacordada”, conta Da Rosa, relembrando, também, uma situação envolvendo um ex-nadador profissional. “Ele estava a uns 80, 100 metros da beira da praia, e não conseguia voltar. Se não tivéssemos intervindo, teria morrido”, completa, reforçando que no mar não basta saber nadar. “É preciso saber para onde nadar”. 30 PRIMEIRA IMPRESSÃO

Herança do pai, o soldado tem uma vida inteira ligada às águas de Torres. “Meu pai pescava e eu sempre estava do lado”, conta Da Rosa, que também pratica caça submarina. “Ainda guri, com uns 13 anos, mergulhei na Praia da Guarita e enxerguei um mundo debaixo d’água”, recorda, olhando encantado para o mar. “Isso é parte de mim”.

“A gente tira gás de onde não tem”

Colega de profissão de Da Rosa, Daniel Batista da Rocha, 35 anos, também é bombeiro militar há 16. Os dois trabalham juntos no CEBS e compartilham a Operação Verão. Atualmente, o soldado é guarda-vidas na sua cidade natal, Passo de Torres, em Santa Catarina. Nos dois primeiros anos, foi guarda-vidas civil na cidade de origem. Em 2001, com uma semana de trabalho, o primeiro salvamento. “Um menino de 12 anos e o pai caíram em uma corrente de retorno. Tiramos o garoto bem mal da água”, conta Rocha, relembrando que levaram a vítima em um carro particular até o hospital. “Ele perdeu a consciência, mas retomou chegando lá”, lembra, confessando que pensou que perderia o menino, que tinha epilepsia, informação compartilhada mais tarde pela família. “O pensamento de que vai perder faz com que a gente tire gás de onde não tem”. Três anos depois, resgatou uma argentina na Guarita. Na época, Rocha atuava na Praia da Cal e tinha acabado de sair do serviço. Aproveitaria o dia de sol para tirar fotos pela beira. Subiu o morro, entre a Cal e a Guarita, e lá de cima, flagrou o afogamento, no local mais perigoso da praia. “É chamado de socador pelos guarda-vidas e morredor pelos populares”, destaca o soldado. “É como se uma pessoa estivesse dentro de uma máquina de lavar”. O acesso ao local foi pelas escadas, os mesmos degraus percorridos por quem se arrisca a descer até lá para tirar fotos. Ao chegar à vítima, um pescador já tentava ajudar com uma linha de pesca. “Ela estava desmaiada, no chamado grau 5 de afogamento, inconsciente e com os batimentos quase nulos. Estava sozinho, sem boia, o mar agitado. Tentava manter ela dentro da furna, mas a força da água nos jogava para fora”, relembra ele, que depois de muito esforço conseguiu manter a mulher em local seguro. “Ela estava de roupa e tênis, foi derrubada pelas ondas”, completa. Socorrida ao hospital, ficou uma semana em coma. Hoje vive sem


PARAÍSO PERIGOSO

Enganados por um mar cristalino, amantes da água se veem diante do medo de que aquele seja o último mergulho TEXTO DE THAÍS LAUCK. FOTOS DE EDUARDA BITENCOURT

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Até 2010, quando parou de contar, o soldado Da Rosa registrava 500 salvamentos nas prais de Torres

nenhuma sequela. Agradecida pela vida, a mulher e sua família ainda mantém contato com Rocha.

“A vida é curta”

Dia 3 de fevereiro, 15h50. Vinícius Oliveira, 23 anos, subia o morro do Parque Estadual da Guarita para um banho de mar no intervalo do almoço. Nascido em Torres, conhecia o local. “Seria um intervalo normal, nem reparei que o mar tinha virado com o vento. Dias atrás pulei no mesmo lugar e saí nadando de boa”, conta. Pai de uma menina de um ano, desconsiderou os perigos indicados pela bandeira vermelha, o vento forte e o mar agitado. Pulou na água e foi levado para longe da beira. “Percebi que não saía do lugar e que não sairia do mar numa boa. Nadava e não movia nada, comecei a gritar por socorro”, lembra Vinícius, temendo, ainda, ser jogado contra as pedras. O socorro veio do alto do Morro. Uma equipe da RBS TV fazia matéria no local e percebeu o pedido de ajuda. Com apoio de veranistas, acionaram os guarda-vidas, que resgataram o jovem 36 minutos depois. “Pensei na minha filha, que nem iria me conhecer direito; na minha família. A vida é curta”, diz ele, que hoje mora na Serra Gaúcha. “Agora nem quero saber de mar. Verão que vem, quem sabe”, comenta. “Morrer afogado, sozinho, só não é pior do que morrer queimado”.

“Fiquei com bastante medo”

Amante do mar desde garoto, Eric Vinícius da Silva Borba é natural de Torres. Recentemente se mudou para Arroio do Sal, mas cultiva carinho especial pela cidade com praias de águas cristalinas. “Eu gosto de surfar, e isso vem da infância. Me sinto bem perto do mar”, conta o garoto de 20 anos, ao buscar na memória lembranças de um dia difícil. 32 PRIMEIRA IMPRESSÃO


Feriado de Carnaval, final da seguia colocar a cabeça debaixo tarde de 5 de março de 2019, Praia do chuveiro, molhava aos poucos da Guarita lotada. Acompanhado da com a mão, qualquer coisa me namorada, Eric entrou na água. “O lembrava a pressão da água namar estava agitado, com corrente quele dia”, conta Eric, que buscou de retorno”, comenta, contando a ajuda de especialistas para dio drama vivido instantes depois, minuir o trauma da água. agravado por problemas de saúde. “Só lembro que uma onda bateu na altura da cintura, e que desmaiei. Morte na Praia da Cal Acordei uns 10 segundos depois, Uma excursão de mais de 40 mas não conseguia mexer os braços. pessoas sai de Dois Irmãos rumo Estava muito fraco”, lembra. Eric à Praia da Cal, em 9 de fevereiro conseguiu boiar, mas foi surpreen- de 2019. O último a embarcar foi dido por uma tentativa frustrada de Everton Jovane Hoffmann, de 26 socorro. “Um civil me puxou pelo pé anos, com meia hora de atraso. O e me empurrou cada vez mais para jovem, que foi o motivo das garo fundo do mar. Foi ali que come- galhadas do grupo durante a ida, cei a entrar em desespero”. foi o mesmo que o entristeceu na Os instantes dentro d’água volta. Vítima de afogamento, foi sodavam margem aos piores pen- corrido por guarda-vidas, mas não samentos. “Passou muita coisa resistiu e faleceu no Hospital Nossa ruim pela minha cabeça. Perdi os Senhora dos Navegantes, ainda em sentidos e entrei em pânico. Não Torres. Foi a única morte registinha força para nadar. Fiquei com trada na cidade neste verão. O jovem permaneceu o dia bastante medo”, conta o garoto, todo debaixo do guarque foi socorrido por da sol. Perto das 15h, quatro guarda-vidas, entrou na água. Merguentre eles, Da Rosa, que Soldado Rocha, na lhou uma vez e desapaestava de folga, mas sen- foto com a mulher receu. Sete guarda-vidas tado na beira do mar. Edivania da Silveira, foi o responsável por entraram no mar, mas Meses depois, o que um dos salvamentos não o localizaram. Quaera sinônimo de bem-es- mais lembrados se meia hora depois, tar, agora é medo. “Nos da Guarita, veranistas avistaram, primeiros dias não con- em 2004

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Mais de 400 quilômetros percorridos, quase seis horas de estrada e uma travessia de quatro horas a pé pelo morro que divide as praias da Cal e da Guarita, em Torres, no Litoral Norte Gaúcho. Os números comprovam a intensidade e os desafios da nossa reportagem, realizada entre os dias 30 e 31 de março. Segui até lá acompanhada da fotógrafa e colega de curso Eduarda Bitencourt, que, diga-se de passagem, foi também uma ótima guia. Conhece cada canto da cidade. Juntas, ouvimos as histórias dos guarda-vidas Da Rosa e Rocha, que compartilharam conosco as alegrias e tristezas da profissão. Foi uma grande experiência como repórter e ser humano. Mais do que nunca, voltamos para a casa convencidas do poder das águas e dos riscos dessa imensidão que é o mar. Além dos guarda-vidas, as conversas com os garotos que foram socorridos do mar e um pai que perdeu o filho em um afogamento nos emocionaram. Seus relatos reafirmaram que, até mesmo em um paraíso, nos deparamos com o limite entre a vida e a morte.”

de cima do morro, o jovem boiando próximo das pedras. A notícia chegou à família com incredulidade. “Não quis aceitar. Nunca imaginei perder um filho dessa maneira”, diz João Alcídio Hoffmann, 51 anos. “Meu filho era uma pessoa muito festeira, trabalhadora. Gostava de estar com os amigos, jogar futebol. Não deixou de viver”, lembra, com um olhar carregado de saudade.

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GALERIA

A ÁGUA E A CIDADE

Sensíveis olhares capturam e eternizam imagens efêmeras espalhadas pelos espelhos porto-alegrenses FOTOS DE GRAZIELE IARONKA

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GALERIA

A ÁGUA E A SUPERFÍCIE

Pingos. Da chuva e do orvalho. No abrigo, nas plantas, nos muros. Soltos ou agrupados, sob a lei da gravidade FOTOS DE LETÍCIA VARGAS

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CONTINUE A NADAR

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Enfrentar o tão temido elemento pode ser uma solução para pessoas que sentem medo excessivo da água TEXTO DE JÚLIA RAMONA FOTOS DE NICOLE ROTH

O

olhar busca o reflexo na água enquanto a calmaria se movimenta. O pavor começa a mover os sentidos. A respiração, que antes transcorria normalmente, agora está ofegante. As pernas, sempre rijas e firmes, bambeiam ao sabor do vento. As mãos, antes frias, escorrem suor como corredeiras em busca do seu destino. Assim como quem vai para uma guerra, uma pessoa que enfrenta a correnteza tenta vencer suas batalhas internas e derrotar seu maior inimigo: o medo de água. As contagens regressivas já não adiantam mais. Assim que a pele molhar e a cabeça estiver submersa, tudo parece perder o sentido. Sentidos, esses, que o corpo já não corresponde. A visão totalmente turva. O olfato não carrega mais os cheiros. A audição está prejudicada. O tato não traz nenhuma sensibilidade. E o paladar só sente um gosto insípido. A transparência da água só revela um elemento: o caos. O caos está presente na vida de Marli Weiler, de 73 anos, desde cedo. Ainda que a memória não ajude com tanta precisão a recordar lembranças de 50 anos atrás, a aposentada sente novamente a aflição de uma imersão ao ser provocada a enfrentar seus medos.

Embaixo d’água

Responsável por saciar a sede de bilhões de pessoas, a água também é capaz de limitar ações. Enquanto a cabeça está submersa e o corpo não reage, a fórmula H₂O traz o efeito indesejado do medo. Com pouco menos de um ano de idade, Marli, acompanhada da irmã Cléria, dez anos mais velha, explorava às águas em que a mãe, diuturnamente, colocava a força de seus braços para esfregar e torcer roupas. O córrego, que passava ao lado da casa da família, hoje conhecido como Arroio Guarani, em Novo Hamburgo, trouxe o pavor da água para a rotina da aposentada. Em uma travessura de criança que poderia ter custado-lhe a vida, a irmã mais velha deixou, sem defesas, o pequeno corpo submerso. “Ela me largou dentro da água e, quando a mãe viu, eu já estava me afogando”, conta Marli. Ao perceber a tragédia anunciada, a mãe das duas meninas correu instintivamente para resgatar a filha mais nova. A pele, já azulada, demonstrava os sinais claros de afogamento. Um minuto a mais e Marli jamais passaria a vida lamentando ter medo da água. Mais tarde, já adulta, Marli, sem saber nadar, viveu novamente o desespero de ter a pele molhada e a cabeça submersa. Era domingo, uma típica tarde de verão com o calor trincando os termômetros, quando a família de Marli buscava momentos de lazer junto a um riacho com água corrente e fresca. Na companhia da irmã Cléria e do namorado Harri - com quem está casada há 53 anos - Marli se refresPRIMEIRA IMPRESSÃO 39


cava nas águas do Rio dos Sinos, mais precisamente no Balneário Municipal Vitor Mateus Teixeira - a popular prainha de Lomba Grande -, também em Novo Hamburgo. “O Harri me empurrou, fazendo com que eu caísse. Eu não conseguia sair e ele precisou me puxar umas três vezes para me tirar de dentro da água. Naquela vez, achei que morreria”. Embora o medo de água lhe acompanhe desde o primeiro afogamento, Marli, ao relembrar de mais uma - quase - trágica história, lança risos e parece expurgar o sofrimento para uma correnteza distante. Porém, nem sempre tudo passou de um susto. Na mesma prainha de Lomba Grande, há cerca de 10 anos, a aposentada perdeu um sobrinho, de 35 anos, na luta contra a profundidade do córrego. O jovem, após resgatar duas crianças de um afogamento, pagou com sua própria vida o preço de enfrentar a revolta do rio. As experiências traumáticas envolvendo a água e seus perigos contribuíram para que Marli nunca aprendesse a nadar, mesmo buscando aulas de natação há 30 anos. “Nunca procurei entender o porquê eu tenho esse medo de água, mas no tempo em que eu fazia natação, o professor dizia que eu tinha uma barreira e que não conseguia superá-la”, comenta a aposentada. Hoje, sua relação com mares, rios e piscinas, por exemplo, é limitada pelo nervosismo e pelo receio da profundidade da água. “No mar, eu só molho até os joelhos. Já na piscina, desço pela escada e me mantenho nas bordas sem mergulhar. Definitivamente, não gosto de água”, enfatiza Marli. Especialista em tratamentos de medo e fobias, a psicóloga Daniela Franzen esclarece que o medo exagerado de algum objeto ou situação pode ser caracterizado como fobia. No caso da água, o nome do medo crônico é chamado de hidrofobia ou aquafobia. “Os fóbicos sentem-se extremamente desconfortáveis, mesmo em condições seguras, como adentrar águas rasas e tomar banho de piscina”, explica. A psicóloga também salienta que pessoas com fobia de água costumam vivenciar algum incidente e, em geral, não sabem nadar. Jacqueline Rheingantz Soares, de 55 anos, não é exceção à regra, já que nunca tentou aprender a nadar por medo. 40 PRIMEIRA IMPRESSÃO

À margem do rio

Assim como Marli, Jacqueline também vivenciou - com a própria pele molhada - um afogamento. “Eu escorreguei em uma pedra e logo cai em um buraco. Até hoje, lembro de enxergar a água e estar me afogando”, recorda, enquanto coloca os braços sobre as pernas, em uma clara posição de autodefesa. A contadora narra que, por volta dos nove anos, quando passava férias escolares na casa de seus avós

Ao acompanhar o filho pequeno nas aulas de natação, Aline encontrou nas piscinas uma forma de superar o medo que sente de água


maternos, os familiares costumavam tomar banho em um riacho próximo a residência, localizada entre Gramado e Três Coroas. “Em um desses banhos, meu primo precisou me tirar da água porque eu estava me afogando. Tudo foi muito rápido. Eu caí e logo fui tirada. Tossi um pouco, mas não desmaiei e nem precisei ir para o hospital. Até então, eu não tinha medo nenhum”. Já na adolescência, quando frequentava clubes como as Sociedades Aliança e Ginástica, ambos de Novo Hamburgo, Jacqueline refrescava-se nas piscinas, porém sempre apoiada nas bordas. “Não consigo nem imaginar eu pulando ou alguém me atirando na água. Brincadeiras dentro da piscina, então, nem pensar”, ressalta. Conforme destaca a psicóloga Carolina Trois, o medo é inerente a todos os seres humanos. Entretanto, no transtorno fóbico, “o pavor é persistente, desproporcional e irracional, podendo causar um ataque de pânico, devido a ansiedade intensa perante ao objeto ou a circunstâncias específicas”. Tais reações desmedidas impedem que os sintomas desapareçam, gerando ansiedade antecipatória e apreensão constante. Ao imaginar retornar a um riacho ou córrego qualquer, Jacqueline afirma com firmeza na voz: “beira de rio, não! Sem condições. Não consigo ver pessoas que gosto próximas à margem. Eu passo mal, suo, é uma situação de estresse total”. Quanto ao mar, a contadora comenta, rindo ao mesmo tempo, que se sente mais tranquila, contanto que a cabeça permaneça para fora da água e os pés encostados no chão. “Meu marido brinca que eu não tomo banho de mar. Água, para mim, é até o joelho”. Evitar pensar, falar e enfrentar o objeto ou situação que causa o medo excessivo é uma particularidade da pessoa com fobia, que pode passar despercebida durante toda uma vida. Da mesma forma como Marli, a primeira personagem desta narrativa, Jacqueline também nunca procurou entender o medo que sente de água. Quando questionada se frequentaria um parque aquático durante as férias de verão, a contadora desconversa. “Eu nunca fui em um parque aquático e acho que não teria coragem de ir naqueles toboáguas”.

Lidando com o medo

Ao contrário de Marli e Jacqueline que nunca aprenderam a nadar, a engenheira química Aline Bauer Lacerda, de 36 anos, procurou o Centro de Natação Mobi Dic - grafia registrada diferentemente da famosa obra estadunidense Moby Dick - em Novo Hamburgo para aprender a nadar. Além disso, Aline deseja superar a insegurança que sente ao entrar na água e incentivar, ainda mais, o pequeno Heitor - seu filho de dois anos e meio -, que desde o seu primeiro ano já frequenta as piscinas da escola. “Sempre achamos importante saber nadar e surgiu a ideia de iniciar com o Heitor desde pequeninho, para que ele tenha mais facilidade depois de adulto. Nem eu nem meu marido sabíamos nadar e, por isso, optamos por fazer junto com nosso filho”, comenta. Aos sábados pela manhã, Aline, seu marido, Álvaro e o pequeno Heitor se deslocam até a escola de natação. Ao vestir trajes de banho, pai e filho se encaminham para a piscina mais rasa. Enquanto isso, Aline se dirige à piscina que inicia com 1m20 de profundidade, aumentando para dois metros até a outra borda.

Em sua sexta aula, a engenheira química senta-se junto à borda e se impulsiona até a água para entrar na piscina. Para que ela saiba a partir de qual ponto o nível de água começa a subir, o coordenador e professor Roni Alberto Hartmann, de 54 anos, demarca o espaço com a escada em aço, que retira de dentro da piscina. “No início, o aluno não usa o espaço mais profundo, apenas com uma evolução que começa a utilizar também essa parte de piscina, deixando de ‘dar pé’ e isso é uma conquista pessoal muito interessante”, declara. Há 36 anos atuando como professor de natação, Hartmann diz ser comum pessoas procurarem por aulas para dominar o medo da água. Todavia, o professor alerta: “O aluno ou aluna pode desistir da atividade, pois, nesses casos, o processo de aprendizagem leva mais tempo se comparado a uma pessoa que não tem esse sentimento em relação à água”. Embora nunca tenha vivido uma experiência que possa ser considerada um gatilho para o desenvolvimento do medo, Aline, em suas primeiras aulas, demonstrou dificuldades, como imergir a cabeça na água. “Está sendo difícil, mas eu já me sinto satisfeita. É possível notar uma evolução, comparando com a primeira aula”, analisa.

Não evite, enfrente

O desejo de aprender a nadar é apenas um dos passos a serem dados por pessoas que sentem medo da água para, enfim, mergulhar sem fraquejar. “Se o aluno tiver uma frequência de, pelo

menos, duas vezes na semana, com orientação correta e bastante calma, o medo pode, aos poucos, ser superado”, diz o professor de natação Roni Hartmann. Além disso, a psicóloga Daniela Franzen comenta que muitas pessoas evitam ocasiões que poderiam ser agradáveis por desconhecer que o medo pode ser amenizado ou resolvido. “Existem muitas técnicas efetivas que um profissional qualificado pode aplicar para deixar mais livre a vida de quem sofre com fobia de água. Uma psicoterapia especializada em fobias pode ser uma opção para, pelo menos, minimizar os sintomas”, esclarece. Já a psicóloga Carolina Trois aborda que, muitas vezes, as pessoas não procuram tratamento porque a fobia não afeta a rotina diária. Porém, o medo de água pode prejudicar atividades sociais e recreativas. Nesses casos, é interessante encontrar maneiras de reduzir o estresse e superar o pânico. “O tratamento visa reduzir ou extinguir a ansiedade e, ainda, reverter a evitação da situação temida. Dessa forma, o fóbico em tratamento terá a oportunidade de aprender que a circunstância a qual sente tanto medo não apresenta perigo, de fato”, finaliza. Ao buscar por aulas de natação ou, ainda, pela ajuda de profissionais da área da psicologia, uma pessoa que sente medo excessivo da água também está optando por enfrentar a correnteza. Mesmo que a transparência da água apenas revele o caos, continuar a nadar sempre será uma opção para tentar derrotar o seu maior inimigo, aquele que é insípido, incolor e inodoro.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Eu também tenho medo. Medo que a água inunde meu corpo. Medo de não saber diferenciar uma poça d’água de um rio. Medo que a pele permaneça molhada e a cabeça para sempre submersa. Assim como Marli e Jacqueline, também coleciono experiências amedrontadoras em relação à água nas quais me deparei com a perda dos sentidos. Experiências, essas, que me obrigam, até hoje, a entrar em piscinas sempre pela escada e a tomar banho de mar com a água nos joelhos. Por óbvio, também não sei nadar. E, ao contrário de Aline, nunca procurei por aulas de natação - quem sabe, aqui, está o incentivo que faltava? Da mesma forma, nunca busquei entender ou amenizar tamanho medo que sinto deste elemento que preenche, pelo menos, metade de meu organismo. Ao relatar histórias de quem vê na água um inimigo a ser vencido, percebo que não se trata de uma fraqueza, mas, sim, de quão profundo você deseja submergir. E eu me sinto bem em ter os pés sempre encostados no chão e a cabeça sempre para fora d’água - contemplando o horizonte. “ PRIMEIRA IMPRESSÃO 41


A CURA A hidroginástica como alternativa de saúde e melhoria de vida para todos TEXTO DE ANDRÉ MARTINS FOTOS DE GUILHERME SANTOS

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NA ÁGUA PRIMEIRA IMPRESSÃO 43


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entro de uma piscina aquecida surge uma nova forma de se exercitar. Fugindo da rotina de academias tradicionais e adicionando um grande elemento vital, a água, nasce a hidroginástica. Exercício físico que traz benefícios satisfatórios, tanto para as pessoas com problemas físicos quanto para quem quer melhorar seu condicionamento. Milton José dos Santos, de 62 anos, é um praticante assíduo e não pensa em parar. A melhora com o seu corpo foi grande e extinguiram-se as dores que existia. “Foram três anos que acabaram com a Tendinite, Bursite e as demais dores que eu sentia”. O aposentado descobriu a hidroginástica através de indicação de amigos e decidiu “dar uma oportunidade para ela”. No primeiro momento não gostou da atividade, mas não poderia parar, pois tinha feito um pacote de seis meses, o que o fez continuar, mesmo relutante. Tudo mudou a partir de uma conversa com um praticante experiente que já estava há quatros anos na modalidade e o aconselhou a continuar. “Fiquei quatro anos mais velho, mas foram quatro anos de uma vida muito melhor”. O segredo da atividade é a água. Nela, o corpo fica entre 70 e 80% mais leve, anulando quase todo o impacto dentro da piscina, facilitando assim os exercícios para pessoas que sofrem com artrite e artrose, o que explica porque a maioria das pessoas que optam pela hidroginástica estão em faixas etárias entre 45 a 85 anos. Mas a prática também tem bons efeitos na perda de peso, na resistência muscular e no trato de problemas cardiorrespiratórios, o que atrai também os mais jovens. Em casos de graves problemas físicos, o poder da água também é importante. Esperando uma cirurgia no menisco até hoje, Claudio Nunes, de 61 anos, também aposentado, recebeu uma recomendação médica, para aliviar as dores que sofria: a natação, o primeiro exercício que experimentou, mas foi quando começou a hidroginástica e intercalando os dois exercícios que de fato conseguiu ótimos resultados. Voltando a caminhar uma 44 PRIMEIRA IMPRESSÃO

hora por dia, o que não conseguia antes, por causa das dores. Esses progressos com as duas atividades aquáticas diminuíram totalmente as suas dores, que indicava a operação no menisco, o que hoje faz com que Claudio não tenha tanta certeza se realmente é necessária a cirurgia.

Também para homens

Mesmo com os exemplos de dois homens que encontraram alternativas na hidroginástica, a frequência de pessoas do sexo masculino praticando a atividade é muito baixa. Isso se dá pelo fato de que os homens ainda têm preconceito por achar que é uma atividade feminina, conta o professor de Hidroginástica Vinicius Junqueira. Vinicius tem 34 anos e é professor de natação e hidroginástica profissionalmente há cinco anos. No início, não tinha noção nenhuma das atividades, mas a sua curiosidade pelo exercício a tornou profissão. Começou a praticar e entre uma aula e outra recebeu o convite para estagiar como instrutor de natação, já que era acadêmico de Educação Física. Gostou tanto que se tornou professor efetivo das práticas debaixo da água. Vinicius diz que a hidroginástica serve para todas as idades e até mesmo para quem sofre com os problemas de locomo-

ção, conforme os exercícios. Para o educador físico, das pessoas de idade mais avançada que costumam se preocupar mais com a saúde, são as mulheres, o que as leva a buscarem a hidroginástica mais facilmente. Segundo Vinicius, os homens têm uma certa preguiça em tentar achar uma solução viável para os problemas de saúde. “O que já se alia ao fato de chegarem na aula e, num primeiro momento, só verem mulheres, o que lhes causa estranheza e tira a vontade de ficarem”, restringindo ainda mais uma atividade que é benéfica para ambos os sexos e todas as idades, porém é vista pelos jovens e homens mais velhos com pouca atratividade.

Velhice saudável

Os principais atrativos da academia convencional para os jovens são a perda de peso e o fortalecimento muscular, características bem populares dessa geração, que busca a perfeição do corpo e a saúde. “O pessoal não conhece muito bem, acha que é coisa para idoso e tem um certo preconceito”, avalia o professor. Ele já trabalhou em uma academia de musculação e sabe as principais diferenças e os retornos que elas podem trazer para a vida das pessoas que a praticam. Vinicius cita o impacto que a água traz em cada exercício como o princi-


pal diferencial na sua prática. “Tu realizas o movimento mais pesado na água, ela faz resistência; então tu fazes um movimento de força para fazer o movimento, criando a resistência fisicamente”. A hidroginástica trabalha ativamente na melhora da pressão, nos problemas cardiorrespiratórios, na mobilidade articular e no fortalecimento muscular. Em um momento em que se preza tanto ter uma longa vida, mas com qualidade, ela se torna importantíssima para isso. Como o exemplo de Dile Agliardi, de 57 anos. Sua primeira experiência surgiu após ganhar uma aula de hidroginástica em um sorteio de Dia das Mães. Iniciou o exercício, mas logo parou. Sem fazer nenhuma atividade física, viu sua pressão subir e as dores no joelho começarem, o que a fez voltar às piscinas em busca de cura.

Empreendedorismo

O empreendedor Valdir Grassioli, de 59 anos, conheceu as academias aquáticas quando ainda era estudante de Educação Física e começou a trabalhar no ramo como professor de natação. A sorte bateu na sua porta, uma proposta inusitada chegou a ele. “O dono decidiu se aposentar e ofereceu a academia para mim, falando que “a primeira pessoa vai ser tu, se

quiseres; senão, vou dar para a outra. Eu aceitei e virei empresário”, lembra Valdir. A partir de então, o empreendedor entrou a fundo no negócio, e desde então o ampliou, criando academias em outras localidades. Atualmente, ele tem três academias espalhadas com as mesmas propostas de atividades e se prepara para abrir a próxima. “Essa será a maior piscina aquecida de Canoas com 17 metros de largura por 25 de comprimento”. Atualmente as academias aquáticas não são tão populares quanto as academias normais, mas Valdir acreditou em sua visão empreendedora e criou o espaço para que as pessoas conhecessem esse formato de exercício. O empreendedor conta que é uma pessoa que não gosta de fazer o que os outros estão fazendo. “Não é qualquer um que monta uma piscina. No esporte aquático é mais difícil, é uma estrutura mais pesada, mais cara. Nada contra, mas é muito mais fácil montar uma sala de musculação num cantinho ali e sair trabalhando”.

A água quente

A hidroginástica é feita em água quente, o que gera inúmeros benefícios. Um deles é a diminuição da pressão arterial. “Quando ela é fria vai sempre para o centro do corpo, aumentando sua pressão arterial, quando você vai para dentro da

água quente, terá um relaxamento maior, o sangue se espalha mais”, diz o ex-professor de natação. Aliando a água quente e a hidroginástica, os efeitos para o corpo são muito positivos, trazendo novas alternativas para ter uma idade avançada com qualidade e bons desempenhos físicos. A água é fonte essencial para a vida e pode ser a grande responsável por se viver mais e melhor. O ex-professor Valdir salienta: “nós somos gerados dentro de um ventre cheio da água, o líquido amniótico. Já começa por aí, nós somos da água naturalmente”.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Um novo aspecto de ver uma reportagem, criar e adaptar uma escrita de um olhar diferente sobre as informações é bem interessante, até mesmo o formato de “se estar dentro da matéria”. A forma que aborda, a conexão que quer dar e a liberdade para constituir uma boa reportagem são importantes e se tornam mais prazerosos do que continuar com os mesmos processos do lead. Trazer o literário mais próximo do jornalismo é o diferencial para ter um trabalho organizado, em dinâmica com o entrevistado e com a forma de compartilhar a história. No momento em que eu conheci as pessoas desta reportagem, pude relatar de forma mais minuciosa o que apurei nessas conversas, com um olhar diferente para aquilo que devo informar. Acho muito importante termos no nosso curso essas diferenças de formato de reportagem e esse aprendizado, mostrando que podemos seguir muitos caminhos dentro do jornalismo, sem perder a essência de informar.”

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MAIS DO QUE ESPORTES

O

final da manhã tem o sol encoberto pelas copas das árvores. A vegetação de mata atlântica faz sombra nas águas abaixo e torna mais fria ainda a correnteza calma, que logo se tornará agitada. Dentro do bote, o grupo de seis pessoas se prepara para iniciar o percurso de aproximadamente cinco quilômetros nas corredeiras do rio Paranhana. Em um trajeto que se inicia no município de Canela e tem seu ponto de chegada em Três Coroas. Antes de iniciar a descida todos ouvem atentamente os comandos repassados pelo instrutor e executam, na medida do possível, as manobras que serão necessárias

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dali em diante. Remar para frente, remar para trás, direita, esquerda, entre outras, são ordens que fazem parte da rotina de trabalho de Vitor Fernandes da Silva, de 20 anos, instrutor de rafting e apaixonado pela vida ao ar livre. Esse esporte, cujos primeiros registros remontam ao século 19 no Rio Colorado, nos Estados Unidos, hoje é a forma como Vitor ganha a vida. Sentado em um bote, que parece ser seu lugar favorito, ele fala com entusiasmo sobre sua re-


Diversão para alguns, estilo de vida para outros TEXTO DE LUCIANO PACHECO DA SILVA FOTOS DE RAFAEL CAMARGO

lação com a água. Natural de Três Coroas, atleta de canoagem slalom com experiência internacional, ele vê no rafting um misto de desafio, por ser o responsável pela segurança de todos a bordo, e satisfação, pela oportunidade de conhecer novas pessoas a cada dia. “Já atendi deficiente visual, deficiente físico, deficiente auditivo. É um passeio totalmente diferente. Para um deficiente visual, por exemplo, você tem que contar o passeio para ele o caminho inteiro, tem que explicar para ele, uma experiência enorme, para mim um crescimento como pessoa”, diz, e ressalta que não há limitações para a prática do rafting. Sempre animado, característica que o acompanha dentro e fora do bote, destaca a responsa-

bilidade que o instrutor tem em proporcionar o melhor passeio possível. “Pode ser uma família que economizou para poder estar ali, então tem que valer o investimento, tem que ser perfeito, e é esse o meu compromisso”. O início foi aos dez anos, na canoagem. Ao relembrar essa passagem, seu olhar se perde ao longe, como se tentasse alcançar um tempo cujas lembranças o fazem perder um pouco a habitual alegria. Pois o esporte surgiu em um momento PRIMEIRA IMPRESSÃO 47


difícil, e um barco e os remos o ajudaram a superar a separação dos pais. Nas palavras de Vitor, tudo começou por acaso, e a água aos poucos se tornou sua grande paixão. O menino que queria apenas deixar para trás uma situação complicada, hoje acumula experiências. Já atuou como instrutor de rafting em São Paulo, no Rio do Peixe, no Itajaí-açu, em Santa Catarina, e no Rio Quente, em Goiás. Mas sua dedicação vai além da prática dos esportes. Vitor é membro da ASTECA (Associação Trescoroense de Canoagem), entidade que trabalha para que a modalidade cresça e possa formar novos competidores. Por ser um esporte caro, ele ressalta que uma das dificuldades é se conseguir os equipamentos adequados para a prática da canoagem slalom. Nesse estilo o atleta, com auxílio do remo, desce corredeiras, passa por obstáculos naturais ou artificiais, com o menor espaço de tempo, evitando sofrer penalidades. Porém, sua sede por esportes aquáticos não para por aí. Atualmente ele ainda se dedica a uma outra categoria, conhecida como caiaque extremo, que consiste em 48 PRIMEIRA IMPRESSÃO

descer uma cachoeira com um caiaque, em queda livre. Vitor vem treinando há aproximadamente dois anos, em especial nos últimos seis meses, quando passou a dedicar mais tempo à nova prática. Em sua lista de desejos estão diferentes rios e lugares, como os chilenos Trancura e Futaleufu. O primeiro, com corredeiras classe IV e V, em uma escala que vai de I a V, e o segundo considerado o dono de algumas das corredeiras mais fortes do mundo. E também o Zambeze, um dos rios mais selvagens da África, que nasce na Zâmbia e deságua no Oceano Índico, em Moçambique, destino sonhado por todos os amantes do rafting. Outra meta traçada diz respeito a seu primeiro contato com a água. Vai trabalhar para fazer parte da equipe brasileira de canoagem slalom, uma das modalidades mais radicais do programa olímpico, nos jogos olímpicos de Paris, em 2024.

Ondas, velas e vento

Essa mesma paixão pela água e seus esportes foi o que levou o porto-alegrense Daniel Mueller, de 52

anos, a criar uma escola de surfe no Guaíba. Encantado pela paisagem de sua cidade natal, ele criou há dois anos a Waikepoint, a pedido dos amigos. O novo empreendimento representa mais um capítulo na trajetória do homem que é fascinado pelos esportes aquáticos. Velejador experiente, já correu o mundo em competições e fala sobre o tema com a naturalidade de quem faz o que gosta. “Velejo de barco de verdade, de controle remoto, o negócio é estar na água”, brinca. E para quem tem receio de entrar nas águas escuras do Guaíba, ele tranquiliza. “A qualidade da água nesse ponto é excelente, foram realizados os testes então aqui ninguém precisa ter medo”. A escola, localizada na Ilha dos Marinheiros, era até 2017 a residência de Daniel e sua família. Com a mudança, surgiu a necessidade de ocupar o espaço com algo produtivo e ao mesmo tempo manter o contato com o Guaíba, juntamente com a variedade de esportes que podem ser praticados ali. Umas das modalidades que a casa oferece é o wakeboard, na qual o praticante fica sobre uma prancha que é rebocada por um barco, com auxílio de um cabo e um manete.


Para auxiliar os participantes um dos instrutores da Wakepoint é Heiner Hofmann, de 22 anos, campeão brasileiro da modalidade. Como não poderia deixar de ser, Heiner é mais um daqueles que fazem parte desse grupo de pessoas que entram na água e não querem mais sair. Ele, que também é surfista, iniciou suas aventuras na água com o kitesurf. Esporte que utiliza uma pipa ou papagaio e uma prancha com suporte para os pés, sendo o objetivo, “voar” e deslizar sobre a água, puxado pela pipa. É uma mistura de windsurf, surfe e wakeboard. Nas palavras de Heiner, a Wakepoint é um local que contempla diversos públicos. Desde os surfistas experimentados que querem aprimorar a técnica, até mesmo aqueles que nunca entraram na água. “Aqui é possível para quem nunca pegou onda iniciar no esporte”, diz, e completa falando sobre o ambiente. “Aqui a vibe é do esporte, não interessa qual, normalmente quem vem aqui já pratica algo.” Mas o que mais chama atenção é o wakesurf. A possibilidade de pegar onda no icônico Guaíba é a atração principal, entre tantas possibilidades. A mesma lancha

que puxa o surfista por um cabo na arrancada, gera a onda tornando real o que antes não passava de uma fantasia em letra de música.

Das origens ao atual

Das agitadas águas que correm ligeiras e turbulentas, até os mais calmos lagos e remansos, o ser humano sempre buscou uma forma de interagir com um elemento essencial para a vida, que ao mesmo tempo causa fascinação e traz desafios. Se John Wesley Powel não tivesse desafiado as corredeiras de um dos maiores rios da América do Norte, hoje o rafting não reuniria tantas pessoas dentro de botes, no que pode ser para muitos a experiência mais emocionante da vida. Como na manhã em que Vitor dá instruções a um grupo de turistas, tendo à sua volta mais barcos e muita gente em uma rotina diária de descer o rio. Se os polinésios não tivessem a necessidade de se locomover pelo mar, talvez o surfe não tivesse nascido. Ao menos essa é a teoria mais aceita, e não se veria hoje uma série de esportes que derivam dele, e uma multidão de

aficionados que transformam um hobby em estilo de vida. Essa lógica vale para todas as modalidades esportivas aquáticas. Podem ter se originado pelos mais diversos motivos, mas se desenvolveram. E evoluíram apoiadas na paixão de quem as pratica e difunde. Seja um menino que encontrou apoio no esporte e hoje não consegue se imaginar em outro lugar, ou alguém que rodou o mundo, mas não se vê distante das águas de sua cidade natal.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Para alguém que tem medo de água e não sabe nadar, pode ser um tanto assustador encarar as corredeiras de um rio dentro de um bote. Mas foi exatamente isso que aconteceu comigo durante a realização da reportagem. Tive a oportunidade de experimentar um dos esportes referidos no texto, no caso, o rafting. A experiência foi marcante, uma vez que pude vivenciar parte da rotina de um dos entrevistados, além de me desafiar a fazer algo novo. Ao iniciar a reportagem, uma das minhas maiores preocupações era não fazer algo explicativo, uma apresentação de diferentes modalidades esportivas. Com esse objetivo fui atrás das fontes, pessoas que vivem intensamente sua relação com os esportes que praticam. Encontrei aficionados por atividades realizadas na água, pessoas que centram sua vida em torno daquilo que mais gostam. É inspirador ver como o que para muitos pode não passar de uma mera diversão, em alguns casos se transforma em elemento essencial na rotina de alguém.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 49


Com mais de uma década de experiência no ramo, Junior teve a oportunidade de visitar diferentes lugares do mundo

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O

DIÁRIO DE BORDO

dia estava ensolarado, o céu limpo e sem vento algum, tudo indicava para uma partida tranquila, mas era difícil conter a ansiedade quando se está prestes a, literalmente, embarcar numa das experiências mais incríveis de sua vida. Ao menos, é o que relata Junior dos Reis, ao lembrar do dia em que embarcou pela primeira vez para trabalhar em um cruzeiro, dia esse que foi o ponto de partida para uma rotina de vida em alto mar que durou uma década. Após uma série de cursos e entrevistas, Junior foi chamado para trabalhar por quatro meses em um cruzeiro pelas praias do Nordeste. O porto-alegrense, que na época tinha 19 anos, despediu-se dos amigos, pegou um voo até Recife, cidade de onde partiria seu primeiro cruzeiro. A animação, porém, logo deu lugar a uma grande frustração: “desta vez eu só aguentei quatro dias dentro do navio, eu achei muito pesado”, lembra. A função exercida e o comportamento machista de seus colegas de cabine fizeram com que Júnior desistisse rapidamente daquele que seria apenas o primeiro, dentre os outros inúmeros contratos de trabalho que ele realizaria pelos 10 anos que se seguiriam. Junior rescindiu seu contrato e desembarcou em Fernando de Noronha que, segundo ele, é um marco, pois é a primeira cidade que conheceu enquanto viajava. Porém ele também relata grande frustração e vergonha pela situação, “eu já tinha me despedido de todo mundo”, conta, enquanto ri da lembrança. “Foi bem difícil desistir de um sonho, bem frustrante voltar pra casa com uma mão na frente e outra atrás, depois de ter me despedido e passado por todo o processo e principalmente por ter conhecido outras culturas, porque

Como é a vida de quem trabalha em alto mar? O que acontece nos bastidores dos cruzeiros? Que tipo de situações podem acontecer com quem se arrisca a trabalhar por meses longe do continente? TEXTO DE EDUARDO ZANDAVALLI BRANDELLI FOTOS DE ARQUIVO PESSOAL

mesmo nesses quatro dias eu pude ter contato com pessoas de outras partes do mundo” explica. Pouco tempo após o retorno, Júnior foi chamado novamente para trabalhar em outro cruzeiro, desta vez no Mar Mediterrâneo, na Europa, e, como o objetivo era conhecer o mundo, ele resolveu dar uma segunda chance. Junior jamais poderia ter imaginado que, ao embarcar neste cruzeiro, em Veneza, na costa da Itália, ele passaria os próximos 10 anos de sua vida em alto mar. Ele conta que conheceu o Mar Mediterrâneo, o Mar Báltico, a costa da América do Sul, a América Central, a Costa Oeste dos Estados Unidos e fez o percurso transatlântico, ocasião na qual ficou quatro dias em alto mar, sem atracar. “Esse percurso do transatlântico é muito legal de fazer, os italianos têm todo um ritual para cruzar a linha do Equador, porque eles são um povo bem supersticioso, a ponto de não ter o bote número 13 no navio, e essa crença até foi reforçada depois que o navio Costa Concordia afundou, no dia 13 de janeiro de 2012”, conta Junior. Mas nem tudo são flores quando se trata de trabalhar em cruzeiros. A carga horária excessiva e sem dias de folga na semana, principalmente para cargos iniciais, faz com que algumas pessoas não consigam seguir nessa vida por muito tempo. Atualmente querendo embarcar em uma função mais elevada, Victor Duarte, que trabalhou em cruzeiros pelos mares Mediterrâneo e Báltico por apenas um ano, antes de retornar para casa, conta que deseja muito repetir a experiência, mas que não faria se fosse no mesmo cargo. Com um ano de experiência ele está tentando voltar para a vida em alto mar, porém, desta vez busca um cargo mais alto. Segundo ele, a pirâmide social do cruzeiro tem três grandes níveis, os

oficiais, que ocupam o topo, o “staff”, que são as funções menos pesadas, que têm contato direto com os passageiros, e a tripulação, que faz o serviço mais pesado do navio, como faxina, lavar louça, entre outros, e tem muito pouco contato com os passageiros. Victor deseja retornar com uma função no staff. Ele conta que um cargo mais alto possibilita aproveitar muito mais as viagens, devido às regalias que a posição oferece. Mas a vida em alto mar não é um mundo à parte, e quem trabalha em cruzeiro também está sujeito a todos os perigos de uma rotina normal de trabalho, como é o caso da Caroline Scherer, que teve seu contrato interrompido por um acidente de trabalho. Ela trabalhou como garçonete durante seis meses para uma empresa italiana, e no meio do seu contrato acabou cortando a mão e teve que desembarcar do navio, interrompendo o vínculo no meio e retornando ao Brasil logo após o incidente. Ela conta que, assim como tudo na vida, a experiência de trabalhar em cruzeiros quando se é mulher demanda uma dose maior de resiliência. Relata que sofreu uma série de tentativas de assédio, e que a visão que os europeus têm da mulher brasileira é a da promiscuidade, da pessoa que está lá para arrumar marido. Explicou que inclusive foi aconselhada a fazer isso por uma colega, pois se ela conseguisse alguém com uma posição mais alta no navio ela teria regalias maiores a bordo. Caroline conta que isso é um hábito comum, e que muitas mulheres adotam. Reclamou que essas atitudes reforçam o preconceito e que, no seu caso, ao não ceder às tentativas, ela começou a sofrer pequenas sabotagens a bordo, tendo sua escala modificada para pegar os piores turnos no navio. PRIMEIRA IMPRESSÃO 51


“Houve uma vez que uma menina se suicidou, pulando do décimo andar do cruzeiro, direto no mar” relata Junior. Segundo ele, apesar desse caso ter sido suicídio, pode ocorrer de pessoas caírem no mar, e por isso, a partir do momento que se nota a falta de alguém no navio, é obrigatório parar por 24 horas.

Cruzeiro Cupido

Momentos de tensão

Incêndio a bordo, risco de afundar, motores falhando, suicídio, doenças que demandam isolamento são alguns exemplos de situações que podem ocorrer durante um cruzeiro. “Uma vez em Buenos Aires, saindo do porto, o navio dá uma ré e quando foi fazer uma volta quase virou, ficou uns 45 graus inclinado” conta Victor. Ele descreve uma situação de desespero, que ocorreu quando ele estava na parte mais alta do navio, em um treinamento, e ao olhar para o lado viu o mar quase na horizontal. “Foi uma situação que me deu pânico mesmo, eu pensei que o navio ia afundar”. O pânico durou cerca de 10 segundos, quando o navio retomou o equilíbrio e todos puderam respirar tranquilos. Ele conta que uma das tripulantes esteve a bordo do Costa Concordia, o navio que naufragou em 2012, e que, apesar de no final ter dado tudo certo, ela teve uma forte crise de pânico e acabou retornando para a cabine pelo resto do dia. A natureza também faz sua parte. Toda embarcação que navega em alto mar está sujeita a tempestades, e em mais de 10 anos nessa vida, era de se esperar que um dia acontecesse com Junior também. 52 PRIMEIRA IMPRESSÃO

“Tivemos um problema uma vez com uma tempestade muito forte, passando entre a Inglaterra e a França, numa região que o mar é muito agitado e ela acabou estragando o motor do navio”. Ele conta que o navio ficou parado e precisou de um resgate, que acelerou o cruzeiro até Copenhague, na Dinamarca, onde parou por dois dias para uma manutenção de emergência. Situações de incêndio também são bem comuns durante as viagens. Junior passou por diversas delas e houve uma semana em que ocorreu fogo todos os dias. Ele explica que o capitão dá todos os comandos em código, e que normalmente as situações são resolvidas em primeira chamada e os passageiros só são alertados em último caso. “Teve uma situação, porém, que o capitão precisou alertar os passageiros devido ao alto risco, mas o incêndio foi controlado, a única consequência foi que precisamos isolar dois setores do navio”. Navio parado em alto mar, guarda costeira acionada, helicópteros de busca, correria, desespero, esse é o cenário que se desenha quando alguém cai no mar durante um cruzeiro. Junior conta que, por lei, as buscas precisam durar no mínimo 24 horas e que o navio não pode se mover nesse período.

Ao embarcar no navio, todo mundo espera uma experiência para se recordar durante a vida toda, porém, as vezes, os reflexos da viagem podem ser permanentes, como um casamento ou um noivado. A cada duas semanas, em média, os funcionários do navio realizam uma festa, uma espécie de confraternização da tripulação. Victor conta que conheceu uma ex-namorada numa dessas festas, e que o relacionamento surgiu dentro do cruzeiro. “A rotina no navio era complicada. Trabalhar o dia inteiro e sobrava pouco tempo para se ver, mas ela, mesmo sendo de um cargo mais alto, vinha jantar comigo, no restaurante da tripulação, porque eu não podia ir no dela”, explica Victor. Assim começou um namoro, que também seguiu por um tempo após o final do cruzeiro. Victor diz que quando o contrato dele terminou ele retornou ao Brasil e comprou passagens para a Romênia, para se encontrarem novamente, e seguiram namorando, porém a distância dificultou e hoje o relacionamento ficou na amizade. Mas existem casos que terminam em casamento. Junior conta que uma colega dele nos navios conheceu seu atual marido durante o trabalho. Ele era um dos oficiais, grupo mais alto da hierarquia do cruzeiro. Conta que o casal se conheceu na viagem, iniciou um relacionamento e tempos depois ele descobriu que terminou em casamento.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Descobrir mais sobre este mundo à parte dos cruzeiros foi uma experiência bem interessante, que inclusive me deixou com vontade de tentar um dia. Cada pessoa que embarca para um contrato de trabalho em cruzeiros, vive algo diferente, é uma questão muito particular de cada um, mas a única unanimidade encontrada entre os três entrevistados foi que é uma experiência que vale a pena, e que se surgir a oportunidade, nenhum deles está fechado a retornar para esta vida. O entusiasmo e os sorrisos dos entrevistados ao lembrarem das histórias que eles viveram durante as viagens me fizeram perceber que apesar dos perrengues, o aprendizado e a bagagem cultural que um trabalho desses agrega na vida da pessoa vale muito a pena. Eu realmente tive bastante vontade de me aventurar nesse mundo após as entrevistas, e acho que este fato por si só já diz muito sobre o quão interessante deve ser conviver com tantas culturas e costumes diferentes em um lugar confinado.”


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Como um vazamento de água que atingiu o atelier de Denise Gadelha alterou suas obras e gerou uma nova exposição TEXTO DE KARINE DALLA VALLE FOTOS DE MARIANA DAMBRÓS

E

ra dezembro de 2016 quando a artista Denise Gadelha recebeu um telefonema alarmante. Morando em São Paulo com o marido Beto Bruno, vocalista da banda Cachorro Grande, foi informada que o apartamento que mantém em Porto Alegre estava em risco. Localizado em um condomínio no Mont’ Serrat, bairro de classe média da Capital, o apartamento serviu de moradia do casal durante oito anos, época em que desfrutaram do início de uma vida dedicada às artes. Beto como integrante do que viria a se tornar uma das maiores bandas de rock do Brasil e Denise como artista visual que ultrapassava as galerias de Porto Alegre para conquistar espaço em museus do eixo Rio-São Paulo. O imóvel perdeu status de lar em 2005, quando Beto mudou-se com a Cachorro Grande para São Paulo, movimento que fez a banda

ENXURRADA ARTÍSTICA 54 PRIMEIRA IMPRESSÃO


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explodir nacionalmen- Pendurada na da filha, a dentista Clarissa Ruschel dirite. Denise acompanhou parede do atelier, giu-se até o condomínio, acompanhada de o marido, deixando para “Aqui, Há Alguma um chaveiro. Assim que subiu as escadas trás algumas obras que Distância” foi do bloco e ficou diante da porta do 206, atingida pela água não poderiam seguir na do vazamento sentiu o mau cheiro que alarmara a vizimudança. Desse jeito, nhança. O chaveiro tentou destrancar a o apartamento cedido porta, mas estava lacrada. Pediu a permissão pela mãe acabou transformado de Clarissa para arrombar. “Posso?”, perguntou o em atelier. Ali, ficaram outros ob- homem. “Pode arrancar”, autorizou a dona. jetos valorosos para um casal de Centímetros de água formavam uma lâmina que artistas: uma coleção de pouco cobria todo o piso do apartamento. Manchas acinzenmais de mil vinis e uma bibliote- tadas de mofo escorriam pelas paredes. Azulejos da coca de 5 mil livros de arte. zinha se soltavam, assim como tábuas do parquet. No Fazia três meses que Beto e chão da sala, um lustre restava caído. Não havia qualDenise não botavam os pés na re- quer sinal de energia elétrica. O cheiro de bolor comsidência de número 206 quando pletava o cenário de destruição. “Fiquei muito chocada. receberam o telefonema. A voz Muito braba. Muito triste”, relembra Clarissa. feminina do outro lado da linha Não se sabe em que dia o vazamento iniciou identificava-se como a vizinha ou por quanto tempo durou. O que se sabe é que, do andar acima. “Não é trote, com portas e janelas fechadas, a água ficou retida não sou uma fã. Confia em mim. no imóvel, sem brechas para escorrer. Nem pela Tem alguma coisa acontecendo fresta da porta podia escapar: um capacho deixado no apartamento”, disse a mulher. em frente à entrada impediu que escoasse, o que Havia dias que a vizinhança sentia provavelmente teria chamado a atenção dos vizium cheio esquisito emanando do nhos, evitando teorias a respeito do cheiro. 206, reaberto somente quando Com tanta água contida, o atelier de Denise Denise voltava para visitar a mãe acabou abrigando uma espécie de microclima, que ou quando a Cachorro Grande evaporava e condensava a água, fazendo chover lá vinha ao Rio Grande do Sul para dentro. Livros e vinis deram a sorte de se safarem da matar a saudade dos fãs. enxurrada, mas duas obras de Denise, penduradas nas O mistério em torno do chei- paredes da sala, foram alvos dos respingos e passaram ro rendeu especulações. “Até ti- por um processo químico de transformação. Trabanha gente achando que o Beto lhos que haviam lhe dado reconhecimento agora estatinha morrido lá dentro”, recor- vam infestados de fungos que se alastraram pela casa da Denise. Dado o alarme, logo onde iniciara sua trajetória de artista plástica. veio a explicação. “Gente, desA sensação era de que tudo havia naufragado. culpa, acho que criei um vazamento”, adiantou a vizinha. Sem poder retornar naque- O acidente como obra de arte Denise nasceu em Belém do Pará, mas ainda le momento, Denise pediu que a mãe ficasse a par da situação. na infância mudou-se com os pais para o Rio Morando a três quadras do imóvel Grande do Sul. Cresceu em uma família tradi56 PRIMEIRA IMPRESSÃO

cional, repleta de homens que estudaram Engenharia. Encontrou resistência quando avisou aos pais que queria estudar arte. Ouviu que seria melhor escolher uma profissão que lhe desse dinheiro. Acabou cursando Artes Visuais na UFRGS, onde também fez um mestrado em Poéticas Visuais. Na época da faculdade, era comum que passasse as madrugadas debruçada sobre lápis e papéis, medindo o comprimento de materiais que posteriormente virariam objetos com conceitos artísticos. Dava sinais do que a mãe identifica como um perfeccionismo marcante na personalidade da filha. “Denise, ninguém vai perceber que tem um milímetro a mais”, dizia Clarissa, tentando convencer a jovem a dormir. “Não, mãe. Eu vou perceber”, respondia a filha. Denise tinha 26 anos quando uma de suas obras foi descoberta por Gilberto Chateaubriand, filho de Assis Chateaubriand e um dos maiores colecionadores de arte do país. Era uma imagem aérea do Itaú Cultural em São Paulo, em que também aparece a Avenida Paulista. A fotografia trabalha com o conceito de grande distância e, analisada de dentro do Itaú, sugere um novo olhar para o que parece conhecido. Instigado pela concorrência que existe entre as duas capitais culturais do Brasil, Chateaubriand queria que Denise fizesse a mesma fotografia aérea do Museu de Arte Moderna do Rio, que armazena boa parte de seu acervo de colecionador. Mas a fotografia teria de ser feita com uma condição: “A do MAM tem que ser maior do que a do Itaú”, decretou o mecenas. Composta por três impressões fotográficas que formam uma imagem do MAM visto de cima, além da Baía da Guanabara e de um trecho de Niterói, “Aqui, Há Alguma Distância” é um de seus trabalhos mais significativos. O esboço da obra, uma impressão de medidas desiguais que acabou virando prova da artista, foi pendurado na parede da sala de seu atelier, servindo como lembrança daquela conquista. Com o vazamento no final de 2016, o quadro foi uma das vítimas da água que escorreu pelas


paredes. Com o processo quími- da foto. As memórias ficaram co a que o papel de impressão mais claras quando decidi fafoi submetido, rastros na Baía zer disso uma limonada”. da Guanabara deixados pelos Para superar o incidente, lanbarcos de passeio se confundem çou mão da receita que conhecia: com riscos brancos causados fez fotos das fotografias atingidas pelos respingos do vazamento. pela enxurrada, reconfigurando Todas as bordas da fotografia os trabalhos em novas obras de ficaram com o aspecto de terem arte. Por conta das queimadusido queimadas, com manchas ras em torno da imagem, “Aqui, invadindo a imagem. Há Alguma Distância” deu oriDenise retornou a Porto Ale- gem à “Rio em Chamas”. gre semanas depois de sua mãe Outra obra que sofreu muarrombar o apartamento. Com danças e deu origem a um serinite alérgica, entrou no antigo gundo trabalho fica na parede lar munida de luvas e máscara. em frente, do outro lado da sala É difícil fazê-la contar em de- do atelier. “Espaço Tempo” é talhes como se sentiu ao ver o composta de duas fotografias: espaço tomado pelos fungos. Na o mar de uma praia em Floriaépoca, reagiu ao cenário som- nópolis e o céu em Porto Alebrio registrando tudo gre. Juntas, passam a em fotografias. “Foi impressão de que é a c h o c a n t e ” , c o n f e s s a “Espaço Permeável” paisagem de um mestambém sofreu ela, logo ponderando: alterações, mo lugar. O vazamento “É engraçado, eu vejo exibindo manchas atingiu tanto a parte das por fotografias. Não sei líquidas que nuvens quanto a parte se lembro da cena ou invadiram o quadro do mar, deixando res-

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Queria fugir do óbvio quando a turma optou por fazer uma edição temática sobre água. Botei minha cabeça para trabalhar na tentativa de encontrar uma história em que ninguém teria pensado. Então lembrei do dia em que visitei a Fundação Iberê Camargo, talvez o espaço cultural mais importante de Porto Alegre. Lá, pude observar a exposição Náufragos, da Denise Gadelha. Me chamaram a atenção as fotografias contornadas por manchas que avançavam sobre o trabalho da artista, marcas líquidas que modificavam o conceito daquelas imagens. Num texto escrito por Denise e fixado na parede do museu, fui informada que as tais manchas foram provocadas por um vazamento em seu atelier. Era a obra de arte sendo vítima das imprevisibilidades da vida, passível de seus infortúnios. A artista parecia intrigada com o processo químico a que foram submetidas suas composições fotográficas. Não vislumbrei qualquer resquício de inconformidade ou pesar. Ao entrevistar Denise, descobri que o vazamento foi uma perda e, apesar de falar mais sobre conceitos artísticos do que sobre o processo de superação, ela passou uma lição singular da vida, ainda que corriqueira: a crise também é um trampolim para novas oportunidades.”

pingos nas duas imagens. “Simbolicamente, eu estava evocando o ciclo das águas. Essa é uma das explicações que me deram para o apartamento. A água evaporou e condensou aqui dentro. Se choveu de fato dentro do apartamento, como foi explicado, é muito louco que esse trabalho tenha passado por isso. A metáfora deixou de ser metáfora. Virou realidade palpável”, divaga Denise. A fotografia da obra danificada ganhou o nome de “Espaço Tempo Permeável” e, ao lado de “Rio em Chamas” e outros cinco trabalhos, ficou em exposição na Fundação Iberê Camargo de dezembro de 2018 a março de 2019. A mostra também ganhou um nome simbólico: “Náufragos – Na Correnteza do Tempo”. No texto de apresentação, a artista expôs em poucas palavras o processo interno que percorreu para chegar até ali. “A aceitação da perda parece ser facilitada quando tratada como matéria-prima fértil a outros desdobramentos criativos”. “Foi o maior desafio profissional da minha carreira”, confessou Denise quando recebeu a reportagem em seu atelier em uma tarde chuvosa de abril. Com o sucesso da “Náufragos”, fechou parceria com a BienalSur, uma das maiores mostras de arte contemporânea da América do Sul, para que a “Espaço Permeável” – a original, vítima do vazamento –, fique exposta na UFRGS, circulando pelos campi da instituição. Depois, irá para o campus em Tramandaí, onde sofrerá reação do vento e da maresia. A ideia é que a obra complete sua desintegração, entregando-se definitivamente aos efeitos da natureza e do tempo. Até lá, Denise precisará se desapegar de outra situação: o cenário sombrio em que se transformou seu atelier, que será submetido a reformas. “Confesso que já me apeguei. Sabe o que é estranho? Aceitar que ele vai ser reformado. Sempre acho que tem mais coisa para fotografar”. PRIMEIRA IMPRESSÃO 57


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CAMINHO SOBRE O RIO Vidas se cruzam na travessia da ponte Giuseppe Garibaldi, entre Tramandaí e Imbé TEXTO E FOTOS DE NÍNIVE GIRARDI

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ão 14h de sábado, e o sol, alto no céu, ilumina o Rio Tramandaí, no Litoral Norte do Estado. A maré baixa deixa à mostra boa parte dos pilares da ponte Giuseppe Garibaldi, que liga o município de Imbé à vizinha que leva o nome dessas águas. Apesar do clima quente, o fim de semana do começo de Outono não tem o mesmo movimento do Verão. O fluxo de veículos é fraco, e os pedestres ocupam as pistas ao lado de poucos pescadores que se espalham pelo parapeito da construção. No lado de Imbé, a corretora de imóveis Carla Debastiani está pronta para cruzar a ponte. Ao lado do marido, o advogado Pedro Simões, ela repete o tra-

jeto diariamente. Os dois mantêm escritórios em Tramandaí e, há 20 anos, desde que se mudaram para a cidade dos botos, precisam atravessar o rio para trabalhar. A casa deles fica próxima da Barra, como é conhecido o canal, e, rapidamente, o sedan chumbo deixa as ruas municipais e ganha uma das pistas da ponte. A travessia, de 140 metros, dura um piscar de olhos. No rádio, uma canção do Queen mal dá os primeiros acordes e o casal já chegou ao outro lado. De carro,

a passagem de uma cidade à outra leva menos de um minuto. Apesar da rotina, os dois conservam o encanto pelo rio, um dos pontos turísticos da região. Pelas janelas do automóvel, eles observam a maré e sentem o vento litorâneo. Carla é apaixonada por água: ela gosta da barra, do mar, e considera como qualidade de vida morar perto de belezas naturais. Além de atravessar a ponte para trabalhar, eles costumam fazer o trajeto de bicicleta apenas PRIMEIRA IMPRESSÃO 59


para desfrutar da paisagem. “Só a nossa cidade tem isso. Osório e Capão não têm rio. É o cartão postal das cidades de Imbé e Tramandaí”, orgulha-se Carla. O caminho até o trabalho não passa de cinco minutos. O trânsito flui rapidamente em toda a cidade, mesmo no famoso centrinho da Avenida Emancipação, conhecido pelo movimento intenso. No Verão e nos feriados, contudo, a realidade é outra: com os veranistas, a população triplica e a ponte sofre com engarrafamentos diários, sobretudo nos horários de pico. “Atrapalha muito. A fila chega até a barra de Imbé”, conta Pedro. São quatro pistas na Giuseppe Garibaldi, duas para cada sentido, além de uma passarela para pedestres. A estrutura não dá conta do tráfego durante a alta temporada. Por isso – e devido à precariedade da construção –, tramita, na Prefeitura de Imbé, o projeto de uma nova ponte sobre o Rio Tramandaí. Pedro acha graça: ele diz que a história é ouvida há 20 anos, mas nunca sai do papel. Agora, no entanto, a proposta parece mais concreta, e já existe um convênio entre o Executivo de Imbé e o Ministério da Integração Nacional para elaboração do projeto. O doutor em Geografia Humana André Baldraia questiona a necessidade de uma nova construção. “Há uma demanda sazonal, que ocorre num curto período do ano. Para resolver esse problema, seria possível um conjunto de intervenções pontuais de engenharia de tráfego na própria ponte que existe hoje”, defende. As obras são frequentes no local, e os moradores já apontam risco no trajeto. Carla lembra que, há algum tempo, circularam na internet imagens que mostravam a precariedade das vigas que seguram as pistas. “Quando tem vendaval e sobe o nível da água do rio, a gente fica até em dúvida se a estrutura não pode ruir”, admite Pedro. Construída em 1962, a ponte Giuseppe Garibaldi já passou por inúmeras reformas. Apesar das intervenções, para Pedro, nada mudou na conexão entre os dois municípios. “A não ser a revitalização da orla, claro”. Nas margens do rio, no lado de Tramandaí, edifícios de luxo refletem na água. Os prédios dominam a cena e urbanizam a bele60 PRIMEIRA IMPRESSÃO

Apaixonada pela água, Terezinha, de 68 anos, pesca todos os dias na ponte Giuseppe Garibaldi


za natural da região. Para André, esse projeto de turismo sustenta a proposta da nova ponte. “Eu tendo a dizer que há interesses imobiliários, muito relacionados à possibilidade de construção de condomínios”, explica. Do lado de Tramandaí, aliás, a orla do rio ganhou um espaço de convivência, com pracinha e local adequado para pesca. Mas os pescadores preferem estar em cima da ponte, mesmo com a falta de segurança. “Prejudica quem passa e atrapalha o trânsito, porque as varas de pescar batem nos carros”, relata Pedro. André explica que uma boa reforma bastaria para resolver o problema. “É bem possível criar dois recuos nas laterais para que as pessoas continuem fazendo a pesca de forma muito mais segura do que ela é feita hoje”, argumenta.

“A ponte é uma festa”

De chapéu de pesca e caniço na mão, Terezinha Castanho, de 68 anos, dá risada. “Tem sempre um chato que xinga. São irritados, incomodados. A gente nem dá bola. Para que se incomodar?”, diverte-se. Ao lado de outros dez pescadores, ela se debruça nas laterais da ponte em busca dos cardumes de sardinha. A calçada que eles ocupam é estreita e próxima demais da passagem dos veículos. “Seguro não é. Sempre tem risco. Mas a gente se cuida, e os motoristas respeitam muito”, garante. São quase 15h, e Terezinha quer encher o balde, ainda com poucos peixes. A cada dez minutos, uma pequena sardinha é fisgada pelo anzol. A pesca está fraca no lado esquerdo da ponte, sentido Tramandaí-Imbé. Bom mesmo é durante a manhã: a pescadora começa às 5h30, faz intervalo de almoço e segue na atividade até o pôr-do-sol. Terezinha não fica longe da ponte. “Aqui é uma festa! Eu deixo de fazer qualquer coisa para pescar”, entrega. Até nos domingos ela marca presença na pescaria. “Mas só depois da missa”, destaca. A atividade sempre foi uma paixão e, depois da aposentadoria, se tornou uma ocupação especial. “A gente pesca, se entretém, passa um tempo gostoso. O velho não pode ficar em casa que enferruja e morre ligeiro”, brinca.

Ela mantém um semblante sério, concentrada nos puxões da linha e nos movimentos do rio. Mas, por trás da calmaria, há uma risada fervorosa e um sotaque carregado. “Eles me chamam de atriz da barra”, revela. Terezinha conta que, uma vez, apareceu em um jornal da região como “a maior pescadora da ponte”. Foi tudo uma coincidência, já que o balde dela era o mais farto no momento da reportagem. Com tantas histórias, é fácil imaginar que Terezinha nasceu e se criou nessas terras. Mas ela é natural de Soledade e viveu grande parte da vida em Canoas. A relação com o litoral começou como veranista, ainda na década de 1980. Depois da aposentadoria, Terezinha decidiu trocar de vez a cidade dos aviões pela capital das praias, e a casa de veraneio virou morada permanente. Hoje, ela vai à Região Metropolitana apenas a passeio. Além da paixão pela água, a pescadora valoriza a tranquilidade e a segurança do litoral. “Aqui tem paz! Não tem aquele povo estúpido que te derruba na rua e não pede desculpa. Sem falar no medo. Lá, não pode sair com uma joia, que eles te tiram”, relata. Na ponte, Terezinha não esconde os acessórios: vaidosa, ela combina os apetrechos da pescaria com pulseiras e anéis dourados. A paixão pela pesca revela uma conexão especial com o rio. “Traz uma sensação boa. Acho que todo o mundo sente quando está perto da água”, reflete. Terezinha frequenta a ponte como admiradora, para tomar chimarrão ou apenas observar a maré e sentir a brisa. Ela também gosta da praia, mas tem medo de pescar no mar. “Acho perigoso. Quando menos se espera, vem a onda”, confessa. É na ponte, entre os carros, que Terezinha se sente segura. Ela acredita que a estrutura das pistas não oferece grande perigo para os pescadores, mas considera vantajosa a construção de uma nova passagem sobre o rio. No entanto, André alerta que a obra pode afetar a pesca na região. “O impacto ambiental mais visível é que os botos dificilmente vão adentrar no canal para fazer a cooperação que eles fazem hoje”, explica. Pescadora assídua, Terezinha recorda que os botos já não chegam à ponte. Há três anos, os animais

não conseguem atravessar o canal, que está obstruído por areia. “Eles vinham aqui, era coisa mais linda. Eram três: a mãe, o pai e o filho”, relembra. O presidente da Colônia dos Pescadores de Tramandaí, Leandro de Andrade Miranda, admite que a construção da nova ponte divide opiniões. “Alguns dizem que pode ser um benefício, que vai alargar a barra e entrar mais peixe. Outros acreditam que vai salinizar a lagoa e afetar a traíra, o lambari, o próprio camarão”, pondera. Perto do fim de tarde, o número de pescadores aumenta na ponte. Agora, cerca de 40 pessoas disputam espaço para os caniços. Os cardumes começam a aparecer, e Terezinha vai para o outro lado acompanhar as mudanças da maré. O vento fica frio, mas a pescadora guarda roupas mais quentes no carro. É o preparo de quem pesca o ano inteiro, mesmo nos dias rigorosos do inverno. “Aqui até a água da chuva é abençoada, não causa resfriado”, garante entre risos. São 18h, e a lua começa a refletir nas águas do rio Tramandaí. Iluminada pela luz dos postes e pelos faróis dos carros, a Giuseppe Garibaldi ganha nova vida. Enquanto os pescadores se espalham na lateral, Carla e Pedro atravessam a ponte de volta para a casa. O fluxo de veículos é maior na hora do rush, e o casal consegue observar a pesca. No lado direito do veículo, de chapéu safári e caniço, Terezinha recolhe os últimos peixes do dia.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Eu sempre digo que vou ser a pessoa mais feliz do mundo quando morar em Tramandaí. Por enquanto, vivo em Osório e me contento em passar a temporada de veraneio na cidade vizinha. Por isso, diante da temática da 51ª edição da PI, minha escolha não poderia ter sido outra. Como Terezinha, também me sinto diferente quando estou perto da água. Mas, apesar de amar Tramandaí, nunca tinha caminhado pela ponte Giuseppe Garibaldi e, até a elaboração desta pauta, mal havia reparado nos pescadores que se espalham pela construção. Conheci Terezinha naquele sábado quente de abril: não sei se por acaso ou por obra do destino, mas sei que ela era a parte que faltava para a narrativa que eu queria contar. Por meio de amigos, cheguei até Carla e Pedro, que me deram um espaço no carro e dividiram comigo a travessia da ponte. Nas duas histórias, reencontrei sentimentos conhecidos: a sensação de paz que vem da água, do vento e das ondas. Nesses personagens da vida real, descobri novos olhares sobre a cidade que eu amo. Que sorte a minha reviver o verão no meio do inverno.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 61


DA PONTE

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PARA LÁ As vidas cercadas pelas águas que banham a Ilha da Pintada TEXTO DE STEFANY ROCHA FOTOS DE NATAN CAUDURO

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almamente, a água se move, moldando pequenas ondas que nascem e morrem em meio a sua imensidão. Corre, lenta, ao encontro das pedras que marcam o início da terra firme. Seu caminho, por baixo das palafitas, termina com o choque contra os barcos que lhe costeiam. Movimenta-se assim repetitivamente, até o barulho desse encontro se incorporar à serenidade do ambiente. Na confluência das águas do Rio Gravataí, Rio dos Sinos, Rio Caí e Rio Jacuí é formado o Lago Guaíba. Há milhares de anos, os sedimentos que eram carregados por essas vias fluviais seguiam pelo fluxo em uma velocidade que era bruscamente diminuída quando as águas dos rios encontravam a água do lago. Dessa forma, a matéria transportada se acumulou. Uma série de ilhas arenosas foi formada a partir da deposição destes sedimentos, dando origem ao Delta do Jacuí. Com uma área total de 17.245 hectares, compreende dezesseis ilhas que, apesar da maioria estar localizada em Porto Alegre, se espalham pelos municípios de Canoas, Nova Santa Rita, Triunfo, Charqueadas e Eldorado do Sul. Preservado ambientalmente a partir de 1976 pelo Parque Estadual Delta do Jacuí, e mais tarde também protegido pela Área de Proteção Ambiental Delta do Jacuí, o delta vem sendo ocupado desde meados de 1950. Assim como toda a região, no início as ilhas eram povoadas por povos indígenas guaranis, antes de serem colonizadas por açorianos. Conforme as cidades começaram a se desenvolver, tam-

bém as ilhas progrediram. Nem todas as ilhas possuem moradores, mas por disporem de uma boa localização e serem de fácil acesso, com o passar do tempo parte da região começou a se tornar mais habitada. Entre essas, a Ilha das Flores, a Ilha do Pavão, a Ilha Grande dos Marinheiros e a Ilha da Pintada se destacam por ser as mais frequentadas.

A vida na Ilha Na beira do rio, as casas humildes, suspensas sobre a água, tomam conta de um cenário que tem início ao atravessar uma pequena ponte, conexão da capital gaúcha com Eldorado do Sul, e segue até o final de uma das margens horizontais da Ilha, onde se encontra um estaleiro. Com cerca de mil moradores, a mais populosa das ilhas gaúchas (que no conjunto totalizam aproximadamente dez mil habitantes), é também a mais próxima do Centro de Porto Alegre. Localizada dentro do bairro Arquipélago, na capital, a aparente calmaria da Ilha da Pintada sinaliza uma característica das regiões ribeirinhas: logo cedo, a maioria dos moradores já saiu em seus modestos barcos para trabalhar. Em dia de sorte, a ilha habitada majoritariamente por pescadores e descendentes de pescadores, amanhece cercada de pei-

xes. Em outros, como no início de abril, a sorte lhes falta. “Todos os dias saímos para pescar, às vezes voltamos sem nada. Hoje tá fraco”, conta Rosângela Conceição de Andrade, de 52 anos, referindo-se a ela e ao marido. Moradora e pescadora da Ilha desde criança, segue encantada pela atividade que o local proporciona que exerça. “Pesco desde muito nova, amo minha profissão. Além da pesca, faço redes também. Hoje o meu sustento vem todo da água”, fala. Parte dos peixes que Rosângela recolhe das águas é vendida em Porto Alegre — “na cidade”, como diz—, e o restante comercializado pela comunidade. Apesar da maioria da vizinhança também trabalhar com a pesca, a renda dos moradores da Ilha vem se diversificando, já faz algum tempo. A busca por trabalhos na Capital, trabalhos artesanais e trabalhos domésticos é a alternativa encontrada. Sidnei Rodrigues de Souza, de 61 anos, mora do outro lado da ponte que fica na entrada na Ilha. Funcionário público de Eldorado do Sul, conta que sua esposa, apesar de possuir formação, preferiu trabalhar como doméstica. “Aqui na Ilha, moramos em frente a casas de pessoas que possuem muito dinheiro. Trabalhar fazendo serviços domésticos para eles é bom, porque pagam bem e garantem PRIMEIRA IMPRESSÃO 63


todos os direitos”, relata. Em sua maioria, a população da Ilha possui mais idade, e são eles que continuam fazendo da água a sua fonte de renda. No balançar das ondas, quatro homens atiram suas varas de pescar no rio, puxam, mas nada. Nenhum peixe subiu. O pescador Júlio César da Silva, de 60 anos, criado na Pintada, observa os homens, mas conta que já não pesca mais no entorno da Ilha. “Semanalmente, quando saio para pescar, entro no barco e vou mais longe. Aqui ao redor não é mais produtivo, a poluição atrapalha”, menciona. Cercando as casas, as águas do Rio Jacuí que banham a Ilha da Pintada trouxeram até uma pequena faixa de areia que costeia a residência de Rosângela parte do lixo que encontraram em seu percurso. Inúmeras garrafas plásticas, restos de alimentos, pequenos resíduos e um enorme peixe morto, encalhado na fração de terra. “É sempre assim”, dizem os moradores. A poluição se espalha ao longo da beira do rio e se alastra por toda a extensão da água, trazendo aos habitantes os desprazeres de conviver em meio ao lixo. “Grande parte desse lixo vem da Orla do Guaíba. As pessoas não têm consciência de que o que elas jogam na água pode atrapalhar a vida dos outros”, reclama Júlio. 64 PRIMEIRA IMPRESSÃO

Ainda que morar envolto pela água possa trazer alguns problemas, quem por lá habita afirma não encontrar muitas dificuldades. Suzana Ferreira, de 68 anos, comenta que, apesar da umidade do ambiente, não conhece pela comunidade ninguém que tenha tido sérios problemas de saúde. A seu ver, o mais problemático são as enchentes. “Agora faz tempo que não acontece, mas já tive a casa invadida pela água duas vezes”, conta. A Ilha não vê suas habitações serem completamente tomadas pela força da água desde 2015, quando foi inundada, deixando muitas famílias desabrigadas. A Pintada foi reconstruída aos poucos, e apesar de os moradores ainda enfrentarem alguns alagamentos, a água costuma baixar sem maiores danos. “É praticamente a única coisa ruim da Ilha”, comenta Suzana.

Contrastes da água

Com a chegada da tarde, nos finais de semana a Ilha começa a receber uma movimentação diferente da usual. A Ilha da Pintada é conhecida por ser a que mais abriga marinas, em especial de jet skis, o que faz com que os turistas ocupem as margens do rio para aproveitarem a água e a paisagem. Rafael Silveira, de 36 anos, é


riam ir atrás”, posiciona-se Júlio Humberto. Dividindo a margem das ilhas com as populações ribeirinhas, algumas casas se destacam na composição do cenário. Os grandes muros e grades guardam as mansões presentes na Ilha. Atraídos pela paisagem, por volta da década de 1990, porto-alegrenses abonados começaram a construir e comprar casarões ao redor do rio. Nas imobiliárias que vendem casas na Ilha, algumas chegam a divulgar residências que custam cerca de R$ 5 milhões. Dessas, certas construções são compradas apenas para servir como casa de veraneio. Apesar de conviverem na mesma ilha, as casas mais humildes e as casas mais luxuosas são dispersas pela Pintada de forma que acabam por terem pouco contato. Ainda assim, a disparidade econômica presente por todo o Arquipélago é fácil de ser observada.

Perto da água A diversão da qual os turistas desfrutam nas águas que rodeiam a Ilha pouco tem a ver com o modo de vida que os moradores das casas mais humildes encontram. “A nossa prainha fica do outro lado do rio. Lá a água é mais rasa, então quando queremos nos divertir com essa água toda, tomamos banho ali”, explica Júlio César. Única das ilhas gaúchas a receber a passagem de ônibus, estação de tratamento de água e rua asfaltada, a Ilha da Pintada é motivo de orgulho para os moradores. “Aqui, todos os que moram na parte dos pescadores, nos conhecemos. Juntos, tentamos reivindicar algumas coisas para melhorar a Ilha”, comenta. Boa vizinhança, cenário edênico e tranquilidade são algumas das razões que fazem com que os moradores se apeguem à Pintada. Admirar a beleza das águas que fazem parte do seu quintal é, para Rosângela, um de seus principais prazeres em habitar a Ilha. “Apesar de sempre ter vivido perto da água, não me imagino em outro lugar e nem penso em sair daqui. É lindo morar aqui”, diz. “Eu não vou sair daqui nunca”, conclui. gerente de uma dessas garagens náuticas. Morador da Pintada desde que nasceu, relata que a marina Ilhas Jet, criada há quatro anos, conta com cerca de 200 clientes fixos e raramente recebe clientes que moram na Ilha. “O movimento vem mudando bastante, crescendo nos finais de semana. As pessoas que nos procuram costumam vir da Capital, de Novo Hamburgo, Canoas.... Eles pagam uma mensalidade para hospedarem suas embarcações aqui e, quando querem, podem pegá-las para entrar na água”. Perto do meio-dia, os espaços de convivência que essas empresas reservam para os turistas na beira do rio, começam a criar agitação. A água, que balançava em seu vagaroso ritmo próprio, passa a ser cortada pelo motor dos jet skis que correm rasgando sua superfície. Embora os moradores não demostrem explicitamente desgosto pela situação, o dono de uma das marinas abrigadas na Ilha, Caymã, garante que muitos opõem-se à movimentação. “Eles ficam reclamando, parecem não perceber que isso gera emprego, renda. Ficam aqui, esperando as inundações, esperando que a Prefeitura faça algo, enquanto eles que deve-

Além dos moradores, a Pintada é frequentada também por turistas, que procuram principalmente as marinas de jet sky

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Cheguei na Ilha no final da manhã, tudo era muito calmo. Poucos eram os moradores pela rua, ainda assim, todos muito simpáticos. No caminho até entrar na Ilha, um cenário com uma aparente disparidade econômica começa a se moldar. Casas grandes e luxuosas roubaram minha atenção em um primeiro momento. Porém, ainda enquanto as enxergava, as casas mais humildes dominaram o quadro. Mais numerosas e bem precárias, essas habitações costeiam praticamente toda a Ilha, enquanto os casarões ficam mais na parte central. Ao dar a volta em toda a extensão da Pintada, encontrei movimento apenas na parte mais humilde da Ilha. Algo que me chamou a atenção, foi o carinho que os moradores possuem pela Ilha e pela água. Perguntei a todos os entrevistados sobre o que de bom e o que de ruim poderiam destacar da Ilha. Ao ‘lado ruim’, poucas eram as atribuições, por muitos sendo nem citadas. Porém, ao mencionarem o que consideravam de agradável na região, a resposta de todos passou pela palavra “tudo”.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 65


AS RUÍNAS ESQUECIDAS A Ilha das Pedras Brancas, que foi presídio comum e de presos políticos na ditadura militar, hoje sofre o apagamento do tempo. Mas suas histórias seguem vivas TEXTO DE WILLIAM MARTINS FOTOS DE GABRIELA DA SILVA 66 PRIMEIRA IMPRESSÃO


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a pequena extensão de terra, de 100 metros de comprimento por 60 metros de largura, cercada pelas águas do Lago Guaíba, é possível sentir a majestosa força da solidão. De um lado Porto Alegre, com a imensidão de uma capital. Do outro lado, a cidade de Guaíba, de onde se enxerga uma fábrica de celulose em pleno funcionamento. A Ilha das Pedras Brancas, Ilha da Pólvora ou Ilha do Presídio como é socialmente conhecida, hoje está largada à própria sorte. As ruínas do que nos anos de chumbo foi um presídio para presos políticos guardam, no que resta do prédio, as marcas castigadas pelo tempo e as pichações dos vândalos que por lá passam. Saindo da orla do município que carrega o nome do lago, leva-se cerca de dez minutos até Ilha, que fica a 2,5 quilômetros de distância do local de partida. A viagem até a Ilha das Pedras Brancas é rápida e tranquila, quando venta fraco no Guaíba. Quem navega nas águas que brindam a cidade de Porto Alegre com um lindo pôr do sol, não imagina as histórias de angústia que uma das suas ilhas esconde na estrutura que sobrou deste antigo presídio, que resiste ao tempo. Quem está na metade do trajeto, aproximando-se da terra firme, já visualiza as enormes pedras desbotadas que dão nome a Ilha. Chegando ao local, avista-se uma grande pedra com uma forte marca de água. Segundo Hans Mallmann, presidente do Guahyba Associação de Canoagem, essa divisão é até onde o Lago alcança em seus períodos de cheia, podendo inclusive, em certos momentos, deixar boa parte da extensão da Ilha submersa. Ninguém sabe o que pode encontrar no local. Mas, quem adentra a Ilha certamente se depara com o silêncio e a solidão.

Formação da Ilha

A Ilha das Pedras Brancas já abrigou diversos tipos de empreendimentos. O local já serviu de casa de pólvora na época do Império, por ser um lugar afastado. Na década de 1940 foi usado como centro para pesquisa e fabricação de vacinas contra a peste suína e, a partir de 1956, passou a ser utilizado como presídio para presos comuns.

Mas, em relação ao Lago Guaíba, a Ilha das Pedras Brancas tem sua particularidade. Sendo uma das 17 do Delta do Jacuí, que compõem o desaguadouro dos rios que formam a sua bacia, a Ilha do Presídio é a única que tem sua formação em pedras de granito. As outras 16 extensões de terra que fazem parte desse complexo são sedimentares. Segundo o historiador e mestrando da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Bruno Silveira, a Ilha “é singular, porque a água do rio avançou sobre ela depois da sua estrutura rochosa. Por isso, é a única formação rochosa magmática de um tempo geológico muito diferente e de uma constituição bem diferente das demais ilhas que estão inseridas no Delta do Jacuí”.

A questão ambiental

O Lago Guaíba abastece cerca de dois milhões de habitantes, e sua bacia hidrográfica cobre 14 municípios. A poluição sempre afetou o manancial. Entretanto, o Guaíba não atende apenas a função de abastecimento hídrico, mas muitos pescadores retiram o sustento de suas águas. Além disso, a prática de esportes é muito ativa na região. É o que o Guahyba Associação de Canoagem vem promovendo desde 1991. Com sede no Parque da Juventude, na cidade de Guaíba, são desenvolvidos projetos sociais com o objetivo de incentivar a educação ambiental. Em convênio com a prefeitura da cidade, são oferecidas aulas de canoagem para crianças a partir dos 11 anos de idade, que estejam matriculados na rede de ensino do município. Como forma de conscientização ambiental, a Associação realiza a limpeza da Ilha do Presídio uma vez por mês desde 2001, em conjunto com seus alunos. Conforme Hans Mallmann, promover a limpeza do local também colabora na prática do esporte. “Nós dependemos da qualidade da água para a prática da canoagem. Por isso, além da Ilha a gente também limpa a orla da cidade”, comenta. Além de ser lugar de descarte irregular de resíduos, chega até a Ilha do Presídio muito lixo jogado no Guaíba. Hans comenta que já encontrou diversos tipos PRIMEIRA IMPRESSÃO 67


de materiais nas suas idas até o local. “Eu já encontrei uma geladeira, um sofá...O pessoal vem descartar lixo aqui e muita coisa chega pelo Guaíba”, relata o presidente da Associação. A Associação Amigos do Meio Ambiente (AMA) também desenvolve ações de preservação da Ilha do Presídio. Segundo Eduardo Quadros, presidente da AMA, eles promovem uma ocupação positiva da Ilha a partir da conscientização dos seus visitantes. “As ações realizadas, em parceria com o Movimento Pró-Cultura de Guaíba, são feitas através de visitas guiadas, onde apresentamos os aspectos históricos e ambientais da Ilha, recolhemos resíduos e orientamos as pessoas que acessam o local”, comenta. Em relação aos aspectos ambientais, segundo Eduardo, a Ilha das Pedras Brancas está em sua melhor fase após ser ocupada. A AMA está acompanhando por mais de duas décadas o local e é possível visualizar nesse período a sucessão ecológica da Ilha. “A ilha era mantida praticamente sem vegetação, para que a visibilidade dos guardas não fosse 68 PRIMEIRA IMPRESSÃO

prejudicada, porém, desde que deixou de ser utilizada como prisão, no começo da década de 1980, a vegetação tem voltado a se estabelecer, propiciando o retorno da fauna”, diz o presidente.

Ditadura Militar

Os anos de chumbo, metáfora que define o período da ditadura militar no Brasil, já eram difíceis no Rio Grande do Sul muito antes de ficar endurecidos no resto do país. A Ilha das Pedras Brancas acolheu nas celas do presídio instalado ali, o sargento Manoel Raimundo Soares, primeiro desaparecido político do regime militar. A história da Ilha do Presídio durante a ditadura é dividida em dois períodos. O primeiro vai de 1964 a 1967, quando, a partir disso, o lugar não recebeu mais presos políticos por causa do assassinato de Manoel, encontrado morto, com as mãos e pés amarrados, boiando no Guaíba. E o segundo período, que vai de 1970 a 1973, em que a Ilha recebeu opositores da ditadura advindos da luta armada. “A partir de 1970 até 1973 o presídio é reativado e serve para prender os oponentes da ditadura que se envolveram na luta armada. Nessa fase ocorreu a maior circulação e rotatividade de presos políticos no espaço”, conta Bruno Silveira, historiador. “A Ilha para gente era sinal de muito perigo”, relata Paulo de Tarso Carneiro, ex-preso político da Ilha do Presídio e ex-militante da organização clandestina Var-Palmares, que foi levado para o local no dia do seu aniversário, 13 de maio de 1970, com um grande aparato bélico, após passar por fortes sessões de tortura no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

Segundo Bruno Silveira, a Ilha era o lugar mais tranquilo de todo o processo de repressão para os presos políticos. “Contraditoriamente ao cenário nacional, a Ilha foi o período mais ameno quanto a repressão. É fundamental dizer que nessa fase, de 1970 a 1973, não teve tortura na Ilha, porque elas ocorriam no DOPS”, diz. Paulo de Tarso Carneiro conta que chegou a ficar com 15 presos na mesma cela. As visitas na Ilha eram feitas nos domingos. Elas também ocorriam nas quartasfeiras, mas por causa do pouco público e dificuldade de acesso foram suspensas. “Tu estando em um isolamento, a todo o momento tu começas a evocar a tua vida. Eu tinha muita dificuldade de pensar no futuro. Nós não pensávamos que facilmente nos mataríamos, mas também não duvidávamos”. As condições do presídio na Ilha das Pedras Brancas durante o período militar eram precárias. Mas, segundo Raul Pont, ex-preso político da Ilha, ex-prefeito de Porto Alegre e ex-deputado, perto das experiências ruins que ele viveu enquanto preso, a Ilha era um local que se diferenciava. “As condições da


LINHA DO TEMPO De 1750 a 1800: a ilha é nomeada pelos açorianos, chegados a Porto Alegre, de Ilha das Pedras Brancas 1830 a 1845: usada como local estratégico na Revolução Farroupilha 1857 a 1860: construção da 4° Casa da Pólvora do Exército, pelo exército imperial 1930: militares deixam a Ilha 1950 a 1955: utilização da estrutura da Ilha para laboratório de pesquisa e desenvolvimento de vacina contra a peste suína

Ilha sempre foram precárias. Agora, comparada com outras situações vividas, como o DOPS ou a Operação Bandeirantes, a Ilha era um outro quadro, outra situação. Nós tínhamos uma liberdade maior de locomoção dentro da Ilha”. Além disso, os presos montaram uma biblioteca dentro do presídio. As celas do lugar ficavam abertas, apenas o portão central era fechado. Os presos tinham autonomia. “Enquanto presídio político, as condições eram melhores das situações que eu conheci ou fiquei sabendo do resto do Brasil”, comenta Raul Pont. O presídio da Ilha das Pedras Brancas foi desativado em 1983. Territorialmente a Ilha pertence a Porto Alegre, mas foi cedida ao mu-

nicípio de Guaíba. Em 2014 o local se tornou Patrimônio Histórico do Estado do Rio Grande do Sul devido a sua importância histórica, com um potencial em termos de educação ambiental e patrimonial. O processo de tombamento da Ilha, segundo Eduardo Quadros, é importante para se conhecer a História. “É impossível fazer uma visita cuidadosa às ruínas do presídio, caminhar por seu corredor central, entrar em uma de suas celas e sentir a umidade e o frio de suas paredes, sem imaginar como teriam sido as condições daquelas pessoas que ali estiveram detidas por defender suas ideias, sem sair dali com uma série de reflexões, inclusive, mais do que nunca, sobre os tempos atuais”.

1956: por uma crise de superlotação nas cadeias, decidem transformar a ilha em presídio 1964: com o início da Ditadura Militar no Brasil, presos políticos começam a ser enviados à Ilha 1965: é morto o sargento Manoel Raymundo Soares e tem seu corpo atirado no Guaíba

1972: primeira desativação da Ilha, após a morte de Eduardo da Silva, ladrão de carros preso irregularmente 1979: Susepe passa administrar o local 1980: reativação do presídio pelo governador Amaral de Souza 1981: comissão de direitos humanos visita o local, após denúncias de maus tratos a presos e o preso Jardelino de Barros foge da ilha de caiaque 1983: com a fuga do preso Julio de Castilhos, usando panelas como caiaque, o governador Jair Soares ordena o fechamento da prisão. Dessa forma, a administração da Ilha passa da Secretaria de Segurança, para a Secretaria de Turismo do Estado 1987: utilizado pela Brigada Militar como base de treinamento do Corpo de Bombeiros 2005: a cidade de Guaíba recebe a autorização para a exploração da ilha por cinco anos, em parceria com as ONG's AMA e Pró-cultura 2010: renovação da autorização de exploração pelo município de Guaíba por mais 25 anos

IMPRESSÕES DE REPÓRTER A maior dificuldade desta reportagem foi o acesso à Ilha. A fotógrafa Gabriela da Silva e eu não encontramos alguém que nos levasse até o lugar logo no início da apuração. Mas, com o andamento da matéria e com a busca de fontes, chegamos até a Guayba Associação de Canoagem, que foi extremamente prestativa ao nos levar pela primeira vez até a Ilha. Depois fomos novamente com o grupo da Associação Amigos do Meio Ambiente e da Guaíba Pró-Cultura. Durante as duas vezes em que estivemos lá, foi possível sentir toda a força histórica que as paredes daquele Presídio carregam. Essa matéria nos permitiu ter experiências muito importantes para a construção de um jornalista em formação. Uma delas foi ouvir os relatos de tortura que Paulo de Tarso e Raul Pont sofreram durante o período militar. Pessoalmente, posso afirmar que, acompanhar essas histórias me transformou como pessoa. Além disso, faço um agradecimento especial a colega, amiga e jornalista Daniela Tremarin, que deu a ideia inicial dessa matéria.” PRIMEIRA IMPRESSÃO 69


Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS Cep: 93022-750. Telefone: (51) 3591.1122 Site: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR ACADÊMICO E DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: Alsones Balestrin PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Sérgio Eduardo Mariucci GERENTE DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO: Paula Campagnolo COORDENADORES DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs e Micael Behs

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Orientação Nikão Duarte (luizfd@unisinos.br) - Redação Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br) - Fotografia

Reportagem Atividade Acadêmica: Narrativas Jornalísticas e Planejamento Editorial André Martins, Bruna Lago, Eduardo Zandavalli Brandelli, Gustavo Bauer, Júlia Ramona, Karine Dalla Valle, Luciano Pacheco da Silva, Maese Closs, Murilo Dannenberg, Nínive Girardi, Renata Garcia, Stefany Rocha, Thaís Lauck, Vanessa Fontoura e William Martins MONITORIA: Luísa Ortiz Boéssio

Fotografia Atividade Acadêmica: Projeto Experimental em Fotografia Bibiana Faleiro, Eduarda Bitencourt, Gabriela da Silva, Graziele Iaronka, Guilherme Santos, Laura Nienow, Letícia Vargas, Luana Rosales, Mariana Dambrós, Martina Belotto, Natan Cauduro, Nicole Roth, Pedro Hameister, Rafael Camargo e Vitorya Paulo FOTO DE CAPA: Vitorya Paulo

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Editoração PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: Marcelo Garcia

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